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D. António Ferreira Gomes e o pensamento social cristão

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Academic year: 2021

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D. ANTÓNIO FERREIRA GOMES

E O PENSAMENTO SOCIAL CRISTÃO

Prólogo

Profeta é aquele que abre horizontes para que a li-berdade ganhe substância; que não intimida as consciências, mas que lhes cultiva o húmus para fazer crescer os valores; que nada impõe mas propõe o es-sencial; que aponta caminhos e não apenas posições; que não sossega mas inquieta.

Sem essa dimensão da profecia, ínsita no magistério episcopal de D. António, a leitura do seu pensamen-to e da sua acção fica condenada a ser feita à luz do que no presente convém justificar ou legitimar, pre-cisamente ao contrário do que se pretende: ser lidos por ele, deixando-nos provocar pelo que ele desenha para o futuro. Por todas as razões, importa não usar a figura de D. António como pretexto de um opti-mismo deslocado nos tempos actuais. A sociedade portuguesa levou a cabo uma decisiva transição para a democracia. Mas a democracia ficaria defrauda-da sem a vigilância de quem sabe que esse regime é por definição, uma tarefa incumprida. É a própria estabilidade das instituições políticas que exige uma permanente renovação da vida democrática – na po-lítica e na sociedade civil. Abusando das palavras do poeta, falta cumprir a democracia em Portugal, e é neste contexto que ganha relevo histórico a figura do Bispo do Porto.

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O pensamento social cristão não se cinge apenas à história da doutri-na social da Igreja, através dos textos eclesiais emitidos com nihil obstat que, em contexto pastoral ou teológico, foram sendo produzidos so-bre a matéria, ou de organizações de leigos eclesialmente dependentes. Nem tão-pouco se identifica com a história das ideias e dos partidos que se reivindicaram da democracia cristã – aliás, o primeiro partido genuinamente democrata-cristão português até se designou “Partido Nacionalista”. O mesmo se aplica aos movimentos sociais cristãos: também eles não decorrem de modo linear das encíclicas sociais do ma-gistério de Leão XIII a João Paulo II – muito embora delas tivessem recebido notável e decisivo impulso –, mas são um processo multifa-cetado nas suas diversas aclimatações culturais, sociais e políticas.1 A

expressão “Doutrina Social da Igreja” contém uma indeterminação. “Da Igreja” indicará que, entre outras doutrinas sociais, existe uma que assume coloração específica no âmbito da reflexão eclesial, ou aí se pretenderá afirmar que a doutrina social é exclusiva do magistério da Igreja? Por tudo isto, para situar a penetração da axiologia cristã no tempo em que se insere o pensamento social de D. António Ferreira Gomes em sucessivos testemunhos com rupturas patentes e continui-dades latentes, elegemos um arco temporal de que vai dos anos 30 aos anos 80. É nesse arco que temos de situar a sua luta por um regime de liberdades ordenadas que o conduziu, ao longo da década de 50, à re-cusa progressiva do regime autoritário e, em 74-75, a lutar com êxito, e

1. É particularmente feliz a fórmula de José Adelino Maltez - a quem este estudo muito deve - neste ponto: «a penetração da axiologia cristã na sociedade demoliberal contempo-rânea, ultrapassa, em muito, os partidos e movimentos que invocam o nome de cristãos e é, sem dúvida, bem mais antiga que a própria estruturação das encíclicas leoninas. Antes da democracia-cristã leonina, já existia um liberalismo católico; antes e depois da Rerum No-varum estruturou-se, de forma autónoma, aquela vertente do pensamento ocidental que não se considera filiada nos limites do Iluminismo ou dos seus descendentes, positivistas e utili-taristas, ou do absolutismo idealista»: in «Movimentos sociais-cristãos em Portugal», Boletim

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em uníssono com a Igreja portuguesa, contra as tentativas totalitárias de conquista do poder.

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O regime autoritário reclamava-se nas origens, e na letra, de uma inspiração na doutrina social cristã. Esse timbre social cristão do re-gime verificava-se pelo facto de apenas excepcionalmente existirem divergência, na década de 30, entre ser católico e ser salazarista. Na política internacional, o regime não foi totalitário nem antisemita quando abundavam tais tendências, e manteve uma neutralidade be-nevolente para com os Aliados na 2ª Guerra mundial. Afinal, Salazar era coevo da primeira geração democrata cristã (com personalidades como Luigi Sturzo, Alcide de Gasperi, Amintore Fanfani, Antoine Pinay, Konrad Adenauer2) e fôra um coerente militante católico, um

construtor do Centro Académico da Democracia Cristã e um antigo deputado do Centro Católico3, alguém, em suma, que constituía uma

espécie de oferta que a Igreja fizera à Pátria num momento crucial, como lhe chamou D.António Ferreira Gomes.4 Tudo isso não obsta a que Salazar

instrumentalizasse o movimento político católico e o pensamento social cristão para os fins políticos do Estado Novo.

2.  Cf. PRITTIE Terence, OSTERHELD Horst e SEYDOUX François, Konrad Adenauer, Bonn, Aktuell, 1983; EINAUDI Mario, Christian Democracy in Italy and France, Notre Dame: UND Press, 1952; Notre Dame: FANFANI Amintore, Catholicism, Protestantism and Capitalism, UND Press, 1984

3.  O Centro Católico Português, ao contrário do Zentrum alemão e do Partito Popolare Italiano de Luigi Sturzo, não foi um movimento laico, mas um movimento católico integrado na Igreja, o que afectou a sua autonomia após o início do Estado Novo.

4.  «Lembro bem a comoção e o entusiasmo, o sobressalto de esperança com que acompanha-mos os inícios da carreira de Vª Exa. (...) Além de tudo o mais que sentíaacompanha-mos como portugue-ses, acrescia que, sendo Vª Exa. para além da sua competência profissional, apenas conhecido pelas suas actividades no campo católico, era uma espécie de oferta que a Igreja fazia à pátria num momento crucial»: «Carta a Salazar», in D. ANTÓNIO FERREIRA GOMES, Antologia

do seu Pensamento (selecção de textos e notas por Arnaldo de Pinho), Porto: Fundação Engº

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Entretanto, noutros países europeus, a democracia cristã ajudou a re-construir o Estado, a sociedade civil e a iniciativa privada, segundo os modelos da economia social de mercado (a Sozialmarktwirtschaft de inspiração predominantemente germânica5), bem como a organização

política democrática. A segunda geração democrata-cristã, que chegou ao poder, pugnou pela complementaridade dos valores da liberdade, solidariedade e justiça. Liberdades económicas e liberdades políticas exigiam-se mutuamente. O Estado era estimulado a promover a auto-nomia da sociedade civil e da iniciativa privada. Os direitos naturais ou fundamentais, consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, eram considerados anteriores e superiores aos direitos positivos criados pelo Estado. Consagrava-se assim, o princípio da subsidiarieda-de em fórmulas personalistas e em programas governamentais.

Ao invés do que sucedeu em quase toda a Europa Ocidental, o pós-guerra em Portugal não constituiu um momento de ruptura política; por di-versos motivos predominaram as continuidades. Apesar de se qualificar como democracia orgânica, o regime não se coadunou às instituições demoliberais do pós-guerra. Continuou a invocar a doutrina social cris-tã, mas viu nela surgir divergências que, final da década de 50, quase foram alternativas políticas. Aderiu à OCDE, mas não aproveitou as disponibilidades do Plano Marshall. Participou na fundação da NATO, apesar de manter fórmulas e instituições antidemocráticas. Perpetuou o intervencionismo económico, apesar de fundador das principais orga-nizações internacionais do livre-comércio, nomeadamente a EFTA. O fim da guerra não foi uma nova fase da vida colectiva. Acompanhar as modas políticas do tempo nunca foi o forte de Salazar.

