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e 3 Refeitório da Casa Pia de Lisboa no Mosteiro dos Jerónimos As mesas corridas, com os copos, os

Percorrer a diferença na Modernidade

Documentos 2 e 3 Refeitório da Casa Pia de Lisboa no Mosteiro dos Jerónimos As mesas corridas, com os copos, os

pratos, os jarros da água, enfileirados pelos lugares, preenchem esta fotografia de 1945. Do lado direito, quarenta anos antes, os rapazes dão graças pela refeição que está depositada à sua frente. Contudo, pouca falta fizeram a quem visita a fotografia da sala vazia, pois o leitor imagina, facilmente, distraidamente, os lugares repletos. “Há um

carácter indicial dos cenários, criando a imagem antes de a imagem existir e revelar o que é”.68

A escola, peça fundamental da máquina de reprodução social, que continuadamente orienta as capacidades dos alunos para as competências exigidas pela norma, constrói-se como um espaço de fabricação de indivíduos capazes de assentarem a sua conduta na submissão aos interesses do Estado.

“Le problème de l’éducation est aujourd’hui : Étant donné un individu ou un peuple, n’importe, développer ses appareils de manière á ce que ses fonctions acquièrent le plus d’activité, de rapidité, d’étendue et de précision possibles ; 66 ALMEIDA, 1861: 54. 67 MARGIOCHI, 1895: 3. 68 MARTINS, 2008: 45.

fonctions cérébrales, fonctions musculaires, fonctions sensoriales, organes de la pensée, du mouvement, des sensations, fonctions du corps et de l’âme, main- d’œuvre, intelligence et moralité, l’éducation doit tout embrasser".69

A educação deve tocar todos os domínios da construção do indivíduo. Quer “o homem

nasça bom, só outro o faça mau, quer o homem seja mau de nascença”, independentemente do

princípio orientador, o que em nenhum deles deixa de ser visível, é o poder do homem sobre o homem, isto é, o da educação.70 O governo da população, fundeado na instrução, deambula entre os perímetros da dominação e da liberdade, com o intuito, não de produzir súbditos, mas de fabricar “unidades sociais produtivas, cidadãos úteis para a República”.71

“Ser útil à pátria é o primeiro dever do cidadão! Ser útil aos nossos semelhantes é o primeiro e maior de todos os deveres porque é o dever que mais agrada à divindade que no-lo recomendou! No cumprimento destes deveres é que têm o seu princípio todas as nossas garantias, todos os nossos direitos e por conclusão lógica toda a nossa felicidade!”.72

Concretizar este princípio seria, porventura, a garantia de sobrevivência do Estado- Nação moderno, assente na edificação de um corpo de cidadãos úteis, a si e aos outros, realiza- dos, livres e felizes, capazes de construir a sua existência apoiada na prosperidade e no desen- volvimento. Aos que a natureza, ou as circunstâncias da vida, fadou com o ónus da anormalida- de, procura-se, a todo o custo, “que se assista a si próprio e favoreça, pouco ou muito, a colecti-

vidade”.73

A vigilância permanente, classificadora, que permite distribuir os indivíduos, avaliá-los, analisá-los, conhecê-los, hierarquizá-los e localizá-los, proporciona a sua exploração ao máximo. Já não é necessário utilizar meios coercivos para constrangê-los. A disciplina que se incute na alma do indivíduo fabrica corpos submissos e exercitados, corpos dóceis.74

69 SÉGUIN, 1846: 342. 70 FERREIRA, Pinto, 1930b: 9. 71 FERREIRA, Costa, 1913: 139. 72 RAPOSO, 1869: 13. 73

“O ensino dos anormais - De como ele aproveita indivíduos julgados inúteis e do que no género se está fazendo entre nós com resultado”. Costa Ferreira entrevistado por Pereira Bravo para o Jornal O SÉCULO, n.º 11.446, Ano XXXIII, de 21 de Outubro de 1913, p. 1.

