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Trabalho e vidas. Práticas sociais e vivência subjectivas no desemprego

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Academic year: 2021

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(1)

i Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Sociologia, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Ana

Alexandre Fernandes

(2)

ii A meu pai. Homem bom, de raro sentido cívico e humanista convicto.

(3)

iii

AGRADECIMENTOS

A presente investigação prolongou-se por vários anos, multiplicando contactos e apoios que me obrigam à gratidão. Em primeiro lugar gratidão à minha família sempre cooperante e paciente. A minha orientadora Professora Doutora Ana Alexandre Fernandes, a quem dedico respeito e amizade, teve influência relevante no esclarecimento dos problemas sociológicos e no incentivo ao trabalho. Um agradecimento ao Professor Doutor José Luís Estramiana pela oferta do seu livro e debate de ideias sobre efeitos psicológicos do desemprego bem como ao Professor Doutor Gimenez-Nadal pela cedência de estudos sobre o uso do tempo em Espanha. Um agradecimento ao Professor Doutor Lucas da Suécia pela cedência de artigo e troca de perspectivas sobre o impacto do desemprego na satisfação pessoal. Ainda um agradecimento a todos os que acompanharam a elaboração e revisão do texto, especialmente a minha irmã Mafalda e ao escritor António Leitão.

Um agradecimento também aos desempregados que aceitaram colaborar; vidas de trabalho sem emprego por detrás das estatísticas. As suas experiências de vida são uma preciosa lição de Humanidade.

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iv

RESUMO

A presente investigação, cujos resultados se apresentam com o título “Trabalho e Vidas – Práticas sociais e vivências subjectivas no desemprego” propõe-se conhecer e compreender práticas sociais, sentidos do trabalho e vivências do desemprego na área da Grande Lisboa. O estudo decorreu entre 2005 e 2010. Para analisar as experiências vividas no desemprego utilizou-se uma metodologia mista: inquérito por questionário, entrevistas aprofundadas, “grupos de encontro” (focus groups) e histórias de vida. Os desempregados abrangidos na pesquisa pertencem às áreas dos Centros de Emprego de Cascais, Lisboa e Sintra. Foram inquiridos 300 desempregados, entrevistados 60 desempregados, participaram em “grupos de encontro” (focus groups) 77 e realizaram-se 10 histórias de vida.

As linhas de orientação na análise da experiência pessoal são as seguintes: valores sociais; atitudes em relação ao trabalho; relação com o dispositivo público de emprego e expectativas; impacto do desemprego (finanças, integração social e estigma, solidariedades familiares, relações de sociabilidade, organização e ocupação do tempo, bem-estar psicológico, saúde); estratégias de procura de emprego; expectativas de trabalho e de futuro.

Identificaram-se cinco tipos ideais de desemprego na vivência do papel social de desempregado, que variam em função de dados objectivos, atitude dependente do Estado, motivação para o trabalho e estratégia dominante na relação com o Centro de Emprego.

Foi possível distinguir fases (não necessariamente iguais para todos) no processo psicológico de reacção ao desemprego, desde choque a fatalismo, última fase de adaptação ao estatuto de desempregado, quando o desemprego persiste. Aí se incluem ainda o optimismo e pessimismo Vários factores de combinação múltipla condicionam a reacção ao desemprego: condições financeiras, actividades de substituição, integração e apoio familiar, redes sociais independentes do trabalho e importância dada ao trabalho.

Foram ainda identificadas estratégias pessoais de ocupação do tempo, conquista de emprego e satisfação pessoal bem como trocas e solidariedades familiares no desemprego.

(5)

v

ABSTRACT

This investigation, the results of which are presented under the title Work and

Lifes – Social Practices and Subjective Experiences in Unemployment, pretends to grasp

work sense and life-experiences in unemployment in the Greater Lisbon area. The study was conducted from 2005 until 2010. In order to analyze the experiences of unemployment, a mixed methodology was used: survey by questionnaire, in-depth interviews, focus groups and life stories. The survey was conducted among 300 unemployed persons around Employment Offices in Cascais, Lisbon and Sintra; 60 unemployed persons were interviewed, 77 took part in focus groups and 10 life stories were made.

The guidelines for the analysis of personal experience are as follows: social values, attitude towards work; the relationship with the public employment office and expectations toward it; the impact of unemployment (finances, social integration and social stigma, family solidarity, social relationships, time-management and occupation, psychological well-being, health); job seeking strategies, work expectations and long-term expectations.

Five optimal unemployment types were identified in the unemployed person’s social role, which vary according to objective data, a “state-dependency” attitude, work motivation and dominant strategy in the relationship with the Employment Office.

It was possible to differentiate stages (not necessarily the same for all persons) in the psychological reaction to unemployment, ranging from shock to fatalism, the last step of adaptation to unemployment, when it persists long enough. These also include feelings of optimism and pessimism. Several multiply-combining factors affect the reaction to unemployment: financial conditions, alternative activities, family integration and family, work-independent social networks and the importance given to work.

There were also identified time-occupancy, job-getting and self-satisfaction personal strategies, as well as family permutations and solidarity during unemployment.

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vi

RÉSUMÉ

La présente investigation dont les résultats se présentent sous le titre “Travail et Vies – Pratiques Sociales et Expériences Subjectives Vécues au Chômage” nous propose de comprendre les différents sens du travail et des expériences du chômage dans une zone de Lisbonne, “a Grande Lisboa”1 L’étude a eu lieu de 2005 à 2010. Pour analyser les expériences vécues au chômage, nous avons utilisé une méthodologie mixte: enquête par questionnaires, entretiens approfondis, “groupes de rencontres” (focus groups) et histoires de vie. L’enquête a été réalisée auprès de 300 chômeurs dans les zones des ANPE2de Cascais, de Lisbonne et de Sintra; 60 chômeurs ont été interviewés, 77 ont participé à des “groupes de rencontre” (focus groups) et 10 histoires de vie ont été racontées.

Les lignes d’orientation de l’analyse de l’expérience personnelle sont les suivantes : valeurs sociales, attitudes concernant le travail, relation avec le dispositif public de l’emploi et expectatives, impact du chômage (finances, intégration sociale et stigmates, solidarités familiales, relations de sociabilité, organisation et occupation du temps, bien-être psychologique, santé), stratégies de recherche d’emploi, expectatives de travail et de futur.

Cinq types idéaux de chômage ont été identifiés en ce qui concerne l’expérience du rôle social du chômeur, ceux-ci varient en fonction de données objectives, de l’attitude dépendant de l’Etat, de la motivation envers le travail et de la stratégie dominante en ce qui concerne la relation avec l’ANPE.

Il a été possible de distinguer des phases (pas forcément identiques pour tous) dans le processus psychologique de réaction au chômage, à partir du choc jusqu’au fatalisme, dernière phase d’adaptation au statut de chômeur, à savoir quand le chômage persiste. On y inclut encore l’optimisme et le pessimisme. Plusieurs facteurs de combinaison multiple conditionnent la réaction au chômage : conditions financières, activités de remplacement, intégration et soutien familial, réseaux sociaux indépendants du travail, importance attribuée au travail et groupe social d’appartenance.

1

C’est une sous-région qui englobe plusieurs municipalités telles que Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra, Vila Franca de Xira.

2

(7)

vii Des stratégies personnelles d’occupation du temps, une conquête de l’emploi et une satisfaction personnelle tout comme des solidarités familiales dans une situation de chômage ont aussi été identifiées.

