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Amuleto - Roberto Bolano.pdf

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Academic year: 2021

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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Para Mario Santiago Papasquiaro (México, DF 1953-1998)

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Queríamos, pobres de nós, pedir auxílio; mas não havia ninguém para vir nos acudir.

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Esta será um a história de terror. Será um a história policial, um a narrativa de série negra e de terror. Mas não parecerá. Não parecerá porque sou eu que conto. Sou eu que falo e por isso não parecerá. Mas no fundo é a história de um crim e atroz. Sou a am iga de todos os m exicanos. Poderia dizer: sou a m ãe da poesia m exicana, m as acho m elhor não dizer. Conheço todos os poetas e todos os poetas m e conhecem . De m odo que poderia dizê-lo. Poderia dizer: sou a m ãe e sopra um zéfiro da porra faz séculos, m as acho m elhor não dizer. Poderia dizer, por exem plo: conheci Arturito Belano quando ele tinha dezessete anos, era um garoto tím ido que escrevia obras de teatro e poesia e não sabia beber, m as seria de certo m odo um a redundância e m e ensinaram (com um chicote m e ensinaram , com um a vara de ferro) que as redundâncias são supérfluas e que o argum ento sozinho deve bastar.

O que, sim , posso dizer é m eu nom e.

Eu m e cham o Auxilio Lacouture e sou uruguaia, de Montevidéu, m as quando os vapores m e sobem à cabeça, os vapores da saudade, digo que sou

charrúa, o que vem a ser a m esm a coisa, apesar de não ser, e o que confunde os

m exicanos, e portanto os latino-am ericanos.

Mas o que im porta é que um dia cheguei à Cidade do México sem saber m uito bem por quê, nem para quê, nem com o, nem quando.

Cheguei à Cidade do México, Distrito Federal, em 1967, ou talvez em 1965 ou 1962. Não m e lem bro m ais das datas nem das peregrinações, só sei que cheguei à Cidade do México e não saí m ais daqui. Estiquem os o tem po com o a pele de um a m ulher desacordada na sala de operações de um cirurgião plástico. Vej am os. Cheguei ao México quando León Felipe ainda estava vivo, que colosso, que força da natureza, e León Felipe m orreu em 1968. Cheguei ao México quando Pedro Garfias ainda vivia, que grande hom em , com o era m elancólico, e dom Pedro m orreu em 1967, ou sej a, tenho de ter chegado antes de 1967. Digam os pois que cheguei ao México em 1965.

Definitivam ente, creio que cheguei em 1965 (m as pode ser que m e engane, a gente quase sem pre se engana) e frequentei esses espanhóis universais, diariam ente, hora após hora, com a paixão de um a poetisa e a devoção irrestrita de um a enferm eira inglesa, de um a irm ã m ais m oça que se desvela por seus irm ãos m ais velhos, errantes com o eu, se bem que a natureza do seu êxodo fosse bem diferente da m inha, ninguém tinha m e m andado em bora de Montevidéu, sim plesm ente um dia decidi partir e fui para Buenos Aires, e de Buenos Aires, passados uns m eses, talvez um ano, decidi continuar viaj ando porque j á então eu sabia que m eu destino era o México, sabia que León Felipe vivia no México e não estava m uito segura se dom Pedro Garfias tam bém vivia aqui, m as creio que no

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fundo deduzia que sim . Talvez tenha sido a loucura que m e im peliu a viaj ar. Pode ser que tenha sido a loucura. Eu dizia que tinha sido a cultura. Claro que a cultura às vezes é a loucura, ou com preende a loucura. Talvez tenha sido o desam or que m e im peliu a viaj ar. Talvez tenha sido um am or excessivo e transbordante. Talvez tenha sido a loucura.

A única coisa certa é que cheguei ao México em 1965, m e plantei na casa de León Felipe e na casa de Pedro Garfias e disse a eles aqui estou para o que quiserem que eu faça. Devem ter m e achado sim pática, porque antipática não sou, em bora às vezes sej a chata, m as antipática nunca. A prim eira coisa que fiz foi passar a m ão num a vassoura e varrer o chão da casa deles, depois lim par as j anelas, e sem pre que podia pedia dinheiro e fazia as com pras para eles. Eles m e diziam com esse tom espanhol tão peculiar, aquela m usiquinha ríspida que não os abandonou nunca, com o se rodeassem os zês e os cês e com o se deixassem os

esses m ais órfãos e libidinosos do que nunca, Auxilio, m e diziam , pare de zanzar

pela sala, deixe esses papéis em paz, m ulher, que a poeira sem pre se entendeu com a literatura. Eu ficava olhando para eles e pensava têm toda razão, a poeira sem pre, e a literatura sem pre, e com o eu então era um a buscadora de m atizes im aginava situações portentosas e tristes, im aginava os livros im óveis nas estantes e im aginava a poeira do m undo que ia entrando nas bibliotecas lentam ente, perseverantem ente, incontível, e então com preendia que os livros eram presa fácil da poeira (com preendia m as m e negava a aceitar), via turbilhões de poeira, nuvens de poeira que se m aterializavam num pam pa que existia no fundo da m inha m em ória, e as nuvens avançavam até chegar ao DF, as nuvens do m eu pam pa particular que era o pam pa de todos, em bora m uitos se negassem a vê-lo, e então tudo ficava coberto pela poeirada, os livros que eu havia lido e os livros que pensava ler, e aí j á não havia nada que fazer, por m ais que usasse a vassoura e o pano de pó a poeira nunca iria em bora, porque essa poeira era parte consubstancial dos livros, e ali, à sua m aneira, eles viviam ou rem endavam algo parecido com a vida.

Era isso que eu via. Era isso que eu via no m eio de um calafrio que só eu sentia. Depois abria os olhos e aparecia o céu da Cidade do México. Estou no México, pensava, quando a cauda do calafrio ainda não havia ido em bora. Estou aqui, pensava. Então m e esquecia ipso facto da poeira. Via o céu através de um a j anela. Via as paredes por onde a luz do DF deslizava. Via os poetas espanhóis e seus livros reluzentes. E eu dizia a eles: dom Pedro, León (reparem que curioso, eu cham ava o m ais velho e venerável de você; j á o m ais m oço com o que m e intim idava e eu não conseguia deixar de tratá-lo de senhor!), deixem eu cuidar disso, cuidem dos seus afazeres, continuem escrevendo sossegados e façam de conta que sou a m ulher invisível. E eles riam . Ou m elhor, León Felipe ria, m as você não sabia bem , para ser sincera, se ele estava rindo, pigarreando ou blasfem ando, esse hom em era com o um vulcão, j á dom Pedro Garfias olhava

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para você e depois desviava o olhar (um olhar tão triste) e o pousava, não sei, digam os num vaso de flores ou num a estante cheia de livros (um olhar tão m elancólico), e eu então pensava: o que terá esse vaso ou as lom badas dos livros em que sua vista se detém para acum ular tanta tristeza. Às vezes eu m e punha a refletir, quando ele j á não estava no côm odo ou quando não m e olhava, eu m e punha a refletir e até m e punha a olhar para o vaso em questão ou para os livros antes assinalados e chegava à conclusão (conclusão que por outro lado não dem orava a descartar) de que ali, naqueles obj etos aparentem ente tão inofensivos, se ocultava o inferno ou um a das suas portas secretas.

Às vezes dom Pedro m e surpreendia olhando para seu vaso de flores ou para as lom badas dos seus livros e m e perguntava: para o que está olhando, Auxilio, e eu então fazia hein?, o quê?, e bancava a tonta ou a sonhadora, m as outras vezes lhe perguntava coisas com o que à m argem da pergunta, m as coisas bem pensadas, pois se m ostravam relevantes: dizia a ele, dom Pedro, desde quando o senhor tem este vaso?, alguém lhe deu de presente?, tem algum valor especial para o senhor? E ele ficava olhando para m im sem saber o que responder. Ou dizia: é só um vaso. Ou: não tem nenhum significado especial. E então por que razão olha para ele com o se nele se ocultasse um a das portas do inferno?, eu devia ter replicado. Mas não replicava. Só dizia: a-há, a-há, que era um a expressão que eu tinha pegado de não sei quem naqueles m eses, os prim eiros que passei no México. Mas m inha cabeça continuava funcionando por m ais ahás que m eus lábios articulassem . Um a vez, disso eu m e lem bro e m e faz rir, quando eu estava sozinha no escritório de Pedrito Garfias, fiquei olhando para o vaso que ele olhava com tanta tristeza e pensei: talvez olhe assim para ele porque não tem flores, quase nunca tem flores, e m e aproxim ei do vaso, observei-o de diversos ângulos e então (estava cada vez m ais próxim a, em bora m inha m aneira de m e aproxim ar, m inha m aneira de m e m over em direção ao obj eto observado era com o se traçasse um a espiral) pensei: vou enfiar a m ão pela boca negra do vaso. Foi o que pensei. E vi com o m inha m ão se descolava do m eu corpo, se erguia, pairava sobre a boca negra do vaso, se aproxim ava das bordas esm altadas, e bem então um a vozinha dentro de m im falou: che, Auxilio, o que está fazendo, sua louca, e foi isso que m e salvou, creio, porque m eu braço se deteve no ato e m inha m ão ficou caída, num a posição com o que de bailarina m orta, a poucos centím etros daquela boca do inferno, e a partir desse m om ento não sei o que foi que aconteceu com igo, m as, isso sim , sei o que não aconteceu e podia ter acontecido.