74

“A disciplina é aquela parte da educação que, por um lado, assegura imediata- mente o trabalho dos discípulos, mantendo a boa ordem na classe, excitando o seu zelo e que, por outro lado, trabalhando para um fim mais remoto e mais ele- vado, previne ou reprime os maus procedimentos e tende a formar vontades rectas, caracteres enérgicos, que dispensam o auxílio alheio. Tem este duplo fim, de estabelecer o governo actual da classe e de ensinar aos discípulos a governa- rem-se por si mesmos quando tiverem deixado a escola e se tiverem livrado da tutela dos seus mestres”.75

Deste modo, as práticas de dominação tendem a desaparecer e a ser substituídas, pro- gressivamente, pela ideia de regulação e auto-regulação, como se o governo da população se fizesse a partir de uma miríade de canais que encaminham as águas ao sabor das enchentes: o rio não pode galgar as margens… as águas são conduzidas para o ducto que mais convém ao bom governo do caudal. Esta metáfora consegue transportar-nos para o constante aperfeiçoa- mento a que esta rede de canais obriga. A manutenção dos já existentes e o reforço contínuo de novos remetem-nos para uma realidade inacabada quando falamos de poder, uma construção mutante que, na realização de sucessivos retoques, justifica que os mecanismos de poder proli- ferem. “As tecnologias de governo vão ganhando corpo sempre a partir dessa consciência aflita

que consiste em verificar que um mar de realidades lhes escapa, que existem sempre novos domínios a dever atrair a sua atenção, que a ordem e a administração não se exercem nunca capazmente”.76

Perante esta angústia sufocante, a racionalização do governo passa pela constituição de um conjunto de saberes que, mobilizados no seu todo, possibilitam uma maior eficiência da governação. O exercício do poder produz perpetuamente conhecimento que, por sua vez, multi- plica os efeitos de poder de modo permanente, fazendo emergir novos objectos de inteligibili- dade e acumulando novos corpos de informação.

“O indivíduo é […] uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censu- ra”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz rea- lidade; produz campos de objectos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhe- cimento que dele se pode ter se originam nessa produção”.77

75 COMPAYRÉ, 1896: 493-494. 76 Ó, 2002: 46. 77 FOUCAULT, 1999b: 161.

A partir da papeleta escolar, por exemplo, constrói-se o sujeito enquanto escolar, holo- grama que emerge do discurso da instituição e que reúne as observações colhidas pelo professor e pelo médico-inspector, servindo, particularmente, para fornecer à Direcção os dados necessá- rios para “regular a vida do aluno e orientar a sua educação física, intelectual e moral, no sentido

de se lhe aproveitar as boas qualidades e corrigir os seus defeitos”.78 A colecção de elementos que figuram no boletim biográfico do aluno vai permitir o estudo estatístico, a construção de categorias sociais, económicas e escolares que fabricam classes de alunos. Mais, a caderneta escolar médico-pedagógica é o cadastro psicológico e fisiológico da criança, que permite avaliar o que ela vale no momento, mas ainda o que virá a valer.79 As normas engastadas nestas divi- sões “funcionam para desqualificar certas crianças que não “se encaixam” nas normas da média,

feitas para parecer universais, mas compostas a partir de uma localização e de disposições e gostos históricos particulares”.80

Estamos, portanto, perante a iminência da estatística, ou ciência do Estado, que tem por objecto o estudo dos fenómenos sociais que podem ser expressos em números. “Recolhe esses

factos, coordena-os, e assim postos em ordem apresenta-os à consideração do sociologista, para que deles este derive as respectivas leis”.81

“A colecção de estatísticas antropológicas feitas nas escolas públicas fornece fac- tos valiosos para os higienistas e para os educadores. […] O estudo pelo qual se começou a conhecer o homem actual foi o dos tipos anormais, como criminosos, loucos, alcoólicos, indigentes, etc. É tempo de que estas investigações tomem por objecto o homem normal, que deve ser a base da sociedade”.82

Já não basta que se estude, mensure, catalogue, classifique a franja da população, o marginal, o delinquente. Também o normal deve ser alvo de marcação, objecto do olho do

poder. Assim como também não deve ser negligenciada a observação do “homem de talento e

78

Decreto de 1 de Março de 1913. D. do G. n.º 52, de 5 de Março de 1913, p. 95. 79 VASCONCELOS, 19--: 108. 80 POPKEWITZ, LINDBLAD, 2001: 116. 81 PEDROSO, 1887: 33. 82 MACDONALD, 1899: 322-323.

de génio”, para que se reconheçam as condições e os predicados que conduzem a esse termo.