(8)

viii

ÍNDICE

PARTE UM

INTRODUÇÃO………...1

I. PROBLEMÁTICA………...6

I.1. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA………... 6

I.2. OBJECTIVOS DO ESTUDO………...37

I.3. ALGUNS CONCEITOS OPERATÓRIOS PRIVILEGIADOS………... 38

II. CONSTRUÇÃO SOCIAL DO TRABALHO: REFLEXÕES EM TORNO DE UM CONCEITO……….43

INTRODUÇÃO………43

II.1. ITINERÁRIO HISTÓRICO DE UM CONCEITO………..44

II.2. O TRABALHO NO MUNDO INDUSTRIAL E PÓS-INDUSTRIAL…………...50

III. DESEMPREGO: GÉNESE, CONTORNOS E VIVÊNCIAS………...59

INTRODUÇÃO………...59

III.1. GÉNESE DO CONCEITO……… 60

III.2. RAÍZES EXPLICATIVAS DO DESEMPREGO MODERNO……….66

III.3. CONTORNOS E FRONTEIRAS DO CONCEITO “DESEMPREGO”………...70

III.4. REVISÃO DA LITERATURA SOBRE O DESEMPREGO……….75

IV. TRABALHADORES E MERCADO DE TRABALHO EM PORTUGAL E NA EU E ENVELHECIMENTO DEMOGRÁFICO………..87

IV.1. POPULAÇÃO ACTIVA E POPULAÇÃO INACTIVA………87

IV.2. ACTIVIDADE E EMPREGO……….88

IV.3. ALGUNS INDICADORES RELATIVOS AO TRABALHO………90

IV.4. ENVELHECIMENTO DEMOGRÁFICO E ACTIVIDADE……….94

V. RETRATOS ESTATÍSTICOS DO DESEMPREGO: DADOS COMPARATIVOS ENTRE PORTUGAL E EU………...97

(9)

ix

V.2. DESEMPREGO “SUBSIDIADO”……….108

V.3. DESEMPREGO REGISTADO NOS CENTROS DE EMPREGO (CE)………..110

V.4. “COLOCAÇÕES” (AJUSTAMENTO ENTRE OFERTA E PROCURA DE EMPREGO)………...115

V.5. ESTATÍSTICAS DE DESEMPREGO EM DUAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS: INE E IEFP……….117

V.6. DADOS COMPARATIVOS DO DESEMPREGO EM PORTUGAL E NA EU……….118

VI. DESEMPREGO, POBREZA, EXCLUSÃO, PROTECÇÃO SOCIAL, ATITUDES E MOTIVAÇÃO FACE AO TRABALHO……….123

INTRODUÇÃO………..123

VI.1. DESEMPREGO, POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL ………..124

VI.2. MECANISMOS DE PROTECÇÃO SOCIAL………..127

VI.3. ATITUDES E MOTIVAÇÃO FACE AO TRABALHO………..131

PARTE DOIS I. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO……….135

INTRODUÇÃO……….135

I.1. CRITÉRIOS QUE PRESIDIRAM À SELECÇÃO DE ENTREVISTADOS E DE INQUIRIDOS………...138

I.2. INQUÉRITO POR QUESTIONÁRIO………139

I.3. GRUPOS DE ENCONTRO (FOCUS GROUPS)………142

I.4. ENTREVISTAS………...143

I.5. TRAJECTÓRIAS E HISTÓRIAS DE VIDA………..147

II. RESULTADOS DO INQUÉRITO POR QUESTIONÁRIO………...148

II.1. CARACTERIZAÇÃO SOCIOGRÁFICA……….148

(10)

x

II.3. SOCIABILIDADE FAMILIAR……….155

II.4. SOLIDARIEDADE E APOIO FAMILIAR………...156

II.5. PROTECÇÃO SOCIAL E SITUAÇÃO FINANCEIRA………...157

II.6. VALORES SOCIAIS……….160

II.7. RELAÇÃO DOS DESEMPREGADOS COM O DISPOSITIVO PÚBLICO DE EMPREGO: RELAÇÃO COM OS CENTROS DE EMPREGO (CE) E EXPECTATIVAS………...162

III. SITUAÇÕES E ATITUDES FACE AO EMPREGO A PARTIR DO INQUÉRITO………..170

III.1. SITUAÇÃO FACE AO EMPREGO……….170

III.2. DURAÇÃO DO DESEMPREGO E VARIÁVEIS ASSOCIADAS……….171

III.3. MOTIVO DE CESSAÇÃO DO ÚLTIMO EMPREGO………...174

III.4. COMO CONSEGUIU O ÚLTIMO EMPREGO………..175

III.5. ATITUDES FACE AO EMPREGO……….177

IV. O DESEMPREGO A PARTIR DO INQUÉRITO………..189

IV.1. ADAPTAÇÃO AO DESEMPREGO………189

IV.2. IMPACTO DO DESEMPREGO NA PERCEPÇÃO DA OCUPAÇÃO DO TEMPO………..190

IV.3. IMPACTO DO DESEMPREGO NA OCUPAÇÃO DO TEMPO………...190

IV.4. DESEMPREGO E LAZER………...195

IV.5. IMPACTO DO DESEMPREGO NA RELAÇÃO COM O TEMPO………...196

IV.6. IMPACTO FAMILIAR E SOCIAL DO DESEMPREGO………...197

IV.7. IMPACTO FINANCEIRO DO DESEMPREGO……….199

IV.8. SAÚDE, TRABALHO E DESEMPREGO………...199

IV.9. IMPACTO PSICOLÓGICO OU SUBJECTIVO DO DESEMPREGO………...203

(11)

xi

V. PAPEL SOCIAL DE DESEMPREGADO E RELAÇÃO COM O

DISPOSITIVO PÚBLICO DE EMPREGO (CE) A PARTIR DA ANÁLISE

DAS ENTREVISTAS………...217

INTRODUÇÃO………...217

V.1. ARQUITECTURA DO PAPEL SOCIAL DE DESEMPREGADO………..218

V.2. TIPOS IDEAIS DE VIVÊNCIA DO PAPEL SOCIAL DE DESEMPREGADO………...225

VI. ORGANIZAÇÃO DO TEMPO NO DESEMPREGO A PARTIR DA ANÁLISE DOS GRUPOS DE ENCONTRO (FOCUS GROUPS) E DAS ENTREVISTAS…………237

INTRODUÇÃO………..237

VI.1. OCUPAÇÃO DO TEMPO NO FEMININO………...239

VI.2. OCUPAÇÃO DO TEMPO NO MASCULINO………...253

VI.3. DESEMPREGO E SOLIDARIEDADES FAMILIARES………...260

VII. ESTRATÉGIAS DE PROCURA DE EMPREGO E DE SATISFAÇÃO PESSOAL – ANÁLISE DAS ENTREVISTAS E HISTÓRIAS DE VIDA……….265

VII.1. PROCURAR EMPREGO………...265

VII.2. COMPATIBILIZAR TRABALHO E FAMÍLIA………...280

VII.3. ESTRATÉGIAS DE FORMAÇÃO……….282

VII.4. TRABALHO INFORMAL………..283

VII.5. CRIAR O PRÓPRIO EMPREGO………...290

VII.6. TRABALHO OCASIONAL………...292

VII.7. TRANSIÇÃO PARA A REFORMA………...294

VIII. FASES E REACÇÕES AO DESEMPREGO A PARTIR DA ANÁLISE DE ENTREVISTAS E HISTÓRIAS DE VIDA……….295

INTRODUÇÃO………..295

VIII.1. CHOQUE………...297

VIII.2. PESSIMISMO – 1ª FASE………..300

(12)

xii

VIII.4. PESSIMISMO – 2ª FASE………..321

VIII.5. FATALISMO……….334

CONCLUSÕES E REFLEXÕES FINAIS……….336

BIBLIOGRAFIA………..365

LISTA DE FIGURAS – PARTE UM……….414

LISTA DE FIGURAS – PARTE DOIS………..416

LISTA DE QUADROS – PARTE UM………...420

LISTA DE QUADROS – PARTE DOIS………421

(13)

xiii

LISTA DE ABREVIATURAS

Act – Actos

ATL – Actividades de Tempos Livres BES - Bem-Estar Subjectivo

CE - Centro de Emprego

CNP – Classificação Nacional de Profissões Cor – Coríntios

DGERT – Direcção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho DSM-IV – Diagnostic and Statiscal Manual of Mental Disorders, 4th ed. EA – Zona Euro

