• Nenhum resultado encontrado

tese

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "tese"

Copied!
571
0
0

Texto

(1)
(2)

FRANCIS BACON E A FUNDAMENTAÇÃO

DA CIÊNCIA COMO TECNOLOGIA

Tese apresentada ao curso de Doutorado em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor.

Linha de Pesquisa: História da Filosofia Orientador: Newton Bignotto de Souza Coorientador: José Raimundo Maia Neto

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas 2000

(3)

______________________________________________________ Dr. Newton Bignotto de Souza (Orientador) - UFMG

_______________________________________________________ Dra. Marilena Chauí - USP

_______________________________________________________ Dr. Danilo Marcondes - Puc-Rio

_______________________________________________________ Dr. Evandro Mirra (CNPQ)

________________________________________________________ Dr. Ivan Domingues - UFMG

(4)

Para os meus queridos

(5)

Agradecimentos:

Ao prof. José Raimundo Maia Neto, pela dedicação e orientação sempre rigorosa e estimulante.

Ao prof. Newton Bignotto de Souza, pela amizade que acompanha e impulsiona, desde o início, minhas incursões filosóficas.

Aos colegas da Faculdade de Educação da UFMG, em especial do Departamento de Ciências aplicadas à Educação, por todo incentivo que me deram.

À CAPES pela bolsa de estudos que tornou possível o estágio de pesquisa na Harvard University.

Este trabalho não teria sido possível sem o apoio de muitas pessoas. Cada uma a seu modo me ajudou com sugestões bibliográficas, com o fornecimento de artigos e

(6)

especialmente aos amigos Cid Adorno Dias, Ram Mandil, Cecilia Boechat, Vitória Dias, Teodoro Assunção, Marcus Vinícios Freitas, Ângelo Fares, Dorit Heinsohn e Ana Catarina Kubasek, e aos professores Ricardo Fenati, Patrícia Karuac e Lívia Guimarães (do Departamento de Filosofia da UFMG), Danilo Marcondes (PUC RJ), I. Bernard-Cohen, Katharine Park, Matthew Jones e Peter Galison (do Departamento de História da Ciência da Harvard), Eveline Keller (MIT), Pamela Long e Thomas Lennon (Western Ontario University).

SUMÁRIO

Introdução ... 9

I - Parte: Episteme e Téchne 1o Capítulo - As origens gregas da questão ... 20

2o - A historiografia da ciência e a revolução científica ... 32

3o - Da técnica à tecnologia ... 54

II - Parte: As críticas de Bacon e seus contextos 4o - A crítica à esterilidade da tradição filosófica ... 78

5o - A retomada do ceticismo: limites do conhecimento e suas possibilidades ... 95

6o - A valorização da técnica e as críticas de Bacon aos empíricos ... 119

(7)

9o - A idéia de que quem conhece é quem faz ... 213

10o - Experimentos e instrumentos ... 233

11o - A experiencia literata e a indução ... 263

12o - O ideal das formas e as certezas operacionais ... 292

13o - A legitimação do novo ethos científico ... 315

Conclusão ... 348

Bibliografia ... 355

Índice das ilustrações:

1 - Nova Reperta de Stradanus ... 124

2 - A “Serra - moinho” de Besson ... 134

3 - Frontispício do Novum Organum ... 168

4 - New Atlantis por Hess ... 337

(8)

Observações preliminares:

Os escritos de Bacon que estamos tomando como referência são os da edição Stuttgart-Bad Connstatt (1963) da publicação padrão de Speding, J., Ellis,R. e and Heath, D. de 1857-61, de suas obras completas em latim e inglês. Em nossas citações dos escritos de Bacon apresentaremos o título do livro, seguido do volume (em romano) e da paginação dessa edição de Works (por exemplo, The advancement of Learning, VI, 93). Alguns dos livros que compõem esta edição, como o Novum Organum e Filum labyrinthi, contêm numeração interna por parágrafos ou aforismos, que decidimos adotar para que o leitor possa localizar em outras edições as passagens a que estivermos nos reportando. Três pequenas mas importantes obras - Thoughts and Conclusions, The Masculine Birth of Time e The refutation of Philosophies - permaneceram sem tradução do latim até 1966, quando Benjamin Farrington as publicou juntamente com um estudo sobre Bacon. Nossas referências a estas obras seguirão, portanto, essa publicação. Quanto às traduções para a língua portuguesa, optamos por utilizar as já existentes: as

(9)

das citações das outras obras de Bacon e dos outros autores são de nossa responsabilidade, e, para não aumentá-la, traduzimos apenas as que aparecem no corpo do texto, deixando as das notas de rodapé na língua original.

(10)

INTRODUÇÃO

A cada semana, notícias de inovações científicas e tecnológicas nos surpreendem por sua criatividade, por seu ritmo acelerado e pelas questões que suscitam acerca de suas implicações. Decerto a midia exagera nos traços de ficção científica e a vida da maior parte das pessoas continua passando ao largo dessas criações. Mas o interesse nessas inovações e a repercussão desse noticiário atestam o lado intrigante da tecnologia, que fascina e incomoda, gerando novas expectativas e também temores.

O desenvolvimento da ciência e tecnologia parece ter recuperado o poder sedutor que tinha perdido, em parte, no início dos anos 70, quando movimentos de contracultura conseguiram mobilizar uma forte desconfiança contra a lógica perversa de um sistema tecnológico opressor. A bem dizer, tal desconfiança vinha de longe – Fausto e Frankenstein já o expressavam-, e tornara-se especialmente notável desde o pós-guerra, mas, ao final dos anos 60 tinha-se, com Marcuse, bons argumentos que, colocando em cheque a idéia de que a ciência e a tecnologia encarnavam a razão libertadora e o progresso social, ajudaram a arrefecer as utopias cientificistas que tinham crescido junto com o Iluminismo.

Nos dias de hoje, parece que muito da poeira levantada no debate entre defensores da tecnofobia e da tecnofilia parece ter baixado. Assim como temores e expectativas futuras são redimensionados quando se tornam presente, muitas questões deixaram de ser projeções e preocupações com o futuro, sombrias ou radiantes, para se tornarem crônicas do cotidiano, passando a figurar na pauta de decisões legislativas, como, por exemplo, a definição de rótulos para produtos transgênicos ou de mecanismos de

(11)

segurança na rede mundial de computadores. O desenvolvimento científico e tecnológico perdeu sua áurea de positiva neutralidade e, sendo sua ambivalência reconhecida,1 seu valor passa a ser examinado e definido em cada caso e contexto. Além disso, com a perda de sua pretensa neutralidade, a definição dos direitos e limites de intervenção na natureza e o controle da investigação e de seu uso deixaram de ficar restrita aos especialistas, ganharam difusão e entraram para o âmbito maior da esfera pública e do debate ético e político. Nessa esfera, em que todos participamos, as questões se tornam mais complexas, mas também menos ameaçadoras.

Contudo, essas discussões, assim como a própria divulgação das inovações e de suas implicações, estampam o esgotamento da capacidade de muitas de nossas categorias para tratar as questões que se colocam e para se decidir, por exemplo, sobre o que é ou deva ser considerado como natural ou artificial, ou sobre os limites que devam ser impostos à investigação da natureza e ao domínio do conhecimento. Esgotamento que se coloca como desafio à reflexão de nossos conceitos e pressupostos.

Esta tese insere-se nesse esforço de reavaliar e buscar compreender melhor as concepções que hoje temos de ciência e de tecnologia, investigando um dos “nós” centrais de sua constituição no início da modernidade. Ela parte da idéia de que o reexame de algumas dessas categorias envolvidas no debate sobre a tecnologia demanda estudos de epistemologia histórica e de que estes estudos podem revelar importantes aspectos da formação das nossas concepções, de suas razões e de sua organização para o domínio da natureza.

Hoje em dia, é relativamente comum ouvirmos referências à tecnociência (conhecimento tecno-científico) como instância que engloba e articula estas duas formas

1

Sobre a ambivalência da técnica e sobre a maturação do debate entre tecnofilia e tecnofobia, ver as páginas, sempre brilhantes, de Lebrun (1996), e. também Bartholo (1986).