Os primeiros a evitar, estes últimos a imitar.83

As potencialidades desta aritmética política arrastam-se por todos os domínios possíveis e imagináveis, não deixando escapar qualquer nicho de oportunidade de governo. Para o

homem de Estado revela-se da maior importância, pois o poder que o saber lhe confere, através

de um cadastro devidamente organizado, ou do recenseamento da população criteriosamente executado, etc., é praticamente ilimitado. Contudo, a fome de conhecimento/controlo estende- rá os tentáculos da ciência do Estado por campos até então incultos.

“Questões de higiene, a questão tão complicada da mortalidade, as questões ainda tão obscuras da influência dos meios sobre os indivíduos e de psicologia social, o movimento da população e a sua densidade específica, as mais palpitan- tes questões económicas, as questões morais e outras ainda na aparência mais independentes de uma computação numérica, e mais refractárias ao método estatístico, recebem desta ciência novos pontos de vista e dos mais fecundos em resultados empíricos”.84

Esta nova tecnologia dirige-se à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem a corpos, mas no sentido em que ela forma uma massa global, subordinada a pro- cessos comuns que são próprios da vida: o nascimento, a morte, a reprodução, a enfermidade, etc. Depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo facilitada pela individualização, temos uma segunda conquista, desta vez, globalizante que se faz na direcção não do homem- corpo, mas do indivíduo, enquanto “amostra indivisível da espécie humana”.85 A racionalidade política tem como efeitos imediatos a individualização e a totalização dos sujeitos, para melhor os apreender e conduzir.86 Eis o instante que marca o nascimento da biopolítica.

83

A propósito da hereditariedade do indivíduo e da anormalidade genial, Lucien Malson salienta alguns casos de famílias célebres que se destacaram pelo elevado número de gerações talentosas. “No que se refere ao génio, nota-se a existência de famílias célebres, os Bernouilli matemáticos, os Darwin naturalistas, os Jussieu botânicos, os Say eco- nomistas, e, bem entendido, os Palestrina, Couperin, Scarlatti, Mozart, Haydn ou Bach, músicos. Os cinquenta artistas que se encontram na lista dos 136 membros das 8 gerações estudadas da família Bach, constituem, de resto, um dos exemplos sempre citados. Outrora, aceitava-se na sucessão dessas vidas de artistas a influência de um dom transmis- sível. Actualmente rejeita-se essa interpretação por demasiado superficial”. MALSON, 1967: 14.

84 PEDROSO, 1887: 33. 85 RICOEUR, 1988: 65. 86 FOUCAULT, 2003: 385.

Os novos princípios de controlo governativo acabam por originar o sumiço da mais pequena célula social e que, até então, servira de base ao anterior sistema de soberania. A famí- lia vai-se anulando neste teatro de operações estatísticas, passando a ser apenas mais um seg- mento da população, “mais uma peça no dispositivo global marcado pela abstracta razão de

Estado”.87 Contudo, o seu papel continua a ser privilegiado, objecto de enfoque sempre que se pretende regulamentar sobre seguros de saúde ou planos de reforma, regras de higiene que acautelam a longevidade qualitativa da população, a sexualidade e a procriação, os cuidados dispensados às crianças, a escolaridade, etc.

O interesse em torno da hereditariedade foi das questões mais debatidas durante todo o período que abarca os séculos XIX e XX. Perante “a noção geral e averiguada que há indivíduos

que são maus pais sob o ponto de vista de sua reproductividade”, importava adoptar medidas

que evitassem a contaminação da espécie.88 As modalidades de atitudes passavam por dois pon- tos antagónicos: desde uma grande hesitação na adopção de certas medidas eugénicas até à esterilização humana em grande escala nos indivíduos considerados “maus procriadores”.8990

“Os extremos desta escala são naturalmente as atitudes menos convenientes a adoptar. A indiferença, o abstencionismo de qualquer medida de valor eugénico é grave, como grave nos parece ser o exagero que se nota muito particular em outras terras. É sabido que no nosso país existem alguns dos chamados flagelos sociais de maléfica influência hereditária. Assim, a sífilis, o alcoolismo e certas doenças nervosas (demência precoce, ciclotimias, oligofrenias, etc.) de manifesta influência hereditária”.91

87

Ó, 2002: 47. 88

« Les anormaux sont d’ailleurs des produits de parents tarés, il n’y à rien à en tirer ; et puis c’est bien simple, qu’on les supprime des la naissance et tout sera dit ». DECROLY, 1925 : 5.