5.  Sobre o tema cf. PEACOCK Alan e WILLGERODT Hans (eds.), Germany’s Social Market

Economy: Origins and Evolution, New York: St. Martin’s Press, 1989. Na elaboração da Economia

Social de Mercado avulta o papel de autores alemães e austríacos como Johannes Messner, Arthur Utz von Fridolin e Eberhardt Welte.

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Apesar de excelentes contributos particulares, está ainda por fazer um balanço da recepção em Portugal da segunda fase da democracia-cristã.6

Mas se, devido aos motivos já apontados, essa recepção e o activismo decorrente passam por grupos diversos e relativamente isolados, com o que isso significa de expressão política fraca, não deixava de ser uma terceira via alternativa às doutrinações opostas, e violentamente con-frontadas, do Estado Novo e do comunismo marxista.

Desde o início da década de 50, e a fim de combater a carência de pensa-mento social num país ainda céptico e anti-clerical, a multiplicidade de movimentos da Igreja, integrados ou não na Acção Católica, divulgam o pensamento social cristão. O tom do confronto com o marxismo é dado pelos livros de Jacques Maritain, personalista, então editados em portu-guês na década de 40.7 A Companhia de Jesus tem um importante papel

na renovação da filosofia política, de que é exemplo A Idade do Social, de Lúcio Craveiro da Silva, S.J. As propostas económicas seguem no essencial as linhas de Amintire Fanfani em Catolicismo, Protestantismo e Capitalismo. O Congresso da JUC de 1953 lança as sementes de uma gera-ção de católicos, descomprometidos com a construgera-ção do Estado Novo. Em 1957 estão na revista Encontro, dirigida por João Salgueiro, com a co-laboração de João Bénard da Costa e Pedro Tamen. As organizações da Acção Católica adoptam uma agenda de questões sociais em que se con-frontavam com posições esquerdistas, nomeadamente de sindicalistas e estudantes. As divergências doutrinárias, contudo, não impedem fren-tes comuns entre oposicionistas, atentas as profundas diferenças entre a doutrina social da Igreja e a ideologia marxista. Em 1957, a JOC passa a ser dirigida por João Gomes, com a colaboração de Manuel Serra. O

6.  Cf. CRUZ Manuel Braga da, As Origens da Democracia-cristã em Portugal e o Salazarismo, Lis-boa: Presença, 1976

7.  Autor de La Personne Humaine et la Societé, de 1939, Direitos do Homem e Lei Natural, de 1942;

Cristianismo e Democracia, 1943; Princípios de uma Política Humanista, de 1944; A Pessoa e o Bem Comum, de 1946. Já não é o Jacques Maritain de Anti-Moderne, próximo do maurrasianismo, e

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institucionalismo jusnaturalista de raiz cristã impõe-se entre os monár-quicos que mantêm vitalidade doutrinária, nomeadamente o grupo da revista Cidade Nova, onde se destaca Henrique Barrilaro Ruas. Neste terreno crescem os apoios para a candidatura presidencial de Humberto Delgado e para a “Revolta da Sé”. Em Maio de 1958, surge uma carta ao jornal Novidades, criticando o apoio deste órgão oficioso da Igreja ao Estado Novo, e subscrita por um grupo de católicos (em que se desta-carão, no pós-74, como militantes do PS, João Gomes, Manuel Serra, Nuno Portas; no MDP, Mário Murteira e Francisco Pereira de Moura; no MES Nuno Teotónio Pereira; e no PPM, Barrilaro Ruas).8

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É neste contexto da década de 50, aqui meramente esboçado, que se inserem os Documentos Pastorais do Bispo do Porto, desde 1952 até Janeiro de 19599, onde o autor reflecte o pensamento social-cristão que defende

uma terceira via, considerando comunismo e liberalismo como «uma heresia ou acervo de heresias» (p. 163), pelo que «o nosso Não ao ateismo comunista não subentende Sim ao capitalismo liberal, individualista» (p. 164), bem como «a defesa duma Europa produto da Renascença e do Protestantismo, que sempre nos enjeitou, a nós peninsulares, e pela qual não somos responsáveis» (p. 164). Para ele, «a liberdade postula morali-dade, a democracia requer virtude; o cristianismo é por isso verdadeiro fermento da liberdade, a escola da genuína democracia» (p. 163). Critica também o socialismo, por «pôr o económico em lugar do espiritual; substituir o moral pelo jurídico, criar a virtude e eliminar ao vício por decreto, fazer o sócio à custa da pessoa, vingar a justiça em detrimento da liberdade, levar a sociedade humana pelos caminhos do formigueiro

8.  Cf., a propósito da oposição dos católicos ao salazarismo, ALVES P. José Felicidade,

Católi-cos e Política. De Humberto Delgado a Marcello Caetano, Lisboa: ed. de Autor, s.d.. Sobre a doutrina

social católica na época Cf. NUNES Adérito de Sedas, Princípios de Doutrina Social, Livraria Morais, Lisboa, 1961 (2ª ed).

9.  D. ANTONIO FERREIRA GOMES, Endireitai as Veredas do Senhor! Alguns Documentos

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e da colmeia, enfim fazer a fraternidade sem paternidade e a comunhão sem caridade, tudo isto é Anti-evangelho: pôr o homem em lugar de Deus e a ‘sociedade’ em lugar da Igreja» (p. 234). Nada que a doutrina social da Igreja não afirmasse. A questão melindrosa residia em saber se esta “terceira via doutrinária” poderia ser operacionalizada no terreno concreto das reivindicações cívicas e das lutas políticas.

É por sua vez nesta moldura pessoal, longamente meditada, que se in-sere a carta do Bispo do Porto dirigida a Salazar em 13 de Julho de 1958, e que, pelas circunstâncias da sua divulgação manipulada pelo governo, e das consequências pessoais e públicas, acabou por consti-tuir uma magna carta de denúncia do regime autoritário, e um marco incontornável do pensamento social cristão em Portugal. O Bispo do Porto, aceitando em Salazar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições em matérias de política externa e de política ultramarina, recusa liminarmente a política social, através do que qualificava como uma posição de filosofia política e de sociologia, «na medida em que aqui se incluam as questões fundamentais da liberdade e autoridade, da justiça e da or-dem, da pessoa e da colectividade - e em boa verdade não vejo como afastar essas questões de perspectiva tão larga e de expressão tão categórica.” Considerando que o problema essencial não é directamente a defesa da Igreja, mas da ordem civil e social, declara que a maior necessidade dos católicos é ultrapassar a mentalidade do Centro Católico que cada vez mais se torna uma mentalidade de catacumba ou mesmo de perdição, da qual a Igreja já só pode esperar um “amor de Perdição”. Taxativo na recusa do comunismo – «o comunismo não tem razão nenhuma, <embora> (...) pense que o comunismo pode coincidir com certas incidências concre-tas da sociologia cristã, que lhe é anterior» – observa de forma incisiva que a Igreja «comprometeu-se não com o Estado corporativo mas com a ordem corporativa da sociedade», citando Pio XII, para quem «se co-meteria uma injustiça, ao mesmo tempo que se perturbaria seriamente a ordem social, se fossem retirados aos agrupamentos de ordem inferior as funções que esses agrupamentos estariam em condições de exercer

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eles próprios». É com base na análise da situação concreta, tal como lhe era transmitido dos «dois pólos» opostos – «o da tradição e o da re-cristianização: do que fica no meio se poderá julgar» – por sacerdotes e responsáveis de centros paroquiais, por dirigentes e membros da Acção Católica, por universitários e pelos que com ele conviviam, que ganha eco o lamento de D. António: «Está-se perdendo a causa da Igreja na alma do povo, dos operários e da juventude; se esta se perde, que poderemos esperar da sorte da Nação?».