(12)

de conhecimento, que, embora tenham tido origens e desenvolvimentos históricos diferenciados, tornam-se cada vez mais indistintas. Certamente, não são poucas as razões da progressiva indiferenciação entre a ciência e a técnica, e a principal parece estar relacionada à tendência de nos defrontarmos com a ciência através de sua substancialização em procedimentos e artefatos técnicos. Em seu estudo sobre as implicações das racionalidades científica e técnica, Ladrière chama-nos a atenção para a dificuldade de se visualizar a ciência sem a interposição de realizações técnicas. É a técnica que constitui essa mediação concreta, material, entre ciência e a vida cotidiana, e que representa, assim, como que a face visível do fenômeno ciência (1977, 43). Entretanto, apesar da crescente interdependência, várias dificuldades na formação técnica, bem como na programação e na avaliação de políticas e iniciações científicas, advêm dessa indiferenciação metodológica e epistemológica.

A fronteira entre a ciência e a tecnologia tem sido pouco estudada se tomamos como referência a investigação sobre a relação entre a ciência e o senso comum, ou entre a ciência e a religião. Não que essas outras fronteiras estejam delimitadas e apaziguadas, mas elas contam com uma longa discussão acumulada, que baliza posições e permite o aprofundamento de argumentos. Por outro lado, há uma reconhecida confusão quando se trata da relação entre a ciência e a técnica,2 acrescida pelo fato de que comumente se pressupõe uma identidade imediata ou uma irrestrita dependência entre ambas. Nosso interesse na compreensão de suas especificidades e vinculação não visa, no entanto, a uma demarcação entre esses dois campos, mas à compreensão de suas dinâmicas.

2

Vários autores têm-se empenhado e contribuído para desfazer tal confusão, mas, vale notar, é nestes termos –“a confusão entre ciência e técnica”- que a questão tem sido enunciada em títulos de artigos (Agassi,1966) e seções de livros ( Fourez,1992; Chauí,1994, Granger, 1994).

(13)

A junção terminológica (tecnociência), ainda que possa resolver algumas dificuldades, encobre incompreensões e consolida algumas ilusões, como, por exemplo, a de que o avanço do conhecimento científico traz sempre desenvolvimento tecnológico e que este depende daquele. Embora isto pareça óbvio, não é o que aconteceu na maioria dos casos na história. Há, seguramente, diversos casos históricos que atestam essa relação, mas a grande parte a contradiz. Todavia, nossa sensação de obviedade continua guiada mais por um discurso do que por uma análise dessa relação.

Nosso intuito neste trabalho não é propriamente analisar a história da inter-relação entre ciência e tecnologia, mas investigar uma de suas propostas fundadoras, ou seja, examinar um importante momento na formulação desse discurso. Momento em que foram compostos alguns dos argumentos que vieram sendo consecutivamente retomados e que fundamentam boa parte dos nossos pressupostos acerca dessa inter-relação e de como seu desenvolvimento deveria servir à sociedade.

A filosofia de Bacon é sabidamente uma peça central desta questão. Sua postulação de que “conhecer é poder” e sua formulação da idéia que o homem deva possuir e dominar a natureza são amplamente reconhecidas como justificativas básicas da guinada operativa da ciência moderna. Algumas idéias desenvolvidas por Bacon tornaram-se paradigmáticas, como a exigência experimental da nova ciência, a importância de sua utilidade social, a institucionalização da investigação e da cooperação como forma de se fazer avançar o conhecimento e a noção de que seu progresso traz, ainda que com alguns riscos, promessas de melhoria de vida da humanidade. Outras, embora nunca tenham sido bem absorvidas, como a superação do binômio arte e natureza, constituem o centro nevrálgico de muitas discussões atuais acerca da tecnologia. Assim, é compreensível que, em qualquer discussão sobre a

(14)

constituição da dimensão ativa da ciência ou sobre a valorização da técnica no inicio da modernidade, o nome de Bacon apareça como referência obrigatória, embora raramente a questão seja aprofundada. Ele é sempre citado sem, contudo, ter sua posição analisada. Bacon trouxe para o terreno da filosofia natural noções, como a de colaboração, progressividade e operacionalidade, que se fizeram decisivas no desenvolvimento científico. A concepção do conhecer como um fazer e do fazer que é ele mesmo um conhecer, embora derivada de sugestões que figuravam esporadicamente em livros da alquimia e tratados do Renascimento, alcança em sua filosofia uma sistematização e maturidade que fazem seu projeto de reforma do conhecimento uma matéria fundamental para a reflexão em torno da relação entre ciência e tecnologia. De forma inédita, Bacon procurou afastar esses dois saberes da arte, da religião e da metafísica e, ao postular a identidade entre verdade e utilidade, articulou a base da legitimidade em que o conhecimento científico até hoje se apóia. Sua formulação da ciência como tecnologia está assim na origem da indistinção e, portanto, da confusão que referimos acima.

O objetivo deste trabalho é investigar o programa baconiano de reforma do conhecimento como um dos discursos estruturantes do empreendimento científico moderno e, portanto, como um importante elemento para a compreensão da relação entre ciência e técnica. Com isso, tornamos mais preciso o recorte de nossa investigação. Não se pretende realizar neste trabalho uma interpretação do conjunto de sua filosofa. Bacon escreveu sobre diversos assuntos, como a célebre história do reinado de Henrique VII, além de textos de jurisprudência que tiveram grande influência no pensamento jurídico anglicano. Esses escritos, contudo, não compõem o corpus de nossa investigação, que se restringe ao seu programa de reforma do conhecimento. Esse

(15)

programa é, entretanto, algo difuso, pois não é desenvolvido em um livro, mas em um conjunto de trabalhos que comporiam seu plano da “Grande Instauração”. Plano esse que, além de inacabado, foi sendo redefinido ao longo de sua obra, tendo várias de suas partes reescritas, e outras só publicadas postumamente. Estamos, portanto, considerando o programa baconiano de reforma do conhecimento de uma maneira ampla, incluindo não apenas os escritos que os editores de sua obras completas classificam como científicos, mas também os textos e mesmo cartas e rascunhos que tratam da questão do conhecimento, seja como críticas aos modelos e práticas contra os quais ele se volta, seja como delineamento de valores ligados à sua reforma cognitiva, como nos Ensaios e na Nova Atlântida, que poderiam ser vistos como textos políticos, ou ainda em escritos a que a edição clássica de suas obras se refere como textos literários, como A sabedoria dos antigos. Em eles, no entanto, nosso interesse é examinar a fundamentação teórica da ciência como tecnologia, e, assim, deixaremos de lado detalhes técnicos que não contribuem para a compreensão da questão que estamos nos propondo a tratar.

Nesse sentido, vale frisar que o Bacon que vamos retratar aqui não é o de sua imagem mais abrangente. Trata-se, sobretudo, de um ângulo de sua obra pouco explorado, que coloca num segundo plano alguns aspectos mais conhecidos de sua filosofia e sombreia seu pensamento jurídico, sua influência na formação da prosa inglesa moderna, ao dar destaque a pontos menos conhecidos como a questão do ceticismo, o interesse pelas técnicas, a redefinição da idéia de natureza e as justificativas teológicas e políticas que articulam essas e outras reformulações que fundamentam o programa de reforma de Bacon. Mas esses detalhes e partes menos conhecidas, que visamos a tornar nítidas, pertencem ao mesmo autor e, revelando o que não era conhecido, ajudam a redimensionar o todo. Ainda que algumas comparações e

(16)

contraposições a certas interpretações se façam inevitáveis, nosso objetivo não é analisar as diversas imagens nem discutir qual o melhor retrato, e os dados biográficos serão retomados apenas o quanto se façam necessários para esclarecer os aspectos que estamos enfocando.