EEE - Estratégia Europeia para o Emprego EQLS - European Quality of Life Survey EVS - European Values Study

FMI - Fundo Monetário Internacional Gen – Génesis

GIP – Gabinete de Inserção Profissional

IEFP - Instituto do Emprego e Formação Profissional

IIESS – Instituto de Informática e Estatística da Segurança Social ISSP - International Social Survey Programme

Jo – João Mc – Marcos Mat – Mateus

MOW - Meaning of Work

(14)

xiv OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

OMS – Organização Mundial de Saúde Prov - Provérbios

REAPN - Rede Europeia Anti-Pobreza Nacional RSI – Rendimento Social de Inserção

SILC - Inquérito Nacional ao Rendimento do Agregado Tes – Tessalonicenses

UE - União Europeia EU – European Union

(15)

1

INTRODUÇÃO

Entrado o século XXI, acentuou-se a actualidade política e social do debate relativo às relações do trabalho e do não trabalho, debate que se vem a intensificar com a emergência da crise económica e financeira que teve início na primeira década do século. Constitui um dos vectores de expressão, mais ou menos explícita, dos medos e esperanças do Homem no terceiro milénio. Medos e esperanças vinculados às grandes questões filosóficas dos sentidos da vida. Que modelo de sociedade? Sem sustento, sem salário, terá a vida sentido?

A análise sócio-histórica do trabalho vem demonstrando como a visão da sua centralidade na vida humana corresponde à fase relativamente recente das sociedades ocidentais, organizadas em torno da produção e da distribuição de bens e serviços, de que Adam Smith, com Recherches sur la Nature et les Causes de la Richesse des

Nations, constitui marco histórico. No Ocidente, o trabalho é tido como elemento

fundamental da condição humana. A perspectiva de uma sociedade sem trabalho tem mais de perturbador do que de atraente, num quadro societal em que se impõe como “facto social total”, com valor, também económico e pessoal.

O direito ao trabalho e o objectivo do pleno emprego foram ganhando posição central desde o primeiro quartel do século XX, legitimados na Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1919) e em outros documentos internacionais. Tais referências são cada vez mais raras ou inexistentes, num mercado de trabalho marcado pela precariedade e insegurança.

Num processo sócio-histórico de transformação das ideias, desenvolvimento dos Estados e das economias, o trabalho perdeu o sentido religioso e secularizou-se totalmente, enquanto factor de produção conjugado com a máquina industrial.

No século XX, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento industrial fizeram das máquinas o braço e o cérebro do homem social. O volume de trabalho exigente em esforço físico diminuiu e favoreceu a luta por salários melhores e redução de horários. Mas ao objectivo ideal de pleno emprego e de libertação pelo trabalho sobrepõe-se o impacto das inovações tecnológicas num capitalismo sem fronteiras. Surgem novos desafios para desenhar caminhos socioeconómicos ao nível glocal (síntese do global com o local) que contribuam para integração social, quando o trabalho remunerado e estável se converte em miragem.

(16)

2 Temas com presença regular implícita na vida dos trabalhadores ou dos que procuram emprego, “trabalho” e “não-trabalho” são assunto de discursos políticos e técnicos e objecto de estudo.

Mais recentemente, a globalização do mercado económico e de emprego, a par da intensa revolução tecnológica, colocam novos desafios, em termos socioculturais, económicos e psicológicos. As recentes transformações económicas relacionadas com deslocalizações industriais e abertura dos mercados conduziram a uma acentuada redução dos postos de trabalho em todos os sectores de actividade facto que empurrou para o desemprego ou para situações de pré-reforma trabalhadores em plena idade activa. Os mais velhos, que atingiram 40 ou 50 anos, não só se encontram no desemprego como perdem propriedades conotadas com a empregabilidade. Já os mais novos debatem-se com a precariedade associada ao início da actividade profissional.

A construção social e histórica da centralidade do trabalho nas sociedades modernas tem o reverso da medalha no afastamento de grande número de trabalhadores da actividade laboral numa sociedade e economia baseadas na produção e no consumo. Daqui emerge um paradoxo que convida a pensar a questão da centralidade do trabalho na vida social, das trajectórias de vida e de trabalho, do estatuto social de cada indivíduo e da família, em referência à sua posição no mercado de trabalho.

O desemprego é uma questão social complexa que afecta as estruturas da sociedade salarial e conduz a processos de desqualificação social (Gallie e Paugam, 2000). O impacto psicológico e social negativo do desemprego dá relevo à importância do trabalho (Schnapper, 1998). O desemprego constitui-se na sociedade actual como um problema social com fortes impactos nas sociedades do bem-estar. Trata-se não da realidade homogénea do desemprego, mas da realidade sociológica plural. Ponderam-se, pois, “desempregos” no “desemprego”. Tal abordagem considera a presença de categorias sociais e demográficas de recursos materiais e simbólicos diversos no desemprego com implicações nas vivências da sociedade e do indivíduo.

Da referência ao trabalho/não-trabalho, emprego/desemprego emergem categorias sociais que se relacionam com a existência ou não de recursos materiais e simbólicos em graus diversos. Os impactos sociais do desemprego reflectem-se não só nas condições de vida mas também na coesão social e familiar e pode conduzir à estigmatização individual que decorre da desvalorização social inerente.

Mas será que o desaparecimento do pleno emprego, e a emergência crescente de taxas de desemprego configuram o “fim do trabalho” (Rifkin, 1996)? E essa realidade

(17)

3 socioeconómica corresponderá a um quadro cultural onde o trabalho se torna valor social em extinção, como propõe C. Méda (1999)? Quais os valores sociais dos que não têm acesso ao emprego? Será o trabalho valorizado e factor de integração social? Como se constrói o papel de desempregado e como é vivido nas suas multiplicidades sociais? Como se relacionam com o dispositivo público de emprego e o que esperam de uma instituição promotora de emprego (Centro de Emprego)? Como vivem os desempregados a falta de emprego? Imaginam o futuro com trabalho? Como reagem ao desemprego? A questão da organização e ocupação do tempo é importante para quem perdeu emprego. Que estratégias desenvolvem na conquista de emprego e na ocupação do tempo? Como se caracterizam as trocas e solidariedades familiares no desemprego?

Nesta pesquisa propomo-nos investigar e compreender sentidos atribuídos ao trabalho e vivências do desemprego, isto é, procuramos conhecer as estratégias pessoais e familiares de estruturação da vida e satisfação das necessidades numa sociedade salarial. Procuramos realizar uma análise compreensiva das representações em relação ao trabalho bem como das opções de vida e de organização dos tempos sociais que, permitindo assegurar recursos materiais e simbólicos, garantam a sobrevivência e a reprodução individual e colectiva. Mereceu especial atenção a organização e ocupação do tempo no desemprego, seja para sobrevivência e reprodução social, retorno ao emprego ou construção ou reconstrução identitárias.

Para a concretização deste objectivo combinámos duas perspectivas utilizando metodologias complementares de análise. Utilizámos uma (i) metodologia quantitativa concretizada na realização e análise de resultados de um inquérito por questionário a 300 inquiridos desempregados e uma (ii) qualitativa que designamos de microssocial a partir da realização e análise de 60 entrevistas aprofundadas, 10 “grupos de encontro” (focus groups) e 10 histórias de vida. Os desempregados abrangidos na pesquisa pertencem à área da Grande Lisboa (Centros de Emprego de Cascais, Lisboa e Sintra).

Este trabalho de pesquisa intitulado “Trabalho e Vidas – Práticas Sociais e Vivências Subjectivas do Desemprego” é constituído por duas partes distintas mas interdependentes. A primeira parte é constituída pelo enquadramento teórico e formulação da problemática. A pesquisa bibliográfica dá forma ao problema sociológico a partir da questão social que representa o desemprego nas sociedades modernas a conceptualização da investigação e a definição da metodologia.

(18)

4 O capítulo I trata das questões de partida, de uma revisão da literatura científica de modo a definir os conceitos básicos em ordem à formulação do problema, definição de objectivos de estudo e metodologia da pesquisa.