A gente corre perigos. Essa é a pura verdade. A gente corre riscos e é um j oguete do destino até nos lugares m ais inverossím eis.

Na vez do vaso eu desatei a chorar. Melhor dizendo: as lágrim as pularam sem que eu m e desse conta e eu tive de m e sentar num a poltrona, na única poltrona que dom Pedro tinha naquele côm odo, porque se não m e sentasse teria

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desm aiado. Pelo m enos, posso assegurar que em determ inado m om ento m inha vista se anuviou e m inhas pernas bam bearam . Quando j á estava sentada, fui acom etida por uns trem ores m uito fortes, parecia que ia ter um ataque. E o pior era que m inha única preocupação naquele m om ento consistia em que Pedrito Garfias não entrasse e m e visse naquele estado tão lam entável. Ao m esm o tem po não parava de pensar no vaso de flores, para o qual evitava olhar apesar de saber (pois não sou boba rem atada) que estava ali, no aposento, de pé num a prateleira onde havia tam bém um sapo de prata, um sapo cuj a pele parecia ter absorvido toda a loucura da lua m exicana. Depois, ainda trêm ula, m e levantei e tornei a m e aproxim ar, creio que com a sadia intenção de pegar o vaso e espatifá-lo no chão, nos ladrilhos verdes do chão, e dessa vez não m e aproxim ei em espiral do obj eto do m eu terror m as em linha reta, um a linha reta hesitante, sim , m as reta no fim das contas. E, quando fiquei a m eio m etro do vaso, parei outra vez e disse a m im m esm a: se não o inferno, ali há pesadelos, ali há tudo o que a gente perdeu, tudo o que causa dor e o que é m elhor esquecer.

Então pensei: Pedrito Garfias saberá o que se esconde dentro do seu vaso de flores? Sabem os poetas o que se entoca na boca sem fundo dos seus vasos? E, se sabem , por que não os despedaçam , por que não assum em eles próprios essa responsabilidade?

Naquele dia não fui capaz de pensar em outra coisa. Saí m ais cedo que de costum e e fui passear no bosque de Chapultepec. Um lugar bonito e sedativo. No entanto, por m ais que andasse e adm irasse o que via, não podia parar de pensar no vaso de flores, no escritório de Pedrito Garfias, em seus livros, em seu olhar tão triste que às vezes pousava nas coisas m ais inofensivas e outras vezes nas coisas m ais perigosas. E assim , enquanto diante dos m eus olhos via os m uros do Palácio de Maxim iliano e Carlota, ou via as árvores do bosque m ultiplicadas na superfície do lago de Chapultepec, na m inha im aginação só via um poeta espanhol que olhava para um vaso de flores com um a tristeza que parecia abarcar tudo. E isso m e dava raiva. Melhor dizendo: no início m e dava raiva. Eu perguntava a m im m esm a por que razão ele não fazia nada a esse respeito. Por que o poeta ficava olhando para o vaso em vez de dar dois passos (dois ou três passos que seriam tão elegantes com sua calça de linho cru), agarrar o vaso com am bas as m ãos e espatifá-lo no chão. Mas a raiva logo passava e eu ficava refletindo enquanto a brisa do bosque de Chapultepec (do pitoresco Chapultepec, com o escreveu Manuel Gutiérrez Náj era) acariciava a ponta do m eu nariz até que eu m e dava conta de que provavelm ente Pedrito Garfias j á havia quebrado m uitos vasos de flores, m uitos obj etos m isteriosos ao longo da vida, inúm eros vasos!, e em dois continentes!, de m odo que quem era eu para censurá-lo, ainda que apenas m entalm ente, pela passividade que m ostrava diante do que tinha no seu escritório.

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E j á posta nessa tessitura, chegava até a procurar m ais de um a razão que j ustificasse a perm anência do vaso, e efetivam ente m e ocorria m ais de um a, m as para que enum erá-las, que inutilidade enum erá-las. A única coisa certa era que o vaso de flores estava ali, em bora tam bém pudesse estar num a j anela aberta de Montevidéu ou em cim a da escrivaninha do m eu pai, que m orreu faz tanto tem po que quase j á o esqueci, na antiga casa do m eu pai, o doutor Lacouture, um a casa e um a escrivaninha em cim a das quais caem agora m esm o os pilares do esquecim ento.

De m odo que a única coisa certa é que eu frequentava a casa de León Felipe e a casa de Pedro Garfias e os aj udava no que podia, desem poeirando os livros e varrendo o chão, por exem plo, e que quando eles protestavam eu lhes dizia m e deixem em paz, escrevam e m e deixem cuidar da intendência, e que então León Felipe ria e dom Pedro não ria, Pedrito Garfias, com o era m elancólico, ele não ria, ele olhava para m im com seus olhos de lago ao entardecer, esses lagos que ficam no m eio da m ontanha e que ninguém visita, esses lagos tristíssim os e aprazíveis, tão aprazíveis que não parecem deste m undo, e dizia não se incom ode, Auxilio, ou obrigado, Auxilio, e não dizia m ais nada. Que hom em m ais divino. Que hom em m ais íntegro. Ficava de pé, im óvel, e m e agradecia. Isso era tudo e era o bastante para m im . Porque eu m e conform o com pouco. Isso salta à vista. León Felipe m e achava bonita, dizia você é um a m oça inestim ável, Auxilio, e procurava m e aj udar com uns tantos pesos, m as geralm ente quando ele m e oferecia dinheiro eu fazia um a grita de estrem ecer o céu (literalm ente), faço isso por gosto, León Felipe, eu lhe dizia, faço isso flechada pela adm iração. León Felipe ficava um instante pensando em m eu adj etivo e eu punha de volta na m esa o dinheiro que ele tinha m e dado e continuava m eu trabalho. Eu cantava. Quando trabalhava eu cantava e não m e im portava se o trabalho era pago ou gratuito. De fato, acho que preferia que o trabalho fosse gratuito (contudo, não vou ser hipócrita a ponto de dizer que não ficava feliz quando m e pagavam ). Mas no caso deles eu preferia que fosse gratuito. No caso deles, eu teria pago do m eu próprio bolso para m e m over entre seus livros e entre seus papéis com total liberdade. O que eu costum ava receber (e aceitar) eram presentes. León Felipe m e dava estatuetas m exicanas de barro que não sei de onde tirava, porque não é que em sua casa tivesse m uitas. Acho que as com prava especialm ente para m im . Que tristeza de figurinhas. Eram tão bonitas. Pequenininhas e bonitas. Nelas não se escondia a porta do inferno nem do céu, eram apenas figurinhas que os índios faziam e vendiam para os interm ediários que iam a Oaxaca com prá-las, revendendo-as, m uito m ais caras, nos m ercados ou em bancas nas ruas do DF. Dom Pedro Garfias, por sua vez, m e dava de presente livros, livros de filosofia. Agora m esm o m e lem bro de um de José Gaos, que tentei ler m as não gostei. José Gaos tam bém era espanhol e tam bém m orreu no México. Pobre José Gaos, eu deveria ter m e esforçado m ais.

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Quando Gaos m orreu? Acho que em 1968, com o León Felipe, ou não, em 1969, é até possível então que tenha m orrido de tristeza. Pedrito Garfias m orreu em 1967, em Monterrey. León Felipe m orreu em 1968. Fui perdendo as figurinhas que León Felipe m e deu um a depois da outra. Agora devem estar em estantes de casas sólidas ou de águas-furtadas da colônia Nápoles, da colônia Rom a ou da colônia Hipódrom o-Condesa. As que não se quebraram . As que se quebraram devem fazer parte da poeira do DF. Os livros de Pedro Garfias eu tam bém perdi. Os de filosofia prim eiro, e os de poesia, fatalm ente, tam bém .

