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Vidas que desafiam corpos e sonhos : uma etnografia do construir-se outro no genero e na sexualidade

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Flavia do Bonsucesso Teixeira

Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do

construir-se outro no gênero e na sexualidade

Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Profa. Dra. Adriana Gracia Piscitelli e co-orientação da Profa. Dra. Mariza Corrêa.

CAMPINAS

Maio/2009

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Título em inglês: Lifes facing up bodies and dreams: a ethnography of make herself another in gender and in sexuality

Palavras chaves em inglês (keywords):

Área de Concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutor em Ciências Sociais Banca examinadora:

Data da defesa: 08-05-2009

Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais Gender Ethnography Transgenitalization surgery Sexuality Feminism Public policy

Adriana Piscitelli, Adriana de Resende Barreto Vianna, Berenice Alves de Melo Bento, Karla Adriana Martins Bessa, Júlio de Assis Simões

Teixeira, Flavia do Bonsucesso

T235v Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se outro no gênero e na sexualidade / Flavia do Bonsucesso Teixeira. - - Campinas, SP : [s. n.], 2009. Orientador: Adriana Gracia Piscitelli.

Co-orientador: Mariza Correa. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Gênero. 2. Etnografia. 3. Cirurgias de

transgenitalização. 4. Sexualidade. 5. Feminismo. 6. Políticas públicas.

I. Piscitelli, Adriana Gracia. II. Correa, Mariza. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. IV.Título.

(cn/ifch)

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AGRADECIMENTOS

Pesquisar num campo diferente do de minha graduação exigiu uma apropriação das convenções internas às disciplinas que nem sempre se traduziu como sendo tarefa fácil. A formação na área da saúde favoreceu a aproximação conceitual com o discurso oficial da medicina e com as pesquisas de base biológica sobre a transexualidade. Dilemas que acompanharam todo o processo, identidades borradas que se entrecruzam em muitos momentos da pesquisa. Foram muitas as pessoas que estiveram presentes nos momentos em que as dúvidas sobre a continuidade deste trabalho surgiram.

Toda tese tem uma história que pode ser contada de muitos lugares. Estou certa de que este texto somente tomou forma porque foi moldado na intimidade da cozinha de amigos (num jeito mineiro que os cariocas também sabem) que compartilharam com generosidade o fazer de muitas e muitas etnografias como aqueles que reinventavam uma receita; tenho com Carlos Rodrigues Brandão e João Marcos Alem uma dívida de gratidão infinita.

Adriana Piscitelli afinou os acordes deste texto. Sua leitura atenta e sugestões cuidadosas delinearam os contornos da pesquisa. Sua voz está refletida no conjunto da tese, mas sou a única responsável se não incorporei a amplitude de suas orientações.

Com Mariza Corrêa tive o privilégio de revisitar a psicanálise através de Anna O.. Com o rigor e a leveza que lhe são únicos, estabeleceu um diálogo generoso, problematizando a assepsia da cirurgia de designação sexual dos intersexos, e propôs a pensar sobre as mutilações corporais, entre outras práticas, que nos impõem posicionamentos que extrapolam a confortável esfera da compreensão da diferença cultural.

As provocações do professor Júlio Simões, durante o exame de qualificação, foram fundamentais para que eu permitisse que a antropologia incorporasse esta tese.

Transitando entre as fronteiras da admiração intelectual e do afeto, Karla Bessa tornou-se uma interlocutora preciosa e sempre, sempre, desestabilizadora das certezas. Aprendi com Carlos Brandão, poeta, que a amizade marca os corpos e as almas. As marcas deixadas por Karla enriquecem este texto e rimam com densidade e inspiração intelectual. Também a ela devo a “tradução” dos textos de Judith Butler.

Ser reconhecida como parte de uma Instituição como a Unicamp causava uma profusão de sentimentos e foi muito bom encontrar duas estrangeiras a compartilhar estes

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sentimentos: Ana Paula Mauriel e Eliane Gonçalves foram sobretudo amigas... À Ana também devo o compartilhar dos sorrisos das descobertas na biblioteca e também as muitas lágrimas deste percurso.

É uma máxima assustadora considerar que o trabalho de pesquisa deve ser sempre solitário. Uma rede foi acionada com meu ingresso no trabalho de campo; e diferentes e muitos sujeitos foram profundamente solidários na condução desse fazer. O Promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro, numa relação de confiança, possibilitou a realização desta tese, não somente porque consentiu no acesso aos processos, mas pela disponibilidade em responder às inúmeras perguntas, compartilhar bibliografias e, também, mostrar-se atento às críticas e sugestões.

Entre as inúmeras idas e vindas por Brasília, eu vi o Pedro descobrir a leitura, a gestação e nascimento da Mariana, acompanhada pelo sorriso da Alessandra Cardoso que sempre, na volta para nossa casa, me ouvia interessada. Ao Léo, agradeço todas as forças, inclusive a física para carregar aquele “tanto de processo”.

Fazer desta tese um trabalho sério foi a maneira que encontrei de agradecer às pessoas (transexuais) que me receberam nos mais variados lugares, sempre dispostas a responder aos meus porquês, como e me explica de novo - em suas casas, em seus locais de trabalho, no hospital, na feira, no shopping. Reviravam gavetas e armários em busca de reportagens ou lembranças para que eu pudesse entender um pouco mais do que estavam falando com um desprendimento que não sei se eu mesma teria.

Assim foi construída esta tese, com a disponibilidade de tantos; e novamente os caminhos desta foram marcados por encontros intelectuais generosos: Adriana Vianna, Aline Bonneti, Berenice Bento, Carla Teixeira, Jacy Seixas, Jorge Leite Júnior, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, Marcos Benedetti, Mônica Siqueira, Renato Ortiz, Roberto Menezes e Tatiana Lionço imprimiram olhares e questões.

Nos rodapés invisíveis desta tese, estão momentos únicos compartilhados com a solidariedade de Emmanuel Leite, André Brandão, Maria Alice Brandão, Dori Otoni, Denise Gonçalves, Sérgio Maldi, Sandra Leila, Ana Luisa Puntel, que estiveram tão próximos no momento da fragilidade da dor.

Diferentes espaços físicos me acolheram em Campinas, entre estes, a casa de Nelson Felice, onde tudo começou; a cumplicidade de Heloísa Casquel; a amizade de Mariana Magalhães e, claro, a segurança de ter sempre a casa do Brandão.

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Na Universidade Federal de Uberlândia, foram os colegas de departamento, Lindioneza, Rosuíta, Leila, Melicégenes e Carlos Henrique, que, assumindo parte de minhas atividades, possibilitaram que eu escrevesse de forma mais tranqüila, num acolhimento institucional de uma professora em estágio probatório.

Agradeço aos estudantes do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia que, nos corredores, perguntavam sobre a pesquisa. Eles compreenderam o momento particular da escrita da tese e sorriam cúmplices frente às promessas de “depois da tese”...

Agradeço também à equipe “Em Cima do Salto”, que compartilhou tudo para que eu pudesse escrever, pesquisar e, ao mesmo tempo, gestarmos este projeto.

Como realizar uma tese sem contar com a rede familiar, pai, mãe, queridos irmãos, sogros, mas, especialmente, minha irmã que, mesmo nos momentos mais complicados, minha

jarrinha esteve por perto.

Da Itália, vieram livros, incentivos e também a cumplicidade de Agapito e Maria Grazia nos momentos finais da escrita, compartilhando as belezas da Chapada dos Veadeiros.

Arthur enfeita e desafia o mundo com sons especiais e mostra no dia a dia como as palavras são insuficientes para traduzir sentimentos. Todos os dias, no retorno da escola, a mesma pergunta: “Mãe, isso não tem fim?” E, com a perspicácia, me dizia que meu desafio seria escrever o fim...