O capítulo II que designámos por “Construção Social do Trabalho” é dedicado a uma análise sócio-histórica do trabalho no Ocidente, dando conta do processo social e historicamente informado da génese e transformações do trabalho ao longo do tempo.

O capítulo III, intitulado “Desemprego: Génese, Contornos e Vivências” integra a génese e evolução da categoria desemprego em relação com a Questão Social e com a emergência da sociedade salarial e do Estado de Bem-Estar. Abordam-se ainda algumas perspectivas quanto às raízes explicativas do desemprego moderno, fronteiras do conceito, seu enquadramento legal em Portugal; problema de mensuração; apresenta-se ainda são ainda uma revisão da literatura sobre o deapresenta-semprego em sociologia e psicologia social.

“Trabalhadores, Mercado de Trabalho em Portugal e na UE e Envelhecimento Demográfico” é o título do capítulo IV que se debruça sobre o enquadramento populacional da população portuguesa. Aqui exploramos a informação estatística relativa à população activa e inactiva, actividade e alguns indicadores relativos ao emprego, bem como, tendências de envelhecimento demográfico e promoção da actividade.

O capítulo V designado “Retratos Estatísticos do Desemprego em Portugal e na UE” - analisa indicadores estatísticos do desemprego em Portugal e na EU. No caso português tem em conta os dados de duas fontes, do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

No capítulo VI – “Desemprego, Pobreza, Exclusão Social, Protecção Social e Valores Sociais” - relaciona-se desemprego, pobreza, exclusão social e apresentam-se os mecanismos da protecção social, designadamente os quatro tipos de regime de protecção na Europa e a cobertura do desemprego pelo Estado em Portugal.

A segunda parte é constituída pela análise dos resultados da pesquisa empírica relativos às condições de vida, práticas sociais e vivências subjectivas dos desempregados que foram objecto de estudo, como se apresenta de forma mais pormenorizada seguidamente. Aí se integram os resultados obtidos por recurso ao inquérito por questionário, entrevistas, grupos de encontro (focus groups) e histórias de vida.

(19)

5 No primeiro capítulo começamos por apresentar a metodologia com os critérios que presidiram à selecção dos entrevistados/inquiridos, apresentação do inquérito por questionário, grupos de encontro (focus groups), entrevistas e histórias de vida. Nos capítulos II a IV apresenta-se os resultados da análise dos dados recolhidos no inquérito por questionário. No capítulo II -“Resultados do Inquérito por Questionário” - analisam-se resultados e principais tendências da amostra, com dados de natureza objectiva e subjectiva quanto à ecologia habitacional e familiar, sociabilidade, solidariedade e apoio familiar, protecção social e situação financeira, valores sociais, relação com o dispositivo público de emprego e expectativas em relação ao mesmo.

O capítulo III - “Condições e atitudes face ao empregoa partir do inquérito” são apresentados indicadores de desemprego como: situação face ao emprego e ao desemprego, tempo no desemprego e atitudes face ao emprego.

No “Desemprego a partir do Inquérito”, que constitui o capítulo IV – apresentam-se resultados relativos à adaptação ao desemprego e ao impacto do desemprego.

O capítulo V – “Papel Social de Desempregado e Relação com o Dispositivo Público de Emprego a partir das entrevistas ” é dedicado à arquitectura do papel social de desempregado a partir da relação com os Centros de Emprego. A partir da análise das entrevistas são tipificados cinco tipos ideais de desemprego.

“Organização do Tempo no Desemprego e Solidariedades Familiares” é título do capítulo VI. Percorre as principais formas de ocupação e organização do tempo, bem como solidariedades familiares no desemprego a partir da análise de grupos de encontro (focus groups) e das entrevistas. Esta segunda parte do trabalho prossegue nos dois capítulos seguintes cujos títulos respectivos são “Estratégias de Procura de Emprego e de Satisfação Pessoal – Análise das entrevistas” e “Fases e Reacções ao Desemprego – Análise de entrevistas e histórias de vida”

Por fim, as “Conclusões e Reflexões Finais” - integram uma perspectiva de síntese dos resultados de investigação e algumas reflexões de encerramento.

(20)

6

I. PROBLEMÁTICA

I.1. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA

“Trabalhai meus irmãos: que o trabalho é riqueza, é virtude, é vigor.” António Feliciano de Castilho

Introdução

Documentos internacionais, nomeadamente deliberações e acordos diversos, configuram os princípios fundamentais em relação ao trabalho. O direito ao trabalho e o objectivo do pleno emprego são dois aspectos que vêm ocupando posição central desde o primeiro quartel do século XX, explicitados na Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1919) no pós I Guerra Mundial, completada, 25 anos depois, pela Declaração de Filadélfia (1944). Nos anos sessenta, a convenção nº 122 da OIT sobre a política de emprego (1964, artº 1) estabelece o objectivo do “pleno emprego, produtivo e livremente escolhido”. Outros eventos e consequente documentação, como a conferência de Bretton Woods (1944), o Encontro Mundial para o Desenvolvimento Social de Copenhaga (1995), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) ou, mais recentemente, a Carta Social Europeia (1996), abordam os problemas do direito ao trabalho, em continuidade histórica com a ideia tradicional de trabalho (Kelly, 2000). Tais eventos e documentos não encontram reflexo nas condições económicas da era pós-industrial, onde a escassez de trabalho é uma realidade para os diferentes sectores económicos. Exercício de apreciação do vocabulário usado por actores sociais e institucionais (governos ou parceiros sociais) a propósito do trabalho permite concluir que as referências à noção de pleno emprego são cada vez mais raras ou inexistentes; contornos de utopia social, num mercado de trabalho segmentado pela precariedade e insegurança à escala mundial, quando parte crescente da população activa se vê afastada da participação regular e estável no mercado laboral. Os problemas

(21)

7 com o trabalho a nível mundial levaram a OIT à expressão “trabalho digno ou decente” como pré-condição para o desenvolvimento sustentável3.

Vive-se um tempo onde o trabalho estável, esse bem valorizado ao longo dos tempos nas sociedades ocidentais e do qual depende a nossa sobrevivência económica e relevância estatutária, está em crise num processo de transformação intensa marcado pela precariedade do emprego e fragilidade dos laços laborais. Veja-se pois o problema do trabalho no Ocidente em articulação com o não-trabalho, desemprego e desqualificação num eixo de problematização que inclui os valores sociais, tempos sociais, fases e reacções ao desemprego.

I.1.1. Trabalho e não-trabalho

A perspectiva de uma sociedade humana sem trabalho tem mais de perturbador do que de atraente, num quadro societal onde o trabalho humano se estruturou como “facto social total”, com valor social, económico e pessoal ao longo de milénios. Contudo, a ideia de trabalho não é central em muitas sociedades primitivas. “O homo

œconomicus é apenas uma das dimensões do homem social” afirma Schnapper (1998:

44), pelo que abordar o tema do trabalho humano convida a uma abordagem como “facto social total”. Na civilização ocidental, o trabalho constrói-se como elemento fundamental da condição humana, com dimensões de fenómeno social total, numa implicação de atitudes culturais variadas em relação ao seu valor, finalidade e formas de organização, desde a mais remota antiguidade4.

Num contexto mundial de precarização do trabalho e crescente rarefacção em variados sectores de actividade económica, com os problemas psicossociais e económicos ligados ao desemprego, entram em jogo diferentes perspectivas e discussões no pensamento socioeconómico. Na fase actual, o desemprego é uma experiência de vida pessoal e social que atinge cada vez mais cidadãos; mantém com o emprego os suaves limites de uma linha oscilante ao sopro da economia que aliada à

3

Segundo o Director-Geral da OIT, trabalho digno ou decente é entendido no sentido humanista como trabalho “remunerado em nível suficiente para o sustento familiar; é a forma de trabalho adequada à mulher e ao jovem; é o trabalho que não se utiliza de formas degradantes, da força ou da escravidão e tampouco da mão-de-obra infantil”, Entrevista de J. Somavia (2002) à IPS News in MURRAY, Isabel, Juan Somavia defende trabalho decente, Entrevista a Juan Somavia a 31 de Janeiro de 2002.

http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/020131_isabelrs.shtml 4

Como defende Gil Mantas (1999, vol. 1, p. 29): “Assim, como fenómeno social estruturante, não é de estranhar que o trabalho tenha conhecido múltiplas representações, resultantes da inserção espacial e temporal das referências consideradas e, ( ...) do grupo ou grupos que as elaboraram”.

