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Ao solicitar ingresso no Programa de Transgenitalização, E.S.F. teve seu processo suspenso por 06 meses pela Promotoria antes de qualquer encaminhamento para exames periciais. O motivo explicitado no termo de suspensão se deu em função de que a solicitante referia estar em uso dos psicofármaco “Haldol e Fenergan”, o que fica evidenciado na cópia do prontuário médico anexado ao processo. No Despacho do Promotor, este orientou para que se aguardasse o relatório do psicólogo que a acompanhava e, conforme encaminhamento encontrado, o próprio psicólogo questionava a possibilidade de estar diante de quadro psicótico.151

Considerando que os exames periciais de psicólogos e psiquiatras deveriam

150 W.P.S. foi entrevistada em momento posterior à cirurgia. Processo de W.P.S.- PARECER SOCIAL N.º 01/03 Pró-Vida.

exatamente cumprir a função de identificar a presença de outros transtornos mentais, a conduta adotada faz emergir um debate que parecia não interessar ao Promotor.

A classificação proposta pelo DSM-III e (re)atualizada no DSM IV posiciona o transexualismo nos Transtornos da Identidade de Gênero e revela que a Associação Psiquiátrica Americana (APA) estabelece critérios diagnósticos baseados numa classificação sindrômica, a partir de um elenco de sintomas observáveis que, de nenhum modo, poderiam ser confundidos com uma psicose. A certeza do perito viria da ausência de delírios e fenômenos de automatismo. Nos processos consultados, o Exame Psíquico enfatiza essa preocupação:

Mostra-se bem orientado auto e alopsiquicamente, o discurso é fluido e coerente. Humor básico sintônico. Atenção, memória e juízo crítico da realidade preservados. Não se observam alterações da sensopercepção e interpretação.152

Mostra-se lúcida, coerente e bem orientada. Discurso espontâneo com curso, forma e conteúdo normais do pensamento. Ausência de distúrbios da sensopercepção no momento do exame. Afetividade e humor vital estáveis. Juízo crítico e memória sem alterações.153,154

Não observamos sintomatologia psicótica. Atenção e memória conservadas.155

Estabelece um diálogo fluente, não revelando distúrbios psíquicos de natureza psicótica que comprometam seu discernimento crítico da realidade. O seu discurso é claro e coerente, revelando um pensamento organizado e coeso.156

A reflexão de Marina Teixeira (2003, p. 10) parte da posição supostamente consensual dos médicos psiquiatras de não reconhecerem como loucura a certeza expressa por uma pessoa de ser uma mulher prisioneira num corpo de homem. Ancorada na perspectiva da psicanálise, Marina Teixeira encontrará em Henry Frignet (2002) e Collete Chiland (1997) aliados importantes para suas críticas à cirurgia como único tratamento disponível para o transexualismo e ao limite da psicanálise para atuar conforme discurso médico hegemônico.

Portanto, do ponto de vista da ciência, a eficácia técnica da cirurgia é o fator que justifica que a certeza irremovível de que se é do sexo oposto ao sexo atribuído no nascimento possa não ser vista como um sintoma de psicose nos

152 Processo de V.X.M. Laudo Psiquiátrico nº. 801/2001-SPL p.2. 153 Processo de E.S.M. Laudo Psiquiátrico nº. 022/2003- SPL p.2.

154 O mesmo fragmento é encontrado no Processo de J.C.S. Laudo Psiquiátrico nº. 696/2002- SPL , p. 3. 155 Processo de R.R.F. Laudo Psiquiátrico nº. 469/2001-SPL p.1.

casos de transexualismo masculino. Esse é um ponto essencial para se compreender o tipo de razão que obnubila a percepção de que o fenômeno do transexualismo está a serviço de uma estrutura psicótica. A certeza do transexual masculino não é considerada uma loucura porque a cirurgia plástica de mudança de sexo é eficaz tecnicamente. (TEIXEIRA, 2003, p. 39)

Ao criticar a posição atual da medicina frente à cirurgia, Contardo Calligaris (1989) considera que a transexualidade não seria exclusividade dos sujeitos neuróticos e a demanda de psicóticos pela cirurgia de transgenitalização deveria ser atendida pela equipe, considerando que “a operação de mudança de sexo é justamente um exemplo do que é um delírio logrado” (p. 37). No entanto, essa é uma posição isolada identificada nas leituras.