Às vezes dou de pensar que tanto m eus livros com o m inhas figurinhas de algum a m aneira m e acom panham . Mas com o podem m e acom panhar?, eu m e pergunto. Pairam ao m eu redor? Pairam sobre m inha cabeça? Os livros e as estatuetas que fui perdendo terão se transform ado no ar do DF? Terão se transform ado na cinza que percorre esta cidade de norte a sul e de leste a oeste? Pode ser. A noite escura da alm a avança pelas ruas do DF, varrendo-o todo. Já m al se escutam canções, aqui, onde antes tudo era um a canção. A nuvem de poeira pulveriza tudo. Prim eiro os poetas, depois os am ores e depois, quando parece que está saciada e que se perde, a nuvem volta e se instala no ponto m ais alto da sua cidade ou da sua m ente e diz a você com gestos m isteriosos que não pensa sair dali.

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Com o ia dizendo, eu frequentava León Felipe e Pedro Garfias sem deslealdades nem pausas, sem aborrecê-los m ostrando m eus poem as nem contando m eus problem as, e sim procurando ser útil, m as tam bém fazia outras coisas.

Eu tinha m inha vida privada. Tinha outra vida além de buscar o calor dessas sum idades das letras castelhanas. Tinha outras necessidades. Fazia trabalhos. Procurava fazer trabalhos. Eu m e m ovim entava e m e desesperava. Porque viver no DF é fácil, com o todo o m undo sabe, ou crê, ou im agina, m as só é fácil se você tem algum dinheiro, um a bolsa, um a fam ília ou pelo m enos um a raquítica ocupação ocasional, e eu não tinha nada, a longa viagem até chegar à região m ais transparente m e havia esvaziado de m uitas coisas, entre elas da energia necessária para trabalhar em certas coisas. De m odo que o que eu fazia era circular pela Universidade, m ais concretam ente pela Faculdade de Filosofia e Letras, fazendo trabalhos voluntários, poderíam os dizer, um dia aj udava a datilografar as aulas do professor García Liscano, outro dia traduzia textos do francês no Departam ento de Francês, onde havia m uito poucos que dom inavam de verdade a língua de Molière, e não é que eu queira dizer que m eu francês é ótim o, m as que em com paração com o que os do departam ento m anej avam era m uito bom , outro dia grudava com o um m arisco num grupo de teatro e passava oito horas, sem exagero, assistindo aos ensaios que se repetiam até a eternidade, indo buscar sanduíches, experim entando m anej ar os proj etores, recitando as falas de todos os atores com um a voz quase inaudível que só eu ouvia e que só a m im fazia feliz.

Às vezes, não m uitas, conseguia um trabalho rem unerado, um professor m e pagava do seu bolso para lhe servir, digam os, de aj udante, ou os chefes de departam ento conseguiam que eles ou a faculdade m e contratassem por quinze dias, por um m ês, às vezes por um m ês e m eio em cargos vaporosos e am bíguos, a m aioria das vezes inexistentes, ou as secretárias, que m oças m ais sim páticas, todas eram m inhas am igas, todas m e contavam seus casos am orosos e suas esperanças, davam um j eito para que seus chefes m e passassem uns bicos que m e perm itiam ganhar uns pesos. Isso durante o dia. De noite, levava um a vida boêm ia, com os poetas da Cidade do México, o que era altam ente gratificante para m im e até conveniente, pois na época o dinheiro escasseava e às vezes eu não tinha nem para pagar a pensão. Mas via de regra eu tinha. Não quero exagerar. Tinha dinheiro para viver e os poetas da Cidade do México m e em prestavam livros de literatura m exicana, de início suas próprias coletâneas, os poetas são assim , depois os im prescindíveis e os clássicos, e desse m odo m eus gastos se reduziam ao m ínim o.

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Às vezes passava um a sem ana inteira sem gastar um peso. Eu era feliz. Os poetas m exicanos eram generosos e eu era feliz. Naqueles tem pos com ecei a conhecer todos eles, e eles a m e conhecer. Éram os inseparáveis. De dia, vivia na faculdade, com o um a form iguinha ou, m ais propriam ente, com o um a cigarra, de um lado para o outro, de um cubículo a outro cubículo, a par de todas as fofocas, de todas as infidelidades e divórcios, a par de todas as tragédias. Com o a do professor Miguel López Azcárate, sua m ulher o largou e Miguelito López não pôde aguentar a dor, eu estava a par, as secretárias m e contavam , um a vez parei num corredor da faculdade e m e j untei a um grupo que discutia não sei que aspectos da poesia de Ovídio, acho que estava lá o poeta Bonifaz Nuño, acho que tam bém estavam Monterroso e dois ou três poetas j ovens. E com certeza estava o professor López Azcárate, que não abriu a boca até o fim (em se tratando de poetas latinos, a única autoridade reconhecida era a de Bonifaz Nuño). E de que falam os, Virgem Santa, de que falam os? Não m e lem bro com exatidão. Só m e lem bro que o tem a era Ovídio e que Bonifaz Nuño perorava, perorava, perorava. Provavelm ente estava caindo na pele de um tradutor novato das Metamorfoses. E Monterroso sorria e assentia em silêncio. E os poetas j ovens (ou talvez fossem apenas estudantes, coitadinhos) faziam igual. E eu tam bém . Eu espichava o pescoço e os contem plava fixam ente. De vez em quando soltava um a exclam ação por cim a do om bro dos estudantes, que era com o acrescentar um pouco de silêncio ao silêncio. E então (em algum m om ento desse instante que existiu, que não posso ter sonhado) o professor López Azcárate abriu a boca. Abriu a boca com o se lhe faltasse ar, com o se aquele corredor da faculdade houvesse entrado de repente na dim ensão desconhecida, e disse algo sobre a Arte

de amar, de Ovídio, algo que pegou Bonifaz Nuño de surpresa e que pareceu

interessar sobrem aneira a Monterroso, e que os j ovens poetas ou estudantes não com preenderam , nem eu, depois ficou verm elho, com o se a sensação de opressão j á fosse francam ente insuportável, e um as lágrim as, não m uitas, quatro ou seis, rolaram por suas faces até ficarem enganchadas no seu bigode, um bigode negro que com eçava a ficar grisalho nas pontas e no m eio, concedendo-lhe um ar que sem pre m e pareceu estranhíssim o, com o de zebra ou algo parecido, um bigode negro, em todo caso, que não devia estar ali, que pedia aos gritos um a navalha ou um a tesoura e que fazia que, se olhasse m uito tem po para a cara de López Azcárate, você com preendesse sem som bra de dúvida que se tratava de um a anom alia e que com essa anom alia na cara (com essa anom alia voluntária na cara) as coisas necessariam ente iam acabar m al.

Um a sem ana depois López Azcárate se enforcou num a árvore, e a notícia correu pela faculdade com o um bicho aterrorizado e veloz. Um a notícia que, quando chegou aos m eus ouvidos, m e deixou encolhida e tiritando, e ao m esm o tem po m aravilhada, porque a notícia, sem dúvida, era ruim , péssim a m as ao m esm o tem po era fantástica, era com o se a realidade m e dissesse no ouvido:

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ainda sou capaz de grandes coisas, ainda sou capaz de surpreender você, tonta, e a todos, ainda sou capaz de m over o céu e a terra por am or.

De noite, no entanto, m e espalhava, m e transform ava num m orcego, saía da faculdade e vagava pelo DF com o um duende (gostaria de dizer com o um a fada, m as faltaria com a verdade), bebia, discutia, participava das rodas literárias (conheci todas), aconselhava os j ovens poetas que desde esse tem po recorriam a m im , em bora não tanto quanto depois, e eu tinha um a palavra para todos, que digo, um a palavra!, tinha para todos cem palavras ou m il, todos m e pareciam netos de López Velarde, bisnetos de Salvador Díaz Mirón, os j ovens m achinhos atribulados, os j ovens m achinhos m urchos das noites do DF, os j ovens m achinhos que chegavam com seus papéis dobrados, seus livros surrados, seus cadernos suj os e se sentavam nas cafeterias que nunca fecham ou nos bares m ais deprim entes do m undo, em que eu era a única m ulher, eu e às vezes o fantasm a de Lilian Serpas (m as de Lilian falarei m ais para a frente), e m e davam para ler seus poem as, seus versos, suas aflitas traduções, e eu pegava aqueles papéis, lia em silêncio, de costas para a m esa onde todos brindavam e procuravam angustiosam ente ser engenhosos, ou irônicos, ou cínicos, pobres anj os m eus, e m ergulhava nessas palavras (gostaria de dizer fluxo verbal, m as faltaria com a verdade, ali não havia fluxo verbal, m as balbucios) até a m edula, ficava por um instante a sós com essas palavras entorpecidas pelo brilho e a tristeza da j uventude, ficava por um instante a sós com esses pedaços esfacelados de espelho e m e olhava, m elhor dizendo, m e procurava no reflexo dessa quinquilharia, e m e encontrava!, lá estava eu, Auxilio Lacouture, ou fragm entos de Auxilio Lacouture, os olhos azuis, os cabelos louros branqueando cortados à Príncipe Valente, a cara com prida e m agra, as rugas na testa, e m eu eu m e estrem ecia, m e subm ergia num m ar de dúvidas, m e fazia desconfiar do futuro, dos dias que se aproxim avam com um a velocidade de cruzeiro, em bora por outro lado m e confirm asse que eu vivia com m eu tem po, com o tem po que eu havia escolhido e com o tem po que m e rodeava, agitado, m utável, pletórico, feliz.