(22)

8 marca de aspectos sócio-demográficos como género, idade e qualificações, recebe ou rejeita homens e mulheres, jovens e adultos num processo de integração ou de desqualificação social.

Nos primórdios da humanidade, é provável que o trabalho5 fosse sobretudo meio de subsistência de caçadores-recolectores primeiro e depois de agricultores, embora as finalidades puramente utilitárias se pudessem misturar com outros sentidos, pois nas sociedades primitivas o carácter lúdico e a componente religiosa caracterizavam as actividades. A partir da exploração de resultados da Antropologia das sociedades ditas primitivas, Méda (1995) mostrou como, em muitas delas, nem sequer existe vocábulo equivalente à palavra “trabalho” usada no Ocidente. O conceito de “facto social total” de Mauss permite compreender como nessas sociedades um mesmo fenómeno desempenha simultaneamente várias funções societais onde sagrado e profano não estão ainda separados. A vida é profundamente ritualizada e o mundo colectivo organiza-se por referência ao sagrado. O homem é um ser total membro de uma família, tribo, clã. Não tem existência individual. Só existe no todo e pelo todo colectivo da sociedade mecânica, para retomar a designação de Durkheim. Se aceitarmos que o jogo está na essência do Homo Ludens, convém referir que a dimensão simbólica e lúdica está presente nos fenómenos objectivos de vida dessas sociedades. Além do trabalho também economia, religião, arte ou política não existem enquanto sistemas autónomos e especializados.

Contudo, o valor dado ao trabalho está inscrito de forma muito profunda na civilização ocidental; insere-se no mito prometeico de domínio do Homem sobre a Natureza que conduziu, primeiro, à criação e produção de objectos primitivos e, depois, à produção de objectos, técnica e cientificamente mais elaborados (Schnapper, 1979: 47). Também Marx fundamenta o homem social na sua relação com o trabalho não alienado6.

Max Weber coloca o problema da especificidade do Ocidente ao questionar porque é que a génese da Revolução Industrial ocorre no Ocidente e não noutras regiões do Mundo que, durante muito tempo, estiveram cientificamente mais avançadas. Para

5

Sem o sentido de “emprego” pois era então inexistente a relação salarial introduzida pela sociedade capitalista.

6

“É justamente aperfeiçoando o mundo dos objectos que o Homem se revela verdadeiramente como um ser genérico. A sua produção é a sua vida genérica criadora”, Marx (1972: 147), Manuscritos de 1844.

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9 Schnapper (1998) o valor do trabalho é indissociável da especificidade das tradições culturais.

No processo de construção social do trabalho no Ocidente (capítulo II), a civilização grega é exemplo de noção utilitária e restritiva, desvalorizando o trabalho, considerado degradante, de satisfação das necessidades materiais, e remetido para a mão-de-obra escrava (veja-se o conceito “ócio”). A Filosofia ou a Política, actividades mais nobres, não eram consideradas trabalho (Méda,1995). Para Gregos e Romanos, o ócio (otium), actividade livre, era a maior nobreza do homem, por oposição ao

negotium, actividade de obrigação.

Mesmo nas sociedades actuais a noção de trabalho está carregada de sentidos e implicações teóricas. Assim, apesar da divisão social do trabalho e da complexidade das sociedades contemporâneas, o trabalho pode também ser abordado como facto social total. Kelly (2000: 9) propõe que se considerem cinco aspectos do trabalho, desde o utilitário ao institucional, passando pela dimensão individual, ética e social7.

Tal proposta de classificação permite reconhecer como a noção de trabalho é complexa de sentidos. Compreende actividades afastadas do que se entende correntemente por emprego. O termo emprego está associado em geral ao trabalho no quadro de uma relação contratual com remuneração, o que põe problemas quanto à classificação de “outras formas de trabalho, como as actividades independentes que escapam em grande parte aos critérios do mercado” (Kelly, 2000: 6).

Também na pedagogia da criança se tem dado importância ao valor do trabalho. Pestalozzi (1774-1779) e Freinet (1974), entre outros, são exemplos significativos, com ecos a instituições até de inspiração católica (Oficinas de S. José dos Salesianos)8.

7

Vejam-se as dimensões referidas: a) Aspecto utilitário: meio de sobrevivência ou de subsistência; meio de enriquecimento pessoal; instrumento de segurança e de prosperidade colectivas e factor de produção; b) Aspecto individual: imperativo psíquico, inerente à natureza humana; expressão da criatividade; meio de afirmação ou de justificação pessoal; via de acesso ao poder, meio de defesa contra a inactividade, o aborrecimento ou as tentações; c) Aspecto ético: vocação espiritual e meio de redenção; prova da qualidade de ser eleito por Deus; submissão sacramental à vontade de Deus; meio de acesso a um ideal universal; d) Aspecto social: necessária obrigação social; meio de socialização; meio de afirmação da identidade social; cimento da solidariedade e da coesão social; e) Aspecto institucional: instrumento da autoridade e da ordem; mecanismo tradicional de repartição; critério de dever de participação social.

8

Para Pestalozzi a associação trabalho-natureza é fundamental na pedagogia infantil. Também associa trabalho manual e cultura geral, ao permitir que crianças órfãs ou abandonadas se eduquem e aprendam uma profissão. Em Freinet o trabalho é natural na criança e constitui ferramenta importante na educação do aluno. Pelo trabalho ligado à expressão é possível educar e disciplinar em quadro de trabalho colectivo e em função de alguma melhoria ou para o ambiente escolar ou comunitário.

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10 Numa polémica actual, alguns autores afirmam a vizinhança perturbadora de uma sociedade sem trabalho (Forrester, 1995 e Rifkin, 1997), enquanto outros defendem o papel essencial do trabalho como factor de integração social (D. Schnapper, 1998). A primeira linha argumentativa baseia-se em dados empíricos que assinalam uma tendência objectiva de perda de empregos no Ocidente tecnológico e, muito especialmente, do trabalho remunerado estável, associado à construção de carreira no quadro de uma empresa ou organização, enquanto, por outro lado, a matriz civilizacional e os dados relativos aos valores sociais evidenciam a importância do trabalho como o valor mais importante para os cidadãos contemporâneos, empregados e desempregados, logo a seguir ao valor família, o que apoia a segunda linha de pensamento. Todavia, o sentido atribuído ao trabalho tende a ser predominantemente utilitário - fazer face à subsistência - sendo menos valorizado o ideal de trabalho como fonte de realização, provavelmente pela raridade de emprego para uma fatia cada vez maior da população e pelo efeito psicológico que a visibilidade do desemprego tem para os ainda empregados (Vide discussão sobre valores sociais).

No que se refere à análise do capitalismo liberal e do impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho, tendem a enfrentar-se duas correntes. A primeira, que se designará “pessimista e catastrófica”, sublinha a tendência crescente para a supressão de postos de trabalho em todos os sectores de actividade, num caminho sem retorno para o “fim do trabalho” (Forrester, 1995 e Rifkin, 1997). Já a perspectiva “optimista”, frequente em algum discurso político e económico, tende a acentuar a importância da tecnologia na criação de novos postos de trabalho e de novas profissões, em substituição de perfis profissionais em recessão e a valorizar a formação ao longo da vida, como recurso essencial para evitar o desemprego ou conseguir um novo emprego. Sem detrimento do valor de esperança desta última proposta, as evidências numéricas parecem demonstrar alguma dificuldade: mesmo nos países mais desenvolvidos não é fácil assegurar, por via das qualificações e da alta tecnologia, a substituição do volume de postos de trabalho perdidos em grandes unidades de produção por novos postos de trabalho e obtidos em menor número em pequenas ou micro empresas. Se os avanços tecnológicos têm permitido mais empregos para alguns, também o desenvolvimento tecnológico vem contribuindo para a redução do trabalho existente e a disposição de parte do tempo dedicado ao trabalho com vista à realização de outras actividades ou

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11 como tempo vazio. O desenvolvimento da sociedade de informação ligada à “economia do imaterial” tem colocado o problema do emprego/desemprego tecnológico e da adaptação pessoal e social às mudanças como questão central de diferentes governos e economias9.