Embora considere o importante lugar de sedução que envolve a cirurgia de transgenitalização, entendo que as disputas e certezas que estão em jogo no caso da transexualidade não se restringem ao aparato técnico. Campos disciplinares reivindicam poderes de nomear e tratar as pessoas (transexuais). Tratando do percurso editorial das obras cuja temática circundava as questões sexuais no Brasil, os antropólogos Sérgio Carrara e Jane Russo (2002) demonstraram como os saberes da psicanálise e sexologia, no início do século XX, foram integrados ao discurso da medicina de maneira distinta, sendo que a psicanálise encontrara maior prestígio principalmente quando vinculada aos psiquiatras Franco da Rocha e Juliano Moreira.

No entanto, em que se pese a expressão do saber psicanalítico na formação dos psiquiatras brasileiros, no que se refere à questão transexual, percebo um silenciamento específico da psicanálise. Imperando o poder da equipe de saúde mental, o apagamento do sexólogo se dá na própria Resolução do CFM que amplia a equipe mínima para atendimento dos/as (transexuais), omitindo a existência deste profissional, o que sugeriria que suas funções seriam análogas às do psiquiatra. A análise dos processos mostra que permanece inalterada a posição de que é a psiquiatria deve se pronunciar no caso da transexualidade.

A discussão sobre a manutenção ou supressão do diagnóstico envolve o conceito de autonomia e será ponto importante ao dilema enfrentado pelo Coletivo Nacional de Transexuais no âmbito do Ministério da Saúde. Neste momento, destaco o questionamento provocado por Judith Butler (2006a) sobre a legitimidade da saúde mental para se posicionar no caso da transexualidade e, consequentemente, a pertinência de que conste entre as categorias do DSM IV. Entendo que a autora está discutindo o estatuto da compreensão que se faz da transexualidade, quando permanece entre o dilema de reivindicar maior autonomia

para dizer de si mesmo e negociar a relação entre o consumidor de um serviço ou uma tecnologia médica e, ainda, ser autorizado a usufruir deste serviço.

Outro elemento que integra os laudos, recebendo um lugar de destaque, é o interesse sexual pelo sexo considerado oposto. No processo de E.P.C., os peritos não a reconheceram como transexual, dizendo de suas características de homossexualidade:

Mostrou-se adequado ao exame, falando de suas dificuldades sexuais sem inibições e não observamos trejeitos femininos. Muito pelo contrário, pode- se perceber que procura disfarçar, ou não deixar que percebam que poderá ser um homossexual.157

Seguindo essa perspectiva, a homossexualidade seria um diagnóstico a ser identificado e excluiria o diagnóstico de transexualidade, pois estes supostos “transtornos mentais” não configuram como co-morbidade. A homossexualidade integra o protocolo invisível como requisito para eliminação da/o candidata/o. Observando as exigências do CFM no estabelecimento de critérios para diagnosticar a transexualidade, um deles seria a “ausência de outros transtornos mentais”.158 Penso que, embora oficialmente o homossexualismo não

conste no Código Internacional de Doenças, na sua décima versão, (CID 10) como doença, ainda pode ser interpretada como tal, o que surge explicitamente no fragmento abaixo:

O transtorno mencionado está citado no CID302.0 na 9ª edição deste livro e está enquadrado na 10ª edição, no CID F65.9 (Transtorno da preferência sexual, não especificado), bem como no CID F66.9 (Transtorno do desenvolvimento psicossexual, não especificado, com indicação nesse livro de que pode ser ainda utilizado um quinto caractere: X1 (homossexualidade).159

Ou a percepção da homossexualidade como transtorno aparece subliminarmente, como denuncia Judith Butler, “(…) el diagnóstico de GID es, en la mayoría de los casos, un diagnóstico de homosexualidad, y el trastorno que conlleva tal diagnóstico implica que la homosexualidad permanece también un trastorno”. (2006a, p. 118).

Demarcar uma identidade (transexual) seria reconhecer a legitimidade conferida através da matriz heterossexual – expressão utilizada para designar o filtro de inteligibilidade

157 Discussão desenvolvida no Laudo Psiquiátrico nº. 802/2001 de E.P.C..

158 www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.