E assim cheguei a 1968. Ou 1968 chegou a m im . Agora poderia dizer que pressenti 68. Agora poderia dizer que tive um pressentim ento feroz e que 68 não m e pegou desprevenida. Augurei-o, intuí-o, suspeitei-o, adivinhei-o desde o prim eiro m inuto de j aneiro; pressagiei-o e antevi-o desde que se rasgou a prim eira (e últim a) piñata[1] do inocente e festivo j aneiro. Com o se não fosse pouco, poderia dizer que senti seu cheiro nos bares e nos parques, em fevereiro ou em m arço de 68, senti sua quietude sobrenatural nas livrarias e nas barraquinhas de com ida am bulante, enquanto com ia um taco de carne, de pé, na rua San Ildefonso, contem plando a igrej a de Santa Catarina de Siena e o crepúsculo m exicano que redem oinhava com o um desvario, antes de 68 se transform ar realm ente em 68.

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Ai, lem brar disso m e faz rir. Que vontade de chorar! Estou chorando? Vi tudo e, ao m esm o tem po, não vi nada. Entendem o que quero dizer? Sou a m ãe de todos os poetas e não perm iti (ou o destino não perm itiu) que o pesadelo m e desm ontasse. As lágrim as agora escorrem por m inhas faces estragadas. Eu estava na faculdade naquele 18 de setem bro em que o exército violou a autonom ia e entrou no cam pus para prender ou m atar todo o m undo. Não. Na Universidade não houve m uitos m ortos. Foi em Tlatelolco. Esse nom e há de ficar em nossa m em ória para sem pre! Mas eu estava na faculdade quando o exército e os granadeiros entraram e baixaram o cacete na gente. Coisa m ais incrível. Eu estava no banheiro, num dos banheiros de um dos andares da faculdade, o quarto, creio, não posso precisar. Estava sentada na latrina, com a saia arregaçada, com o diz o poem a ou a canção, lendo aquelas poesias tão delicadas de Pedro Garfias, que tinha m orrido fazia um ano, dom Pedro tão m elancólico, tão triste da Espanha e do m undo em geral, quem iria im aginar que eu estaria lendo no banheiro j usto no m om ento em que aqueles granadeiros babacas entravam na universidade. Acho, perm itam -m e este inciso, que a vida está repleta de coisas enigm áticas, pequenos acontecim entos que só estão esperando o contato epidérm ico, nosso olhar, para se desencadearem num a série de fatos causais que, depois, vistos através do prism a do tem po, não podem deixar de produzir em nós assom bro e espanto. De fato, graças a Pedro Garfias, aos poem as de Pedro Garfias e a m eu inveterado vício de ler no banheiro, fui a últim a a saber que os granadeiros tinham entrado, que o exército tinha violado a autonom ia universitária e que, enquanto m inhas pupilas percorriam os versos daquele espanhol m orto no exílio, os soldados e os granadeiros estavam prendendo e baixando o cacete em todo o m undo que encontravam pela frente, sem que im portasse sexo ou idade, condição civil ou status adquirido (ou presenteado) no intrincado m undo das hierarquias universitárias.

Digam os que ouvi um ruído. Um ruído na alm a!

E digam os que depois o ruído foi crescendo, crescendo, que então prestei atenção no que acontecia, ouvi que alguém dava a descarga num a latrina vizinha, ouvi um a porta bater, passos no corredor e o barulhão que subia dos j ardins, daquele gram ado tão bem cuidado que cerca a faculdade, feito um m ar verde, um a ilha sem pre disposta às confidências e ao am or. Então a borbulha da poesia de Pedro Garfias fez pop, eu fechei o livro, levantei, dei a descarga, abri a porta, fiz um com entário em voz alta, disse che, que está acontecendo lá fora, m as ninguém respondeu, todas as usuárias do banheiro haviam desaparecido, eu disse che, não tem ninguém ?, sabendo de antem ão que ninguém ia responder, não sei se vocês conhecem essa sensação, um a sensação com o de film e de terror, m as não desses film es em que as m ulheres são tolas, e sim inteligentes e coraj osas, ou em que há pelo m enos um a m ulher inteligente e coraj osa que de repente fica

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sozinha, que de repente entra num edifício solitário ou num a casa abandonada e pergunta (porque não sabe que o lugar onde se m eteu está abandonado) se tem alguém , alça a voz e pergunta, m as na realidade no tom com que faz a pergunta j á está im plícita a resposta, m as ela pergunta, por quê?, ora, porque basicam ente é um a m ulher educada, e nós m ulheres educadas não podem os evitar de sê-lo em qualquer circunstância em que a vida nos ponha, ela fica parada ou talvez dê alguns passos, pergunta, e ninguém , evidentem ente, responde. De m odo que eu m e senti com o essa m ulher, m as não sei se soube disso no ato ou sei agora, tam bém dei uns tantos passos com o se cam inhasse por um a enorm e extensão de gelo. Depois lavei as m ãos, olhei-m e no espelho, vi um a figura alta, m agra, loura, com algum as, j á m uitas, rugas na cara, a versão fem inina de dom Quixote, com o m e disse certa ocasião Pedro Garfias, depois saí ao corredor, e aí sim percebi na m esm a hora que algum a coisa estava acontecendo, o corredor estava vazio, sum ido em suas desbotadas cores crem e, e a gritaria que subia pelas escadas era das que atordoam e fazem história.

O que fiz então? O que qualquer pessoa faria: fui à j anela, olhei para baixo e vi os soldados, fui a outra j anela e vi tanques, a outra, no fundo do corredor (percorri o corredor dando saltos de além -túm ulo), e vi furgões onde os granadeiros e alguns policiais à paisana estavam m etendo os estudantes e professores presos, com o num a cena de film e sobre a Segunda Guerra Mundial m isturada com um a de Maria Félix e Pedro Arm endáriz sobre a Revolução Mexicana, um film e que se desenrolava num a tela escura m as com figurinhas fosforescentes com o dizem que alguns loucos ou algum as pessoas que sofrem repentinam ente um ataque de m edo veem . Depois vi um grupo de secretárias, entre as quais creio ter distinguido m ais de um a am iga (na realidade, creio que distingui todas!), que saíam em fila indiana, aj eitando o vestido, com a bolsa na m ão ou pendurada no om bro, e depois vi um grupo de professores que tam bém saía ordenadam ente, pelo m enos tão ordenadam ente quanto a situação perm itia, vi gente com livros nas m ãos, vi gente com pastas e páginas datilografadas que se esparram avam pelo chão, e se agachavam para recolhê-las, vi gente ser arrastada pelo chão ou gente que saía da faculdade cobrindo o nariz com um lenço branco que o sangue enegrecia rapidam ente. Então eu disse para m im m esm a: fique aqui, Auxilio. Não deixe que te levem presa, m enina. Fique aqui, Auxilio, não entre voluntariam ente nesse film e, m enina, se eles quiserem te pôr em cana que se deem ao trabalho de te encontrar.

Voltei para o banheiro e, vej am que curioso, não só voltei ao banheiro com o voltei à latrina, a m esm íssim a em que eu estava antes, tornei a m e sentar no vaso, quero dizer: outra vez com a saia arregaçada e a calcinha abaixada, m as sem nenhum a necessidade fisiológica (dizem que precisam ente em casos assim as tripas ficam soltas, m as certam ente não foi o m eu caso), com o livro de Pedro Garfias aberto e, em bora não tivesse vontade de ler, com ecei a ler, a princípio

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lentam ente, palavra por palavra e verso por verso, m as pouco depois a leitura foi se acelerando até finalm ente se tornar enlouquecedora, os versos passavam tão rápidos que eu m al podia discernir algum a coisa neles, as palavras colavam um as nas outras, não sei, um a leitura em queda livre a que, aliás, a poesia de Pedrito Garfias m al pôde resistir (há poetas e poem as que resistem a qualquer leitura, outros, a m aioria, não), e nisso eu estava quando de repente ouvi um barulho no corredor, barulho de botas?, barulho de botas com biqueiras de ferro?, m as che, disse para m im m esm a, j á é m uita coincidência, não acha?, barulho de botas com biqueiras de ferro!, m as che, disse para m im m esm a, agora só falta o frio e que um a boina caia na m inha cabeça, e então ouvi um a voz que dizia algo com o tudo estava em ordem , sargento, pode ser que dissesse outra coisa, e cinco segundos depois talvez o m esm o cara que tinha falado abriu a porta do banheiro e entrou.