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RESUMO

O objetivo desta tese foi compreender as possibilidades e estratégias da atuação das pessoas (transexuais) que buscavam “uma mudança de sexo” ao se inscreverem no Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Tendo como ponto de partida o princípio de que a existência humana se torna inviável sem inteligibilidade social, problematizo os diferentes discursos que enredaram as pessoas (transexuais) ao buscarem reconhecimento. O principal argumento desta tese foi que o processo de reconhecimento das pessoas (transexuais) orquestrado pelas instituições médico-jurídicas coloca em risco a possibilidade da sobrevivência destas pessoas. A primeira parte do trabalho foi composta pela análise dos processos. Nessa procurei identificar, no entorno médico e jurídico, como um emaranhado imaginário – cujos conteúdos recobrem as percepções da sexualidade feminina/masculina, a compreensão do direito das pessoas (transexuais) sobre seus próprios corpos, bem como dos significados atribuídos ao gênero – atravessa de diferentes maneiras e intensidades as práticas/discursos e é forjado para que práticas institucionais sejam justificáveis. Marcado também por histórias de vida de pessoas, a segunda parte tenta explicitar a diversidade das vivências das pessoas que buscavam maneiras de dar sentido ao sentimento de “ser diferente”, de estar em “desacordo”, de ser vítima ou culpada de algum “engano” ou “fraude”. Os resultados do trabalho conduzem a problematizar a precedência e a exclusividade explicativas conferidas ao discurso médico-jurídico na outorga de legitimidade social para as experiências das pessoas (transexuais).

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ABSTRACT

Object of this thesis was understand the possibilities and strategies in performance of people (transsexuals) searching for “a change of sex” who register in Transgenitalization Program coordinated by Defense Justice Promote of Health Services Users (Pró-Vida), of Public Minister of Federal District and Lands. Our start point is the principle of human existence is not viable without social intelligibility; I question different speech what involved to people (transsexuals) to find reconnaissance. The principal argument of this thesis was the process of recognition of peoples (transsexuals) made for medical-juridical institutions put in risk the possibility of survival of these people. First part of this work was made with process analysis. I try identify in this, in medical and juridical environment, like an imaginary complicated -whose content recover the perceptions of male/female sexuality, comprehension of people (transsexuals) right over his/her bodies, like as signifies attributed to gender- it crosses with different ways and intensities practices/speeches and it is forged with the objective of institutional practices becomes justifiable. It is marked too with life histories of peoples, the second part try to state clearly the diversity of people experience who search ways to give sense to feeling of “be different”, of stay in “disagree”, of be victim or accused of some “cheat” or “fraud”. The results of this work leads to question the explain pertinence and exclusivity gives to medical-juridical speech granting social legitimacy for peoples (transsexuals) experiences.

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SUMÁRIO

Agradecimentos v

Resumo xi

Abstract xiii

Apresentação E a mão que tece a trama... Trança esta história 17

Entre os (con)sentimentos 25

(In)definições: limites de um conceito 28 Parte I

Capítulo 1 - O natural também é uma pose... 37

Convenções biológicas: (in)certezas (re)produzidas 38

Entre fios, palavras e bisturis: artifícios naturalizantes 42

Do Y ao X: o encantamento da técnica 58

A natureza jurídica do sexo 64

Capítulo 2 - Não basta abrir a janela... 77

... Os lírios não nascem da lei. 80

Laudos, relatórios e pareceres: protocolos da alma 92

As (in)certezas que se encontram no lugar onde as

verdades são guardadas 96

Fotografias, indícios e verdades: a inspeção física 104

Entre pistas e (in)certezas: os interditos 116

Dessa esquina pelo menos posso perceber o duplo sentido de tudo

127 Parte II

Capítulo 3 - Histórias que não têm era uma vez... 135

... Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza

135

Do armário para a reserva: a fragilidade das normas 143

Minha foto, minha vida ... meu segredo e minha revelação

145

Um inatingível senso de si.... 153

Casamentos: os proclames da heteronormatividade 162

Deus fez nossos braços pra prender 165

A recusa de um Script 169

A vida quando acaba, cabe em qualquer lugar 172

A natureza da gente não cabe em nenhuma certeza 174 Capítulo 4 - Diálogos que disfarçam; conflitos por explodir... 181

De que servem as flores que nascem pelos caminhos, se o meu caminho sozinho... é nada

188

... Todos os avisos não vão evitar... O que não tem governo nem nunca terá

199

É o ponto e vírgula 208

E aquele projeto... Ainda estará no ar? 220

Considerações Finais 225

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APRESENTAÇÃO

E a mão que tece a trama... Trança esta história

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APRESENTAÇÃO

E a mão que tece a trama... Trança esta história

(...) Então um dia eles me surpreenderam no banheiro, ainda não havia vestido minha calça, e aí eles riram de mim... me pegaram pelos braços, ainda sem calças, e me jogaram no lixo.

(...) Eu? Chorei muito. Não contei para ninguém, eu não sabia o que, mas sentia que fazia algo errado...1

Esses são fragmentos de um dos relatos de Carolina2, uma das pessoas (transexuais) que entrevistei, referindo-se à primeira situação explícita de violência sofrida por ela na escola, aos sete anos. Naquela ocasião, era considerada um menino e compartilhava o banheiro masculino. Ser um menino e freqüentar o banheiro destinado aos homens pareciam estar de acordo com as normas estabelecidas. Ela não sabe dizer que traço ou sinal os colegas teriam identificado como discordante para torná-la lixo. Ser remetida ao lixo é o cumprimento de um enunciado que retira o outro do lugar de pertencimento ao humano.

Esse excerto é significativo da trajetória percorrida na elaboração desta tese, cujo objetivo foi compreender as possibilidades e estratégias da atuação dos sujeitos que buscavam a cirurgia de transgenitalização. Os resultados do trabalho conduzem a problematizar a precedência e a exclusividade explicativas conferidas ao discurso médico-jurídico na outorga de legitimidade social para as experiências das pessoas (transexuais).

Esta tese foi marcada por histórias de vida de pessoas que, como Carolina, buscaram maneiras de dar sentido ao sentimento de “ser diferente”, de estar em “desacordo”, de ser vítima ou culpada de algum “engano” ou “fraude”. O sentimento manifesto por essa entrevistada, sua percepção de fazer “algo errado”, aponta o quanto as normas sociais constituem a nossa existência, conformam nossos desejos e não se ancoram na nossa individualidade.

A existência humana se torna inviável sem inteligibilidade social; as pessoas

1 Anotações do Caderno de Campo, Brasília, dezembro de 2005.

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(transexuais), transitando entre desejo e as normas sociais, buscam reconhecimento e são enredadas nas questões do poder, questionando a arbitrariedade para definir aqueles que reúnem os requisitos para serem reconhecidos como humanos e os que não estão habilitados para tal. O principal argumento desta tese é que o processo de reconhecimento das pessoas (transexuais) orquestrado pelas instituições médico-jurídicas coloca em risco a possibilidade da sobrevivência destas pessoas.

Muitas pessoas (transexuais) que contribuíram para a escrita deste trabalho, tiveram e ainda têm suas vidas marcadas pela violência. São pessoas que se constituíram através da produção de um corpo, cirurgicamente ou não, para se tornarem “reais”, para serem autênticas, categoria êmica que só possui sentido no contexto das disputas entre o que é ou não considerado legítimo e humano. Foi uma preocupação deste trabalho compreender os esforços desses sujeitos para se sentirem em consonância com seus desejos. Ao mesmo tempo em que eles questionam, reiteram e desorganizam a categoria naturalizada do humano, denunciam, implícita ou explicitamente, que as normas de gênero não estabelecem um consenso absoluto na vida social, desafiam as fronteiras entre a experiência individual e a necessidade de reconhecimento social.

