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Direito à morte digna: uma análise sobre o suicídio assistido

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Academic year: 2021

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FACULDADE NACIONAL DE DIREITO

DIREITO À MORTE DIGNA: UMA ANÁLISE SOBRE O SUICÍDIO ASSISTIDO

STEPHANY OLIVEIRA GIARDINI FONSECA

Rio de Janeiro 2017/1

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DIREITO À MORTE DIGNA: UMA ANÁLISE SOBRE O SUICÍDIO ASSISTIDO

Monografia de final de curso, elaborada no âmbito de graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito pata obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Guilherme Magalhães Martins.

Rio de Janeiro 2017/1

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DIREITO À MORTE DIGNA: UMA ANÁLISE SOBRE O SUICÍDIO ASSISTIDO

Monografia de final de curso, elaborada no âmbito de graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito pata obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Guilherme Magalhães Martins.

Data da Aprovação: _ _/_ _/_ _ _ _ Banca Examinadora: _______________________________________ Orientador _______________________________________ Membro da Banca _______________________________________ Membro da Banca Rio de Janeiro 2017/1

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do conflito existente entre o direito à vida, direito à morte digna e autonomia privada. Além disso, é necessário a conceituação do suicídio assistido e outros institutos que possibilitam a aplicação da morte digna. Ademais, ocorre a análise dos motivos da ausência de lei sobre o tema, tendo como base a religiosidade do congresso nacional e da população brasileira, além do afastamento social dos indivíduos com a morte, estabelecendo a mesma como um 'tabu'. Assim, é oportuna a comparação entre a legislação brasileira e a de outros países, bem como observar a posição de nosso judiciário em decisões que envolvam a Bioética e o direito à vida. O suicídio assistido deve, conclui-se, ser possibilitado a fim de que não se verifique um aviltamento à dignidade da pessoa humana, princípio basilar de todo ordenamento jurídico e, por conseguinte, objetivo central a ser alcançado.

PALAVRAS-CHAVE

Direito à morte digna; dignidade da pessoa humana; suicídio assistido; Bioética; direito à vida; autonomia privada.

ABSTRACT

The present work has the objective of analyzing the possibility of the applicability of assisted suicide in the Brazilian legal system. This analysis is based on the discussion about the conflict between the right to life and the right to a dignified death and private autonomy, and on the conceptualization of assisted suicide and other insights that allow the application of a dignified death. In addition, the absence of a law on the subject, based on the religiosity of the national congress, and the social withdrawal of individuals with death, establishing death as a taboo. Thus, it is opportune to compare the Brazilian legislation with that of other countries, in addition to observing the position of the judiciary in decisions involving bioethics and the right to life at the end. In this way, it is concluded that assisted suicide must be made possible, so that there is no demeaning of the dignity of the human person, a basic principle of every legal system and, therefore, a central objective to be achieved.

KEYWORDS

Right to a dignified death; dignity of the human person; assisted suicide; bioethics; right to life; private autonomy.

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Agradeço por esse trabalho aos professores da

UFRJ, em especial, meu orientador Guilherme

Magalhães Martins, ao professor Pablo

Marano e à Marina Góes que muito me ajudou

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regida por ter plena consciência dos privilégios com que fui abençoada. Em um mundo tão cruel quanto o que vivemos hoje, ser uma pessoa rodeada de amor já é motivo suficiente para acordar todos os dias com um sorriso no rosto e a vontade para conquistar os objetivos. Sendo assim, primeiro agradeço à força que nos rege. Meu Deus é uma força imensa, de luz, que me deu a chance de vir ao mundo para cumprir uma missão. Ao longo destes meus vinte e três anos fui aos poucos tentando descobrir qual seria ela e o que eu poderia oferecer de melhor àqueles que me cercam. Nessa caminhada, tenho a sorte de ter ao meu lado uma família que me ajuda e orienta, um esteio que guiou todos os passos dados até agora.

A primeira imagem que vem à cabeça é da minha mãe, que ainda aos dezessete anos precisou carregar sozinha a responsabilidade de criar um ser humano para o mundo. Enganou-se quem achou que ela, por sua juventude, não daria conta do recado. Minha mãe foi guerreira e fez da maternidade seu maior objetivo. Deixou de perseguir os próprios sonhos para que eu pudesse conquistar os meus. Ofereceu conselhos, orientação e um amor inimaginável. Foi, mesmo sem ter consciência disso, meu maior exemplo de feminismo por me dar a certeza de que as mulheres podem conquistar o que quiserem. Minha mãe é força, é garra e determinação, e eu sou grata por ter me ensinado, ou ao menos tentado, a ser um espelho dela.