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E eu, pobre de m im , ouvi algo sem elhante ao rum or que o vento produz quando sopra e corre entre as flores de papel, ouvi um florear de ar e água e levantei (silenciosam ente) os pés feito um a bailarina de Renoir, com o se fosse parir (e, de certo m odo, de fato m e dispunha a dar algo à luz e a ser dada à luz), a calcinha algem ando m inhas canelas m agras, enganchada nos sapatos que eu tinha então, uns m ocassins am arelos dos m ais côm odos, e, enquanto esperava que o soldado revistasse as latrinas um a a um a e m e dispunha, m oral e fisicam ente, se fosse o caso, a não abrir, a defender o derradeiro reduto de autonom ia da UNAM, eu, um a pobre poetisa uruguaia m as que am ava o México m ais que tudo, enquanto esperava, dizia eu, um silêncio especial se produziu, um silêncio que nem os dicionários de m úsica nem os dicionários de filosofia registram , com o se o tem po se fraturasse e corresse em várias direções a um a só vez, um tem po puro, nem verbal nem com posto de gestos e ações, então eu m e vi e vi o soldado que se olhava extasiado no espelho, nossas duas figuras em butidas num losango negro ou subm ersas num lago, e tive um calafrio, pobre de m im , porque soube que m om entaneam ente as leis da m atem ática m e protegiam , porque soube que as tirânicas leis do cosm os, que se opõem às leis da poesia, m e protegiam e que o soldado se olharia extasiado no espelho, e eu o ouviria e im aginaria, extasiada tam bém , na singularidade da m inha latrina, e que am bas as singularidades constituíam a partir desse segundo as duas faces de um a m oeda atroz com o a m orte.

Resum o da ópera: o soldado e eu perm anecem os parados feito estátuas no banheiro das m ulheres do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras, e isso foi tudo, depois ouvi suas passadas indo em bora, ouvi a porta se fechando, e m inhas pernas erguidas, com o se decidissem por si m esm as, voltaram à sua antiga posição.

O parto havia term inado.

Devo ter perm anecido assim um as três horas, calculo.

Sei que com eçava a anoitecer quando saí da latrina. Sentia cãibras nas extrem idades. Sentia um a pedra no estôm ago e m eu peito doía. Sentia com o que um véu ou um a gaze sobre os olhos. Sentia zum bidos de abelhas ou vespas ou besouros nos ouvidos ou na m ente. Sentia com o que cócegas e ao m esm o tem po com o que vontade de dorm ir. Mas a verdade é que estava m ais acordada do que nunca. A situação era nova, adm ito, m as eu sabia o que fazer.

Sabia qual era o m eu dever.

De m odo que m e icei à única j anela do banheiro e olhei para fora. Vi um soldado perdido ao longe. Vi a silhueta de um tanque ou a som bra de um tanque, m as depois pensei m elhor e talvez o que vi tenha sido a som bra de um a árvore.

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Com o o pórtico da literatura latina, com o o pórtico da literatura grega. Ai, gosto tanto da literatura grega, de Safo a Giorgos Seferis. Vi o vento percorrer a universidade com o se aproveitasse as últim as claridades do dia. E soube o que tinha de fazer. Eu soube. Soube que tinha de resistir. De m odo que m e sentei nos ladrilhos do banheiro das m ulheres e aproveitei os últim os raios de luz para ler m ais três poem as de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para m im : Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-am ericana, poeta e viaj ante, resista.

Só isso.

Depois com ecei a pensar no m eu passado, com o agora penso no m eu passado. Depois superei as datas, quebrou-se o losango no espaço do desespero conj ectural, subiram as im agens do fundo do lago, sem que nada nem ninguém pudesse evitar em ergiram as im agens desse pobre lago que nem o sol nem a lua alum iam , dobrou-se e desdobrou-se o tem po com o um sonho. O ano de 68 converteu-se no de 64, e no ano de 60, e no de 56. E tam bém se converteu no ano de 70, de 73, no ano de 75 e de 76. Com o se eu houvesse m orrido e contem plasse os anos de um a perspectiva inédita. Quero dizer: com ecei a pensar no m eu passado com o se pensasse no m eu presente, no m eu futuro, no m eu passado, tudo revolto e adorm ecido num só ovo m orno, um enorm e ovo de não sei que pássaro interior (um arqueópterix?) abrigado num ninho de escom bros fum egantes. Com ecei a pensar, por exem plo, nos dentes que perdi, se bem que naquele m om ento, em setem bro de 1968, ainda tinha todos os m eus dentes, o que observando bem não deixa de ser estranho. Mas o certo é que pensei nos m eus dentes, m eus quatro dentes da frente que fui perdendo em anos posteriores porque não tinha dinheiro para ir ao dentista, nem vontade de ir ao dentista, nem tem po. Foi curioso pensar nos m eus dentes porque, por um lado, pouco m e incom odava não ter os quatro dentes m ais im portantes da dentadura de um a m ulher, m as, por outro, perdê-los m e feriu no m ais profundo do m eu ser, e essa ferida ardia, e era necessária e desnecessária, era absurda. Ainda hoj e, quando penso nisso, não com preendo. Enfim : perdi m eus dentes no México com o havia perdido tantas outras coisas no México, em bora de vez em quando vozes am igas ou que pretendiam sê-lo m e diziam ponha os dentes, Auxilio, a gente faz um a vaquinha para você com prar uns postiços, Auxilio, eu sem pre soube que aquela j anela ia perm anecer até o final em carne viva, e não dava m uita bola para eles m as tam pouco lhes dava um a resposta taxativam ente negativa.

E a perda trouxe consigo um novo costum e. A partir de então, quando eu falava ou quando ria, cobria com a palm a da m ão m inha boca desdentada, gesto que conform e vim a saber não dem orou a se tornar popular em alguns am bientes. Perdi m eus dentes m as não perdi a discrição, a reserva, certo senso de elegância. A im peratriz Josefina, é sabido, tinha enorm es cáries negras na parte posterior da sua dentadura, e isso não tirava nem um pingo do seu charm e.

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Ela se cobria com um lencinho ou com um leque; eu, m ais terrenal, habitante do DF alado e do DF subterrâneo, punha a palm a da m ão sobre os lábios e ria e falava livrem ente nas longas noitadas m exicanas. Meu aspecto, para os que acabavam de m e conhecer, era o de um a conspiradora ou de um ser estranho, m etade sulam ita m etade m orcego albino. Mas eu não ligava pra isso. Lá está Auxilio, diziam os poetas, e ali estava eu, sentada à m esa de um rom ancista com

delirium tremens ou de um j ornalista suicida, rindo e falando, segredando e

contando fuxicos, e ninguém podia dizer: vi a boca ferida da uruguaia, vi as gengivas nuas da única pessoa que ficou na Universidade quando os granadeiros entraram , em setem bro de 1968. Podiam dizer: Auxilio fala com o os conspiradores, aproxim ando a cabeça e cobrindo a boca. Podiam dizer: Auxilio fala olhando nos olhos do outro. Podiam dizer (e rir ao dizer): com o e que Auxilio consegue, apesar de ter as m ãos ocupadas com livros e copos de tequila, sem pre levar a m ão à boca de m aneira tão espontânea e natural?, onde reside o segredo desse seu j ogo de m ãos prodigioso? O segredo, m eus am igos, não penso levar para o túm ulo (não há que levar nada para o túm ulo). O segredo reside nos nervos. Nos nervos que se tensionam e se alongam para alcançar as beiras da sociabilidade e do am or. As beiras espantosam ente afiadas da sociabilidade e do am or.

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4

Não pensei só nos m eus dentes, que ainda não tinham caído, m as tam bém em outras coisas, com o por exem plo no j ovem Arturo Belano, que conheci quando ele tinha dezesseis ou dezessete anos, em 1970, quando eu j á era a m ãe da j ovem poesia do México e ele um garoto que não sabia nem beber, m as que se sentia orgulhoso de que, em seu distante Chile, Salvador Allende tivesse ganhado as eleições.

Eu o conheci. Eu o conheci num a ensurdecedora reunião de poetas no bar Encrucij ada Veracruzana, toca ou covil atroz, em que se reunia às vezes um grupo heterogêneo de j ovens e não tão j ovens prom essas. Dentre todas as prom essas, ele era a prom essa m ais j ovem . Além do m ais, o único que aos dezessete anos j á tinha escrito um rom ance. Um rom ance que depois se perdeu, que o fogo devorou ou que acabou num dos im ensos lixões que rodeiam o DF, e que li a princípio com reservas, depois com prazer, não porque fosse bom , não, o prazer m e era proporcionado pelos rasgos de vontade vislum brados em cada página, a com ovente vontade de um adolescente: o rom ance era ruim , m as ele era bom . De m odo que fiz am izade com ele. Acho que foi porque éram os os dois únicos sul-am ericanos em m eio a tantos m exicanos. Fiz am izade com ele, m e aproxim ei e falei com ele cobrindo m inha boca com a m ão, ele sustentou m eu olhar, olhou para o dorso da m inha m ão e não m e perguntou por que razão eu cobria a boca, m as creio que, ao contrário de outros, adivinhou no ato, quero dizer, adivinhou o m otivo últim o, a soberania derradeira que m e levava a cobrir os lábios e não se im portou.