Esta tese está dividida em duas partes. A primeira está baseada na análise de processos judiciais que objetivavam a autorização para a realização da cirurgia, evidenciando os discursos médicos e jurídicos. A segunda parte resulta de entrevistas e observações de campo. A divisão é um recurso metodológico na composição do texto. Na tessitura da tese, as duas partes “dialogam” e se articulam com o conjunto da teoria. O ponto inaugural deste trabalho foi o Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, criado em 1999 com o objetivo de autorizar e viabilizar a cirurgia de transgenitalização. Trata-se do primeiro e, até o momento da conclusão desta pesquisa, único grupo oficial ligado ao Judiciário, através do Ministério Público, que viabilizaria as cirurgias no Brasil.

Estabeleci como eixo de análise os processos dos/as inscritos/as para participar do Programa e considero “(transexuais)” aqueles/as que nele se inscreveram e se autodefiniram como tal. A pesquisa documental teve como fonte primária vinte e nove processos de pessoas inscritas do Programa de Transgenitalização. Eles foram analisados explorando diversos aspectos que incidem nas decisões médico-jurídicas em relação à cirurgia/alteração de sexo/alteração de nome: a eficácia das normas de gênero; os pressupostos sobre a relação

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entre natureza/cultura e sobre a coerência entre sexo/gênero/desejo e práticas sexuais.

O recorte temporal estabelecido para a análise das fontes obedeceu ao critério do tempo de abertura do Programa de Transgenitalização, em dezembro de 1999, e a suspensão de novas inscrições no primeiro semestre de 2004.3 O critério inicial de admissibilidade ao Programa era que os/as candidatos/as possuíssem o diagnóstico conferindo a eles/as a condição de ser um/uma transexual verdadeiro/a. Assim, ao solicitar seu ingresso, o/a candidato/a era encaminhado/a para os especialistas das áreas da medicina e psicologia, que deveriam identificar tal condição. Esse diálogo entre as áreas (re)criava uma profusão de leituras sobre a transexualidade.

A análise dos processos seguiu as pistas deixadas pelo trabalho inaugural de Mariza Corrêa (1983), ao analisar que há mais em jogo na construção e análise dos processos do que simples “leitura de protocolos”. Nessa análise procurei identificar, no entorno médico e jurídico, como um emaranhado imaginário – cujos conteúdos recobrem as percepções da sexualidade feminina/masculina, a compreensão do direito das pessoas (transexuais) sobre seus próprios corpos, bem como dos significados atribuídos ao gênero – atravessa de diferentes maneiras e intensidades as práticas/discursos e é forjado para que práticas institucionais sejam justificáveis, ainda que fujam das expectativas éticas, morais ou legais.

Nos processos analisados, a construção subjetiva dessa experiência foi silenciada. Encoberta pela primazia do diagnóstico, pouca atenção essa vivência despertou entre os médicos e juristas.

A segunda parte deste trabalho prioriza como os sujeitos que se inscreveram no programa de transgenitalização e cumpriram os protocolos – integralmente ou em parte – dizem, vivem e constroem significados para suas vivências.

As entrevistas narram os (re)arranjos, as negociações e os conflitos que envolvem os diferentes sujeitos, que rompem com a dualidade do sexo, as interpretações internas que tornaram ou não a cirurgia de transgenitalização como a meta a ser alcançada para o reconhecimento de sua legitimidade. Trabalhei com um universo de dezesseis pessoas (transexuais) entrevistadas. Foi possível entrevistar oito inscritas/os no Programa. Além disso, foram entrevistadas sete pessoas que participavam do movimento social e uma mulher (transexual) que foi submetida a cirurgia clandestina, no exterior, na década de oitenta e

3 O Promotor de Justiça determinou a suspensão do ingresso de novas/os candidatas/os até que fossem resolvidas a liberação da cirurgia via SUS e a composição de equipe para realizar as cirurgias. Entrevista Pessoal, Caderno de Campo, dezembro de 2004.

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indicada pelo cirurgião professor Carlos Cury. O critério para selecionar as pessoas a serem entrevistadas considerou as demandas apresentadas no momento de ingresso no Programa. A diferença entre o número de processos analisados (vinte e nove) e de pessoas vinculadas ao Programa entrevistadas (oito) se deve a um conjunto de recusas e dificuldade de acesso como será descrito no momento em que analiso a obtenção do termo de consentimento. Das três pessoas que ingressaram tendo realizado a cirurgia através do sistema privado de saúde, duas não foram localizadas através do endereço disponível no processo e uma se recusou a ser entrevistada. Três inscritas iniciaram o processo tendo cumprido as exigências do Conselho Federal de Medicina (CFM) para a realização da cirurgia e foram submetidas ao procedimento – com a autorização judicial – anteriormente ao início de meu trabalho de campo. Nenhuma delas foi entrevistada para este trabalho. Uma integrante deste subgrupo não foi procurada para a entrevista por solicitação do coordenador do Programa, reafirmando o desejo manifesto da mesma pelo anonimato, e as outras duas a recusaram, de diferentes formas, conforme discussão apresentada no segundo capítulo.

Entre as vinte e três pessoas inscritas no Programa sem terem cumprido nenhuma das exigências do CFM, três se recusaram a participar e uma estava na Europa durante o período em que iniciei as entrevistas. Duas foram consideradas como abandono pela equipe do Programa por não responderem aos ofícios para comparecerem aos exames e/ou consultas; duas pessoas foram assassinadas durante o período em que eu estava analisando os processos; sete pessoas não foram localizadas através dos endereços que estavam disponíveis.

O uso de uma metodologia que envolve registros orais requer uma atenção especial às interações entre entrevistador-entrevistando. O “falar” sobre temas tão delicados detona nos interpelados uma espécie de auto-avaliação; ao mesmo tempo, tensões e auto-críticas podem aflorar no decorrer da entrevista, instigando a uma análise que vai além do “dito”. Considerando o discurso criado ao longo das entrevistas e a partir das questões suscitadas pelos estudos de Michel Foucault (1979, 1997, 2002), o entendimento e a análise das mesmas não passaram por uma exegese lingüística ou uma análise semiótica. A leitura das falas privilegiou o ato, ou seja, as práticas de verbalização atreladas ao histórico dos entrevistados e entendeu esta construção como parte dos jogos de saber-poder, estreitamente ligados ao estudo aqui empreendido. Em outras palavras, se tratou apenas de compreender como na situação de “entrevista” um discurso de si e do outro foi elaborado e como auto-justificativas foram construídas para dignificar a experiência da transexualidade.

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aos locais de moradia, hospital, trabalho e lazer compuseram parte importante deste cenário, bem como a participação em espaços reconhecidos como de atuação política. Em todas as ocasiões entrevistei as lideranças e participantes do movimento das pessoas (transexuais) compondo muitas horas de observação.

O ingresso de uma das inscritas no movimento LGBTT4 colaborou para as discussões e marcou definitivamente o rumo desta tese. Foi através dela que acompanhei a construção do Coletivo Nacional de Transexuais, em 2005, reivindicando a autodeterminação, o reconhecimento das experiências individuais através das quais as pessoas buscam significar o que entendem por ser transexual e questionam os saberes oficiais que disputam uma verdade sobre a transexualidade.