89

FONTES, 1939: 13. 90

Entre os defensores mais radicais do emprego de medidas eugénicas eficazes conta-se Sigmund Engel, advogado alemão que publicou, em 1912, "The elements of child-protection", defendendo o uso da selecção artificial como forma de prevenção da “procreation of individuals inadequately adapted to their environment; it deliberately elimi- nates those elements which are useless to society, or which can be utilized by society only at excessive cost: thus artificial selection is a preventive method. Natural selection is cruel and uneconomic”. ENGEL, 1912: 25.

91

O que pensar do caso Max Jukes, um bêbado vagabundo de Nova Iorque, que viveu no século XVIII e de que se conheciam, em 1915, entre os 2094 descendentes, 140 criminosos (dos quais 7 assassinos), 300 prostitutas, 310 mendigos e 600 oligofrénicos?92

“A imaginação permite idealizar a cena de um jantar em casa dos Jukes e a lição de vida quotidiana que uma criança bem constituída receberia desta horda de vagabundos”.93

O mesmo é dizer que a má sorte familiar herda-se, não apenas, pelos genes, mas tam- bém pelas condições que oferece. A degenerescência cultiva-se nas relações que se estabelecem na convivência diária: “abundam as provas a favor da influência preponderante do meio”.

As reflexões que se constroem em torno da realidade familiar ditam uma série de com- portamentos considerados legítimos, que devem ser seguidos ao pormenor. A esfera de inter- venção alarga-se, portanto, e procura “auxiliar o indivíduo e a família quando a sua saúde física

e moral se encontram abaladas, a sua actividade produtora diminuída, as receitas económicas insuficientes”. Todavia, é ao indivíduo isolado que é lançado o derradeiro olhar, célula microscó-

pica que merece o maior cuidado. É mais lucrativo actuar sobre a alma do sujeito do que sobre o meio em que ele se insere, “assegurando a cada um o seu pleno desenvolvimento físico, intelec-

tual e moral na família e na sociedade”.94

A unidade e a sua distribuição no espaço são o foco de interesse da disciplina. O mapeamento celular das diversas realidades administrativas “individualiza os corpos por uma

localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações”;95 cada um enraíza em si o seu devido lugar e a distância que o separa do outro. Codificam-se lugares de modo a rentabilizá-los, a torná-los úteis, com funções cuidadosamente definidas para que não sobrem espaços escusados.

“Arranjou-se junto de cada um dos seis colégios, uma casa para vestiário dos alu- nos, onde cada um deles pode ter o seu fato numerado, separado, arrumado e lim- po. 92 MALSON, 1967: 16. 93 MALSON, 1967: 16. 94 NUNES, 1946: 154. 95 FOUCAULT, 1999b: 123.

Arranjou-se igualmente junto de cada colégio outra casa para lavatório dos alunos, de modo que cada um tenha uma bacia de zinco e uma toalha destinada só para seu uso”.96

Este ordenamento detalhado de cada um no espaço que lhe foi atribuído torna extre- mamente produtivo o governo da população, pois facilita, por um lado, a intervenção ocasional sobre determinado sujeito; por outro, permite “utilizar os indivíduos de acordo com o nível que

têm nas séries que ocupam”.97

Pouco a pouco, "o espaço escolar desdobra-se; a classe torna-se homogénea... só se

compõe de elementos individuais que vêm colocar-se uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre”. A demarcação de cada um no seu lugar tornou possível o controlo e o trabalho simul-

tâneo de todos, economizando tempo e esforços. O espaço escolar passou a ser encarado como “uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar”.98

A utilidade do indivíduo inflaciona-se a partir do momento em que se tem a clara noção de se poder conduzir um exército de corpos flexíveis em torno de objectivos comuns. Acrescen- te-se, então, a necessidade de os distribuir pelo espaço, colocá-los no lugar que lhe compete, que mais se adequa à sua condição, e vemos nascer uma série infindável de gavetas que dão hospitalidade à extensa panóplia de categorias que servem para classificar a massa dos governa- dos. O móvel gigante que se adensa ao sabor do espírito burocrático traduz o leque de institui- ções que se preocupam com o detalhe e que buscam incluir todo aquele que escapa às malhas da governação. É à luz desta interpretação da realidade que se compreende a criação de estabe- lecimentos de normalização que permitem que, dentro das suas paredes, a regularidade se ins- tale.