Assim como em representações fotográficas, em que o perfil, as disposições e ambientes revelam o olhar da época, o enquadramento que faremos da filosofia de Bacon parte de uma problemática atual e, neste sentido, anacrônica. O interesse na ponderação da interação da ciência com a técnica, no exame da história de sua idealização e justificação para melhor compreensão de sua dinâmica, por mais relevante que hoje nos pareça, é algo estranho àquela época e contrário ao empenho de Bacon em difundir uma reformulação e conjugação desses conhecimentos. Isto não significa, entretanto, que o retrato que descreveremos e analisaremos seja distorcido. Trata-se de um anacronismo controlado, nos moldes em que Aubenque (1992) define o trabalho de interpretação, ou seja, como um “alongamento” da obra numa direção possível e que, sem pretender que essa direção seja a única que a obra anuncia, deve demonstrar sua plausibilidade, respeitando a diferença dos significados terminológicos, motivações e perspectivas dos diferentes contextos.3

A primeira parte deste trabalho visa a situar terminológica e metodologicamente nossa abordagem. Assim, no primeiro capítulo, são examinados os significados dos termos gregos dos quais se originaram os nossos conceitos de técnica e ciência. No segundo capítulo, discute-se, a partir da questão da revolução científica, a história da ciência moderna. Com o intuito de explicitar a perspectiva da qual estamos partindo, cotejamos algumas interpretações consagradas dessa historiografia com contribuições

(17)

mais recentes. De forma análoga, o terceiro capítulo trata da historiografia da técnica e o faz a partir das diferentes compreensões da relação entre tecnologia e ciência moderna.

A segunda parte desse trabalho examina o contexto no qual o programa baconiano foi formulado, retomando os diferentes aspectos do conhecimento que procurou reformar. O foco desse exame está dirigido para os pontos que lhe pareciam críticos e para aquelas que julgamos ser as principais influências em seu projeto. Assim, no quarto capítulo, são enfocadas as críticas de Bacon à autoridade e à esterilidade da tradição filosófica, e do aristotelismo em particular. No capítulo seguinte, são analisados mais detalhadamente os vínculos do programa de Bacon com o ceticismo renascentista. Essa corrente filosófica antiga, que se fez bastante influente na filosofia moderna, também criticava as pretensões dogmáticas e a esterilidade da filosofia natural e, entretanto, é geralmente situada como antípoda da perspectiva baconiana de entusiasmo com o avanço do conhecimento. Procuramos mostrar como Bacon se insere e participa da transformação dessa corrente num ceticismo mitigado e construtivo, que será desenvolvido por cientistas modernos, valendo-nos, numa abordagem diacrônica, de comparações com alguns expoentes do ceticismo que lhe antecederam e lhe sucederam. No sexto capítulo, examinamos a valorização que na época se fazia do conhecimento técnico e de algumas de suas manifestações, como as noções de progresso, cooperação e utilidade. Trata-se de mostrar como vários elementos do programa de reforma proposto por Bacon são inspirados nas atividades técnicas e nas formulações incipientes de alguns de seus representantes. Concentramos então nossa investigação nas práticas com as quais Bacon teve maior contato e nas objeções e elogios que ele lhes dirigiu. O sétimo capítulo trata da difusão da perspectiva mágica na Renascença, em especial

3

“Un anachronisme avoué est à moitié pardonné. Contrôlé, il peut devenir fecond” (Aubenque,1992, 35). Como ressalta este autor, ´há, especialmente se tratando das grandes obras ricas de potencialidades,

(18)

como se configurava na Inglaterra elisabetana, e analisa a reprovação que Bacon fazia aos magos e alquimistas, assim como a absorção de alguns de seus traços.

A terceira parte do trabalho investiga a reforma do conhecimento proposta por Bacon e reúne os principais argumentos de nossa tese. Nela procura-se demostrar como Bacon elabora uma série de concepções, raciocínios e justificativas que fundamentavam uma guinada operativa na filosofia da natureza. O oitavo capítulo analisa as transformações nas concepções de natureza e de arte. Algumas concepções antigas e renascentistas, como a da arte como imitação da natureza, são contrastadas com a noção de natureza, de homem e de criação delineadas por Bacon. São aí apresentadas as justificativas teológicas que ele desenvolve para sua reinterpretação dessas noções. O nono capítulo aborda a idéia de que “quem conhece é quem faz”, apresentando algumas diferentes versões filosóficas dessa idéia e salientando a formulação baconiana da identidade entre verdade e utilidade como eixo argumentativo de sua reforma do conhecimento. Ainda nesse capítulo, discute-se a interpretação dessa transformação proposta por Bacon como uma forma de utilitarismo. No décimo capítulo é analisada a reelaboração da noção de evidência e de experiência. São aí apresentados aqueles que nos parecem ser os principais fundamentos e implicações da experimentação baconiana, mostrando-se como essa noção de experiência está vinculada à sua proposta de história natural e o papel que ambas ocupam na reformulação da ciência como conhecimento-domínio da natureza. O décimo primeiro capítulo aborda a metodologia de investigação elaborada por Bacon e analisa sua concepção de indução. Além de estudar as relações de seu método indutivo com métodos de desenvolvimento de inovações técnicas, esse capítulo busca mostrar como algumas de suas exigências contradizem a interpretação tão freqüente de Bacon como um indutivista. Isto nos leva a tratar da concepção de

(19)

certeza suposta em seu programa de reforma, o que é feito no décimo segundo capítulo, onde se analisa também sua noção de forma como ideal operativo da investigação científica. Por último, o décimo terceiro capítulo mostra como suas propostas educacionais e organizacionais para o avanço do conhecimento se articulam na fundamentação da ciência como tecnologia e, finalmente, como a idealização de sua utopia contribuiu na aceitação de seu programa de reforma e na legitimação de um novo ethos científico.

(20)
(21)

Capítulo 1:

As origens gregas da questão

Se o mundo antigo não desenvolveu uma tecnologia, era porque não estimava que houvesse ali qualquer coisa de importante. E se o mundo moderno o fez, é porque lhe apareceu que aí estava, ao contrário, a coisa que mais

importava.

Alexandre Koyré

Ao longo deste trabalho vamos tentar mostrar porque um dos arautos do pensamento moderno considerava tão importante a tecnologia. No entanto, antes de examinarmos seu ponto de vista, convém averiguar porque, até o início da modernidade, a tecnologia não era estimada como tal. O estudo dos termos gregos a partir dos quais nossas idéias de ciência e de técnica foram criadas nos ajuda a entender um pouco do significado e da hierarquia dos conhecimentos no mundo antigo e medieval.

Embora os termos episteme e téchne sejam contrastantes na filosofia clássica, eles nem sempre tiveram muita distinção. Na literatura não filosófica da Grécia antiga téchne se referia à esperteza, astúcia no fazer, bem como habilidade nas artes e produções (Mitcham, 1994, 118) mas o termo episteme, que em geral significa “conhecimento de algo”, tinha também o sentido de uma experiência disciplinada ou habilidade como de artilharia ou de guerra.

O verbo epistasthai, do qual o nome episteme deriva, tem muitas vezes o significado de saber como fazer ou ser capaz de fazer algo (Tiles, 1993, 11). Por outro lado o termo grego téchne já incluía um aspecto teórico, uma vez que era usado para indicar a capacidade de se justificar certo procedimento, isto é, de explicar o porquê da eficiência de determinado procedimento (Agazzi, 1999, 2).

(22)

Tanto para Hipócrates, quanto para Platão ou Aristóteles téchne é, ao lado da episteme, um tipo de conhecimento que demonstra as razões para o que é observado empiricamente. No Górgias, Platão, que é quem primeiramente se detém sobre estes conceitos, argumenta que toda téchne está envolvida com o logos, isto é, com a razão discursiva, mesmo que alguns tipos de téchne, como a pintura e escultura, consistissem principalmente em trabalho físico e se valessem minimamente da linguagem discursiva.1 Ou seja, quando Platão se vale do termo téchne ele está se referindo a um processo de pensamento que pode gerar uma explicação do que ele propicia, bem como uma descrição de seus procedimentos baseada na natureza de seus objetivos, articulando suas razões. (Gorgias, 465a). Atividades estritamente rotineiras ou consideradas como mero jeito de fazer, (exemplificado no cozinhar) são chamadas atechnoi, isto é, experiências sem técnica ou sem compreensão alogoi (ibidem, 465a). Assim, os artesãos são reconhecidos como práticos, que tem a necessária fundamentação racional acerca de sua prática, ao passo que os charlatães, entre os quais Platão incluía os políticos educadores e poetas,2 não possuem téchne. Os que a possuem podem explicar seus procedimentos em referência aos resultados almejados, explicando o que faz com que os resultados sejam bem sucedidos. Assim téchne (e seu possuidor) se distingue da simples empeiría (ou de quem a tem), a experiência de tentativas e erros.