Entre os espaços políticos de encontros do Coletivo Nacional de Transexuais, participei, em julho de 2006, do XIII Entlaids5, realizado em Goiânia, com o objetivo de acompanhar a pauta de discussões do Coletivo Nacional de Transexuais, que parecia trazer a realização da cirurgia de Transgenitalização como destaque na agenda do grupo. Nesse encontro, foi reivindicada pelo Coletivo Nacional de Transexuais a legitimidade para representar as pessoas (transexuais). O desdobramento desta solicitação, acatada na assembléia, será analisado no capítulo quatro. Em 2007, o XIV Entlaids, realizado em São Paulo, trouxe a discussão que fecha esta tese, problematizando a relação entre as mulheres (transexuais) e o movimento feminista. O XV Entlaids, realizado em 2008, na cidade de Salvador, reitera a pertinência atual das tensões que envolvem os movimentos sociais na reivindicação das identidades.

Acompanhei como observadora, em julho de 2007, o encontro preparatório para a realização do Seminário Nacional, intitulado Saúde da População GLBTT na Construção do SUS, organizado pela Secretaria de Gestão Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde.6 Terminada a reunião, fui convidada a acompanhar as representantes do Coletivo Nacional de Transexuais em uma visita que fizeram ao gabinete do Sr. Ricardo Balestreri, atual Secretário

4 A modificação da Sigla GLBTT para LGBTT foi uma decisão do movimento organizado na Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, realizada em Brasília/DF nos dias 5 a 8 de junho de 2008. No entanto, ao me referir a alguns setores e políticas públicas, a sigla se manterá como ainda está sendo empregada, pois a recente modificação ainda não resultou na modificação da nomenclatura das mesmas. 5 Encontro Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids, que é financiado pelo Programa Nacional de Aids do Ministério da Saúde.

6 O encontro ocorreu em 15/08/2007 e constituiu num dos espaços de pesquisa de mestrado de Izis Reis (2008). A pesquisadora teve como preocupação as disputas presentes nas propostas de implantação de políticas públicas em saúde para as pessoas (transexuais). Como o espaço e o tempo de investigação da autora se interseccionam com o tempo do trabalho desta tese, sua leitura tornou-se instigante e um diálogo profícuo.

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Nacional de Segurança Pública (Senasp).

Em 2008, a prostituição se tornou pauta explícita da agenda do movimento, fato que até então eu não havia observado em outros encontros. A Consulta Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição7 foi organizada pelo Programa Nacional de DST e Aids. Realizada em Brasília, reuniu lideranças da Rede Brasileira de Prostitutas, da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do Coletivo Nacional de Transexuais (CNT).

A Portaria nº.17.07, de 18 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde que instituiu no âmbito do SUS o processo transexualizador, ocupou o cenário no XV Entlaids, em Salvador, no entanto, a ausência “oficial” dos membros do Coletivo Nacional de Transexuais trouxe questões sobre a disputa por representatividade, o que será discutido no capítulo final.

As três candidatas do Programa que iniciaram já tendo cumprido as exigências do CFM, realizaram o procedimento cirúrgico em São José do Rio Preto, no serviço coordenado pelo prof. Carlos Cury. Por esse motivo, o visitei em duas ocasiões. Em uma delas, assisti à realização da cirurgia de transgenitalização.

Na leitura dos processos, mas principalmente durante as entrevistas, com as pessoas inscritas no Programa de Transgenitalização da Promotoria, foi impossível passar despercebido o impacto que os procedimentos realizados no IML tiveram sobre elas. Realizei uma visita ao setor, acompanhada pelo diretor e, em seguida, tive uma conversa informal com técnicos da psiquiatria e psicologia que em alguma medida participaram da elaboração dos laudos para os processos analisados.

Em três ocasiões estive presente às reuniões do Projeto de Transexuais da Universidade de Brasília8, coordenado pela psicóloga e professora Dra. Sandra Stuart. Essa

incursão tornou-se necessária porque muitos/as dos/as integrantes do Programa de Transgenitalização da Promotoria se encontravam nesse grupo.

A médica e professora Mariluza Terra Silveira, coordenadora do Programa de Transexuais da Universidade Federal de Goiás, foi entrevistada em dois momentos durante a realização de eventos cuja temática era a transexualidade. Tornou-se uma interlocutora chave, pois todas as pessoas anteriormente inscritas no Programa de Transgenitalização foram

7 Organizada pelo Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Política para as Mulheres. Brasília/DF, de 26 a 28 de fevereiro de 2008.

8 A minha participação na reunião deveu-se ao fato de naqueles dias o grupo estar aberto. Mesmo assim, não acompanhei todo o desenvolvimento, era convidada a ingressar apenas no final da sessão.

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submetidas aos procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) depois de encaminhadas para Goiânia e através do Projeto de Transexuais da UNB.

Estar em Brasília para desenvolver o trabalho de campo possibilitou entrevistar os pesquisadores Berenice Bento, Tatiana Lionço, Marcos Benedetti e Aline Boneti, que estavam envolvidos diretamente ou indiretamente no planejamento de políticas públicas em saúde para essa população, o que ajudou a pensar na efervescência teórica da discussão.

Entre os (con)sentimentos

Em março de 2002, realizei meu primeiro contato formal com o Promotor responsável pelo Programa de Transgenitalização, coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios9, solicitando acesso para pesquisa. A autorização para que eu tivesse acesso aos processos, que tramitam em segredo de justiça, integrou um período de negociação e estabelecimento de normas incluindo a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas. A exigência da submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética gerou inquietações que estão sendo compartilhadas por muitos/as pesquisadores/as quando estão pleiteando fomentos de institutos ou agências de pesquisa. Isso não significa que a Antropologia não se oriente por uma ética, mas, retomando ao texto do professor Roque Laraia (1993), o código de ética do antropólogo – que inicialmente parecia simples, não escrito e transmitido através da tradição oral entre seus pesquisadores – foi ampliando suas problemáticas na medida em que a disciplina elegeu novos objetos de estudo e novos campos de atuação10.

9 Criadas e definidas atribuições através da Portaria nº. 314 de 17 de maio de 1999, a Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Pró – Vida, foi implementada em 17 de maio de 1999. Além de erros de médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros etc., a Pró-Vida tem a atribuição de investigar e perseguir os crimes de exercício ilegal de profissões de saúde regulamentadas em lei, oficiando numa série de feitos envolvendo interrupção de gravidez de feto inviável e que expõe a vida da mãe a risco de morte; abortos de fetos originados de violência sexual; mudança de sexo (transgenitalização); inseminação artificial; importação e transplante de órgãos. Durante a pesquisa de campo, o Promotor de Justiça determinou que as intervenções cirúrgicas envolvendo crianças recém-nascidas com genitália ambígua não poderiam ser realizadas sem o consentimento do Ministério Público. Esta conduta gerou uma insatisfação entre a classe médica e um questionamento sobre a “urgência” que até então caracterizava o procedimento.

10 A sistematização de um código de ética pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) ocorreu nos anos de 1986-1988 e demonstra que a relação entre Ética e Antropologia estava na pauta de discussão. Assim também a Mesa-redonda "Ética e Ciência”, constituída na ABA-SUL de Florianópolis, no ano de 1993, reiterava essa preocupação. Remeto também ao importante texto do professor Roberto Cardoso de Oliveira (1990) sobre conhecimento, ética e ação social.

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Não era a relação entre Antropologia e Ética que se constituía o incômodo, mas a exigência do preenchimento de protocolos que, formulados em outro campo disciplinar, traziam uma estrutura de informações nem sempre adequada ao olhar antropológico, através de uma linguagem que explicitava a hegemonia e a suposta legitimidade única do modelo biomédico na definição do que é ciência e de como se faz pesquisa (DINIZ e GUERRIERO, 2008).