A missiva encerrava com um inquérito sumário a Salazar – e a ninguém terá escapado a ironia de o Grande Inquisidor estar a ser inquirido, embora epistolarmente. Tais perguntas, afinal, enunciavam os requisi-tos para operacionalizar o pensamento social cristão e provocaram a reacção pessoal de Salazar e dos órgãos ao serviço do regime. Era pre-ciso criar uma maioria sociológica favorável aos objectivos da segunda geração democrata-cristã: “Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos façam a sua formação cívico-política”?. Era preciso criar uma vida cultural animada pela doutrina social da Igreja: “Tem o Estado qualquer objecção ao ensino da doutrina social?”. Era preciso criar uma organização política capaz de sustentar esse ideário, sem que o comprometimento da Igreja Institucional inviabilizasse o projecto: “Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos iniciem um mínimo de organização e acção políticas?”.

Até que ponto estes posicionamentos – de D. António e dos grupos católicos que nele se reconheciam – não passam de uma série de excep-ções que confirmavam a regra do compromisso tácito com o regime, assumido pela hierarquia e pela maioria da Igreja, e particularmente simbolizado pela atitude do Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira? E até que ponto este conjunto de rupturas actuou como fermento na oposi-ção tradicional – que aliava republicanos, comunistas, monárquicos e católicos, por ocasão das eleições de 1958 – criando uma ampa frente oposicionista que, embora sem êxito político imediato, criou as bases para a ampla consolidação da democracia no pós 25 de Abril? São

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per-guntas a que não é fácil responder sem um balanço – ainda por fazer – das relações entre cristianismo e democracia, em Portugal, desde o pós-guerra até 1975.

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Também não é evidente até que ponto o próprio Salazar se convenceu de que a Igreja em Portugal poderia vir a adoptar o discurso e os programas da democracia cristã, então correntes no resto da Europa. É certo que, em discurso de 6 de Dezembro de 1958 à direcção da União Nacional, Salazar analisa a ruptura de grupos e individualidades católicas com o referido organismo, agitando a ameaça do alastramento do comunis-mo, e avisando o Vaticano de que as relações entre Igreja e Estado e a própria Concordata poderiam estar em perigo.10 Tais ameaças veladas à

Igreja, que era um pilar do regime, traduzem-se em hostilidade a certas actividades católicas: a Acção Católica perde estatuto legal; os sacer-dotes são proibidos de pastoral nos sindicatos; ao último Congresso de sindicalistas da Acção Católica não se permitiu a publicação das Actas; a PIDE interfere nos Congresso de organismos da Acção Católica e al-guns dos seus dirigentes são suspensos; enfim, os esforços para fundar uma Universidade Católica foram bloqueados. Contudo, não é possível generalizar estas dolorosas e dolosas medidas contra a Igreja numa re-cusa à instituição no seu todo. Sendo o anti-comunismo o argumento de Salazar que mais eco encontrou, o melhor comentário foi feito por Francisco Lino Netto11, porta-voz do Centro de Informação Católica.

Um regime comunista era implausível em Portugal, por contrário à ín-dole popular; assim, a atracção pelas ideias comunistas não derivava de virtudes intrínsecas destas mas de aspirações por justiça que não encontravam satisfação na situação; e mesmo que tal argumento fosse

10.  Portugal: An Information Revew, 2nd year, nº 6, p.320, Nov.-Dec. 1958

11.  Considerações de um católico sobre o Perídodo Eleitoral, Lisboa, 1958 (mimeografado). Repro-duzido em alguma imprensa francesa da época, o que levou Lino Netto e outros dezasseis católicos a serem acusados de difamação anti-nacional. Posteriormente foram amnistiados.

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falso, caso houvesse perseguições, caberia ao cristão, em princípio, estar do lado dos perseguidos e não dos perseguidores.

Não nos cabe aqui delinearmos o exílio de D. António Ferreira Gomes – a forma de perseguição que sobre ele se abateu – nem a determinação com que a Santa Sé o manteve como bispo do Porto, embora retirando--o de Portugal. Tratava-se de uma oportunidade perdida (houve outras) de iniciar uma evolução no interior do salazarismo; tratava-se de uma cicatriz na Igreja, que manteve as suas liberdades dentro do compro-misso com o regime. A maioria sociológica cristã e a hierarquia da Igreja mantiveram os seus procedimentos na “democracia da sociedade civil” – como a designou Adriano Moreira – alheando-se das aspirações de democracia política. A ausência de D. António ditou a desancoragem política dos católicos oposicionistas. Seguiram-se outros caminhos e no-vas propostas, a par de continuidades várias. Editoras como a Aster e a Tavares Martins, onde avultam figuras como Costa Maia, Hugo de Azevedo, Carlos E. Soveral, Barrilaro Ruas, Agostinho Veloso S.J. en-tre outros, traduzem filósofos e teólogos católicos de vanguarda como Romano Guardini, Henri de Lubac, Dietrich von Hildebrand, Bernard Haering, Michele Federico Sciacca. No campo social, avulta o magis-tério de Adérito de Sedas Nunes no Gabinete de Estudos Sociais, a criação da revista Análise Social e a tradução, em 1960, de obras como Igreja e sociedade económica de Jean-Yves Calvez e Jacques Perrin e o Catecismo Social de Eberhard Welty. O personalismo existencialista de E. Mounier – aliás presente em D. António – marca a partir de 1963 o magistério de António Alçada Baptista e do Círculo do Humanismo Cristão, da Livraria Moraes e da revista O Tempo e o Modo.12 O chamado

“progressismo cristão” nasce a partir da crítica ao salazarismo e, depois de ensaiar fórmulas democráticas, é ocupado pelos que, depois do diálo-go com o marxismo e de colaboração com o PCP, ultrapassam este pelo

12.  A partir de 1968, com João Bénard da Costa e Helena Vaz da Silva, a revista acolhe os novos

amanhãs que cantam. Na década de setenta, a revista passou a órgão do maoísmo, com Amadeu

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esquerdismo revolucionário. Sem outras amarras filosóficas do que o existencialismo cristão, tornou-se o principal terreno onde o marxismo se desenvolveu. De existencialismo marxista, depressa passou a querer ser o único humanismo, e ideologia de golpe de Estado, conforme o exemplo de Manuel Serra.

Outros católicos não-situacionistas enveredam pela colaboração possível com o regime de Marcello. Entre os adeptos da via reformista, os cha-mados “tecnocratas” seguem as passadas de Maria de Lurdes Pintasilgo, João Salgueiro e Xavier Pintado, e passam a responsáveis por cargos públicos ou políticos. Outros – como João Pedro Pinto Leite, Magalhães Mota, Francisco Sá Carneiro e João Pedro Miller Guerra – formam a ala liberal da oposição. A SEDES emergirá como ponto de encontro desta geração que se reencontrará no 25 de Abril. Exemplar da sua posição é a entrevista de 15 de Abril de 1971, de Francisco Sá Carneiro, a um jovem jornalista do República, Jaime Gama; face à pergunta se poderia assumir-se como democrata-cristão, responde que «se amanhã me pu-desse enquadrar em qualquer partido, estou convencido de que, dentro dos quadros da Europa Ocidental, comummente aceites, iria para um partido da social-democracia».