Naquela noite fiz am izade com ele, apesar da diferença de idade, apesar da diferença de tudo! Expliquei-lhe, sem anas depois, quem era Ezra Pound, quem era William Carlos William s, quem era T. S. Eliot. Eu o levei um a vez para casa, doente bêbado, estava abraçado a m im , pendurado em m eus m agros om bros, fiz am izade com sua m ãe, seu pai e sua irm ã tão sim pática, tão sim páticos todos.

A prim eira coisa que disse à m ãe dele foi: senhora, não fui para a cam a com seu filho. Gosto de ser assim , ser franca e sincera com a gente franca e sincera (em bora tenha sofrido dissabores sem conta por esse m eu inveterado costum e). Levantei as m ãos, sorri, baixei em seguida as m ãos e disse isso, e ela olhou para m im com o se acabasse de sair de um dos cadernos de seu filho de Arturito Belano, que então estava ferrado no sono na caverna que era seu quarto. E ela disse: claro que não, Auxilio, m as não m e cham e de senhora, som os quase da m esm a idade. E eu ergui a sobrancelha, fixei nela m eu olho m ais azul, o direito, e pensei: m enina, ela tem razão, devem os ter m ais ou m enos a m esm a idade, talvez eu fosse três anos m ais m oça, ou dois, ou um m as basicam ente éram os da m esm a geração, a única diferença era que ela tinha um a casa, um

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trabalho e que todo m ês recebia seu salário, e eu não, a única diferença era que eu saía com gente j ovem e a m ãe de Arturito saía com gente da sua idade, a única diferença era que ela tinha dois filhos adolescentes e eu não tinha nenhum , m as isso tam bém não im portava porque naquela altura eu tam bém tinha, à m inha m aneira, centenas de filhos.

De m odo que fiz am izade com aquela fam ília. Um a fam ília de chilenos viaj antes que havia em igrado para o México em 1968. Meu ano. Um a vez eu disse isso para a m ãe de Arturo: olhe, disse, quando você estava fazendo os preparativos para a sua viagem , eu estava trancada no banheiro das m ulheres do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM. Eu sei, Auxilio, ela m e dizia. Curioso, não?, dizia eu. É m esm o, dizia ela. E podíam os ficar assim por um bom tem po, de noite, ouvindo m úsica, conversando, rindo.

Fiz am izade com aquela fam ília. Eu ficava com o convidada na casa deles por longas tem poradas, um a vez um m ês, outra vez quinze dias, outra vez um m ês e m eio, porque na época eu não tinha dinheiro para pagar um a pensão ou um a água-furtada, e m inha vida cotidiana tinha se transform ado num vagar de um a parte para outra da cidade, à m ercê do vento noturno que corre pelas ruas e avenidas do DF.

Passava o dia na universidade fazendo m il coisas, de noite vivia a vida boêm ia, dorm ia e ia dispersando m eus escassos pertences pelas casas de am igas e am igos, m inha roupa, m eus livros, m inhas revistas, m inhas fotos, eu Rem edios Varo, eu Leonora Carrington, eu Eunice Odio, eu Lilian Serpas (ai, pobre Lilian Serpas, tenho que falar dela). E, claro, chegava um m om ento em que m eus am igos e am igas se cansavam de m im e m e pediam que fosse em bora. E eu ia. Fazia um a piada e ia. Tratava de m inim izar a im portância do fato e ia em bora. Baixava a cabeça e ia em bora. Eu lhes dava um beij o na face, agradecia e ia em bora. Alguns m aledicentes dizem que eu não ia. Mentem . Eu ia assim que m e pediam . Pode ser que, em um a ou outra ocasião, tenha m e trancado no banheiro e derram ado um as lágrim as. Alguns linguarudos dizem que os banheiros eram m eu fraco. Com o se enganam . Os banheiros eram m eu pesadelo, se bem que desde setem bro de 1968 os pesadelos não m e eram estranhos. Agente se acostum a com tudo. Gosto dos banheiros. Gosto dos banheiros de m eus am igos e am igas. Gosto, com o todo ser hum ano, de tom ar um a chuveirada e encarar com o corpo lim po um novo dia. Gosto tam bém de tom á-la antes de ir dorm ir. A m ãe de Arturito m e dizia: use essa toalha lim pa que pus para você, Auxilio, m as eu nunca usava toalha. Não gosto. Preferia m e vestir com a pele m olhada e que m eu próprio calor corporal secasse as gotinhas. Isso divertia as pessoas. Divertia a m im tam bém .

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Se não fiquei louca foi porque sem pre conservei o bom hum or.

Ria da m inha saia, da m inha calça cilíndrica, das m inhas m eias listadas, do m eu corte de cabelo Príncipe Valente, cada dia m enos louro e m ais branco, dos m eus olhos que escrutavam a noite do DF, das m inhas orelhas rosadas que ouviam as histórias da universidade, as prom oções e rebaixam entos, os desprezos, adiam entos, puxações de saco, adulações, falsos m éritos, cam as bam bas que desm ontavam e tornavam a ser m ontadas sob o céu noturno do DF, esse céu que eu conhecia tão bem , esse céu revolto e inatingível com o um a panela asteca debaixo da qual eu m e m ovim entava feliz da vida, com todos os poetas do México e com Arturito Belano que tinha dezessete anos, dezoito anos, e que ia crescendo diante dos m eus olhos. Todos iam crescendo am parados por m eu olhar! Quer dizer: todos iam crescendo na intem périe m exicana, na intem périe latino-am ericana, que é a intem périe m aior porque é a m ais cindida e a m ais desesperada. E m eu olhar cintilava com o a lua por aquela intem périe e se detinha nas estátuas, nas figuras sobressaltadas, nas corriolas de som bras, nas silhuetas que nada tinham exceto a utopia da palavra, um a palavra, por outro lado, bastante m iserável. Miserável? Sim , adm itam os, bastante m iserável.

E eu estava ali com eles porque tam bém não tinha nada, exceto m inha m em ória.

Eu tinha recordações. Vivia trancada no banheiro fem inino da faculdade, vivia em butida no m ês de setem bro de 1968 e podia portanto vê-los sem paixão, em bora às vezes, felizm ente, j ogasse com a paixão e com o am or. Porque nem todos os m eus am antes foram platônicos. Eu fui para a cam a com os poetas. Não com m uitos, m as com alguns eu fui para a cam a. Eu era, apesar das aparências, um a m ulher, não um a santa. E certam ente fui para a cam a com m ais de um .

A m aioria foram am ores de um a só noite, j ovens bêbados que arrastei para um a cam a ou um a poltrona de um quarto apartado enquanto no quarto vizinho ressoava um a m úsica bárbara que agora prefiro não evocar. Outros, a m inoria, foram am ores desgraçados que se prolongaram além de um a noite e além de um fim de sem ana, nos quais m eu papel foi m ais o de um a psicoterapeuta que o de um a am ante. De resto, não m e queixo. Com a perda dos m eus dentes eu tinha resistência em dar ou receber beij os, e que am or pode se sustentar por m uito tem po se não te beij am na boca? Mesm o assim fui para a cam a e fiz am or com gana. A palavra é gana. É preciso ter gana para fazer am or. É preciso tam bém ter um a oportunidade, m as sobretudo é preciso ter gana.

A esse respeito tem um a história daqueles anos que talvez não fosse inútil contar. Conheci um a m oça na faculdade. Foi na época em que m e apaixonei pelo teatro. Era um a m oça encantadora. Tinha se form ado em Filosofia. Era m uito

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culta e m uito elegante. Eu estava adorm ecida num a poltrona do teatro da faculdade (um teatro praticam ente inexistente) e sonhava com a m inha infância ou com extraterrestres. Ela se sentou ao m eu lado. O teatro, claro, estava vazio: no palco um grupo lam entável ensaiava um a obra de García Lorca. Não sei em que m om ento acordei. Ela então m e disse: você é Auxilio Lacouture, não é?, e m e falou com tanto calor que na m esm a hora sim patizei com ela. Tinha um a voz um pouco rouca, cabelos negros penteados para trás, não m uito com pridos. Depois disse algo divertido ou fui eu que lhe disse algo divertido, e desatam os a rir, baixinho, para que o diretor não nos ouvisse, o diretor era um suj eito que tinha sido m eu am igo em 68 m as que agora tinha virado um m au diretor de teatro, e ele sabia disso, o que o fazia estar ressentido com todo o m undo. Depois saím os j untas para as ruas da Cidade do México.