Após a aprovação do CEP/UNICAMP e em função dos limites estabelecidos pelo Promotor de Justiça, o primeiro contato com os/as inscritos/as foi mediado pela Promotoria de Justiça e, apesar de não ter se constituído uma intimação formal, foi assim interpretada por essas pessoas. Na primeira reunião, agendada para acontecer nos limites físicos da Promotoria, as que participaram tiveram reações diferenciadas. Rita demonstrou receio de que suas experiências contribuíssem para legitimar práticas e discursos dos quais discordava. Danielle, Diogo, Larissa e outros/as também foram, de maneiras distintas, falando de suas preocupações com a pesquisa. Outras pessoas compareceram aparentemente sem colocar questões, pareciam cumprir mais uma etapa dos “protocolos oficiais” exigidos para a continuidade do processo. Assim, Bruna, Carolina, Priscilla e Tassiana repetiam trechos inteiros de suas vidas, a exemplo do que fizeram para os peritos. O desenrolar da reunião, associado à solicitação do grupo para que eu não mostrasse o conteúdo das fitas ao Promotor, apontava para uma percepção de que a minha imagem estava impregnada pelo discurso oficial (do promotor, da academia, de saberes que autorizam). Além dos desafios a serem enfrentados, estava diante de outro elemento imposto pelo Comitê de Ética: a exigência de que assinassem o termo de consentimento livre e esclarecido.

Apesar das questões apresentadas acima, quase todas as pessoas assinaram o termo. Apenas uma, Larissa, se recusou a assinar. Ela sublinhou a palavra Consentimento. Com tal atitude, reiterou a fragilidade deste instrumento, deixando explícito o posicionamento de Ceres Victoria de que o “consentimento é um processo a ser obtido ao longo da pesquisa e não como uma formalidade contida em uma folha de papel assinada”.11

Entendendo as pesquisas antropológicas como observação e análise de relações sociais

11 A participação da professora Ceres Gomes Víctora, representando a ABA, no evento do programa do CNPq de qualificação dos Comitês de Ética em pesquisa ocorrido na Faculdade de Saúde Pública da USP, em outubro de 2005, reafirma o conjunto de preocupações de antropólogos que estão tendo seus projetos de pesquisa recusados nos Comitês de Ética em Pesquisa. Documento disponível no site da ABA no endereço: http://www.abant.org.br/conteudo/documentos/ceres_victora.pdf capturado em 12/02/2007.

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em andamento, o consentimento dos interlocutores se constitui na própria possibilidade da realização da pesquisa. Porém, havia vários termos de consentimento assinados sem que isso representasse garantia alguma de acesso aos sujeitos e viabilidade desta etapa da pesquisa.

As expectativas das/os integrantes do Programa de Transgenitalização do Ministério Público pareciam se deslocar para o grupo que estava se formando no Hospital Universitário de Brasília (HUB) desde 2002. Esse grupo estava sob a coordenação de uma pesquisadora cuja proposta seria a constituição de uma equipe interdisciplinar para viabilizar as cirurgias de transgenitalização. As leituras dos processos já indicavam uma circulação de encaminhamentos entre os profissionais que viriam a compor essa equipe e a promotoria de justiça. Assim, considerando que os sujeitos transitavam entre os programas, havia aventado a possibilidade de contatar a instituição (UnB), no entanto, foi decisivo o convite deles/as para que eu comparecesse na reunião do Grupo de Transexuais que aconteceria no dia seguinte e me apresentasse para a coordenadora do grupo. Sem a certeza se estariam, através dessa demanda, reivindicando serem “lidas” através de um outro léxico que não o judiciário, e assim me aproximando do campo da psicologia, ou se buscavam o respaldo de outra instituição, insistindo para que eu fosse referendada por outra autoridade, ou ainda, seria um movimento conjunto, considerando que, segundo Butler, a dependência dos indivíduos das instituições sociais marca a possibilidade de agência dos mesmos. Para a autora, a necessidade das mudanças das instituições (que determinam o que é reconhecido como humano) é um pré-requisito para a auto-determinação.

en este sentido, la agencia individual está ligada a la crítica social y la transformación social. Sólo se determina «el propio» sentido del género en la medida en que las normas sociales existen para apoyar y posibilitar aquel acto de reclamar el género para uno mismo. (2006, p. 21)

Participar dessa reunião foi fundamental para estabelecer outra forma de interação com aquelas/es que se tornariam meus/minhas interlocutores/as. Percebi que nenhum dos espaços poderia ser utilizado como lócus de pesquisa. Foi necessário bater em várias portas, que lentamente se abriram. A experiência de trabalho de campo busca desvelar as dimensões subjetivas e as vivências que propiciam relações produtoras de conhecimento. Por isso, os relatos do envolvimento com as pessoas e sobre os diferentes contextos e situações em que se deu a pesquisa, mais do que nunca, constituem dados do próprio trabalho científico e são considerados como integrantes do resultado. Destaco a participação de Carolina como mediadora dos encontros com os(as) outros(as) informantes e a centralidade com que sua

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história foi construindo esta pesquisa.

Transcrevo o fragmento do posicionamento inicial do grupo, que parecia se fazer representar por Rita: “Qual a referência teórica que segue o seu trabalho? O que é para você a transexualidade?” Esses questionamentos dimensionam o enfrentamento de questões epistemológicas e representam a possibilidade de deslocamento da fronteira entre sujeito/objeto que se colocou deste o início da tese. Na semana que antecedeu essa reunião, eu terminara a leitura de um dos livros de Judith Butler e o desafio para a utilização de uma linguagem e de um distanciamento que, embora fossem adequados à forma epistemológica, não efetuassem uma separação deste “outro”, criando “um conjunto artificial de questões sobre a possibilidade de conhecer e resgatar esse Outro” (2003, pp. 207-8).

“Para quê essa pesquisa? Que importância isso tem?” Desde o início me deparei com estas indagações, formuladas com maior ou menor preocupação teórica. Considerando que a matriz das relações de gênero é simultânea à própria emergência do humano e que a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais humano, o não humano, o menos humano e o humanamente impensável, as reflexões instigadas por Judith Butler (2005b) convidam a uma investigação sobre os tipos de apagamentos e exclusões pelos quais a construção do sujeito atua. Partindo da premissa de que a experiência trans não materializa um “corpo viável” e, portanto, um sujeito viável, por sua estranheza entre as identidades constituídas, o interesse deste estudo também é político: pretende contribuir para desvelar a importância dessas vidas e desses corpos, em uma sociedade tão desigual e diversa nas maneiras de tratar as alteridades liminares.

(In)definições: limites de um conceito

Desde o momento em que iniciei a escrita deste trabalho, fui resistente à perspectiva de historicizar o termo transexual, primeiramente porque tal recorte havia sido realizado por outros pesquisadores/as em diferentes campos disciplinares como a advogada Tereza Vieira (1995), o historiador Pierre-Henri Castel (2001), a socióloga Berenice Bento (2003, 2006 e 2008), a antropóloga Elizabeth Zambrano (2003 e 2007), o médico Alexandre Saadeh (2004), a psicóloga Tatiana Lionço (2006), a psicóloga Maria Jaqueline Coelho Pinto (2008) e o cuidadoso trabalho do antropólogo Jorge Leite Jr. (2008) – entre outros. E, também, porque não sendo a preocupação central de minha investigação, receei que, numa tentativa de sintetizar o percurso, acabasse por colaborar com a idéia de que qualquer categoria cunhada

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na contemporaneidade para nomear esse fenômeno poderia ser apropriada para analisar diferentes épocas ou lugares. Assim, considero relevante enfatizar que o termo transexual foi construído a partir de um conceito contemporâneo de dimorfismo sexual, referendado no saber médico, em que os especialistas reúnem e criam narrativas sobre a transexualidade, partindo de um poder que lhes é outorgado para determinar os limites entre o normal e o patológico (LAQUEUR, 2001).