Numa classificação do conhecimento desenvolvida mais tardiamente no seu diálogo Philebus (55 c), Platão divide o conhecimento operacional em dois tipos: um que procede por conjectura e intuição baseado simplesmente na prática e na experiência

1

A aritimética e astrologia eram exemplificadas como outros tipos de téchne mais intimamente entre-meadas com o discurso e menos com o trabalho físico. (Cf. Górgias 450c ff. ; Ver também Mitcham 116-231).

2

No Ion os poetas, que exercem sua arte de criação, poiesis, pela virtude da inspiração divina são também considerados téchnes; se os poetas possuem uma arte, eles seriam capazes de explicar e ensinar suas criações aos outros.

(23)

(no qual inclui a música , medicina e agricultura), e outro que conscientemente envolve o uso de mensuração e quantificação como na carpintaria. Este último envolve maior exatidão e conteria o sentido primordial de téchne.3 Mas a matemática, que Platão trata como indispensável aos filósofos, não é esta prática, de que o carpinteiro se vale, mas a teorética. E este terreno, que é o da episteme, se encontra distante do mundo material. Téchne não se mistura com o mundo da pura consciência, que só pode ser adentrado através da dialética. (Philebus, 58 a) .4

A téchne é vista na antiguidade como um dos poderes criativos no cosmos, ao lado da natureza (phýsis) e do acaso (týche). No entanto, uma vez que na antiga concepção cosmológica a natureza tem um caráter divino, poder providencial e fundamento do ser no universo, a arte e os artifícios humanos tenderão a ser vistos como inferiores ao conhecimento da natureza e algumas vezes com explícita condenação, como desconfiança do que não é natural e uma preferência ao que está de acordo com a natureza.(Close, 1979, 478).

A arte humana é posterior e exterior à arte e à verdade divina, e, como veremos no capítulo referente à arte como imitação, se encontrava, ao menos na perspectiva platônica, em diferentes níveis de inferioridade em função do grau em que determinada arte se baseia no verdadeiro conhecimento. A questão era como um tipo de pensamento

3

Mitcham observa como, nesta descrição, este último além de exatidão envolve akribeia, palavra que também implica insight mais profundo. “Plato’s discussion points only toward a conception easily associated, at least intuitively, with modern technology – that of rationalized production, or production made maximally efficient through mathematical analysis” (1994,119).

4

“A causa di tale opposizione, Platone e la sua scuola pensano che non solo la pratica dev’essere sottoposta alla teoria, ma anche la purezza di quest’ultima esige una separazione assoluta da quella, piché qualsiasi contatto com essa se risolverebbe in una contaminazione. Per ciò Platone, secondo la testimonianza de Plutarco rimproverrava Archita ed Eudosso di essersii serviti di apparecch meccanice per la soluzione di problemi geometrici, il che ssignificava per lui una corruzione della dignità della geometria, abbassandola dalla sfera dell’intellettualità incorporea a quella della matéria, dove è richiesto l’impiego, basso e ignobile, dell’opera manuale”(Mondolfo,1982, 62). Diferentemente, Archimedes havia percebido a ultilidade da mecânica para se descobrir e se demosntrar teoremas da geometria.

(24)

capaz de articular razões poderia estabelecer uma prática confiável e garantir a autoridade de alguém que governe esta prática.

De acordo com a perspectiva aristotélica, que foi a que teve maior vigência até o nascimento da ciência moderna, ou pelo menos até a Renascença, a distinção entre episteme e téchne é clara. Embora ambas sejam disposições para o exercício do pensamento discursivo, téchne se dirige para produção de algo (uma casa ou uma flauta) enquanto episteme é responsável por gerar somente um discurso racional demonstrativo, o qual serve para comunicar o conhecimento. Assim a episteme se destaca e se sobrepõe, primeiramente porque, mais exatamente e mais completamente que a téchne, ela deve poder exprimir-se numa linguagem e ser comunicável pelo ensino (Ética à Nicômaco, VI,1139b).5 Para Aristóteles, possuir o entendimento de algo é principalmente caracterizar a forma que o entendimento toma quando é comunicado a outros, e não a atividade pela qual o entendimento é alcançado. Como disposição ou capacidade humana, o entendimento é realizado não no trabalho de produção de algo, nem mesmo no esforço de se criar ou revelar novas explicações, mas na contemplação das explicações que nos foram trazidas à mente. O verdadeiro conhecimento é especular e se dá pela contemplação das razões. Um conhecimento não para ser usado, mas usufruído. Poderia, por assim dizer, “ser usado” apenas na medida em que tal sabedoria confere ao seu portador-praticante uma compreensão que aumenta sua liberdade moral.

5

“Não são, portanto, mais sábios os mestres por terem aptidão prática, mas pelo fato de possuírem a teoria e conhecerem as causas. Em geral, a possibilidade de ensinar é indício de saber; por isso nós consideramos mais ciência a arte do que a experiência, porque os homens de arte podem ensinar e os outros não”. (Metafísica, I, 1). Por outro lado, vale lembrar que a téchne teria que ser aprendida através da imitação prática. (Ética a Nicômaco, 2, 1103a) Pois, assim como o nómos não determina a díke, é impossível descrever com precisão a totalidade de sua habilidade prática (Política 3.15.1286 a) Ou seja, a lei geral não especifica nem dá conta da variedade dos casos particulares. A nosso ver, a parcela indeterminável, ou não ensinável através do discurso pedagógico, é contornada por Bacon não apenas na autoridade que o particular passa a ter, mas, principalmente, na mudança da concepção do processo educacional com o aventureiro substituindo o papel do mestre.

(25)

O reino da necessidade não é afetado, sobretudo porque este já estaria equacionado anteriormente à atividade filosófica de teorização.

Além do mais, a episteme se distinguirá da arte sobretudo pela natureza dos objetos a que se aplica. O objeto da episteme “necessariamente é”, ou seja, é imutável e eterno. Mesmo quando trata do movimento, como no caso da física, há que se buscar o que é invariante nas coisas e em seus modos de mudança. Já a téchne diz respeito, para Aristóteles, aos aspectos contingentes da mudança. Seu fim é a gênese, o devir, e não o ser (on) como no caso do conhecimento puramente teorético. É, decerto, um conhecimento, mas inferior à episteme, posto que as coisas de que trata poderiam não ter sido criadas (não são necessariamente, ou não têm um princípio imanente a seguir). O princípio de existência das coisas que a técnica e a arte criam residem no criador e não na coisa criada.

Embora conhecimento válido, a téchne não tem, como o conhecimento especular da verdade, um fim em si mesma.6 Ela é um conhecimento que serve ou torna possível a obtenção dos fins humanos. Ou seja, a téchne é instrumental, e como tal, neutra, já que seu valor ou significado é determinado por algo que lhe é exterior. Assim, téchne diz respeito aos objetos que não são nem necessários nem de acordo com a natureza, no sentido em que não têm tendência inata para se tornarem o que serão. Eles se tornam o que são graças à ação dos homens. Mas estes dão forma à matéria de maneira diferente da forma que a natureza dá as coisas. A forma natural é intrínseca a esta coisa, como

6

“All knowledge is obviously good because the good of any thing is that which belongs to the fullness of being which all things seek after and desire; a man as man reaches fullness of being through knowledge. Now of good things some are just valuable, namely, those which are useful in view of some ends - as we value a good horse because it runs well; whilst other good things are also honorable; namely, those that exist for their own sake, for we give honor to ends, not to means. Of the sciences some are practical, others speculative; the difference being that the former are for the sake of some work to be done, while the latter are for their own sake. The speculative sciences are therefore honorable as well as good, but the practical are only valuable”.(Tomas de Aquino apud Jonas, H. “The Practical uses of theory” In: Mitcham & Mackey, (Eds) Philosophy and Technology. 1983, 335).