159 Este fragmento consta no processo de S.C.G., sendo parte de uma discussão dos peritos do Institutos Médico Legal sobre a pertinência de se considerar a homossexualidade como uma patologia.

cultural mediante o qual vem materializado corpos, gênero e desejos - como revelariam os fragmentos dos processos em que as falas das/os entrevistadas/os sugeriam o que poderia, num primeiro momento, ser interpretado apenas como a existência de uma suposta postura homofóbica, encoberta ou explicitamente colocada como: “odeio homossexuais”160, “não gostaria que me confundissem com um homossexual”161, e outros. Um fragmento de entrevista que, ao ser enfatizado pelos peritos em meio a tantos outros que supostamente comporiam uma entrevista, retorna com a força de proscrição: “Nunca teve qualquer tipo de atração por mulheres. Considera que este tipo de vínculo será lesbianismo, o que não aprova. Considera o homossexualismo um comportamento anti-social e anti-natural”.162

Outras pesquisadoras também identificaram o incômodo que a homossexualidade parecia se constituir para as pessoas (transexuais). Ao relatar trechos de entrevistas das pessoas (transexuais) que acompanhou, Valéria Elias (2007, p. 217) também nos oferece elementos para perceber como é recorrente a recusa da homossexualidade.

Ao refletir sobre a dimensão cultural da experiência humana no processo de subjetivação e assujeitamento do sujeito, que será uma discussão enfrentada nos próximos capítulos deste trabalho, Judith Butler (2005) questiona a naturalidade da matriz heterossexual na estrutura que compõe o Complexo de Édipo, considerando que não somente está em jogo a proibição do incesto, mas também, e de maneira importante, a interdição da homossexualidade. Para a análise proposta aqui, o desenrolar de seu argumento é bastante elucidativo:

La paura del desiderio omosessuale in una donna, quindi, può indurre uno stato di panico al pensiero che stia perdendo la sua femminilità, che non sia una donna, che non sia più una vera donna, che se non è neanche un uomo, comunque vi assomiglia, e quindi è in qualche modo monstruosa. Oppure in un uomo, il terrore del desiderio omosessuale può portare al terrore di essere giudicato femminile, femminilizzato, non essendo più propriamente un uomo, ma un uomo “fallito” (...) (2005, p. 128)

Embora não seja polêmica a afirmação de que as experiências da sexualidade e do gênero não se reduzem à heterossexualidade, no contexto dos processos analisados, em que o questionamento da posição de gênero dos homens e mulheres (transexuais) é uma constância, percebo que o discurso hiperbólico da relação entre gênero e sexualidade fixada pela norma

160 Processo de Bruna. 161 Processo de J.C.S..

heterossexual pode ser também compreendido dentro da necessidade de convencimento do outro. E também, na própria subjetivação do sujeito, considerando que a matriz confere inteligibilidade não somente nos textos freudianos, mas atravessa a vida cotidiana.

O desvelar da homossexualidade poderia associar-se, “perigosamente” para os/as inscritos/as, ao exercício da sexualidade; sendo que a interdição ao sexo também integra o protocolo invisível dos processos. Relatos das/os inscritas/os contendo informações sobre um histórico sexual sem masturbação e, principalmente, para as (transexuais) femininas, as informações sobre as relações sexuais passivas são destacadas, valorizadas e reproduzidas pelos peritos.

Afirma que não teve relações sexuais, mas sim, contatos sexuais. Acredita que relações, só terá após a cirurgia. (...) Não sabe dizer se no momento da relação sexual tem ereção. Acredita que isso aconteça, mas que na maioria das vezes seu psíquico bloqueia essa função masculina. Nunca permitiu ser tocado no seu órgão sexual. No entanto, já usou seu órgão genital para masturbação.163

A vigilância percorre caminhos tão íntimos que num dos processos o profissional considera por bem relatar sobre as preferências sexuais de uma de suas examinandas durante o ato sexual.

(...) ao relatar algumas de suas experiências sexuais, demonstra que o que lhe proporciona mais prazer e gozo é a penetração, isto é, o fato de ser penetrado analmente. O que parece desprazeroso e até mesmo insuportável para o paciente é ser confundido com um homossexual, além disso, que o parceiro sexual toque em seus genitais ou sequer demonstre alguma forma de interesse neles.164

A compreensão de que as pessoas (transexuais) rejeitam a genitália externa é também compartilhada na literatura médica e recebe recorrentes destaques nos diferentes laudos periciais. “(...) Explicou que seu órgão sexual era como um câncer. Que não era parte dela. Que não conseguia olhá-lo. Até mesmo tomar banho era difícil. Chegou a querer cortá-lo”.165

Mesmos alguns pesquisadores da área de ciências humanas adotam e naturalizam a interdição ao pênis como constituinte de marco identitário das mulheres (transexuais), como fragmento do texto de José Carlos Araújo (2006, p. 30):

163 Parecer Social 007/02 processo de L.P.P.N.. 164 Parecer Psicológico que integra o Laudo de S.C.G.. 165 Parecer Social 01/03 integra o processo de L.L..