A transexualidade é uma fronteira marcada por diferentes definições, sendo que o termo transexualismo é hegemônico no discurso médico e passou a integrar a Classificação Internacional de Doenças (CID) na sua versão mais recente, a CID-10.12 Por determinação do Ministério da Saúde, essa classificação passou a vigorar, no Brasil, em 1º de janeiro de 1996, e, na medida em que estabelece uma classificação de síndromes psiquiátricas (chamadas de transtornos), fornece, em suas Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas, critérios específicos para que um determinado diagnóstico possa ser estabelecido. Nesse documento, que deve ser seguido nas avaliações médicas oficiais, o transexualismo está catalogado no grupo F6, que se destina aos diversos tipos de transtornos de personalidade e de comportamento de adultos. Está classificado no F64 Transtornos de Identidade Sexual, e especificamente:

F64. 0 Transexualismo: Um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico, e um desejo de se submeter ao tratamento hormonal e cirurgia para tornar seu corpo tão congruente quanto possível com o sexo preferido (OMS, 1993).

Diferentemente, na DSM-IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, classificação utilizada pela Associação Psiquiátrica Americana (1995), o termo transexualismo dá lugar ao Transtorno de Identidade de Gênero, cujos critérios diagnósticos são: a) Uma forte e persistente identificação com o gênero oposto (não meramente um desejo de obter quaisquer vantagens culturais percebidas pelo fato de ser do sexo oposto). b) Desconforto persistente com seu sexo ou sentimento de inadequação no papel de gênero deste sexo. c) A perturbação não é concomitante a uma condição intersexual física. d) A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

12 Na 10ª Revisão, foi adotada a nomenclatura “Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10)”.

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No Brasil, a Resolução nº. 1428/9713 do Conselho Federal de Medicina autorizou a realização, como procedimento experimental, de cirurgias do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários para tratamento do transexualismo. Esse pode ser considerado um marco para o surgimento de programas visando à realização da cirurgia de transgenitalização. A Resolução estabeleceu os critérios para as intervenções cirúrgicas que, até então, seriam consideradas como crime e o autor (médico) sujeito a processo. A partir de 2003, dissertações e teses nos campos da medicina, psicologia e serviço social surgiram visando analisar as experiências desses grupos.14 A leitura desses trabalhos aponta para caminhos intrigantes sobre os mecanismos e as práticas discursivas que constroem “o transexual”, e alguns evidenciam uma crença compartilhada na cirurgia como um procedimento redentor para as pessoas (transexuais). Entretanto, ressalto a exceção que representou o trabalho de Tatiana Lionço (2006), cuja contribuição será analisada no momento de discutir a elaboração do chamado “processo transexualizador” pelo SUS.15

Também os trabalhos de Berenice Bento (2003 e 2006) e Elizabeth Zambrano (2003) foram realizados tendo parte de suas pesquisas de campo desenvolvidas com as/os (transexuais) inscritas/os nos programas de Transgenitalização no Hospital Universitário de Goiás e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, respectivamente. Uma característica diferencia esses trabalhos dos anteriores: a postura de distanciamento adotada na pesquisa. Uma vez que as pesquisadoras não integravam a equipe de especialistas desses Programas,

13 A Resolução CFM nº. 1.482/97 (D.O.U.; Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1997. Seção 1, p. 20.944) pode ser consultada através do site: www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm capturada em 04/03/2006. Foi revogada pela Resolução CFM nº. 1652/2002, que retirou o caráter experimental para os casos de cirurgias em transexual feminino.

14 A dissertação de mestrado de Jaqueline Pinto (2003) demonstra a busca da coerência entre sexo e gênero no Programa de Transexualidade de São José do Rio Preto, coordenado pelo professor Carlos Cury. Sua tese de doutorado, em 2008, amplia a discussão ao trazer para a cena do debate as experiências das mulheres (transexuais) após a realização da cirurgia. A tese de doutoramento de Alexandre Saadeh (2004) tem como referência o Projeto de Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do HC/USP e baseia-se nos princípios estabelecidos pelo discurso médico oficial. A dissertação de mestrado de Rosimeri Bruno (2004) analisa o Projeto de Transgenitalização do Instituto de Ginecologia da UFRJ. Esalba Silveira (2006) é assistente social do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital Universitário da UFRGS (PROGID) e acompanhou as pessoas inscritas nesse programa para sua tese problematizando a construção da identidade a partir do referencial teórico do materialismo histórico. A dissertação de mestrado de Valéria de Araújo Elias (2007) acompanha, a partir da psicanálise, sete casos de mulheres (transexuais) atendidas no Hospital Universitário da UEL. Daniela Murta (2007) analisa o atendimento às pessoas transexuais no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ.

15 Essa pesquisadora, durante sua pesquisa de doutoramento, exerceu a função de psicóloga que acompanhava as integrantes do Projeto que tem como objetivo prestar assistência para as pessoas (transexuais) no Hospital Universitário de Brasília. Sua tese está ancorada na explicação somato-psíquica da transexualidade. Integrava, no momento da entrevista para este trabalho, o Comitê Técnico destinado a planejar políticas públicas em saúde para o segmento GLBTT no Ministério da Saúde.

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elas desenvolveram suas pesquisas a partir dos pressupostos das ciências sociais. Destaco no trabalho de Berenice Bento a sua preocupação em problematizar e (des)construir o conceito de “transexual de verdade” e (des)patologizar esta experiência, sendo que as pistas deixadas por ela foram significativas na condução desta tese.

Como já anunciado acima e seguindo as diretrizes do trabalho de Berenice Bento, reluto em estabelecer uma cronologia para a transexualidade. No entanto, considero pertinente destacar aqui o ano de 1953, quando a expressão “transexualismo” foi utilizada com o significado que lhe foi atribuído contemporaneamente – ou seja, derivado de um sistema de classificações resultante de um protagonismo de um saber médico baseado na existência de um sexo verdadeiro e fundamentado na medicalização da sexualidade (FOUCAULT, 1983).

Embora transexualismo seja o significante privilegiado por médicos e juristas para se referir à experiência da transexualidade, compartilho com Berenice Bento (2003) o entendimento da necessidade de romper com o uso patologizante do sufixo ismo. A exemplo também das discussões do movimento gay que reivindica o abandono do termo homossexualismo, reconhecendo sua denotação de domínio medicalizado de uma conduta sexual perversa.

Para este trabalho, ainda seguindo as pistas traçadas pela pesquisadora, abdico do uso que fazem os operadores – médicos, psicólogos e juristas – e também alguns antropólogos, do termo transexual masculino para se referirem às mulheres (transexuais) nascidas com pênis e transexual feminino para se referirem aos homens (transexuais) nascidos com vagina. Ao nomear uma mulher (transexual) como transexual masculino recuperaria a lógica de que o campo biológico é que deve definir o sujeito; assim todo o investimento em direção a uma subjetividade e inteligibilidade se desfaz ou é ameaçada diante do masculino, anunciando a sua suposta condição de farsante. O mesmo argumento utilizo para definir os homens (transexuais).

Ainda assim, o emprego não questionado do termo transexual parecia também inadequado. Ao encontrar no livro de Judith Butler (2006, p. 266) a referência a um episódio nos Estados Unidos, em que um grupo de mulheres lésbicas compareceu a um evento com camisetas onde o termo lésbica aparecia entre parênteses, porque questionava a própria estabilidade da categoria, obtive a chave para responder provisoriamente a necessidade de escrever sobre mulheres e homens (transexuais).