(26)

um certo tipo de árvore, um pinheiro por exemplo, será sempre o mesmo graças aos princípios intrínsecos que determinam seu crescimento e suas características. Mas a madeira que dele se obtém é indiferente à forma (cama ou mesa) que o carpinteiro a ela dá. A forma produzida pela arte do carpinteiro é extrínseca à matéria, já que esta última não opera a forma por si mesmo (sua natureza) mas depende da ação humana. Nesse sentido, a transformação operada pela arte e pela técnica é considerada neutra, uma vez que seu valor e seu significado se encontram nos propósitos humanos e não nelas mesmas. Esta neutralidade da téchne é contrastante com o valor intrínseco do conhecimento das verdades necessárias. A episteme não tem outros propósitos, pois alcançá-la é, de acordo com esta perspectiva, um fim em si mesmo. Seu valor e significado independem dos usos e das intenções que temos acerca deles. O valor destas coisas se encontra inscrito na ordem inteligível do cosmos, a qual os homens, para se realizarem como animais racionais, devem contemplar. Os homens, como todas as coisas da physis, têm uma natureza e essência que é sua própria função realizar. A téchne, embora seja o conhecimento instrumental que possibilita (resolvendo suas necessidades biológicas) que os homens se dediquem a esta realização, não é nem garante tal realização. Ela representa o trabalho de uma grande parte da humanidade privada do acesso à contemplação, mas também uma condição da sabedoria de alguns, e portanto uma das tarefas subordinadas a esta tarefa suprema.

Contudo, os propósitos humanos que dão, extrinsecamente, valor e significado às transformações da técnica estão subordinados a esta ordem cósmica que é objeto da episteme.7 A neutralidade da téchne advém desta subordinação radical; em primeira instância às necessidades e à natureza humana que, em última instância, se fundam na

(27)

ordem cósmica. Ainda segundo Aristóteles, a habilidade de produzir algo vai além da mera satisfação das necessidades, uma vez que a téchne é muitas vezes devotada às produções sem utilidade, como ornamentações desnecessárias para a vida biológica. Além disso, a habilidade tem algo de conhecimento universal, isto é que ultrapassa a experiência particular, e nesse sentido é admirada por quem não detém este conhecimento.

A parte que esta habilidade tem do conhecimento universal se encontra para Platão na idéia que guia a atividade do artesão. Para Aristóteles, ela estaria, a grosso modo, na forma (causa formal) que é engendrada na matéria pelo movimento originado na alma.8 Ou seja, a téchne se vincula ao lógos na compreensão da forma e não na atividade de produção propriamente dita.9 A desvalorização da ação e da operação técnica em relação à sua invenção ou criação se encontra sobretudo na falta de autonomia, que tolhe ao puro executor a liberdade de pensar e operar à luz de seu próprio pensamento. Portanto, a condenação do trabalho manual se dá principalmente

7

E assim a alegação de Trasímaco, no início da República, de que téchne é poder que serve ao interesse de seu possuidor, é prontamente contestada por Sócrates, que vai defender que o conhecimento, seja

episteme ou téchne, está fundamentalmente orientado para o bem (República, I ,342).

8

“A forma é a idéia na mente do artista, mas a união desta forma com a matéria depende da receptividade desta última, isto é, da suscetibilidade da matéria de ser formada como o imaginado pelo artista. Assim o artesão tem também na matéria um guia a seguir. Em outros termos, mais do que a razão a percepção (aísthesis) das possibilidades da matéria e de sua união com a forma imaginada é o guia de sua atividade” Ética a Nicômaco, 2.9.1109b).

9

“A experiência é conhecimento dos singulares e a arte dos universais; e por outro lado as gerações todas dizem respeito ao singular. No entanto, nós julgamos que há mais saber e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os homens de arte mais sábios que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar em todos, de preferência, o saber. Isto porque uns conhecem a causa, e outros não. Com efeito, os empíricos sabem o ‘que’, mas não o ‘porque’; ao passo que os outros sabem o ‘porque’ e a causa. Por isso nós pensamos que os mestres-de-obras, em todas as coisas, são mais apreciáveis e sabem mais que os operários, pois conhecem as causas do que se faz, enquanto estes, à semelhança de certos seres inanimados, agem, mas sem saberem o que fazem, tal como o fogo quando queima” (Metafísica, I, 1).

“ There is no logos of this activity. But is this not precisely what modern technology proposes to furnish – a logos of the activity, a rationalization of the process of production, independent of, if not actually divorced from, any particular conception of eidos or form? Is this not precisely why it can so vigorously claim to be neutral, to be dependent in use on whatever human beings want to do with it, on purely extrinsic ends?”(Hood, W. “The aristotelian versus the heideggerian approach to the problem of technology” In: Mitcham & Mackey, 1983, 349).

(28)

quando este é separado do uso da inteligência. Atividade como a prática da virtude ética não se confunde, decerto, com esta operação. Dentre os conhecimentos práticos que compõem, ao lado da reflexão especulativa, a parte racional da alma, Aristóteles descreve a poíesis e a práxis. A téchne é uma característica (héxis) mais dirigida à produção (poietiké) do que à ação (práxis) ligada à ética e à política.10 A práxis tem um fim em si mesma e um saber concreto - a prudência - que, embora inferior à sabedoria da contemplação das verdades (sofía),11 tem uma função muito superior à das artes.12

Embora algumas correntes de pensamento do mundo antigo, como a hipocrática e a dos cínicos, valorizassem o trabalho manual e as arte mecânicas, reconhecendo-as como importantes para a vida civil e para o desenvolvimento da inteligência humana, essas eram exceções.13 A regra geral era o preconceito contra o trabalho manual e compreensão da relação entre téchne e episteme a partir da oposição entre trabalho servil e liberal. O opróbrio em relação às artes mecânicas aparece até mesmo em um dos seus mais famosos criadores. Sabe-se que Arquimedes, por exemplo, embora tendo inventado uma série de artefatos mecânicos que fizeram fama já em sua época, preferiu, de maneira bem sintomática, descrever somente as coisas cuja beleza e sutileza não estivessem “entremeadas pela necessidade”.

10

“Na ação , o homem age por si mesmo, não ‘produz’ nada de exterior à sua própria atividade,. O domínio da práxis exclui todas as operações técnicas dos profissionais.(...) A poíesis situa o artesão em um outro plano: o das forças físicas, dos instrumentos materiais. Ao mesmo tempo que a profissão se situa à margem do domínio próprio da cidade, a operação fabricadora do artesão constitui um nível e um tipo de ação inteiramente exteriores à práxis” (Vernant, 1990, 276).

11

“Si, chez Aristotete, la stricte hiérarchie des fonctions et des fins remplace l’opposition platonicienne entre le monde sensible et le monde intelligible, si Aristote n’est plus le theorician d’un bien absolu, mais celui d’un bien praticable, le primat de la teoriè n’est pas en cause, ni la supériorité de la praxis sur la poiesis” (Schuhl, 1947,117).

12

Arte é o termo equivalente para téchne no latim e nas línguas dele derivadas. Contudo, o termo arte foi tendo seu sentido reduzido, para o que no inicio da ciência moderna era conhecido como belas artes (a música era um dos cinco ramos da física e portanto uma ciência: episteme), e hoje o identificamos com o campo da estética.

13

A ciência médica era intimamente ligada às artes manuais como a preparação de alimentos para dietas, de drogas para tratamento farmacêutico, cirurgia para intervenção operatória, ginástica e massagem para a

(29)

Seja por fatores materiais ou econômicos, por causas sóciopsicológicas ou filosóficas,14 há uma unanimidade quanto à estagnação das técnicas no mundo grego sobretudo se comparada à resplandecência de sua elaboração teórica. Esta defasagem, que a nós parece intrigante,15 não era problemática para seus contemporâneos. Pelo contrário, era algo que explicava o próprio caráter diferenciado destas atividades e justificava a superioridade de sua cultura. Em seu importante estudo sobre o maquinismo na história da filosofia, Schuhl cunha uma imagem que se tornará célebre nos estudos sobre Bacon : “enquanto Aristóteles opunha o progresso da ciência à estagnação das artes, Bacon adotará a atitude oposta” (1947, 29) Mas esta fórmula é algo capciosa, pois se a estagnação das artes era ponto pacífico, o progresso da ciência não era. A bem dizer, a perspectiva antiga não concebe um progresso indefinido nem mesmo no âmbito da teorização e da especulação. Como observa Jonas (1983, 344), o número de coisas a serem conhecidas era concebido como finito e a apreensão dos primeiros princípios, quando obtida, seria definitiva e não algo, como contemporaneamente imaginamos, a ser continuamente tornado obsoleto por novas descobertas e melhores aproximações. Não havia, naquela perspectiva, um vazio a ser progressivamente preenchido.