Ela se cham ava Elena e m e convidou para um café. Falou que tinha m uitas coisas a m e dizer. Disse que fazia m uito tem po tinha vontade de m e conhecer. Ao sair da faculdade eu m e dei conta de que ela era m anca. Não m uito, m as evidentem ente era m anca. Elena, a filósofa. Tinha um Volkswagen e m e levou a um a cafeteria da Insurgentes Sur. Eu nunca estivera ali antes. Era um lugar charm oso e m uito caro, m as Elena tinha dinheiro e m uita vontade de falar com igo, em bora no fim das contas a única que falou fui eu. Ela escutava e ria, parecia feliz da vida, m as não falou m uito. Quando nos separam os, pensei: o que é que ela tinha para m e dizer?, de que queria falar com igo?

A partir de então costum ávam os nos encontrar de tem pos em tem pos, no teatro ou nos corredores da faculdade, quase sem pre ao entardecer, quando a noite com eça a cair sobre a universidade e algum as pessoas não sabem aonde ir nem o que fazer das suas vidas. Eu encontrava Elena, e Elena m e convidava para tom ar algum a coisa ou com er em algum restaurante da Insurgentes Sur. Um a vez m e convidou à sua casa, em Coy oacán um a casa linda, pequenina m as linda, m uito fem inina e m uito intelectual cheia de livros de filosofia e de teatro, porque Elena pensava que a filosofia e o teatro estavam intim am ente relacionados. Um a vez m e falou sobre isso, m as eu m al entendi um a palavra. Para m im o teatro estava relacionado com a poesia para ela com a filosofia, cada louco com sua m ania. Até que de repente parei de vê-la. Não sei quanto tem po passou. Meses talvez. Claro perguntei a algum as secretárias da faculdade o que havia acontecido com Elena, se estava doente ou viaj ando, se sabiam algum a coisa dela, e ninguém soube m e dar um a resposta convincente. Um a tarde decidi ir à sua casa m as m e perdi. Era a prim eira vez que acontecia um a coisa dessas! Desde setem bro de 1968 não tinha m e perdido um a só vez no labirinto do DF! Antes sim antes costum ava m e perder, não com m uita frequência m as costum ava m e perder. Depois não. E agora estava eu ali, procurando sua casa e não a encontrava, então disse com igo m esm a tem algo estranho aqui, Auxilio, m enina, abra os olhos e preste atenção nos detalhes, para não perder o m ais

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im portante dessa história. E foi o que fiz. Abri os olhos e vaguei por Coy oacán até as onze e m eia da noite, cada vez m ais perdida, cada vez m ais cega com o se a pobre Elena houvesse m orrido ou nunca houvesse existido.

Assim passou algum tem po. Deixei m eu cargo de agregada teatral. Voltei ao convívio dos poetas e m inha vida tom ou um rum o que não vale a pena explicar. A única coisa certa é que deixei de aj udar esse diretor veterano de 68, não porque sua direção m e parecesse ruim , e era m esm o, m as por fastio, porque precisava respirar e vagabundar, porque m eu espírito m e pedia outro tipo de inquietação.

E um dia, quando eu m enos esperava, tornei a encontrar Elena. Foi na cafeteria da faculdade. Eu estava ali im provisando um a pesquisa sobre a beleza dos estudantes e de repente a vi num a m esa apartada, num canto, e em bora a princípio tenha m e parecido a m esm a de sem pre, conform e fui m e aproxim ando, um a aproxim ação que não sei por que dilatei parando em cada m esa e m antendo conversas curtas e um tanto vergonhosas, notei que algo havia m udado nela, m as naquele m om ento não pude precisar o que havia m udado. Quando ela m e viu, isso eu posso garantir, m e cum prim entou com o m esm o carinho e sim patia de sem pre. Estava... não sei com o dizer. Talvez m ais m agra, m as na realidade não estava m ais m agra. Talvez m ais abatida, em bora na realidade não estivesse m ais abatida. Talvez m ais calada, m as m e bastaram três m inutos para m e dar conta de que tam bém não estava m ais calada. Pode ser que estivesse com as pálpebras inchadas. Pode ser que estivesse com a cara inteira um pouco m ais inchada, com o se estivesse tom ando cortisona. Mas não. Meus olhos não podiam m e enganar: era a m esm a de sem pre.

Naquela noite não desgrudei dela. Ficam os um instante na cafeteria que pouco a pouco foi se esvaziando de estudantes e professores, no fim ficam os só nós duas, a faxineira e um hom em de m eia-idade, um suj eito m uito sim pático e m uito triste que atendia no balcão. Depois nos levantam os (ela disse que a cafeteria naquela hora parecia sinistra; eu calei m inha opinião, m as agora não vej o por que não dá-la: a cafeteria naquela hora m e parecia m agnífica, gasta e m aj estosa, pobre e libérrim a, penetrada pelos últim os esplendores do sol do vale, um a cafeteria que m e pedia com um sussurro que ficasse ali até o fim e lesse um poem a de Rim baud, um a cafeteria pela qual valia a pena chorar), entram os em seu carro e ela disse, quando j á havíam os percorrido um bom trecho, que ia m e apresentar um suj eito extraordinário, disse assim , extraordinário, Auxilio, disse, quero que você o conheça e que depois m e dê sua opinião, m as eu m e dei conta na m esm a hora de que m inha opinião não lhe interessava a m ínim a. E tam bém disse: depois que eu o apresentar a você, vá em bora, que preciso falar com ele a sós. E eu respondi claro, Elena, está bem . Você o apresenta e depois vou em bora. A bom entendedor, m eia palavra basta. Além do m ais, esta noite tenho o que fazer. O que você tem que fazer?, ela perguntou. Tenho de ver os poetas da rua Bucareli, disse eu. E então rim os com o bobas e quase batem os o

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carro, m as em m eu foro íntim o eu ia pensando, pensando, e cada vez que pensava via que Elena não estava bem , sem poder precisar o que, obj etivam ente, m e fazia vê-la assim .

Nessas, chegam os a um estabelecim ento da Zona Rosa, um a espécie de tasca cuj o nom e esqueci m as que ficava na rua Varsovia e era especializada em queij os e vinhos, era a prim eira vez que eu ia a um lugar assim , quero dizer a um lugar tão caro, e a verdade é que m e deu de repente um a fom e danada, porque sou a m ais m agra das m agras m as, quando se trata de com er, sou capaz de m e com portar com o a glutona irredenta do Cone Sul, com o a Em ily Dickinson da bulim ia, m ais ainda se botam na m esa um a variedade de queij os que nem dá pra acreditar, e um a variedade de vinhos que fazem a gente trem er dos pés à cabeça. Não sei com que cara fiquei, m as Elena se com padeceu de m im e m e disse fique para com er conosco, se bem que por baixo m e deu um a cotovelada que significava: fique para com er conosco m as depois pique a m ula. Eu fiquei para com er com eles, beber com eles, provei uns quinze queij os diferentes, tom ei um a garrafa de Rioj a e conheci o hom em extraordinário, um italiano que estava de passagem pela cidade e que na Itália era am igo, dizia ele, de Giorgio Strehler, e ele sim patizou com igo, ou é o que deduzo agora, pois quando eu disse que tinha de ir em bora pela prim eira vez, ele disse fique, Auxilio, que pressa é esta, e quando eu falei que tinha de ir pela segunda vez, ele disse não vá, m ulher de conversa portentosa (falou assim m esm o), a noite é um a criança, e quando eu disse que tinha de ir pela terceira vez, ele falou chega de tanta história, Auxilio, por acaso Elena e eu te ofendem os?, e então Elena m e deu outra cotovelada por baixo da m esa e sua voz serena e bem tim brada disse fique, Auxilio, depois dou um a carona até onde você tiver de ir, e eu olhava para os dois e assentia, extasiada de queij o e vinho, e não sabia m ais o que fazer, se ir ou não ir em bora, se a prom essa de Elena queria dizer o que queria dizer ou queria dizer outra coisa. Nesse dilem a, decidi que o m elhor que tinha a fazer era ficar calada e escutar. E foi o que fiz.

O italiano se cham ava Paolo. Com isso acho que disse tudo. Ele havia nascido num a cidadezinha perto de Turim , m edia um m etro e oitenta pelo m enos, tinha cabelo castanho e com prido, tinha tam bém um a barba enorm e, e Elena e qualquer outra m ulher podiam se perder sem nenhum problem a entre seus braços. Era um estudioso do teatro m oderno, m as não viera ao México estudar nenhum a m anifestação teatral. Na verdade, a única coisa que fazia no México era esperar um visto e um a data para viaj ar a Cuba a fim de entrevistar Fidel Castro. Já estava esperando havia m uito tem po. Um a vez lhe perguntei por que dem oravam tanto. Ele m e disse que os cubanos prim eiro o estavam estudando. Não era qualquer um que podia se aproxim ar de Fidel Castro.