Profeta uma vez, sempre profeta

O fim do exílio de D. António em 1969 coincide com as ambiguidades da “Primavera” marcelista. Seria possível recuperar o tempo perdido? Criar a maioria sociológica apoiante da democracia-cristã? Difundir a doutri-na social de Igreja? Criar a organização cívica e política dos cristãos? O tempo histórico acelerou até à revolução de Abril. Os acontecimentos sucediam-se, agora, a um ritmo célere e a instauração desejada da demo-cracia veio agravar o fosso entre a doutrinação social cristã e as escolhas políticas inadiáveis.

As condições enunciadas por D. António na Carta a Salazar não se verificavam: não existiam condições sociológicas para um partido

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democrata-cristão; era patente a carência de vida cultural animada pela doutrina social da Igreja; não existia qualquer organização políti-ca políti-capaz de sustentar as posições do pensamento social cristão, nem o comprometimento da Igreja Institucional. A Igreja e os católicos, face ao processo revolucionário (PREC), teriam primeiro que submeter-se para sobreviver, para depois lutar para impor a sua diferença. Quando chegou a primeira potencial grande crise – com as exigências do movi-mento pró-divórcio, pugnando pela alteração do Código Civil vigente, que consagrava a Concordata com a Santa Sé – evitou-se a ruptura com o novo poder político. A Igreja condescendeu, sendo assinado um acordo com o Vaticano. Era já tarde – e indesejável do próprio ponto de vista da Igreja – para criar um partido político cristão em Portugal em 1974. A maioria sociológica que o apoiaria não hostilizara o regime anterior; as elites que o poderiam dinamizar não tinham estruturado um movimen-to cultural democrata-cristão, ismovimen-to é, um movimenmovimen-to laico enraizado na sociedade civil e independente das estruturas eclesiais; a própria Igreja acompanhara, no compromisso histórico com o salazarismo, a maioria sociológica referida. Enfim, começava a evidenciar-se o esgotamento dos partidos democratas cristãos no panorama europeu. A adaptação de-fensiva da Igreja às novas regras políticas – em que se destaca o papel tenaz do falecido Cardeal D. António Ribeiro – deu liberdade a todo o católico de escolher entre os partidos democráticos, integrando uma frente de resistência ao assalto ao poder por parte das forças totalitárias. A legitimidade do voto popular de 25 de Abril de 1975 que atribuíra uma maioria esmagadora aos partidos democráticos (PS, PPD e CDS) veio conformar o bem fundado deste posicionamento. Era desnecessário um partido democrata cristão porque os cristãos estavam em todos os partidos democráticos. Liquidando a herança anti-clerical da Primeira República, o cristianismo deixava de ser sinal de divisionismo político, e em parte contribuía mesmo para a unidade democrática, no que foi uma das principais heranças de D. António Ferreira Gomes.

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Entretanto, os ataques à Igreja não cessaram imediatamente. D. António Ferreira Gomes – que recebia a atenção da comunicação social – foi, mais uma vez, dos primeiros a clamar no deserto, invectivando os desmandos do PREC e contra os métodos pseudo-democráticos do gonçalvismo.13 Não se coibia também de invectivar os que, a pretexto

de apolitismo, se refugiavam na doutrinação sem tirar as consequên-cias para uma intervenção política: «Geralmente fala-se da “doutrina social da Igreja” mas evita-se falar da sua doutrina política».14 As

agres-sôes crescentes à livre expressão das posições católicas culminaram no silenciamento da voz livre da Rádio Renascença.15 D. António desfere

sucessivos libelos acusatórios. Veja-se a título de exemplo É preciso des-mistificar a Revolução16, ou o alerta numa das homílias onde refere que «a

defesa contra o pessimismo doentio e egocentrista não nos leve porém a um optimismo iluminista do “melhor dos mundos” (...), dum mundo sem pecado original nem actual, a uma mística da humanidade <imacu-lada> (...) e totalmente natural».17

Se antes reagira contra a “Situação”, colocando a tónica na justiça social, reage agora, enfatizando a liberdade, contra o esquerdismo de

silhue-13.  Cf. os principais escritos de D. António no pós-1974, in Paz em Portugal pela Reconciliação dos

Portugueses, Porto: Telos, 1975 e Rearmamento Moral e Desmilitarização, Porto: Telos, 1976

14.  «Quantos responsáveis <da Igreja> aborrecem e fogem a confessar que, mesmo só ideolo-gicamente, se situam em relação à política: que nada entendem de política, que não querem saber de política, que não fazem política. (…) Geralmente fala-se da “doutrina social da Igreja” mas evita-se falar da sua doutrina política (…); se aquela, porque não esta? (…) Por estas e muitas outras razões semelhantes creio bem que, nestes séculos de democracia política e já de democracia social, nenhum homem responsável da Igreja poderá dizer que não quer saber de política ou que nada percebe de política»: «A colegialidade episcopal e a vida cívica»: in Cartas

ao Papa sobre alguns Problemas do nosso Tempo Eclesial pelo Bispo Resignatário do Porto, Figueirinhas,

Porto, 1986, 153-154.

15.  Saliente-se o papel do Arcebispo Primaz de Braga, D. Francisco Maria da Silva, cujos prin-cipais textos de intervenção estão editados em Mensagem ao Clero e Fiéis, Braga, 1975 e Através

da Tormenta. Temas Sociais. Outros Temas, Braga, 1976. Veja-se o texto da proclamação feita à

manifestação de 10 de Agosto de 1975, Quem nos governa há-de tomar consciência do que o povo

quer e do que o povo não quer.

16.  Reflexão de Agosto de 1975, vertida no periódico Igreja Portucalense, 28 (1975) 19-34. 17.  Publicada em «Paz em Portugal pela reconciliação dos portugueses», in op. cit.

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ta democrática e cuja apetência totalitária desencadeou a reacção de humanistas laicos e humanistas cristãos: «agora que a Igreja, nos países civilizados (democráticos) adquiriu a sua liberdade e não há mais razão para a confusão ou união dos poderes, é tempo de os homens da Igreja se convence-rem, plena e eficazmente, de que combater, menosprezar ou menos valorizar a liberdade, é, além de uma agressão à essência do homem, tornar radicalmente incompreensível e inexplicável a existência do mal no mundo, e portanto pôr em causa a própria existência ou atributos de Deus».18

No Verão Quente de 75, quando o país parecia encaminhar-se para o totalitarismo comunista através da subversão conduzida pelo apare-lho “gonçalvista”, surge a contra-subversão a partir da sociedade civil, num movimento que parte da rua contra o poder que se estabelecera no Governo, na Administração e na Comunicação Social. Nesta inversão do PREC, a Igreja, a partir do povo, recuperou o seu poder de influên-cia e a sua legitimidade, sem incorrer na tentação de abrir conflito com as forças laicas, republicanas e socialistas, aliás também enxovalhadas pelo mesmo PREC.19 Estava presente nos principais partidos

democrá-ticos: no PS, onde dirigentes cristãos admitiam um diálogo discreto com forças laicas; no PSD, onde o impulso católico dos fundadores, no-meadamente Sá Carneiro e seus pares, cresceu mediante uma aliança com a maçonaria conservadora que não queria subscrever cedências ao marxismo; no CDS que congregou forças jovens da ala católica, onde se destacam Freitas do Amaral e Amaro da Costa, sem vínculo aos pro-gressistas cristãos dos anos 60. A Igreja teve a sabedoria prática de não ressuscitar conflitos entre a “loja” e a “sacristia”, o “avental” e a “bati-na”, clericalismo e anti-clericalismo. Pelo contrário: através da reacção popular, a Igreja ajudou a firmar um compromisso histórico entre o humanismo laico e o humanismo cristão face ao totalitarismo. A par-tir de então, os socialistas não mais podiam ser atacados pelo facto de