No mundo antigo o objetivo do conhecimento era positivamente definido como completude do ser ou perfeição, ao passo que em Bacon há, como se verá ao longo deste trabalho, uma negatividade que urge ser suplantada. Nesta perspectiva, o objetivo atividade física. Já os cínicos, que insistem na necessidade recíproca e indissolúvel entre as atividades manuais e intelectuais, são às vezes considerados os filósofos do proletariado grego.

14

Respectivamente, falta de recursos energéticos, disponibilidade de mão de obra escrava, preconceitos e desinteresses com artes mecânicas, ou sabedoria que ensinava renuncia dos desejos. (Cf Koyré, 1961; Schuhl, 1947).

15

“Le grand problème qui préoccupe aussi bien l’histoire de la civilisation que celle des techniques n’est-il pas d’expliquer pourquoi n’est-il y eut des machines en Égyte, en Grèce et à Rome, mais au contraire, d’expliquer pourquoi il y en eut si peu, d’expliquer non pas le progrès, mais la stagnation, d’expliquer, en

(30)

último do conhecimento é o alívio das dores e aflições e a longevidade prolongada a um ponto que quase se confunde com a imortalidade. Ao menos em termos metafóricos, o resgate de nossa condição pré-lapsária é o objetivo do final do avanço da ciência.16 O pensamento antigo não era surdo às necessidades da vida, mas estas não apareciam como infinitas ou intermináveis, como para nosso olhar moderno.17 As necessidades tinham outro dinamismo, e uma vez alcançado o equilíbrio entre desejos e meios de satisfação, se podia e devia devotar o tempo livre à vida filosófica, verdadeiro fim dos homens.

No projeto de Bacon a tarefa da ciência é a progressiva resolução das nossas necessidades. Uma vez que a liberdade não é mais localizada na relação cognitiva com as verdades eternas e imutáveis, o conhecimento que se procura avançar deve liberar o homem do jugo da necessidade, enfrentando a necessidade no seu próprio terreno (Jonas, 1983, 337). Para tanto, o tempo livre deve ser empregado e o tempo liberado com o desenvolvimento dos instrumentos deve ser reinvestido no progresso das técnicas e das teorias (pois a teorização passa a ser atravessada pela mesma lógica que permeia o avanço tecnológico).

Ainda que no início da modernidade não fosse fácil ver, como é nos dias de hoje, que este progresso é gerador de um constante desequilíbrio na equação da satisfação das particulier, comment et pourquoi l’admirable essor de la civilisation grecque n’a été ni précédé, ni accompagné, ni suivi d’un essor technique correspondant” (Koyré, 1961, 317).

16

“Bacon negative emphasis invest the task of knowledge with a kind of physical and moral urgency altogether strange and novel in the history of theory, but increasingly familiar since his time” (Jonas, 1983, 336).

17

“Tanto quanto por suar força, uma téchne define-se por seus limites. Esse pensamento técnico não está aberto a um progresso indefinido. Pelo contrário, cada arte está, desde o princípio, bloqueada em um sistema fixo de essências e de poderes. Acha-se circunscrita nos limites em que a encerram o número e a força dos instrumentos que são naturalmente seus e a obra que ela tem a função de produzir. As téchnai autênticas são limitadas em número como em recursos. Sua multiplicação pressuporia uma multiplicação das necessidades. Ora, o número das necessidades não é infinito. Para além delas, as técnicas não visam mais satisfazer necessidades, mas procurar prazeres. Porém, na mesma medida em que elas não produzem esse efeito que representa para cada uma seu objetivo natural e seu limite, elas não geram mais nada de real: ilusões, imitações”(Vernant, 1990, 274).

(31)

necessidades pela recriação e expansão das próprias necessidades, o projeto defendido por Bacon era reconhecidamente ambicioso e admitido como praticamente infindável. Estas inversões são, no entanto, bem mais complexas, e envolvem redefinições das noções de conhecimento, de seus métodos e usos, bem como, correlativamente, das noções de natureza e de humanidade. Isto é o que, a nosso ver, impossibilita a caracterização das inclinações práticas ou interesses experimentais, que alguns historiadores entrevêem no medievo, com uma transformação significativa na separação tradicional entre episteme e téchne. A postulação do advento medieval de uma scientia activa et operativa por Crombie (1953) ou de uma revolução tecnológica nos séculos XIII e XIV por White (1978) esbarram, a nosso ver, na ausência de uma transformação mais geral das idéias de natureza, de humanidade, de progresso, de ciência e de sua função, como a que o projeto de Bacon expressa. A oposição de Koyré à Crombie nos parece correta a este respeito.18 As inovações tecnológicas e eventuais postulações experimentais daqueles períodos não correspondem a uma alteração da concepção contemplativa da episteme antiga e de sua relação com a téchne. Embora se possa encontrar na tradição cristã medieval alguns elementos que impliquem na elevação da idéia do trabalho, o interesse mundano não se compara ao desprendimento do “espírito medieval, para o qual este ‘vale de lágrimas’ é apenas um lugar de

18

A tese que Crombie defendia em Robert Grosseteste and the Origins of experimental Science

1100-1700. era, resumidamente, que Grosseteste e seus seguidores (como Roger Bacon) inauguraram o método

experimental que veio caracterizar e desembocar na ciência moderna. Havendo, portanto, uma continuidade entre o que chamamos de ciência moderna e suas origens medievais. De maneira equivalente, White defende que tanto a concepção mecânica do mundo quanto a tecnologia moderna são fundamentalmente tributárias de uma série de mecanismos inventados e desenvolvidos durante a Idade Média. Koyré, entretanto, discorda radicalmente que a ciência moderna possa ser caracterizada por inclinações experimentais ou que esta tivesse maiores vinculações com o desenvolvimento da técnica, e portanto não haveria de concordar que as origens da ciência moderna estivessem onde Crombie e White a projetam. A discussão destas, e outras, posições será retomada mais a frente.

(32)

passagem e de provações, onde o homo viator deve preparar-se para a vida eterna”.19 Somente nos séculos XVI e XVII se nota de fato uma transformação ampla e profunda, que tem na revolução científica uma de suas maiores expressões, cujo significado e controvérsias passamos a examinar em seguida.

19

“Crombie reconhecerá que, a despeito dos exemplos que cita, a cristandade medieval se achava muito mais preocupada com o outro mundo do que com este, e que o desenvolvimento do interesse dedicado à tecnologia - como parece mostrá-lo de modo bastante convincente toda a história moderna- está muito estritamente associado à secularização da civilização ocidental e ao fato de que o interesse se desvia da vida futura para a vida no mundo”(Koyré, 1982, 67).

(33)

Capítulo 2:

A história da revolução científica

Desde o início da modernidade a discussão da episteme (conhecimento verdadeiro) é centrada na ciência e no tipo de conhecimento que ela produz. A ênfase da filosofia moderna na questão do conhecimento, de seu fundamento, seus obstáculos e suas possibilidades, é indissociável do nascimento da ciência moderna. Esse evento, fundamental para nossa cultura, é o principal objeto de estudo da história e da sociologia da ciência, que vêm se desenvolvendo como campos de estudo e acumulando uma intensa discussão metodológica. Antes de tratarmos da fundamentação baconiana da técnica como ciência, devemos retomar alguns aspectos desta discussão, mapeando divisas e posições que nos ajudarão a situar nossa perspectiva.

I – A historiografia da ciência e seus clássicos.