Ele j á havia estado um a ou duas vezes em Cuba, o que, conform e dizia, e Elena corroborava suas palavras, o tornava suspeito para a polícia m exicana,

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m as eu nunca vi nenhum policial vagando ao seu redor. Se os visse, m e disse Elena, é que seriam m aus policiais, e Paolo era vigiado por agentes da secreta. O que era, obviam ente, m ais um ponto a m eu favor, pois é público e notório que os policiais da secreta são os que m ais se parecem com eles m esm os. Um policial da narcóticos, por exem plo, se você lhe tira a farda, pode parecer um operário, alguns até parecem líderes operários, m as um policial da secreta sem pre será igualzinho a um policial da secreta.

Desde aquela noite fizem os am izade. Nós três íam os aos sábados e dom ingos assistir teatro de graça na Casa del Lago. Paolo gostava de ver os grupos de am adores que faziam teatro ao ar livre. Elena se sentava no m eio, encostava a cabeça no braço de Paolo e não dem orava a pegar no sono. Elena não gostava dos atores am adores. Eu m e sentava à direita de Elena, e a verdade é que prestava pouca atenção ao que acontecia no palco, pois ficava o tem po todo olhando disfarçada para ver se surpreendia um agente da secreta. E a verdade é que descobri não um , m as vários. Quando contei isso a Elena, ela caiu na risada. Não pode ser, Auxilio, disse, m as eu sabia que não m e enganava. Depois com preendi a verdade. A Casa del Lago, nos sábados e dom ingos, se enchia literalm ente de espiões, m as nem todos iam no encalço de Paolo, a m aioria estava ali vigiando outras pessoas. Algum as delas, nós conhecíam os da universidade ou de grupos teatrais independentes e as cum prim entávam os. Outras nunca tínham os visto e só podíam os im aginar e nos com padecer do itinerário que elas e seus perseguidores iam seguir.

Não dem orei a perceber que Elena estava apaixonada por Paolo. O que vai fazer quando ele finalm ente for para Cuba?, perguntei um dia. Não sei, falou, e em sua carinha de m enina m exicana solitária acreditei ver um brilho ou um a desolação que j á tinha visto outras vezes e que nunca trazia nada de bom . O am or nunca traz nada de bom . O am or sem pre traz algo m elhor. Mas o m elhor às vezes é pior, se você é m ulher, se você vive neste continente que em m á hora foi encontrado pelos espanhóis, que em m á hora foi povoado por esses asiáticos extraviados.

Era o que eu pensava trancada no banheiro fem inino do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras em setem bro de 1968. Pensava nos asiáticos que cruzaram o estreito de Behring, pensava na solidão da Am érica, pensava em quão curioso é em igrar para o leste e não para o oeste. Porque sou um a tonta e não sei nada desse assunto, m as ninguém vai negar nesta hora convulsa que em igrar para o leste é com o em igrar para a noite m ais negra. Era o que eu pensava. Sentada no chão, com as costas apoiadas na parede e a vista perdida nas m anchas do teto. Para o leste. Para o lugar de onde vem a noite. Mas depois pensei: tam bém é esse o lugar de onde vem o sol. Depende da hora em que os peregrinos iniciaram a cam inhada. Então dei um tapa na testa (um tapinha leve, porque m inhas forças, depois de tantos dias sem com er, eram escassas), e vi

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Elena andando por um a rua solitária da colônia Rom a, vi Elena andando rum o ao leste, rum o à noite m ais negra, sozinha, m ancando, bem vestida, vi-a e gritei: Elena!, m as de m eus lábios não saiu nenhum som .

Elena se virou para m im e m e disse que não sabia o que ia fazer. Talvez partir para a Itália, disse. Talvez esperar que ele viesse outra vez ao México. Não sei, m e disse sorrindo, e eu soube que ela sabia m uito bem o que ia fazer e que não lhe im portava. O italiano, por sua vez, se deixava querer e passear pelo DF. Não lem bro m ais a quantos lugares fom os j untos, a Villa, a Coy oacán, a Tlatelolco (nesta eu não fui, foram ele e Elena, não pude ir), às encostas do Popocatépetl, a Teotihuacán, e em toda parte o italiano era feliz, e Elena tam bém era feliz, e eu era feliz porque sem pre gostei de passear e estar em com panhia de gente que é feliz.

Um dia, na Casa del Lago, até encontram os Arturito Belano. Apresentei-o a Elena e a Paolo. Disse a eles que era um poeta chileno de dezoito anos. Expliquei que escrevia não só poem as, m as tam bém teatro. Paolo disse que interessante. Elena não disse nada, porque para Elena, naquela altura, só parecia interessante sua relação com Paolo. Fom os tom ar café num lugar que se cham ava El Principio de México e que ficava (foi fechado faz tem po) na rua Tokio. Não sei por que m e lem bro dessa tarde. Essa tarde de 1971 ou 1972. O m ais curioso é que m e lem bro dela vista do m eu m irante de 1968. Da m inha atalaia, do m eu vagão de m etrô que sangra, do m eu im enso dia de chuva. Do banheiro fem inino do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras, m inha nave do tem po da qual posso observar todos os tem pos em que respire Auxilio Lacouture, que não são m uitos, m as que são.

Lem bro que Arturo e o italiano falaram de teatro, do teatro da Am érica Latina, que Elena pediu um cappuccino e que estava m ais para calada, e que eu fiquei olhando as paredes e o chão do El Principio de México pois logo notei um a coisa estranha, a m im certas coisas não passam despercebidas, era com o um ruído, um vento ou um suspiro que soprava a intervalos regulares pelos alicerces da cafeteria. E assim foram se passando os m inutos, com Arturo e Paolo falando de teatro, com Elena silenciosa e com igo que girava a cabeça a cada instante seguindo o rastro dos ruídos que estavam m inando não m ais os alicerces de El Principio de México, m as de toda a cidade, com o se m e avisassem , com alguns anos de antecipação ou alguns séculos de atraso, do destino do teatro latino-am ericano, da natureza dupla do silêncio e da catástrofe coletiva de que os ruídos inverossím eis costum am ser arautos. Os ruídos inverossím eis e as nuvens. Paolo parou então de conversar com Arturo e disse que naquela m anhã tinha chegado o visto de viagem para Cuba. E isso foi tudo. Cessaram os ruídos. Rom peu-se o pensativo silêncio. Esquecem os o teatro latino-am ericano, inclusive Arturo, que não se esquecia de nada de um a hora para a outra, se bem que o teatro que ele preferia não era precisam ente o latino-am ericano m as o de Beckett e o de Jean

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Genet. E nos pusem os a falar de Cuba e da entrevista que Paolo ia fazer com Fidel Castro, e acabou-se assim . Nos despedim os na Reform a. Arturo foi o prim eiro a se ir. Depois se foram Elena e seu italiano. Fiquei parada, sorvendo o ar que passava pela avenida, e os vi se afastar. Elena m ancava m ais que de costum e. Pensei em Elena. Respirei. Trem i. Vi com o se afastava m ancando ao lado do italiano. E de repente só via Elena. O italiano com eçou a desaparecer, a tornar-se transparente toda a gente que andava pela Reform a ficou transparente. Só Elena, seu casaco e seus sapatos existiam para m eus olhos doloridos. E aí pensei: resista, Elena. E tam bém pensei: corra até ela e abrace-a. Mas ela ia viver suas últim as noites de am or e eu não podia incom odá-la.

Depois daquele dia passou m uito tem po sem que eu soubesse nada de Elena. Ninguém sabia nada. Um de seus am igos m e disse: desaparecida em com bate. Outro: parece que foi para Puebla, para a casa dos pais. Eu sabia que Elena estava no DF. Um dia procurei sua casa e m e perdi. Outro dia consegui seu endereço na universidade e fui de táxi, m as ninguém abriu a porta para m im . Voltei com os poetas, voltei para a m inha vida noturna e esqueci Elena. Às vezes sonhava com ela e a via m ancando pelo cam pus infinito da UNAM. Às vezes eu m e punha à j anela do m eu banheiro das m ulheres no quarto andar e a via se aproxim ar da faculdade no m eio de um rodam oinho de transparências. Às vezes eu adorm ecia nos ladrilhos do chão e ouvia seus passos subindo a escada, com o se viesse m e resgatar, com o se viesse m e dizer desculpe por ter dem orado tanto. Eu abria a boca, m eio m orta ou m eio adorm ecida, e dizia chido[2], Elena, um a palavrinha de gíria m exicana que nunca utilizo porque acho horrorosa. Chido, chido, chido. Que horror. A gíria m exicana é m asoquista. E, às vezes, sadom asoquista.

Referências

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