Contudo, para Castel (1995) e Schnapper (1998) o trabalho vai continuar a ser a norma de organização social do futuro porque a sociedade está organizada em torno do trabalho e da produção. Surge então uma questão fundamental: como manter ou restaurar a legitimidade política do indivíduo-cidadão, sujeito de direito, que perdeu o emprego e se vê afastado do sistema de produção? Caberá à Política e ao Estado reinventar um sistema mais equilibrado que permita, reconhecer económica e socialmente, a utilidade e a actividade social de todos aqueles que já não trabalham e que não conseguem um novo emprego? Tal abordagem remete para a discussão em torno da relação desemprego-exclusão-cidadania e para os riscos de ruptura social. A ideia de trajectória proposta por Schnapper (1998) como a ponte entre integração e exclusão social é retomada nesta investigação. Muitos indivíduos que vivem a experiência de não trabalho, não caem obrigatoriamente na exclusão social, nem aí permanecem definitivamente. Mas, num contexto de trabalho assalariado, onde o risco e a insegurança são factores dominantes, a incerteza nos “destinos” ou percursos pessoais tende a aumentar. Tanto se pode ser um quadro superior bem integrado no sistema produtivo e remuneratório como, de seguida, ficar desempregado e fora do sistema. Se o sistema familiar também estiver enfraquecido e sem capacidade de gerar e manter solidariedades, a crise pessoal e familiar instala-se facilmente, num processo gradual de desqualificação social.

I.1.2. Desemprego

Como o trabalho, também o desemprego constitui problema sociológico, histórico, jurídico e político. O direito ao trabalho e a obrigação de trabalhar foram estruturados num longo processo histórico-social com apogeu na sociedade da época industrial. Correlativamente, a construção social da ideia de realização, por via da

9

Ao contrário da profecia “empresas qualificantes”, Ginsbourg (1998) sublinha que desde os anos 70, houve em França uma ruptura em matéria de valorização do trabalho. As empresas reduziram os espaços de formação e de construção de aprendizagens organizadas no seu contexto, situação que se tem agravado nas décadas seguintes.

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12 actividade profissional, ganhou contornos de complexidade crescente, numa economia que substituiu o homem pela máquina em muitos postos de trabalho, com implicações no alastramento de situações de desemprego.

Para se considerar desemprego, o não-trabalho deve resultar da não concretização de venda e compra da força de trabalho, num contexto de progressiva generalização das relações capitalistas de trabalho e destruição de formas de produção e trabalho não capitalistas, sobretudo após a I e II Revoluções Industriais10.

Todavia, nem mesmo na sociedade capitalista o não-trabalho, por si só, basta para definir a existência do desemprego. A condição de existência e predominância do capitalismo é necessária, mas não suficiente para a génese do desemprego. Requerem-se duas condições complementares para que seja possível o surgimento da noção moderna de desemprego e desempregado. A identificação do desemprego (como status social e situação estatisticamente mensurável) ocorre progressivamente; supõe avanço da relação salarial11 e institucionalização do desemprego com criação de instituições e mecanismos que definem e apoiam os desempregados12.

O desemprego é problema complexo não apenas do ponto de vista quantitativo mas também qualitativo, na medida em que afecta a vida das pessoas e da sociedade salarial e se liga a processos de desqualificação social (Gallie e Paugam, 2000). Pode ser abordado como problema político, económico e sociológico. Tecnicamente, pode existir em toda a sociedade algum desemprego voluntário ou involuntário. Contudo, o aumento do desemprego gera fenómenos de marginalização, por via da qual surgem mecanismos de exclusão social e que implicam um aumento de despesa com prestações sociais e reforço da máquina policial do Estado. As dificuldades em travar ou diminuir o desemprego constituem desafio para os governos, com valor sublinhado em objectivos políticos e conjugado com a retórica de sucesso, sempre que os indicadores estatísticos dão sinais de estabilização ou quebra.

10

Segundo Freyssinet (1991), três factores contribuíram para o surgir da relação salarial capitalista de trabalho: 1 - destruição das formas de produção pré-capitalista (agricultura familiar, artesanato, pequenos comércios), o que obrigou grande número de pessoas a procurar outro trabalho remunerado; 2 - oscilação da renda do trabalho provocada pelas constantes flutuações da actividade económica. O facto implicou, num primeiro momento, a redução do salário real do chefe de família e, num segundo momento, a necessidade de trabalho de outros membros da família; 3 - oscilação do nível de emprego provocada pelo ritmo e modalidade de acumulação capitalista, com “destruição” de postos de trabalho e redução do uso da mão-de-obra, seja por crises cíclicas, seja por introdução de novas tecnologias.

11

Além da impossibilidade de existência e reprodução de formas de trabalho não-capitalistas. 12

Estas duas condições só se constituirão plenamente a partir de 1930 nos EUA, França e Inglaterra. Só então se poderá falar, nestes países, em desemprego e desempregado no sentido moderno.

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13 Trabalho, não-trabalho, emprego e desemprego são questões de evidente importância social e sociológica que têm dado origem a abundante reflexão teórica e investigação empírica. Para uma proporção crescente de jovens e de adultos estar desempregado passou a fazer parte das suas vidas, configurando mesmo um modo de vida no desemprego, como propõe Grell (1986). Concorda-se com Schnapper (1998) para quem trabalho e cidadania são valores essenciais de integração social na civilização do Ocidente. A nível internacional, desde os anos 1930 até estudos mais recentes, que o desemprego e as experiências de vida dos desempregados têm sido estudados considerando as reacções dos indivíduos à privação de emprego e modos de vida. Globalmente os estudos apontam para o impacto negativo do desemprego vivido como tempo “vazio”– provoca traumatismo profundo na vida dos indivíduos com efeitos negativos ao nível individual, familiar e social, manifestação de um estatuto social inferiorizado. Após estudo de experiências vividas pelos desempregados em França, Schnapper (1998) concluiu que os “desempregados estavam dessocializados e se sentiam atingidos na sua dignidade pessoal. A provação que atravessavam revelava a importância da norma do trabalho” (1998: 47). Para esta autora, o estatuto social, lato

sensu, é o que dá ao indivíduo o sentimento da dignidade e respeito próprios. O seu

estudo relativo às experiências de desemprego, reformas antecipadas e exclusão conclui que, nas sociedades ocidentais, o estatuto social do indivíduo e a sua dignidade são postos em causa pela perda de emprego. Contudo, as formas de não emprego têm diferentes sentidos e existe uma hierarquia de estatutos sociais em função da sua distância ao emprego. Considere-se pois que trabalho, desemprego, suas consequências ou vivencias não são únicos mas plurais. A diversidade sociológica continua presente apesar do termo genérico “desemprego”.

Como assinalam Gallie e Paugam (2000) quando o estatuto social está dependente da participação no sistema produtivo e de trocas existe alta probabilidade de que o desemprego conduza a perda de estatuto e sentimento de falhanço num processo de desqualificação social, empobrecimento e ruptura de laços sociais.

A hipótese de aceitação ou rejeição social do desempregado chama o conceito de “estigma” no sentido de Goffman (1963/ 1975). Os estigmas têm em comum marcar a diferença e atribuir um lugar ao indivíduo13.