18.  «A colegialidade episcopal e a vida cívica», in Cartas ao Papa, op. cit., 170

19.  Caso típico é o encerramento do República, jornal do socialismo e da herança maçónica, dirigido por Raul Rego.

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muitos terem sido comunistas e anticlericais. Por seu lado, os católicos não podiam esquecer que progressistas cristãos estiveram na revolução comunista contra a democracia, e deixaram de poder ser atacados pelo facto de terem sido aliados do autoritarismo salazarista. A sociedade portuguesa encerrava uma das suas guerras civis ideológicas. No es-sencial, as liberdades da Igreja permitiam-lhe assegurar a presença de católicos nos principais partidos políticos portugueses, sem ficar con-finados num partido democrata-cristão, eventual bode expiatório dos anti-clericais. O magistério da Igreja libertava-se da tutela informal do Estado, mantendo alguma influência junto dos decisores políticos.20

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O pensamento social cristão do bispo portuense encontra-se dissemi-nado pelos seus escritos pastorais de mais de quatro décadas. Espraia-se pelas temáticas das liberdades económicas e políticas, da sociedade civil, e do bem comum; situa os conceitos e categorias numa espiritualidade concreta, norteado pelos princípios de justiça social e da subsidiarie-dade, conforme o entendimento das encíclicas papais sobre a matéria; sedimenta-se na tradição específica portuguesa dos problemas do Estado de Direito, da autodeterminação popular e do direito das gentes21; e é

particularmente insuflado pelo ânimo profético contra o poder tirânico do Estado. D. António joga, portanto, no movediço tabuleiro de uma filosofia social e política: «Todos estamos de acordo que há dois

proble-20.  Segundo Adelino Maltez, «em Portugal, os mais conseguidos movimentos sociais cristãos sempre se constituíram como contrapoder. A estrutura sociológica e o imaginário do povo português, porque majoritariamente conformados pela educação católica, levariam à rejeição epidérmica de qualquer partido ou movimento político que desencadeassem qualquer agres-são ideológica face à matriz católica básica»: «Movimentos sociais-cristãos em Portugal», in

Boletim GEPOLIS 3, Dep. de Filosofia / IIAIC, UCP, 1996, 5

21.  «Para nós portugueses e para a nossa específica tradição dentro dos povos ibéricos, é de notar-se - e não sei se tem sido entre nós suficientemente notado - que estamos historicamen-te situados na charneira ou nó vital dos problemas do crescimento do Estado de Direito, da autodeterminação popular e do direito das gentes»: «Paz em Portugal pela reconciliação dos portugueses”, in op. cit., 26

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mas fundamentais, sem cuja solução não poderá haver paz social, sejam quais forem as aparências.»22 Quais são esses problemas?

«O primeiro é que os frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social entre os membros da comunidade, quer no ponto de vista dos indivíduos quer no dos sectores sociais (...)».23 A

justiça apresenta-se a D. António como cânone para avaliar a sociedade e como finalidade social do bem comum: toda a questão estará em saber como dividir as tarefas da justiça pelo Estado, pela sociedade civil e pela iniciativa privada.24 O segundo problema é o da participação da

cidada-nia: «seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política».25

Em sociedades pluralistas, os cidadãos não são apenas governados nem apenas objectos de direitos e deveres. Se as sociedades tradicionais es-tavam dependentes do Estado ou das autoridades governamentais para discernir e promover o bem comum, uma vez que as capacidades e o co-nhecimento dos factores de progresso social não estavam disseminadas, nas sociedades pluralistas modernas existem muitos agentes, aquém e além do Estado, capazes de promover o bem comum, numa malha que entrelaça cidadania e participação na dinâmica dos poderes locais, por um lado, e das organizações intenacionais, por outro.

No espaço que se abre para o livre exercício de capacidades huma-nas, avulta a economia. No que respeita às liberdades económicas, D. António antecipa ilações da doutrina social da Igreja que virão a ser

22.  In «Carta a Salazar», in op. cit. 23.  In ibidem

24.  O conceito de justiça social é nomeado na Carta encíclica de Pio XI Quadragesimo anno, §§ 57, 58. 71, 88 e 126 (além de referido em 74 e 88).

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extraídas já na década de 80.26 Em termos de economia de mercado,

atribui importância crucial ao processo produtivo e à distribuição da riqueza produzida; com efeito, o problema da distribuição é posterior ao da produção. A chamada ordem espontânea do mercado é um exercí-cio de liberdade humana que resulta de livres escolhas e cria uma ordem diferente da ordem natural. Esta ideia de justiça é complementada com uma concepção que valoriza a empresa como comunidade de esforços em consertação social, e de reivestimento dos lucros na promoção dos recursos técnicos e humanos: «da empresa como comunidade livre de trabalho em que operários, quadros, técnicos, gerentes e patrões ou Estado-patrão, defendendo cada um os seus legítimos interesses, se con-sidera no entanto solidário no bem da empresa, que é o bem de todos».27

A justiça social requer, por um lado, que o Estado contribua com o que chamamos hoje bens públicos, como sejam instituição da propriedade privada, garantia dos mercados, incentivos e apoios sociais ao exercício da iniciativa e da criatividade pessoal, entre outros. Consciente do im-pacto e das précondições sociais das medidas económicas28, D. António

26.  Registe-se, pela antecipação, o acolhimento em Portugal da obra de Michael Novak,

O espírito do capitalismo democrático (1984), e o papel do Cónego João Evangelista Jorge e da

dio-cese de Coimbra na sua divulgação. Após a Encíclica Centesimus annus, de 1991, foram signifi-cativas as recepções positivas. Cf Actas do Colóquio realizado em 1995, na UCP, subordinado ao tema «2º Aniversário da Centesimus Annus» (vide Boletim GEPOLIS, op. cit.) contando com a participação de Pedro Arroja, Jorge Braga de Macedo, José Adelino Maltez, Fernando Micael Pereira, Xavier Pontado e Mendo Castro Henriques.

27.  «Como seria bom, a partir da lição dos factos, pregar a sã doutrina social da Igreja (parece que bastante olvidada) da empresa como comunidade livre de trabalho em que operários, quadros, técnicos, gerentes e patrões ou Estado-patrão, defendendo cada um os seus legítimos interesses, se considera no entanto solidário no bem da empresa, que é o bem de todos. E todos reconhecerão que a empresa, sendo parte do bem colectivo (…) deve ter lucros que lhe permitam, além da remuneração do trabalho de cada um, amortizar débitos e equipamentos, actualizar máquinas e instrumentos de trabalho, acompanhar o desenvolvimento tecnológico, e se possível avançar para novos empreendimentos. (…)»: «A colegialidade episcopal e o Reino de Deus», in Cartas ao Papa, op. cit., 110.

28.  «Ouvi e li, com o maior interesse, o discurso de Vª Exa. de 31 de Maio. Enquanto trata das políticas externa e ultramarina e do problema económico, salvas pequenas diferenças, não pude senão admirar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições; quando porém cheguei ao problema social, tudo começou a ser difícil...»: in Carta a Salazar, op. cit.

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demarca-se do que chama o “financismo” de Salazar – «as finanças são o primeiro servidor e não podem ser, senão excepcional e transitoriamen-te, o senhor da Nação»29 – e alerta para a pobreza e o o envilecimento

das classes desfavorecidas, sobretudo a rural.