O tipo de relação sexual acima citado seria impossível para uma transexual, que não tem ereção alguma, evitando mesmo olhar para o próprio órgão. Aqui entraria a visão médico-psiquiátrica entre, de um lado, o travesti que afirma sua masculinidade e salvaguarda seu pênis, e de outro o transexual que não o suporta, sofrendo acessos de melancolia profunda com seu erro de pessoa, um desvio de identidade.

Diferentemente, Valéria Elias, a partir de uma leitura psicanalítica, apresenta outra interpretação para a recusa das mulheres (transexuais) de seu corpo:

A não aceitação do corpo que observamos nas transexuais seria, portanto, uma supressão do acesso a uma determinada representação, com as demais representações que constituem seu eu, em relação ao corpo anatômico. Separando o ser de seu corpo, persistiria um saber sobre seu corpo e sua identidade, sobre os quais ele não sabe nada. O poder de nomear o corpo estruturaria sua percepção, uma vez que esta só pode manter-se dentro do simbólico. O que difere então o corpo de uma carne é a pulsão, sempre parcial, resultante dos investimentos libidinais e da incorporação da linguagem, sem a qual ele coisifica. (2007, p. 141)

No entanto, em que se pese o cuidado de interpretar diferentemente a não aceitação, a interdição que antecede o ingresso das mulheres (transexuais) no programa parece se constituir numa norma difícil de romper:

Rotineiramente, na triagem inicial, a equipe analisava a demanda de transexualização e, em seguida, iniciava-se o acompanhamento durante o mínimo de dois anos, prosseguindo após a realização da cirurgia. Os critérios para a contra-indicação eram: diagnóstico de algum distúrbio psiquiátrico, principalmente esquizofrenia; alcoolismo, toxicomanias, em que o grau de dependência revelava descontrole emocional ou pacientes que usavam o pênis nas relações sexuais. Ou seja, riscos em que a ausência de capacidade de decidir por si mesmas ou um investimento erótico no órgão, fizesse com que a cirurgia pudesse ser um equívoco de quem a solicitou e de quem a indicou. (ELIAS, 2007, p. 44) (grifos meus).

Uma parte do corpo que não deve ser sequer usada, muito menos nomeada. Esta é uma prática recorrente também identificada por Berenice Bento que encontrou nas expressões “aquela coisa”, “aquilo”, “um pedaço de carne”, “uma coisa” uma forma de nomear “esse pedaço de carne que tenho entre as pernas”. Para a autora, proferir a palavra “pênis” se equivaleria a tornar-se homem e conclui que “(...) Mais do que dar vida através de um ato lingüístico, a palavra “pênis” contagia suas identidades” (2003, p. 193). É esta a pista que escolhi seguir: o nojo apresentado nas entrevistas como um sentimento testemunhal da incoerência entre o sexo biológico e o sexo psíquico poderia ser lido como o medo que essas

pessoas possuem de que o pênis possa macular o pertencimento ao feminino. Nesse sentido, observar a reflexão de Mary Douglas (1966) sobre o caráter de desordem implícito no conceito de poluição/impureza contribui para pensar sobre o risco da ambigüidade que representa uma mulher com pênis e, principalmente, a ejaculação de seu sêmen. Seria exageradamente desorganizador das normas classificatórias de sexo e gênero. As pessoas (transexuais) compartilham do investimento coletivo para condenar qualquer objeto ou qualquer idéia susceptível de lançar confusão ou de contradizer as (quase) inquestionáveis classificações.

O processo de S.C.G. ilustra como a relação estabelecida entre os operadores do direito e da medicina pode se tornar tensa numa disputa de poder-saber. O encaminhamento desta inscrita poderia transcorrer como os demais e ter se resumido, tanto para a Promotoria como para o IML, em mais um procedimento de rotina. Em conformidade com os procedimentos anteriores, S.C.G. foi encaminhada ao IML para exame físico.166 O laudo elaborado pelos peritos trazia na discussão a afirmativa de que se tratava de um caso de travestismo.167

O referido laudo deflagrou uma discussão entre os Peritos do IML e o Promotor de Justiça, o que motivou a solicitação de que os Peritos refizessem o Laudo Técnico.168 A solicitação do Promotor de Justiça foi dirigida para a perita médica legista que assinou o Laudo. Posteriormente, o então diretor do IML anexou a resposta com a negativa da perita alegando que o procedimento do Promotor afeta a autonomia da perícia-técnica.169

Diante dessa recusa, o Promotor de Justiça encaminhou novo Ofício com novos quesitos para que os peritos respondessem, por se tratarem de perguntas teóricas, dispensava a presença de S.C.G., estabelecendo um prazo de 10 dias para a devolutiva.170 Reproduzo os

quesitos colocados pelo Promotor por se relacionarem diretamente com a preocupação em identificar o “transexual verdadeiro”:

1º Qual a base médico-científica usada pelos senhores legistas para classificarem o homossexualismo como patologia?