13

Para Goffman (1963/ 1975: 42): “Um estigma representa (…) um certo tipo de relação entre o atributo e o estereótipo (…). Em todos os casos de estigma (…) encontramos os mesmos traços sociológicos: um

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14 O risco de etnocentrismo ao abordar um objecto de estudo tem sido sobejamente sublinhado. Schnapper (1979) alerta a propósito da distância entre investigador e desempregado e também do termo “desemprego” cunhado administrativamente mas que abrange uma pluralidade de estádios de vida e situações múltiplas. Semelhanças nas perturbações e alterações aos ritmos de vida, não igualizam os desempregados; continuam a pertencer a categorias sociais diferentes, nomeadamente nos recursos materiais e simbólicos com possível implicação em vivências plurais. O desemprego não apaga socializações anteriores. Assim, a vivência do desemprego pode ser afectada pela combinação de variáveis individuais, familiares e sociais como idade, género, percurso e competências escolares, profissão anterior, duração do desemprego, origem e pertença social, estado de saúde, apoio familiar, rendimento socioeconómico, entre outras. Tal reparo não significa apologia de efeitos atomizados ou individuais impossíveis de serem tratados sociologicamente. O desemprego não é apenas problema individual, sendo possível, tal como em outros objectos de estudo, encontrar relações entre experiências individuais e fazer ecoar sentidos sociológicos. Porém, evitar o individualismo não sociológico também não significa cair no estrito determinismo sociológico do comportamento humano; antes vigiar a multiplicidade de determinações singulares do desemprego levando em linha de conta factores estruturais que em cada tempo e espaço podem afectar as vivências sociais, nomeadamente do desemprego. Daí a importância de estudar os diferentes quadros vivenciais ou os desempregos no desemprego. Neste âmbito as variáveis biográficas têm toda a pertinência na forma de viver o desemprego. Fase do ciclo de vida pessoal e familiar, posição na estrutura social, trajectória social, projecção do futuro e redes relacionais constituem aspectos pertinentes a não descurar na análise das experiências do desemprego. Além disso, o tempo no desemprego pode afectar as reacções e vivências dos desempregados. Como se processam as experiências do desemprego em diferentes momentos e fases do desemprego? Várias são as interrogações que a análise das vivências do desemprego suscita.

Segundo César das Neves (1999) o desemprego é problema não tanto de pobreza, que os mecanismos sociais resolvem, mas de não ter nada que fazer. Controversa, sem dúvida, esta ideia quando se sabe que, sendo o Estado social indivíduo que tenha podido facilmente se fazer admitir no círculo das relações sociais ordinárias possui uma característica tal que se pode impor aos olhos desses que o reencontram e se desviam dele (…). Ele possui um estigma, uma diferença infeliz ao que esperávamos”.

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15 português “sub-protector” (Duncan e Paugam, 2000), nem todos os desempregados têm direito a auferir subsídio de desemprego. Além disso, tal direito não se mantém por um período de tempo indeterminado pois o desemprego corresponde a uma condição social temporária, pelo que, mesmo que o período de desemprego se prolongue, o subsídio de desemprego termina. Apenas os desempregados de idade mais avançada e com o número de anos de contribuição para a Segurança Social suficientes para a reforma estão em condições de viver menos pressionados em relação ao futuro, nomeadamente, quanto a assegurar recursos necessários à sobrevivência, consumos e projectos de vida pessoal e familiar.

Assim, embora a questão da organização e ocupação do tempo seja importante para quem perdeu o emprego e participa numa sociedade acelerada, na qual os outros cidadãos com emprego vivem a um ritmo intenso, tal afirmação merece reparo quanto ao contexto português, caracterizado por um Estado Providência sub-protector e onde 54% dos desempregados não tem acesso ao subsídio de desemprego14.

Contudo, a dimensão temporal da vida social constitui variável fundamental na reflexão sociológica sobre o desemprego, numa época em que os horários de trabalho não diminuem para quem trabalha mas desaparecem para quem já não têm emprego. Abordar o tempo no desemprego, percepções e maneiras de viver tal fase de vida remete para a consideração do espaço, pois habitualmente, espaço e tempo ficam perturbados na vida dos indivíduos desempregados. Desnorteado o tempo de trabalho com horários de trabalho que não têm mais de ser cumpridos, é abalado também o espaço de trabalho pela ausência de locais como fábrica, oficina ou escritório aonde as deslocações já não podem ocorrer. O tema é tanto mais interessante quanto a ocupação, as muitas responsabilidades e o envolvimento em muitos projectos é símbolo de valor e sucesso profissional e social15.

14

Caso se conte com os que procuram um primeiro emprego, então apenas 31% dos desempregados recebe subsídio de desemprego (INE, Inquérito ao Emprego, 1º trimestre de 2011). Num contexto de grave crise económica e dívida pública, enquanto aumenta o desemprego surgem medidas restritivas ao Estado social, por exemplo, limitadoras da despesa pública. Assim, as alterações previstas nas regras de atribuição do subsídio de desemprego com início a partir de Março de 2012 atingem sobretudo os trabalhadores mais velhos. A prestação máxima desce de 1257 para 1048 euros mensais e passa de três anos para um limite máximo de dois. Os pedidos de reforma antecipada sofrem também sérios cortes desde Janeiro de 2012. Cada ano de antecipação até aos 65 anos de idade passou a ser penalizado em 7,5% ainda que exista uma bonificação de 1% por cada três anos de descontos feitos pelos trabalhadores.

15

Lembre-se, a título de exemplo, como um administrador tem a sua agenda totalmente preenchida com actividades diversas, geridas por uma secretária, e se desdobra na participação em diferentes funções com estatutos sociais associadas ao seu poder económico ou simbólico. A secretária tem funções de

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16 A questão da ocupação do tempo para quem muito trabalha na profissão e fora dela surge na literatura de ajuda e desenvolvimento pessoal, convidando à busca de um tempo desinteressado, livre, mesmo que de curta duração, espaço para distensão e recuperação psico-física do organismo sob efeito de stress, um caminho de saúde física e psicológica ou desenvolvimento espiritual16.

Ocupação do tempo e duração do período de desemprego tem sido também considerado nas políticas activas de emprego. Ser activo, estar ocupado, fazer coisas e aprender a fazer, no fundo trabalhar mesmo sem ter emprego, são aspectos sublinhados como estratégias políticas de inserção social e estatutária dos desempregados17. É comum afirmar-se que quanto maior é o período de tempo no desemprego menores são as probabilidades da pessoa desempregada conseguir uma nova colocação mas desconhecem-se estudos conclusivos. A propósito do tempo no desemprego e num estudo clássico, Jahoda e outros investigadores (Jahoda et al., 1972) assinalaram que os homens ao diminuírem a actividade profissional ou ficarem sem trabalho nas fábricas e minas se desorientam com a alteração dos ritmos temporais fora de casa, enquanto as suas mulheres mantêm a regularidade de rituais e rotinas com ocupações domésticas e familiares.

Pode considerar-se o desemprego como fase de vida temporária, longa ou repetitiva, na vida dos sujeitos. A sua relação com o hábito do trabalho, inscrito nas experiências que os sujeitos fazem das organizações e os processos de socialização que viveram na família e no trabalho, não serão de menosprezar na abordagem desta temática, ligada às questões de identidade pessoal e social que a experiência laboral fabrica. O factor tempo de desemprego, na sua variabilidade e extensão, levou a ter em conta a interacção de factores variados (género, idade, profissão e estilo de orientação dos sujeitos). Araújo (2006) abordou o problema do quadro temporal a propósito da experiência de doutoramentos em Portugal. O contexto é bastante diverso do desemprego. A maioria dos doutorandos, ao contrário dos desempregados, estavam organização e controlo do tempo social e do seu valor simbólico, pois o espaço-tempo ocupado por diferentes actividades, projectos e actores sociais não tem o mesmo valor simbólico. Nas palavras do filósofo J. Needleman (1999: 11) “Vivemos numa cultura que nos obriga a fazer demasiadas coisas, a assumir demasiadas responsabilidades, a tomar demasiadas decisões e a dizer sim a demasiadas oportunidades. Ao fim de quase um século de invenções destinadas a poupar tempo, vemo-nos privados do próprio tempo”.