A ênfase de D. António no princípio de associação é evidente. Na esteira do que o magistério proclamara contra o liberalismo selvagem, defende o direito de associação profissional e sindical dos trabalhadores, bem como o princípio de uma ordem dos corpos intermédios da sociedade civil, consagrando, nomeadamente, a liberdade de intervenção sindical como direito natural dos trabalhadores e outras formas de acção so-cial voluntária. À luz deste princípio, antecipa o princípio instaurador da autonomia da sociedade civil. Quanto mais alargadas as associações livres, mais evidente, rica e mais estimulante será a vida social. As possi-bilidades de actuação social que estão na base da sociedade civil não se definem apenas pelos estritos deveres políticos.

Tocamos aqui no cerne do pensamento do bispo portuense sobre a jus-tiça social, termo que suscita diversidade de interpretações.30 Para ele,

justiça não pode ser apenas justiça comutativa, virtude própria do li-beralismo ou das trocas – o que deixaria o mercado sem a norma da lei; também não pode ser apenas justiça distributiva, virtude própria do socialismo – o que atribuiria poder excessivo ao Estado, distribui-dor de riquezas. Tem que existir justiça social, no sentido específico de que a sociedade – e não o Estado – deve ser o seu protagonista: as

29.  «Um financismo (...) invertido num economismo despótico, actuando dentro de uma so-ciedade cujos erros venho procurando apontar, não podia deixar de resultar e resultou efec-tivamente em benefício dos grandes contra os pequenos e finalmente na opressão dos pobres. (...) Falando assim eu não quero pelos excessos do socialismo ou pelo descalabro financeiro; apenas não posso deixar de pensar que (...) se o equilíbrio financeiro é óptimo, nunca deve deixar de estar ao serviço do homem»: in Carta a Salazar, op. cit.

30.  Cf. as duras críticas ao conceito de justiça social em HAYEK Friedrich, Law, Legislation,

and Liberty, Vol. 2: The mirage of social justice (Chicago: University of Chicago Press, 1976),

desi-gnadamente Chapter 9 “Social or Distributive justice” 62-100. Sobre o tema cf. NOVAK Mi-chael, The Catholic Ethic and and The Spirit of Capitalism, New York: The Free Press, 1993, 62-88

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prestações em impostos dos cidadãos ao Estado têm que ser acompa-nhadas por participação e cidadania. D. António diagnostica que «o Estado-providência está manifestamente em crise»31 e aponta o remédio:

«a constituição de (…) mediadores entre o Estado e os utentes da sua providência».32 As soluções sugeridas passam pela descentralização de

poderes em esferas mais próximas dos cidadãos, por um lado, e restitui-ção de poderes devolutos do Estado à rede de instituições da sociedade civil. Não é por acaso que D. António vivia intensamente os afazeres dos Centros Paroquiais da sua diocese. Enfim, é este posicionamento da justiça em sede da sociedade civil – e não do Estado – que confere conteúdo ao princípio de subsidiariedade33 referido como «o princípio

da complementaridade ou função supletiva do Estado», e «princípio de peso de filosofia social».34

31.  «A crise cultural generalizada não pode deixar de reflectir-se na Sociedade e no Estado (...). Fala-se de uma crise geral da civilização, que se estão esgotando os meios e institutos ci-vilizacionais, que os costumes particulares e públicos não respondem ao estado de liberdade de que felizmente nos dotamos. Assim, por exemplo, o Estado Providência, generosa criação do nosso tempo, está em falência financeira e económica resultante da falta de honestidade do cidadão para com o Estado; mas não se vê maneira de corrigir ou reprimir os costumes que a tal falência conduzem. Como dizia o historiador clássico, não podemos já suportar os nossos males nem os seus remédios»: «Diálogo da Igreja com a Cultura», in Cartas ao Papa, op. cit., 49 32.  «Esta criação generosa da civilização moderna que é o Estado-providência está manifesta-mente em crise: o Estado propõe-se prover a tudo (…), mas ao Estado todos (ou quase todos) mentem e roubar ao Estado não é roubar mas indemnizar-se. Assim o Estado vai a caminho da falência em toda a parte. Para obviar à crise do Estado-providência, sociólogos e economistas (…) não vêem mais do que uma solução em sociedade livre: a constituição de núcleos de infor-mação e interajuda à base da comuna ou freguesia, que sejam mediadores entre o Estado e os utentes da sua providência. É que as relações de vizinhança são reais e sensíveis, enquanto as relações com o Estado são geralmente abstractas e teóricas: para o Estado o cidadão não tem cara, é apenas um número; e um número não pode corar nem envergonhar-se…»: in Carta a

Salazar, op. cit.

33.  Princípio da subsidiariedade que, na definição de João Paulo II, afirma que «uma socieda-de socieda-de orsocieda-dem superior não socieda-deve interferir na vida interna socieda-de uma sociedasocieda-de socieda-de orsocieda-dem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em conta o bem comum» (CA, § 49).

34.  «Podia justificar a minha discordância aduzindo o princípio da complementaridade ou função supletiva do Estado, válido como em tantas outras e ainda mais, nas matérias económico-sociais; podia lembrar aquele outro princípio gravíssimo de filosofia social, de que “se cometeria uma injustiça, ao mesmo tempo que se perturbaria seriamente a ordem social,

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D. António é um homem da resistência: «Resistência foi para a Ética e Sociologia católicas, o conceito base de comportamento cristão, face a qualquer mal e designadamente face ao poder tirânico»35 É da

resis-tência às injustiças praticadas que emerge a tomada de consciência dos problemas das comunidades.36 E é desta consciência que resulta a

con-cepção personalista de liberdade: «a liberdade é, sem dúvida, um bem e um direito, inerentes à pessoa humana, mas é antes obrigação de cons-ciência e uma virtude a cultivar (...), difícil e às vezes heróica».37 Todavia,

essa liberdade não é inata nem infusa. Supõe um processo de aprendiza-gem e de educação cívica, bem como um exercício prudente no seio das liberdades ordenadas que devem assistir ao corpo social.38

É a exigência de direitos, liberdades e garantias que solicita ao católico uma dimensão política. A participação política não decorre dos precei-tos do regime instuído, mesmo que esse regime seja, desejavelmente, a democracia. «A verdade é que, histórica e culturalmente, a democracia não é um dado espontâneo mas uma meta».39 A democracia não é um

objecto de que as pessoas se apropriem mas sim um processo de parti-cipação, que requer uma peculiar vigilância. A democracia não é uma terra conquistada mas uma terra prometida.40

se fossem retiradas aos agrupamentos de ordem inferior as funções que esses agrupamentos estariam em condições de exercer eles próprios” (Pio XI)» in Carta a Salazar, op. cit.