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apresentar a polifonia de discursos sobre a transexualidade, principalmente aqueles presentes em alguns documentos do Conselho Federal de Medicina e alguns Pareceres e Sentenças Judiciais – que expressam os saberes médico-jurídicos. Compreender como se produz a articulação entre esses saberes é fundamental, uma vez que o Programa de Transgenitalização da Promotoria Pública do Distrito Federal e Territórios está permeado por ela. Algumas pesquisas desenvolvidas no século XX, com o objetivo de identificar a origem biológica da homossexualidade, emprestaram suas (in)certezas para compor um léxico explicativo para a transexualidade.

A ausência de consenso no judiciário apontava para a responsabilidade do Estado, que deveria então oferecer proteção a esses indivíduos. Se, para alguns ou algumas, renunciar a partes de seu corpo seria um percurso importante para o reconhecimento/pertencimento, a negativa do Estado desta autonomia pode ser também compreendida como uma ação violenta. Condicionar a autorização de alteração no registro civil à realização do procedimento cirúrgico também pode ser lido como ato que viola a integridade do indivíduo, conforme identificado também nos trabalhos de Elizabeth Zambrano (2005) e Miriam Ventura (2007). Parece escapar a eles uma questão anterior, em que homens e mulheres (transexuais), antes de reivindicar os direitos relacionados à sua pessoa, estão lutando para serem reconhecidos como pessoas.

No segundo capítulo, “Não basta abrir a janela”, analiso os processos das pessoas (transexuais) que recorreram ao Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida) do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em busca da autorização/realização da cirurgia de transgenitalização.

Os documentos analisados evidenciam a disputa entre o saber-poder médico e jurídico que, enquanto decidem e reiteram suas verdades sobre o que é legítimo para o outro, praticam a violência institucional de quem impede o outro de dizer quem é. Os peritos aparecem ancorados na segurança de um exame psíquico, em que a história de vida refletida na aparência da(o) entrevistada(o) parece fornecer a eles subsídios suficientes para a confecção dos laudos, a informação ao Promotor sobre a/o “verdadeiro/a transexual” e, principalmente, reiterar as certezas sobre um modelo essencializado de gênero.

A segunda parte desta tese se constituiu de uma tentativa de compreender essas pessoas, (até) então apenas lidas na perspectiva de um diagnóstico, e captar a heterogeneidade

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e a complexidade da experiência transexual, identificando os desafios enfrentados por homens e mulheres (transexuais) na construção de um outro (no gênero e na sexualidade).

O terceiro capítulo, composto por fragmentos das entrevistas, observações realizadas no período de 2004 a 2008 é uma tentativa de capturar um instante das diferentes “histórias que não têm era uma vez”. O desenvolvimento deste trabalho está afinado com as posições teóricas que problematizam os saberes médico-jurídicos, poderes normatizadores, que estabelecem um lugar fixo para a transexualidade como patologia. O objetivo deste capítulo é tratar as diversas possibilidades de vidas e a fluidez de suas experiências em contraponto com a armadura que o conceito de transexualismo utilizado pelos saberes médico-jurídicos pretende ajustar para o reconhecimento da pessoa (transexual).

Fechando essa tese, o quarto capítulo “Diálogos que disfarçam; conflitos por explodir” apresenta as disputas e os desafios na reivindicação das pessoas (transexuais) por reconhecimento. Os dilemas e armadilhas identificados no processo de reivindicação de reconhecimento da transexualidade como uma experiência identitária legítima, afastando-se do olhar patologizante e ao mesmo tempo negociando com o Ministério da Saúde a elaboração de políticas públicas que atendessem as demandas das pessoas (transexuais). Assumir a posição de reconhecimento de que se trata de uma doença, materializada através de um diagnóstico, significa andar por um terreno escorregadio conforme demonstra a análise da recente Portaria do Ministério da Saúde sobre o Processo Transexualizador.

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PARTE I

CAPÍTULO 1

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CAPÍTULO 1

O natural também é uma pose

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O que está em questão, neste capítulo, é pensar como a produção de um saber específico sobre a transexualidade, materializado no diagnóstico, atribui aos médicos, juizes, promotores e psicólogos o poder para identificar quais são as verdades da alma e do corpo, legitimando ou proibindo a intervenção sobre este corpo.

Durante a construção desta tese, foram várias as situações em que o discurso produzido sobre a origem biológica da homossexualidade emprestou significados para as certezas sobre a transexualidade, entre estas o princípio da condição inata. Tal discurso sobre a homossexualidade, embora assentado sobre um terreno escorregadio, produziu verdades reiteradas nas (in)certezas dos discursos médico e jurídico. Estava presente na circulação dos significados essencializados sobre o que é ser homem, mulher, os atributos do masculino e do feminino e as sexualidades. Uma das possibilidades de apreensão desse discurso é a análise das Resoluções do Conselho Federal de Medicina que se referem à transexualidade e algumas decisões judiciais em relação aos pedidos de alteração de nome e sexo realizados por pessoas (transexuais).

O impacto dessas Resoluções na vida das pessoas (transexuais) é significativo não apenas porque elas orientam condutas profissionais, mas também prescrevem sobre o que deve ser considerado ou não como legítimo. Inseridas num conjunto de tecnologias médicas produzidas contemporaneamente, sua utilização também está subordinada às normas de gênero (BENTO, 2008). Elas definem o que é adequado aos usos dos corpos e das sexualidades e influenciam as decisões em outros campos disciplinares, inclusive no campo jurídico.

Levando em conta o texto das Resoluções, é possível perceber que a lógica da transexualidade como um engano da natureza opera para legitimar a cirurgia como único caminho capaz de estabelecer uma certeza sobre o sujeito. O corpo é compreendido como envoltório biológico em que genitália, sexo e gênero são interpretados a partir de uma

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perspectiva essencializante; algumas das decisões judiciais colaboram para pensar na gestão do discurso médico.

As idéias sobre uma origem inata da homossexualidade permearam o discurso médico sobre transexualidade e estão vastamente difundidas na sociedade contemporânea, tanto nos movimentos de reivindicação de identidade como em pesquisas biomédicas e decisões no campo jurídico.

Convenções biológicas: (in)certezas (re)produzidas

Eis uma reprodução reduzida do cartaz da campanha italiana patrocinada pelo Ministério de Igualdade de Oportunidades e por grupos de defesa dos direitos dos homossexuais lançada em outubro de 2007. Ele mostra um recém-nascido com a palavra homossexual na pulseira de identificação. Intitulada “A orientação sexual não é uma escolha” a campanha espelha um ponto de partida comum entre os pesquisadores que buscam a origem biológica da homossexualidade. Nesse sentido, ela não seria decorrente de um projeto pessoal ou subjetivo, mas a expressão de uma condição biológica. A suposta universalidade da homossexualidade, sua analogia com o comportamento de animais e a preocupação com a causalidade são alguns dos elementos que norteiam os discursos e aproximam tais pesquisadores. A reprodução do cartaz, nesse contexto, ilustra a atualidade e o impacto com que algumas formas de se pensar a sexualidade performam certezas.17

17 O Caderno Mais do jornal Folha de São Paulo, em 30.03.03, apresenta pesquisas recentes em torno da homossexualidade, destaca o artigo “O FATOR gay”, escrito por Andrew Hacker, ilustra a atualidade deste debate. No artigo referido, o autor resenha de forma sucinta alguns livros recentes que tratavam a homossexualidade na perspectiva da origem biológica. Entre eles, o livro de Robert Alan Brookey, “Reinventing the Male Homosexual”considerado por ele como um trabalho minucioso na apresentação das teses sobre a homossexualidade e o segundo, o livro “Normal”, escrito por Amy Bloom, apresentado como o resultado de uma pesquisa envolvendo transexuais, homens heterossexuais que se travestem e adultos que nasceram com ambigüidade genital. O argumento da origem biológica das sexualidades aponta para a escola de pensamento

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Algumas pesquisas repercutiram na academia e parte de seus resultados foram replicados na mídia, no entanto, nenhuma com a visibilidade da pesquisa de Simon Le Vay (1991). No momento em que os resultados do trabalho deste neuroanatomista foram publicados na revista Science, este se destacou como se fosse a primeira grande investigação biológica sobre orientação sexual, porém Le Vay teria seguido as pistas deixadas por outros pesquisadores.18

A pesquisa de Simon Le Vay se tornou uma referência para a defesa da origem biológica da homossexualidade. Partindo da premissa da existência de núcleos cerebrais sexualmente dimórficos, ele aventou a hipótese de que um desses núcleos, o NIHA 3 (Núcleo Intersticial do Hipotálamo Anterior 3), seria de tamanho diferente entre homens homossexuais e heterossexuais. Para o pesquisador, esses núcleos cerebrais dos homens homossexuais se assemelhariam ao das mulheres heterossexuais.