16

Veja-se a este propósito o livro de Kundtz (2000). 17

Os antigos programas ocupacionais do IEFP (actualmente Programas de Emprego e de Inserção) correspondem, precisamente, a oportunidades de ocupação com trabalho em instituições públicas ou autarquias, a troco de uma pequena contribuição financeira.

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17 dispensados da sua actividade regular como professores ou investigadores, mantinham uma remuneração, bem como a possibilidade de regressar à actividade anterior após conclusão do doutoramento com um estatuto social em progresso; estavam numa fase de vida diferente por opção ou por obrigação de carreira em perspectiva construtiva de futuro. Contudo, ambos, doutorandos e desempregados, têm que lidar com a perturbação dos seus quadros de vida temporal e espacial e a necessidade de os reorganizar. A questão da (des)organização do tempo coloca-se também para os reformados, embora a situação apresente contornos muito diferentes relativamente a quem está em situação de desemprego involuntário. Fase definitiva em fim de carreira, a reforma é direito social encarado de forma positiva e cuja concretização é planeada no ciclo de actividade profissional. O desemprego é fase temporária não planeada na vida mas que, por vezes, se prolonga sem retribuição. O estatuto de desempregado é provisório e negativo por referência ao trabalho. O estatuto de reformado é definitivo e encarado de forma positiva mesmo pelos desempregados.

O ingresso na situação legal de desemprego obriga ao cumprimento de regras e ritos legalmente definidos pelo Estado e socialmente aceites no âmbito do exercício de um papel social, o de desempregado; garante inclusão social com o acesso à participação num quadro legalmente definido de direitos e deveres, cujo grau de exigência varia em função da dependência do Estado. A representação social negativa, de que o desemprego e o facto de “estar desempregado” se revestem, convoca para o desemprego e para o desempregado uma nebulosa identidade de carácter provisório e instável, de onde parecem estar ausentes referências identitárias de auto-reconhecimento, enquanto factor de inclusão social, mas também de reconhecimento social positivo que não permite a configuração de grupo social ou classe. A permanência no desemprego corresponde a um período de transição identitária cujas regras permitem aceder a direitos como o subsídio e à sua manutenção temporária, num intervalo de tempo de vida onde a maior adaptabilidade, mesmo que estratégica ao estatuto de desempregado, pode implicar a permanência nesse estatuto por um período mais longo ou a sua fixação nesse espaço de trânsito. A ocorrência de situações de desemprego é geralmente considerada como um acontecimento negativo para cidadãos e famílias.

Apesar do desemprego ser um problema social nas economias capitalistas e comum a muitos e diferentes países, rareiam estudos comparativos internacionais e

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18 transculturais sistemáticos. A diversidade de situações, quanto aos sistemas de protecção social, normas sociais, culturais e redes de entreajuda em diferentes contextos sócio-espaciais, exige atitude prudente na generalização de resultados de um país para outro. Além disso, grande parte das pesquisas efectuadas orientam-se mais para as consequências do desemprego na saúde do indivíduo do que para o desemprego como fase de vida e para os efeitos do desemprego na organização do tempo e do espaço, nas opções de vida e no sistema familiar. Podem ser identificadas as seguintes variáveis moderadoras nos efeitos negativos do desemprego: as atitudes face ao trabalho, nomeadamente os valores profissionais e as representações sociais do trabalho e do desemprego; os apoios em formação; o suporte familiar e o nível socioeconómico do agregado doméstico; a definição objectiva e subjectiva dos papéis sexuais; a percepção do desemprego na sociedade global; as redes sociais e os apoios; a vulnerabilidade pessoal às experiências negativas e à evolução dos papéis sociais (Warr, 1984).

Problema psicossocial que tem merecido estudos em psicologia e sociologia, o desemprego interessou a vários autores no que respeita às consequências psicológicas e familiares. Gallie et al. (1995) estudaram, em Inglaterra, a mudança social e a experiência no desemprego, tendo concluído a existência de uma correlação alta entre situação no mercado de trabalho (emprego estável, desemprego ou emprego precário) e nível de saúde física e psíquica. Em Inglaterra, as pessoas que vivem situações de desemprego, emprego instável ou inseguro e mal remunerado tendem a manifestar baixo nível de bem-estar psicológico revelado na perda de auto-estima, angústia, tensão familiar, resignação e retraimento, assim como, baixo nível de bem-estar físico e alta frequência dos serviços de saúde. A estas situações sobrepõem-se dificuldades financeiras, num ritmo concertado de negatividade, onde se associam desvantagens.

A experiência de desemprego foi fortemente documentada na população masculina. O resultado não é uma imagem agradável e muitas das descrições encontram-se em estudos dos anos 1930 (Jahoda et al., 1981) e em literatura mais recente essa experiência é referida com dados qualitativos em citações de entrevistados (por exemplo, Sinfield, 1981); geralmente os homens sentem-se envergonhados e magoados quando desempregados e se na contingência de viver de subsídio. Poderá até haver, por parte dos homens, um sentimento de desespero em conseguir novo trabalho, nomeadamente se as suas competências estiverem desactualizadas (Dex, 1986). Com base nestas experiências, alguns investigadores sugeriram que o fenómeno do

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19 desemprego passa por uma série de fases. Primeiro surge a surpresa e o choque. Depois, o optimismo e a fé em conseguir novo emprego, para, de seguida, se transformar em pessimismo, ansiedade e angústia por não se conseguir emprego. Finalmente, surgem o fatalismo e o desânimo. Esta descrição elaborada por Eisenberg e Lazersfeld (1938) ainda tem eco na revisão feita por Jahoda (1982) e em Harrison (1976). Embora seja possível encontrar homens que tenham passado por todas estas fases, há críticos para quem tais dados se relacionam apenas com um determinado momento no tempo; consideram não ser correcto assumir que todos os homens passaram pelas mesmas fases e por essa ordem (Sinfield, 1981). Estudos mais recentes sobre stress sofrido por desempregados são bastante variados e relacionam idade com estado de saúde, duração do desemprego, recursos, indemnizações recebidas, condições do mercado de trabalho e experiências profissionais anteriores. Estudos longitudinais possibilitaram maior evidência dos aspectos desenvolvidos sobre a experiência dos homens desempregados. Na revisão da literatura elaborada por Brown et al. (1995) não foi encontrada qualquer diminuição na motivação dos homens para trabalhar.

Tais estudos examinaram a procura de emprego por parte dos homens, suas relações familiares e condições financeiras. Muito frequentemente, o desemprego prolongado poderá ser visto como fenómeno que coloca as famílias na pobreza. Geralmente, para as esposas a situação de desemprego prolongado dos maridos é particularmente penosa.

Para Loison (2002) em países como a França, o estatuto de desempregado é humilhante e estigmatizante, o que origina isolamento; o desempregado fecha-se na esfera doméstica por vergonha do seu estatuto. Contudo, os desempregados mantêm alguns laços sociais com a família e as relações regulares com os técnicos de instituições públicas, constituindo formas compensatórias para colmatar o afastamento do mercado de trabalho. Para o autor, a sociedade portuguesa atribui um estatuto débil ao emprego, a economia informal está omnipresente e a relação com as instituições não é estigmatizada em geral. A coesão da sociedade portuguesa permite que os desempregados, uns mais, outros menos, beneficiem de contactos sociais, motivos que justificam, para Loison (2002) o estatuto de desempregado como pouco estigmatizado por comparação com a situação dos desempregados em França. Ana P. Marques (2009), a propósito do desemprego de longa duração no Norte do País assinala riscos de

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Figura 1. Fases de reacção ao desemprego
Figura 2. Esquema de problematização
Figura 3. População activa dos 15 aos 64 anos por sexo e grupo etário
Figura 4. População inactiva
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