Minha avó Leides é outro exemplo de feminismo. Mesmo sendo de uma época onde as circunstâncias eram ainda mais difíceis para as mulheres, ela sempre fez questão de trabalhar e estudar. Aprendeu a falar inglês sozinha e trabalhava em dois lugares diferentes para conseguir trazer metade da renda da casa. Além disso, é a pessoa mais doce, solidária e altruísta que já conheci. Quem me conhece sabe o amor que eu tenho por ela, uma pessoa companheira e que faz de tudo para agradar a todos. Impossível não gostar da dona Leides. De quebra, ela ainda tem o colo mais acolhedor dessa vida.

Meu avô Francisco não está mais presente entre nós, mas permanece vivo em meus pensamentos. Sinônimo de honestidade e justiça, veio de uma família pobre do interior de Minas Gerais e conseguiu, depois de muito trabalho ao lado da minha avó, trazer conforto para minha mãe e para mim. Sempre colocou os estudos em primeiro lugar e por isso tenho

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Tenho ainda imensa gratidão por meu padrasto Antônio, sempre muito paciente e disposto a me ensinar. Poucas vezes vi alguém tão inteligente e perfeccionista, capaz de conversar sobre quase tudo com a clareza de um professor. Foi ele que esteve ao meu lado nos desesperos com a matemática, nos desesperos com o vestibular, nos desesperos com o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, e agora no desespero da monografia. De quebra, graças a ele me foi dada a oportunidade de ter uma irmã, Isabela.

Apesar de ter apenas 10 anos, Isabela me ensina muito. Me traz de volta a inocência e a esperança em um futuro melhor. Isabela tem um peito cheio de amor e uma espontaneidade ímpar. Brigamos sim, como é natural entre irmãos, mas minha admiração por ela é tanta que às vezes não consigo colocar em palavras.

Agradeço ainda ao meu pai, que me ensinou a nunca ter vergonha de dizer eu te amo e fez questão de reafirmar que homens podem e devem ser sensíveis. Mesmo morando longe, sinto seu amor todos os dias.

Agradeço também à torcida dos meus jovens tios, aos meus avós paternos pelo carinho de sempre e aos meus bichinhos e amores da minha vida: Tocha, Mulata e Banzé (in memoriam), Lolla e Sherlock. Sem eles certamente eu não teria tantas alegrias no dia-a-dia. Nada me deixa mais feliz do que a festinha da Lolla quando eu chego em casa e o miado do Sherlock ao acordar.

Quero agradecer, e muito, também aos amigos da Faculdade Nacional de Direito. Faço isso com lágrimas nos olhos ao relembrar de toda a nossa trajetória. Sem eles, esse longo e árduo percurso seria impossível. Eles foram responsáveis pelos cinco anos mais incríveis da minha vida e pela família de coração mais linda que se tem notícia. Faço destaque ao Feudo, grupo que é extensão da minha casa, da minha vida e do meu coração. De quebra, a Nacional me proporcionou encontrar o amor. Guilherme, obrigada por me ouvir e me apoiar em todos os momentos, incluindo os de estresse. Eu amo você.

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lindo que nos aguarda e por fazer nascer em mim a vontade de lutar por um Estado Democrático de Direito.

Encerro dizendo que ainda não cheguei a uma conclusão concreta sobre a minha missão nessa terra, mas certamente encontrei no Direito a possibilidade de, com justiça, mudar a vida das pessoas que precisam. Prometo representar e não decepcionar a UFRJ. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro terá se Deus quiser, mais uma defensora vinda da FND, na luta pela maximização das oportunidades e da justiça.

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INTRODUÇÃO...10

CAPÍTULO 1 1.1 Análise sobre a colisão dos princípios...16

1.2 Princípios da Bioética...20

1.3 O conceito de Dignidade da pessoa humana...22

1.4 O conceito de autonomia da vontade...27

CAPÍTULO 2 2.1 Institutos viabilizadores da morte digna: conceitos e diferenciações...33

2.2 Ausência de legislação...45

2.3 A morte como um tabu social e o crescimento da medicina paliativa...51

CAPÍTULO 3 3.1 Legislação comparada...55

3.2 Análise de casos concretos...62

3.3 Jurisprudências brasileira em casos envolvendo a Bioética e o direito à vida...66

CONCLUSÃO...76

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INTRODUÇÃO

“Direito à morte digna” é um tema que vem ganhando mais espaço de debate e, nesse movimento, terminologias como “eutanásia”, “ortotanásia” e “suicídio assistido” são cada vez mais discutidas no campo da Bioética/Biodireito.

A dignidade da pessoa humana é colocada em voga quando a morte digna é o âmbito central do debate. O conceito é uma característica fulcral da condição do ser humano e um fim que se deseja alcançar. Sendo assim, é possível considerá-la princípio basilar de qualquer Estado democrático de direito, não devendo ser subtraída quando da colisão de qualquer outro princípio, tendo em vista que ela é o próprio mecanismo de ponderação. 1

Se a morte faz parte da vida, o principio da dignidade da pessoa humana deve ser observado desde a concepção até o momento do último suspiro. Se, portanto, a dignidade faz-se prefaz-sente desde o momento do nascimento, esta não deve faz-ser esquecida ou subtraída no momento da morte.