2º Qual o CID do homossexualismo?

166 Ofício nº. 084 MPDFT/PRÓ-VIDA de 06 de fevereiro de 2001.

167 Ofício nº. 488/2001 PROT de 23 de fevereiro de 2001 constando o Laudo nº. 017/2001. 168 Ofício nº. 149 MPDFT/PRÓ-VIDA de 05 de março de 2001.

169 Ofício nº. 033/01 DIR IMLLR.

3º Se o “travestismo é definido como uma incompatibilidade entre o sexo psicológico e o sexo morfológico, genético, civil e endócrino”, como afirmaram os senhores legistas, que também concluíram que “estavam diante de um caso de travestismo”, indaga-se: Os senhores legistas concluíram que o periciando tem uma incompatibilidade entre o sexo psicológico e o sexo morfológico?

4º O diagnóstico de travestismo é um diagnóstico estritamente médico? 5º Mesmo sem questionar a legalidade da cirurgia nos casos de travestismo, os senhores legistas fazem comentários sobre ela. Diante disso indaga-se: o travestismo é passível de correção cirúrgica?

6º Qual é a base médico-científica usada pelos senhores legistas para afirmarem que não há hermafroditismo verdadeiro – presença das gônadas dos dois sexos – em seres humanos?171

Na resposta aos quesitos, a perita mantém e sustenta através de citações bibliográficas a sua perspectiva de entendimento do homossexualismo como patologia, conforme demonstra o excerto abaixo:

Neste mesmo capítulo da literatura médico-legal estão incluídos outros desvios ou transtornos da sexualidade tais como a zoofilia ou o bestialismo, o vampirismo e a necrofilia, que, sem sombra de dúvida e a despeito de várias discussões fundamentadas em conceitos religiosos, sociais e sem cometer nenhum delito ético ou discriminação, são consideradas patologias, assim como o homossexualismo o é.172 (grifo original).

Para especificar a CID do homossexualismo, utiliza o código 302.0 da 9ª edição da CID. No entanto, a 10ª edição da CID já estava em vigor, o que então exigiu que a citasse:

(...) está enquadrado na 10ª edição, no CID F65.9 (Transtorno de preferência sexual, não especificado) bem como no CID F66.9 (Transtorno do desenvolvimento psicossexual, não especificado, com indicação neste livro de que pode ser ainda utilizado um quinto caractere: .X1 (homossexualidade). 173

Destaco a convicção da perita no caráter patológico da homossexualidade, mesmo e apesar da determinação grafada na própria CID, de que a orientação sexual não seja tomada como transtorno em sua forma isolada. Esse dado é relevante porque aqui a concepção de homossexualidade como uma doença surge de forma explícita, sendo que a interpretação em

171 Ofício n.º 206/01 MPDFT/PRO-VIDA de 03 de abril de 2001.

172 Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 23 de abril de 2001. p 01.

173 Ofício nº. 1389/2001- PROT de 26 de abril de 2001 - Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 23 de abril de 2001. p 01.

outros momentos se dará ambiguamente e a homossexualidade será identificada como critério de exclusão de transtornos mentais (outros).

No conjunto desse laudo, as palavras travestismo e transexualismo são utilizadas como sinônimos pelos peritos. A fragilidade das fronteiras identitárias será ponto de análise no quarto capítulo, no entanto, não é disso que se trata aqui. O que está em questão é o conhecimento que circula sobre as sexualidades num campo que reivindica o direito de diagnosticar e tratar a transexualidade. Essa situação foi corrigida, em 11 de maio de 2001, através de nova complementação de laudo. A perita solicita que a complementação anterior seja desconsiderada e reconhece o “equívoco”174, estabelecendo a distinção clássica entre travestismo e transexualismo que é recorrente na literatura médica.

A descrição do termo travestismo estabelecida na CID -10 forja um consenso identificado na maioria dos discursos sobre as travestis:

F64.1 Travestismo bivalente

Este termo designa o fato de usar vestimentas do sexo oposto durante uma