O surgimento da ciência moderna, suas causas e seu significado foram interpretados de diversas maneiras. A novidade da ciência moderna já foi caracterizada por seu método, pelas mudanças culturais da Europa, como quebra da noção autoridade da tradição, dissolução do feudalismo e da unidade da visão de mundo cristã, pela descoberta de novos fenômenos, mas é sob a imagem da revolução científica que ela tem, entre nós, sua imagem mais difundida. De certa forma, a revolução científica é um dos mitos de origem da modernidade, que caracterizaria muitos dos nossos modus vivendi

Essa imagem do surgimento da ciência moderna como revolução científica é uma reconstrução do final do século passado que, pelo menos até a metade do nosso, foi

(34)

crescentemente utilizada, ainda que como representação de coisas bem diferentes.1 Seu esboço foi iniciado em History of the inductives sciences (1837) na qual Whewell, que também cunhou o termo ‘cientista’, busca compreender o progresso da ciência a partir de seu rompimento com a passado medieval. Comte, Mach, Duhem, entre outros, desdobram e estendem o conceito.2 No entanto, foi Koyré o grande responsável por precisar o conceito e difundi-lo. Seus Études Galiléennes descrevem a transformação radical que ocorre na história da ciência, transformação esta que não teria sido menos revolucionária por ter sido longamente preparada. Ou seja, ainda que tivesse suas origens na alta idade média, o conhecimento científico, por uma série de razões, passa, segundo sua interpretação, por transformações radicais por volta de 1600, quando se substitui a concepção grega e medieval, que via o Cosmos como algo qualitativo, fechado, intencional, contendo uma finalidade e sentido, pela concepção de espaço infinito, homogêno (sem qualidades) e preciso (matematizável), como o da geometria euclidiana.

O conceito de revolução, na formulação inicial de Koyré, não denotava tanto um período histórico ou determinados eventos, mas uma série de mudanças teóricas. De maneira brilhante, suas análises mostram como a matematização da física, a geometrização do espaço e a unificação dos mundos infra e supra lunar constituíam o cerne da nova visão de mundo. Koyré fora influenciado pela obra de Burt, The metaphysical foundations of modern physical sciences (1924), a qual buscava explicar a

1

É verdade que pensadores e ‘cientistas’ do início do século XVII se viam como modernos e tinham consciência de estar rompendo com a tradição. Porém. as razões que apontam para justificar suas diferenças frente ao antigos são bem distintas das apresentadas pelos historiadores da revolução copernicana. A teoria copernicana, por exemplo, não tinha na época o significado que passou a ter quando o heliocentrismo foi tomado como verdade científica.

2

“Whereas Comte believed that positive science limits itself to relations among visible features of the world, Whewell presented a conception of science, ultimately Kantian’s inspiration, according to which ideas supplied by the mind interact with factual data supplied by the senses in a dialectical process that

(35)

matematização como um reducionismo da ciência moderna. Também Butterfield, responsável por outro estudo largamente difundido (The origins of modern science),3 considera, como Koyré, a revolução científica como uma nova maneira de se olhar antigos fenômenos. Mas estende largamente a duração do período de mudanças tratado por Koyré. Estas duas perspectivas tiveram o grande mérito de se opor a uma abordagem positivista, até hoje impregnada no senso comum e até mesmo em certos círculos acadêmicos, que considera a história da ciência como um progressivo desenvolvimento graças à acumulação de fatos e de novas descobertas.

Mas, como diversas análises da reconstrução desse evento acabaram deixando claro, a interpretação de Koyré restringia a revolução científica - senão a própria ciência- aos campos da física matemática e astronomia, deixando de lado o que aí não se encaixava.4 Assim, o magnetismo, a química, as ciências da vida, a geografia,5 isto sem leads to scientific knowledge” (Lindberg, “Conceptions of the scientific revolution from Bacon to Butterfield: a preliminary sketch” In: Lindberg & Westman,1990, 11).

3

The origins of Moderns Science trata da revolução científica como uma decisiva mudança na cultura, que “overturned the authority in science not only of the middle ages but of the ancient world since it ended not only in the eclipse of scholastic philosophy but in the destruction of Aristotelian physics – it outshines everything since the rise of Christianity and reduces the Renaissance and Reformation to the rank of mere episodes, mere internal displacements, within the system of medieval Christendom. Since it changed the character of men’s habitual mental operation even in the conduct of non-material sciences, while transforming the whole diagram of the physical universe and the very texture of human life itself, it looms so large as the real origin both of the modern world and of the modern mentality that our customary periodisation of European history has become an anachronism and an encumbrance” (Butterfield, 1949, 8).

4

“...a ciência moderna, de Copérnico a Galileu e a Newton, conduziu sua revolução contra o empirismo estéril dos aristotélicos, revolução que se fundamenta na convicção profunda de que as matemáticas são mais do que um meio formal de ordenar os fatos, constituindo a própria chave da compreensão da natureza” (Koyré,1982,73).

5

“Were we to judge from the attention given by historians of science, Ptolemy’s influence on the intellectual life of the Renaissance was exercised chiefly through his Almagest... If we look at the priorities of the time a very different picture emerges. The popular identification of Ptolemy was perhaps even more as a geographer than as an astronomer, though in truth it is rather the case that the two roles were closely intertwined and embedded in a much broader subject domain. Even the pattern of publication indicates an enormously greater interest in Geographia than in Almagest. Although Almagest was recovered in the West through manuscript translation into Latin considerably before Geographia (Almagest in the twelfth century, Geographia at the beginning of the fifteenth) their more widespread impact through printed versions, and the pattern of interest and demand indicated by the succession of editions, reveal different priorities. The first printed edition of Almagest appeared in 1515, whereas from as early as 1475 there is a bewildering succession of editions of Geographia, through the late fifteenth and sixteenth centuries, at least twelve of them published before the first Almagest” (Bennett, 1998,202).

(36)

falar em importantes atividades técnicas como a navegação e a mineração, foram relegados ao campo das questões secundárias. Um exemplo ilustrativo de deturpação histórica está, a nosso ver, na centralidade que a astronomia ocupa nestas reconstruções do surgimento da ciência nos séculos XVI e XVII e da visão de mundo moderna, deixando na sombra atividades como a navegação que envolviam uma ampla rede de pessoas, saberes e interesses, com implicações culturais mais imediatas e profundas.6

Contudo desde que tais estudos foram divulgados, vários outros historiadores tentaram assim recompor este quadro explicativo investigando outros elementos, e quase sempre tendo o período que vai de Copérnico até Newton como solo comum. Novas pesquisas foram acrescentando uma série de informações sobre as diferentes influências culturais, suas atividades e interrelações com as sociedades da época, tornando bem mais complexa a imagem que então se tinha. Dentre as mais notáveis contribuições estão, a nosso ver, as de Westfall, incorporando a química e as ciências da vida; Webster, abordando as mudanças na medicina; Yates, Rossi e Debus, revelando a importância do hermetismo e da alquimia.7

6

Embora fosse uma ciência com longa tradição, a astronomia era um saber praticamente restrito às controvérsias sobre o calendário, e passa tempo de cortesãos. E mesmo seus mais ousados empreendimentos, com o observatório de Ticho, envolviam não mais que uma dezena de ajudantes.( Cf. Harris, 1998: Biagioli, 1993; Shapin, 1996).

7

Entretanto, estas inclusões eram muitas das vezes conflitantes e, além disso, foram exigindo que se estendesse o período da Revolução de maneira que acabava por diluí-lo. Uma ruptura que se delonga por séculos , digamos do XIII ao XVII, perde sua força de impacto, já que a imagem de um longo processo acaba por se mostrar muito mais pertinente. Além disso, houve, como observa Biagioli, uma profissionalização e especialização internas da historiografia da ciência e uma mudança de exigências dentro da comunidade acadêmica. “What we find is that the scientific revolution has not been deconstructed conceptually, but has fallen by the wayside, largely ignored by a new generation of historians busy at analyzing specific and previously unstudied aspects, actors and actresses of early modern science.” Ou seja, embora os estudos sobre a revolução científica e sobre os pais da ciência moderna tenham sido cruciais para o estabelecimento da disciplina e da profissão, narrativas como a de Koyre não mais preencheriam os padrões acadêmicos. “Still revered as quasi-sacred, Koyre’s works are no longer presented as exemplars for young professional historians to imitate. The bureaucratic, academic standards that have evolved alongside the professionalization of our discipline have made Koyré look outdated not so much because of the specific content of his interpretations, but because of is grand historiographical style. What has changed is our ‘form of life’, not just our interpretive dispositions”(Biagioli,1998, 8).