35.  «Carta-prefácio», in FREIRE José, Resistência Católica ao Salazarismo-marcelismo, Porto: Te-los, 1976

36.  Cf. a propósito «A colegialidade episcopal e o Reino de Deus», in Cartas ao Papa, op. cit., 101 37.   In Ibidem, 99

38.  «A liberdade é sem dúvida um direito, inerente à natureza do homem; e não se deve esque-cer que por aí se deve começar, porque o homem é um sujeito de direitos e só por isso sujeito a obrigações. Mas não se deve esquecer também que a todo o direito corresponde um dever: o homem, sujeito de direito, tem o dever de ser livre. E a liberdade é uma virtude e virtude bem difícil, que exige tantas vezes coragem, abnegação, e até sacrifício. Por isso tanto mais precisa de educação»: «A colegialidade episcopal e a vida cívica», in Cartas ao Papa, op. cit., 160 39.  In Ibidem, 159

40.  «Estou longe de considerar a democracia como um todo monobloco ou qualquer coisa que surgisse de uma revolução popular, como um ídolo armado e equipado, qual Minerva da cabeça de Juno. (…) A verdade é que, histórica e culturalmente, a democracia não é um dado espontâneo mas uma meta, meta e objectivo para que se vem tendendo desde o início da

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his-Neste sentido, a esfera do bem comum considera tanto o todo social como a dignidade individual da pessoa livre, requsitos em qualquer si-tuação histórica. D. António critica Marx, segundo a qual cada indivíduo se identificaria com o seu género pelo comunismo. Recusa frontalmente o princípio marxista da essência genérica do homem (Gattunswesen), que nega o bem comum de indivíduo e sociedade.41 A esta concepção que se

cumpriria na abstracção “mística” do reino do homem universal, con-trapõe o realismo de uma concepção comunitarista na qual «a pessoa humana é no mundo o único sujeito de liberdade e portanto o único centro de direitos e deveres, tanto na ordem pessoal como social».42

É relativamente mais fácil, no entanto, desejar o bem comum do que discernir no que ele consiste. Tal discernimento depende de conheci-mento dos problemas concretos de cada situação, ou seja da mudança social. A mudança não é um processo automático ditado por necessi-dade ou determinismo histórico, mas antes um processo criativo em que a base institucional é a liberdade do sujeito humano. Nas socieda-des tradicionais, era mais fácil a um governo central deter a soma de instrumentos para responder aos problemas da mudança social. Mas nas sociedades contemporâneas, a principal fonte de dinamismo pro-mana do livre espírito de invenção e inovação. Na verdade, instituições económicas como o mercado livre, propriedade privada, incentivos e

tória cultural, que se vem desenvolvendo ao compasso da marcha civilizacional do homem e que só terminará com o termo da civilização»: Ibidem, 158-159

41.  «Desta aspiração ao homem universal tivemos, no nosso tempo, o exemplo mais flagrante que abalou a história do nosso século. O marxismo, no seu cariz mais sedutor e perigosamante utópico (…) procede da ideologia do homem universal. (…) Marx chega a proclamar que, pelo comunismo, cada indivíduo se identificaria com o seu género (…). O individualismo próprio do seu século seria afogado na própria hipérbole: já não haveria homens, haveria a Humani-dade! É fácil prever as consequências deste “corpo místico” por força de lei e pelo caminho da revolução total»: «A colegialidade episcopal e o Reino de Deus», in Cartas ao Papa, op. cit., 102 42.  «Porque dotado de liberdade, o homem deve normalmente associar-se com os seus seme-lhantes e constituir-se finalmente em corpo político, no qual se dá as leis e instituições, que são a base e tutela da sua vida e liberdade (…). A isto acresce que (…) tudo quanto pode ser a dignidade, a aspiração e a verdadeira felicidade do homem, isso é Cristo»: «A colegialidade episcopal e a vida cívica», in Cartas ao Papa, op. cit., 179-180

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lucro, circulação de capital, já existiam em sociedades tradicioanis. O que é novo, segundo o bispo do Porto, são as instituições que acolhem as capacidades de invenção, inovação e descoberta, ou seja, a imagem do Criador impressa no ser humano.43 Modelo dinâmico e não estático de

mudança social, esse impulso criativo encontra o seu ponto ómega na instauração do Reino de Deus.44

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O pensamento social cristão de D. António Ferreira Gomes move--se nos trilhos de uma reflexão que procura decifrar o fluxo histórico como horizonte onde a Criação divina harmoniza as tensõs criadoras e responsabilizadoras das sociedades, fundamentando-se em em três campos teológicos, a saber o mistério do Reino de Deus e a instauração da Civilização do Amor; a comunhão da Igreja como reflexo da vida Trinitária; e o ministério de Cristo à luz da Incarnação e da Redenção. O mistério do Reino de Deus traduz o horizonte teológico em que te-mos de equacionar a tensão (não a colisão) entre a ordem transcendente do divino e a ordem política das sociedades. Nesse sentido, o Reino de Deus afigura-se como realidade escatológica e interinamente presente na História, aguardando a adesão da consciência a partir de uma leitura dos sinais dos tempos. Ora, é na experiência plena da liberdade que se adensa a emergência do Reino de Deus. Essa liberdade não se perde em pulsões políticas libertárias ou libertinas: vai-se determinando naquilo que o bispo do Porto designa de «ulterior crescimento da civilização

43.  Aspecto vincado por Michael Novak na sua recente obra The Catholic Ethic and and The

Spirit of Capitalism (vide supra nota 30).

44.  «O Reino de Deus não tem de colidir com os “reinos” do homem, porque os supera, passa--lhes por cima sem necessidade de choque; a Lei nova, promovendo a liberdade dos filhos de Deus, vai a caminho da civilização do Amor, em que as leis quer civis quer religiosas são que-ridas pelo próprio bem da lei e como princípio da paz e liberdade»: «A colegialidade episcopal e o Reino de Deus», in Cartas ao Papa, op. cit., 99

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cristã, traduzida e concretizada em civilização do amor e fraternidade humana».45

A comunhão da Igreja exige uma lógica institucional que não é de conquista do poder mas de sollicitudo rei socialis46, de desvelo pela coisa

social, cuja realização encontra fundamento dogmático no dinamismo intrínseco do Deus uno e trino. Enquanto trinitária, a vida divina mo-dela o âmago da tarefa humana: cumprir a vida familiar e comunitária. A vida comunitária e comunicativa da Trindade possui a sua expressão mais eminente na experiência eclesial da comunhão dos filhos de Deus reunidos em assembleia (ekklesia). Para D. António, esse destino de co-munhão veiculado pela Igreja não deve estar desincarnadado de uma dupla tarefa social e política, a saber apresentar-se como sinal potencia-dor de uma comunidade de cidadãos que vive de modo responsável; e afigurar-se como paradigma de justiça social e paz universal, em vista da instauração de uma comunidade internacional mais justa, centrada na “civilização do amor”.47 Conceitos irrealistas? Mais propriamente

ideais--a-realizar que devem ser confrontados com aquilo que os chamados “realistas” das relações internacionais não souberam ler nas revoluções de 1989.

Com efeito, a eleição pontifícia do polaco Karol Wojtyla em 11 de Outubro de 1979, premonitória do fim do comunismo e do regresso à Europa dos povos de Leste, marcou o verdadeiro fim do pós-gurra da Igreja Católica, iniciado apenas com os desafiantes magistérios de João XXIII e de Paulo VI nos anos 60. Através de reformas gradativas, no interior das quais a Encíclica de Leão XIII, Rerum novarum, se

assu-45.  «O Sacerdote, o Filósofo e o Poeta perante Deus», in Cartas ao Papa, op. cit., 80-81 46.  Título da Encíclica de João Paulo II, de 1979

47.   «Parece que chegou para a Igreja e para o seu Ministério da Palavra o dever de pregar (...) o reino de Deus em gérmen e em esperança para o nosso tempo, que o mesmo é dizer uma civilização de liberdade, amor e paz, nos domínios mundial, nacional, regional, local e pes-soal»: «Não terá ainda soado a hora de pregar uma civilização de liberdade e amor?», in Voz