Entretanto, isso não significa que seus resultados e conclusões forjaram consensos entre a comunidade científica, inclusive dentro de seu próprio campo disciplinar. Entre as discordâncias, um questionamento relevante foi formulado por Anne Fausto-Sterling (1992), que rejeita a premissa da distinção entre o tamanho do corpo caloso de homens e mulheres; um pressuposto que serviu de referência para as pesquisas sobre o dimorfismo sexual dos desses autores. Em 2007, o artigo intitulado “O polêmico gene gay” reapresenta as pesquisas sobre a origem biológica da homossexualidade partindo da polêmica gerada com a publicação do cartaz acima reproduzido. Ver: Pablo Nogueira. Revista Galileu. Editora Globo. Edição 197 - Dez de 2007. Disponível também em:

http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG80153-7943-197-1,00-O+POLEMICO+GENE+GAY.html consultado em 04/05/2008.

18 Por exemplo, em 1982, alguns neuroanatomistas postularam que os hormônios moldam os cérebros humanos; para eles, o cérebro humano exibe dimorfismo. A equipe britânica composta, entre outros, pela bióloga Christine de Lacoste e pelo antropólogo físico Ralph Holloway publicou um estudo na revista Science (DE LACOSTE, C. e HOLLOWAY, R., 1982). Eles afirmam que, tal como nos ratos, partes do cérebro de homens e mulheres têm formas diferentes. O dimorfismo sexual de De Lacoste e Holloway se localizaria no corpo caloso e diferia de maneira tão acentuada entre os sexos que, assim como o núcleo dos ratos de Roger Gorski poderiam ser identificados como pertencentes a homens ou mulheres macroscopicamente. Dick Swaab (1990), pesquisador holandês, anunciou a descoberta de um núcleo no cérebro humano que seria dimórfico — não em relação ao sexo, mas à orientação sexual. O núcleo supraquiasmático, ou NSQ, inferiu que o núcleo era duas vezes maior nos homens homossexuais do que nos heterossexuais. Laura Allen (1989) descobrira que ambos os núcleos, NIHA 2 e 3, eram sexualmente dimórficos nos seres humanos e significativamente maiores nos homens do que nas mulheres. Uma das hipóteses de trabalho de Allen é que os hormônios podem determinar a orientação sexual das pessoas e, por sua vez, a orientação sexual influenciaria na estrutura do cérebro da pessoa. Para citar alguns pesquisadores que antecederam Le Vay, sugiro as pesquisas de Alfred Jost (1947), Charles Barraclough (1961), Kulbir Gill (1963), Geoffrey Harris (1965), Gunther Dorner (1968 e 1975), Goy e Resko (1972), Roger Gorski (1978), Christine De Lacoste e Ralfy Holloway (1982), Laura Allen (1989) e Dick Swaab (1990). Outras vozes somaram-se à dele no que se relaciona ao espaço e tempo, destacando as pesquisas desenvolvidas por Michael Bailey e Richard Pillard (1991 e 1993) e Dean Hamer e Angela Pattatucci (1993 e 1995). Por se tratar de uma incursão que exigiria extenso levantamento bibliográfico, remeto ao trabalho jornalístico de Chandler Burr (1998) como referência, considerando principalmente o minucioso trabalho de levantamento das pesquisas realizadas e as entrevistas com diversos pesquisadores que participam dos debates. Parte dos resultados dessas pesquisas será retomada ao discutir os argumentos utilizados pelos operadores do judiciário e medicina, seja nas Resoluções do CFM ou nas decisões judiciais.

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núcleos cerebrais. A pesquisadora argumenta que os estudos de De Lacoste e Holloway (1982) sobre a distinção do tamanho do corpo caloso tornou-se famoso devido à repercussão de sua publicação em revistas e jornais conceituados como Science, New York Times e Vanity

Fair, e, ainda, estudos divergentes deste não alcançaram espaço semelhante nos órgãos de divulgação (BURR, 1998, pp. 63-4).19

Willian Byne reitera as suspeitas de Anne Fausto-Sterling sobre a marcante diferença na estrutura cerebral de homens e mulheres da qual o corpo caloso seria um exemplo. Ele se tornou conhecido como crítico das pesquisas biológicas para a homossexualidade e acrescenta outras críticas ao trabalho de Le Vay, principalmente em relação ao grupo de amostragem.20 Nessa esteira, segue Evan Balaban, biólogo da Universidade de Harvard, que discute a técnica empregada por Simon Le Vay. A utilização do corante de Nissl para identificar a diferença estrutural do cérebro foi o foco das críticas e argumentações deste pesquisador, para quem não se pode afirmar a precisão das evidências do Corante de Nissl.21

O reconhecimento do princípio biológico para a homossexualidade é recorrente entre pesquisadores que buscam identificar uma origem para a homossexualidade, e esse argumento é apropriado por pesquisadores na tentativa de encontrar uma causalidade biológica também para a transexualidade. O levantamento realizado por Alexandre Saadeh (2004, p. 53) destacou pesquisadores como Green (2000) e Green e Young (2001), que recortaram a transexualidade como preocupação contemporânea e estabeleceram a relação entre uso preferencial das mãos e assimetria em digitais entre indivíduos transexuais. Esses trabalhos corroboram a hipótese de que as pesquisas sobre a homossexualidade referendam os estudos e os conceitos sobre a transexualidade.

Assim como a certeza da existência dos núcleos cerebrais sexualmente dimórficos e a influência dos hormônios na sua constituição impulsionaram investigações sobre a origem da transexualidade. Conforme demonstra Alexandre Saadeh:

19 Aqui a pesquisadora está se referindo ao trabalho de Franklin Mall, em 1909, que mostrou a importante variação individual da forma e tamanho do corpo caloso dentro de cada sexo, e que passou quase despercebido para a comunidade científica.

20 Para a pesquisa, utilizou tecido cerebral de 41 indivíduos falecidos em sete hospitais de New York e da Califórnia. Entre eles, havia 19 homens homossexuais, todos faleceram em decorrência da Aids (entre estes, seis possuíam histórico de uso de drogas injetáveis), 16 homens supostamente heterossexuais; e seis mulheres supostamente heterossexuais (os autores não explicitam a causa da morte deste grupo).

21 O autor se refere a essas entrevistas detalhadamente no capítulo 3, intitulado O Debate: a prova definitiva que a homossexualidade não é biológica. Considerando o conjunto do livro, percebo que esse capítulo poderia ter sido melhor explorado, a exemplo dos demais, parece que o autor minimiza os argumentos contrários à tese da origem biológica da homossexualidade.

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