(37)

Até que ponto houve realmente uma revolução na ciência no século XVII é uma questão ainda em aberto.8 Tanto a ruptura quanto a reconstituição de continuidades (que notam elaborações prévias equivalentes a partir do século XII), são apontadas em diferentes aspectos: racionalidade, método, modelos, visão de mundo, fatos descobertos, instrumental, práticas, instituições, estruturas sociais e econômicas, demandas culturais etc. Conforme se detenha sobre alguns desses aspectos, sejam métodos, conceitos ou experimentos, se realiza o que costuma ser considerada de história internalista, ao passo que, quando se focaliza os determinantes econômicos, as tecnologias, as estruturas sociais e os acontecimentos políticos e ambientes culturais (religião e artes, por exemplo), se faz o que se chama de história externalista. A diferença entre estas duas abordagens marcou uma longa disputa na história da ciências.9

As argumentações básicas de uma e de outra abordagem são, de maneira resumida, as seguintes. Os internalistas consideravam a ciência como uma instância que, diferentemente das outras atividades humanas, tem uma maior autonomia em relação às determinações sócioculturais, e que, portanto, a história da ciência deveria se ater ao que lhe é específico, ou seja, seu desdobramento interno, como teorias, experiências, conceitos, que interagem e explicam suas mudanças. Assim, Koyré mostrara como um estudo aprofundado do sistema teórico, por exemplo de um Galileu, independentemente do que a sociedade de sua época tinha condição de entender ou

8

O título e o início do recente livro de Shapin ( The scientific revolution,1996) ilustram isto bem : “There was no such thing as the Scientific Revolution, and this is a book about it. Some time ago, when the academic world offered more certainty and more comforts, historians announce the real existence of a coherent, cataclysmic, and climactic event that fundamentally and irrevocably changed what people knew about the world and how they secured proper knowledge of that world....Many historians are now no longer satisfied that there was any singular and discrete event, localized in time and space, that can be pointed to as ‘the’ Scientific Revolution. Such historians now reject even the notion that there was any single coherent cultural entity called ‘science’ in the seventeenth century to undergo revolutionary change” Seja como for, alguns dos historiadores aos quais Shapin se refere têm tentado, como de certa forma ele próprio, retomar narrativas heurísticas ( Cf. Dear, 1998).

9

(38)

ainda do que, aos olhos de hoje, parece errado, pode explicar uma série de desenvolvimentos da ciência passada. Não é necessário dizer que a leitura filosófica, conquanto interessada em idéias, argumentos e conceitos, sempre se inclinou para este tipo de abordagem, no qual formulações são interpretadas muitas vezes longe do contexto da época em que a obra foi elaborada.10

Para os defensores da perspectiva externalista, por outro lado, são os fatores extra-científicos ou sócioculturais que direcionam a atividade científica. Ainda que admitam uma certa autonomia, ela não é vista como determinante para a compreensão -ou tão importante para a explicação- das demandas, motivações, direções e dinâmica do desenvolvimento científico. Nessa perspectiva, fatores econômicos e religiosos seriam os que maior peso tiveram na revolução científica do século XVII ou, ao menos, os que mais detiveram a atenção dessa abordagem historiográfica.

A importância que a igreja tinha na estrutura social e que a teologia -“a rainha das ciências”- tinha na hierarquia dos saberes da época fazem da relação entre ciência e religião o principal objeto de estudo dos historiadores externalistas e culturalistas.11 A condenação da igreja católica de várias hipóteses científicas e a de alguns de seus defensores, juntamente com a percepção de que o sistema copernicano e a visão mecanicista do universo contradiziam dogmas católicos foram durante muito tempo interpretados como um claro sinal de que o catolicismo fora um obstáculo ao nascimento da ciência moderna. Portanto, os países europeus nos quais a igreja católica perdera terreno para o protestantismo, como na Inglaterra e Holanda, teriam tido, segundo este esquema interpretativo, um campo mais aberto à transformação de idéias e comportamentos, que não tiveram lugar em Portugal e na Espanha, para citar alguns.

10

(39)

Merton, na esteira de Weber, defendeu que a ética protestante foi um fator decisivo não só para formação do espírito capitalista, mas particularmente para o desenvolvimento da ciência nestes países. Os valores comungados pelos puritanos, por exemplo, a ênfase na justificação através das obras e na direta comunhão com Deus através da natureza, teriam incentivado o interesse pela ciência, em seus aspectos experimental, instrumental e utilitário que a caracterizam no século XVII. Há, de fato, muitas semelhanças entre o ‘ascetismo intramundano’ nas atividades experimentais e as justificações utilitaristas dos cientistas da Royal Society,12 além do que, a proporção de protestantes entre os cientistas era bem maior do que no conjunto da população inglesa. A tese de Merton teve um grande impacto13 e foi depois desdobrada por vários outros autores, como Jones (1965), Webster (1976) e Hill (1992). Contudo, uma série de estudos White (1978), Hooykaas (1988), Popkin (1985), Funkenstein (1986) mostram que o religião católica não fora sempre obstáculo à nova visão de mundo. Diferentemente, para eles a visão de mundo bíblica em seu conjunto trouxera elementos vitais ao surgimento da ciência moderna.

Embora a relação da ciência moderna com o protestantismo tenha ficado célebre com a tese de Merton, ela era apenas uma entre as expostas em seu livro Ciência, tecnologia e sociedade no século dessessete.14 A outra era uma versão da historiografia

11

Embora haja também diversos estudos de histórias das idéias religiosas e científicas, como o de Funkenstein, que, adotando esta classificação, são claramente internalistas.

12

“The formal organization of values constituted by Puritanism led to the largely unwitting furtherance of modern science. The Puritan complex of a scarcely disguised utilitarianism; of intramundane interests; methodical , unremitting action; thoroughgoing empiricism; of the right and even the duty of libre

examen.; of anti-traditionalism –all this was congenial to the same values in science. The happy marriage

of these two movements was based on an intrinsic compatibility and even in the nineteenth century, their divorce was not yet final” (Merton,1970, 136).

13

I.B Cohen (1990) analisa esta repercussão em seu artigo introdutório ao volume por ele editado:

Puritanism and the Rise of Modern Science. The Merton Thesis. Vale acrescentar que diversos programas

de pesquisa nos países de língua inglesa adotam como legenda o título do livro de Merton: Science,

Technology and Society.

14

Justiça seja feita, Merton afirmara em várias circunstâncias que outros fatores poderiam também ter conduzido de forma equivalente à inclinação científica. Floris Cohen, ponderando sobre as diferentes

Referências

Documentos relacionados

Estes autores citam que algumas ideias que apareceram no passado e inclusive propostas atualmente no Brasil, como a de que o sistema de capitalização é sempre mais

Em relação ao consumo no setor de HPPC, o comparativo de índices de preços fornecido pelo panorama do setor em 2015, divulgado pela ABIHPEC, demonstra que o índice médio de

◯ b) Outras empresas, que os utilizam em seus próprios processos produtivos SOC 41.1 Se SIM para a PERGUNTA 41 alternativa (a) , em relação aos processos judiciais ou

O presente trabalho teve os seguintes objetivos: (1) determinar as alterações na composição químico-bromatológica e nas frações protéicas e de carboidratos, determinar as taxas

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Se não quiser voltar para casa quando acharmos que você deve, uma opção de tratamento no valor de NZ$ 20.000 na Nova Zelândia, não normalmente incluso no seguro viagem,

Tendo como parâmetros para análise dos dados, a comparação entre monta natural (MN) e inseminação artificial (IA) em relação ao número de concepções e

utilizada, pois no trabalho de Diacenco (2010) foi utilizada a Teoria da Deformação Cisalhante de Alta Order (HSDT) e, neste trabalho utilizou-se a Teoria da