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me como epicentro originário de uma inovadora e sempre actualizada Doutrina Social da Igreja, foram surgindo os novos resultados adapta-dos ao globalizado mundo contemporâneo. A Populorum progressio de Paulo VI, de 26 de Março de 1967, veiculou a resposta da Igreja ao risco de um planeta unidimensional. Enquanto a Centesimus annus retoma a Rerum novarum, a Quadragesimo anno e a Mater et magistra, já a Sollicitudo rei socialis, de 30 de Dezembro de 1987, comemora o vigésimo aniversário da Populorum progressio, lançando a dimensão ecuménica da Igreja que, nas palavras de José Adelino Maltez, «mais que qualquer outra organi-zação internacional, deu voz aos povos mudos do mundo e fez com que o colégio cardinalício passasse a ser assumido pelos povos do Terceiro Mundo».48 O pensamento social cristão adquire hoje uma importância

crucial, decisiva para as questões da globalização económica e da inter-dependência mundial subsequente ao fim de uma guerra fria, cujos tons ameaçadores, aliás, parecem muito longe de definitivamente dissipados. A Igreja não é uma associação privada para promover experiências re-ligiosas gratificantes; é sinal de uma ordem espiritual comprometida com a consciência individual de cada pessoa, com a sociedade e com a história. Por isso mesmo, a realidade eclesial só se cumpre no horizonte da mediação, incarnação e redenção de Cristo. O pensamento social cristão exige uma antropologia. Por seu turno, o humanismo encontra um ponto de ancoragem numa teologia do Verbo incarnado, pois não há antropologia sem cristologia.49 Deste epicentro cristológico decorrem

exi-gências para uma praxis social cristã. Em primeiro lugar, a exigência de abertura da consciência a uma espiritualidade do concreto, traduzível

48.  MALTEZ José Adelino, «Movimentos sociais-cristãos em Portugal», Boletim GEPOLIS, 3, 1996, 5

49.  Título de reflexão pastoral vertida em Igreja Portucalense, 42 (1978) 16-24. Noutro passo, o bispo portuense explicita: «Desde que o verbo de Deus assumiu a natureza humana pode bem dizer-se que a Humanidade ou o Homem essencial foi assumido ao Absoluto e passou a ser em Cristo (...) a medida de todos os valores: (...) Cristo, o Homem-Deus passou a ser o critério objectivo para julgar toda a essência e existência dos seres na sua infinidade concreta»: «Do primeiro princípio da justiça e do direito», in Igreja Portucalense 56/57 (1980) 10-17

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naquilo que designa de «liberdade incarnada no mundo».50 Em segundo

lugar, a exigência de uma teologia que elege a dramática da cruz – à maneira de Urs von Balthazar – como lugar da salvação humana e cós-mica, e como «hermenêutica do fenómeno político» na feliz expressão de Arnaldo de Pinho.51 Veja-se a esta luz o lamento profundo de D.

António em 1976, ao opôr uma certa visão triunfalista e gloriosa da «revolução» ao trilho doloroso, à via sacra, do compromisso cívico quo-tidiano: caminho menos espectacular mas mais eficaz a médio prazo.52

Por último, exige-se uma ecleseologia atenta às interpelações do mun-do e às expectativas da sociedade. No quadro político das instituições democráticas, a liberdade religiosa permite que, sem subserviências, cumplicidades ou omissões comprometedoras, mas também sem pater-nalismos ou triunfalismos, «a Igreja pregue o Evangelho como Reino de Deus e de sua justiça, e portanto como fermento e portador de uma civilização universal de Verdade e Amor».53

Epílogo

Em suma, não entende o sentido profético do pensamento social cris-tão de D. António quem dele esperar um oráculo, um patrocínio ou uma justificação para um estado de coisas presente, para compromissos políticos que são sempre precários e resultantes dos equilíbrios sociais possíveis. Tanto durante o regime autoritário como depois da instaura-ção do regime democrático, D. António foi sinal de contradiinstaura-ção, profeta que clamou no deserto de um futuro político por cuidar, de horizontes

50.  «Verdadeira valorização da liberdade humana», in Igreja Portucalense, 39 (1977) 5-9

51.  Cf. PINHO Arnaldo, Uma Cristologia para a Identidade Cristã na Modernidade. O pensamento

cristológico de D. António Ferreira Gomes, Universidad Pontificia de Salamanca, 1989, 137

52.  «Entre muitos “cristãos para o socialismo” o que me parece ser uma carência positiva é exactamente a desta teologia da cruz; na verdade, até parecem esquecer o que Marx tanto disse acerca da classe operária como mediadora universal, do proletariado como grande víti-ma (...): pensam apenas no triunfo, (...) na glória»: «Marx ou Cristo?», in Igreja e Missão, 77/79 (1976) 470-480

53.  «Não terá soado ainda a hora de pregar a liberdade e o amor?», in Igreja Portucalense, 39 (1977) 17-23

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cívicos por desvelar, de tarefas sociais por cumprir. A fina percepção teológica dos sinais dos tempos leva-o a referir «um tempo crucial em que já chegaram ou estão chegando ao fim vários processos seculares».54

A sua interprelação orienta-se para a provocação do futuro, para a responsabilidade do que aí vem. Tal sentido ético, cívico e político de “responsabilidade pelo futuro” (fazendo-nos eco de leituras complemen-tares de João Paulo II e Hans Jonas), encontra-se bem sugerida naquele passo das Cartas ao Papa onde intima: «o cristão não viverá no seu tempo com medo do futuro...»55

Nesse sentido, o pensamento social cristão do bispo portuense nem inventa um ontem tenebroso, nem legitima um hoje paradisíaco, nem vislumbra um futuro necessariamente radioso. Recusaria certamente as as duas interpretações históricas que hoje se digladia: a de Francis Fukuyama que anunciou o «fim da história» em visão muito próxima das teorias da convergência das sociedades industriais, e a de Samuel Huntington que enfatiza o «choque das civilizações» como decorren-te dessa mesma globalização. Ambas as visões pareceriam deslocadas a D. António Ferreira Gomes. O seu pensamento exige-nos aprofun-dar o sentido universal dos direitos do homem, tornando as respectivas exigências mais ecuménicas e consentâneas com as novas exigências e ameaças; exige-nos equilibrar a economia de mercado globalizado com as exigências concretas da economia real e com o provimento de bens públicos traduzido em respostas que têm que ser locais; exige-nos cum-prir a democracia, tendo a coragem de tomar medidas que, no quadro mais fundo de uma educação para a cidadania56, articulem o poder

legi-54.  «O processo de liquidação do princípio da imanência que durou toda a idade moderna, o processo da cultura ocidental como única e exclusiva, (...) o processo do cientismo tecnológico enquanto havido como salvador, o do sociologismo como totalitário, absorvente e triturador da pessoa»: «Não há antropologia sem cristologia», in Igreja Portucalense, 42 (1977) 16-24 55.  «A colegialidade episcopal e o Reino de Deus», in Cartas ao Papa, op. cit., 105

56.  «Não sendo, pois, a democracia um dado imediato e acabado, mas um processo de huma-nização indefinida, que vem desde o princípio da ordem cultural e só terminará com ela, creio bem que a missão da Igreja, naquilo que (...) se refere à vida pública dos povos e da Humani-dade, é promover e educar para “mais e melhor democracia”»: «A colegialidade episcopal e a vida cívica», in Cartas ao Papa, op. cit., 160

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timado por eleições com modelos interactivos de devolução de poderes às regiões e à sociedade civil e de partilha de soberania nas organizações internacionais. «Nos tempos que correm, já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se quem puder...». Para responder a este sobres-salto de alma da boa velha cozinheira Gertrudes nos Contos Exemplares de Sophia de M. Breyner, exemplificativo das condições sociais que provo-caram a revolta do bispo portuense, importa ser «mais que o construtor da Igreja, o construtor da Esperança», tal como é referido no Prefácio à obra da insigne poetisa. D. António Ferreira Gomes foi um construtor da Esperança – e assim há-de continuar enquanto perdurar a memória da sua profecia e a profecia da sua memória…

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