“Nem o governo nem o rendimento pedagógico de uma instituição como a Casa Pia são o que devem ser, se não houver ao lado dela ou em conjugação com ela um instituto para onde derivar as crianças que não se adaptem ao regímen escolar ordinário. Destas, hoje mais do que nunca, importa cuidar, porque no regímen de vida social em que vivemos e para que tendemos, regímen acentuadamente livre e enervante, pelo menos em longa fase transitória, os de difícil adaptação por defei- to físico ou mental (de inteligência propriamente dita ou de carácter) mais facil- mente constituem elementos perturbadores e encargos sociais se não forem devi- 96 ALMEIDA, 1861: 52-53. 97 FOUCAULT, 1999b: 135-136. 98 FOUCAULT, 1999b: 125.

damente orientados, corrigidos ou compensados, por forma a terem o seu aprovei- tamento e lugar na sociedade”.99

A escola, “como equivalente de estufa ou de viveiro”, verte produtos de degenerescência que consistem no “resultado mais contraproducente da civilização moderna”,100 e que espelham a necessidade de se actuar energicamente para que os indivíduos, corrigidos ou compensados, sejam capazes de se subordinarem a uma norma que, na melhor das expectativas deve ser semelhante para todos. No caso dos anormais falaremos sempre da melhor norma possível.

Cria-se, deste modo, a Colónia Agrícola de S. Bernardino, em Atouguia da Baleia. Para lá, seguem os anormais, do sexo masculino, que assim se classificam “por defeito físico, como os

mudos e os cegos” e que só podem adquirir conhecimentos por meio de métodos especiais e os

“outros anormais pedagógicos”ou “sub-anormais”, que “constituem um embaraço nas aulas,

pela sua desinquietação e retardamento. Também se lhes chama atrasados pedagógicos. Divi- dem-se em duas espécies – os turbulentos ou inconstantes e os apáticos ou asténicos”.101

Para as crianças anormais cuja idade ainda não lhes permite aprender um ofício, nasce o Instituto Médico-Pedagógico, em Santa Isabel, próximo da casa-mãe, e que arrumará intramuros todos os escolares que não se conseguem integrar nas classes ordinárias.

Para os soldados que regressam do front, mutilados e estropiados, com o corpo e a alma estilhaçados pelo rebentar das granadas, abrem-se as portas do Instituto de Santa Isabel e parti- lham-se as salas de aula, paredes-meias com a anormalidade.

É no cruzamento destas técnicas de governo dos outros e da conduta de si que se forja o sujeito em duas dimensões possíveis. A subjectividade humana surge, assim, como objecto de uma determinada relação de conhecimento e poder, como fonte de saber. Objectivamente, o sujeito pode ser entendido em diversas grandezas, dependendo da lente que se coloca para o observar mais esmiuçadamente. O sujeito falante, o sujeito produtivo, o sujeito nor- mal/anormal, o sujeito procriador… são dimensões passíveis de serem utilizadas na análise do indivíduo. Contudo, é no governo de si mesmo que o indivíduo dá conta da sua identidade e do conhecimento que tem de si, transformando-se em sujeito ético. Acima de tudo, torna-se cons- ciente de que o sentimento de pertença e de identidade

99 FERREIRA, Costa, 1921b: 1. 100 FERREIRA, J., 1889: 383. 101

SILVA, César da, “Considerações a respeito da Colónia Agrícola de S. Bernardino. 5 de Maio de 1913”. In introdução à colectânea do Jornal O Agricultor, p. 1-2.

“não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.102

Sentindo-se na sua pele, com as suas características, as suas experiências, os seus senti- mentos, o sujeito inscreve no mais profundo do seu ser a governamentalidade, enraizada o sufi-