A análise sobre a possível aplicabilidade do suicídio assistido no ordenamento jurídico brasileiro coloca o direito à vida em conflito com o direito à morte digna aliada ao conceito de autonomia privada no âmbito existencial. Admite-se que o direito à vida, como direito fundamental, não pode ser violado e, por conseguinte, inoportuno seria pensar na disponibilidade do mesmo pelo próprio indivíduo quando da aplicação do suicídio assistido.

Observando que o princípio basilar do ordenamento jurídico é a dignidade da pessoa humana e não o direito à vida, discutem-se situações em que findar com a própria vida se aproxima mais do conceito de dignidade do que a manutenção da mesma. Ademais, apesar da morte digna e da autonomia privada existencial não terem regras positivas no ordenamento,

1 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: Uma leitura civil- constitucional dos danos morais. São Paulo: Renovar, 2013. p. 66.

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afasta-se a ideia de inaplicabilidade de ambas, visto que o rol dos direitos fundamentais e da personalidade é exemplificativo e não taxativo. 2

Diante do apresentado, surge a necessidade de estabelecer a diferença entre o conceito de autonomia privada patrimonial e de autonomia privada existencial. Enquanto o primeiro tem seu fundamento na livre iniciativa, o segundo é estruturado de acordo com a própria dignidade da pessoa humana. 3

A liberdade de autodeterminar o momento do fim da existência se aproxima, conjuntamente, com os princípios da dignidade da pessoa humana, da morte digna e da liberdade. Deve-se respeitar a autonomia privada existencial, uma vez que se avalia que o direito à vida não decorre de um viver a qualquer preço. O suicídio assistido passa a ser observado como mecanismo de respeito à autonomia privada e a liberdade da decisão daquele que vive de maneira precária.

Podemos aferir a existência de alguns procedimentos que asseguram o direito à morte digna, mas faz-se necessário diferenciá-los, já que são institutos que não se confundem. Classifica-se a ortotanásia como o mecanismo que irá

“deixar a morte acontecer no tempo certo, de acordo com as leis da natureza, sem o emprego de meios extraordinários ou desproporcionais de prolongar a vida. Elementos essenciais

2 MARANO, Pablo Galvão. Diretivas antecipadas de vontade e a morte digna: uma leitura civil-constitucional do ponto final da vida humana. 2013. 98 f. Monografia. (Graduação em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. p. 32

3 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 104-105.

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associados a ortotanásia são a limitação consentida de tratamento e os cuidados paliativos”. 4

Faz-se necessário pontuar que até o presente momento a ortotanásia é o único mecanismo de morte digna com aplicabilidade no Brasil. O Conselho Federal de medicina, através da resolução de número 1.085/2006 foi a entidade que estabeleceu os limites e requisitos para a aplicabilidade de tal ato.

Por outro lado, a eutanásia consiste na indução da morte. Quando a abreviação da vida por um terceiro se dá de maneira proposital com finalidades benevolentes. Em contrapartida, o suicídio assistido consiste no auxílio de terceiros para que o próprio indivíduo consiga pôr fim à própria vida. 5

Frisemos a diferença entre suicídio assistido e eutanásia. Enquanto o primeiro é realizado pelo próprio indivíduo com auxílio de um terceiro, devendo ser, portanto, um paciente consciente, o segundo é realizado por terceiros, podendo o indivíduo estar inconsciente. Enquanto na eutanásia a ação que causa a morte é praticada por um terceiro, no suicídio assistido a ação que causa a morte é a do próprio indivíduo, sendo o terceiro apenas um colaborador.

Ao discutirmos os motivos que levam a ausência de leis acerca do suicídio assistido, alguns fatores relevantes podem ser apontados como norte. De início, observamos que, apesar de ser constitucionalmente um país laico, o Brasil tem uma população de maioria cristã, segundo dados do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar). Dentro dessa doutrina, o fim da vida só pode ser decidido por Deus, não cabendo ao próprio indivíduo ir de encontro às vontades do “criador”.6

4 BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: Dignidade e autonomia individual no fim da vida. 2011.40 f. Artigo (Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

5 ARAÚJO, Marilene. Aspectos filosóficos e jurídicos sobre a morte, a eutanásia, a ortotanásia e o suicídio assistido. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, 2015., v. 90, p. 215-244. 6 Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/publicacoes/finish/41-radiografia-do-novo-congresso/2883-radiografia-do-novo-congresso-legislatura-2015-2019-dezembro-de-2014 >Acessado em20/04/2017.

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No tempo em que vivemos, o congresso nacional conta com uma Frente Parlamentar Evangélica, responsável por entraves na estruturação de leis que versem sobre a Bioética. Em um segundo momento, pode-se trazer ao contexto da ausência, o fato da morte ser avaliada como um tabu, um campo de pouco debate, fazendo com que uma moral intrínseca rodeie a maioria da sociedade e permitindo que se pense que, em certos casos, uma vida precária e sofrida seja preferível a qualquer meio que encurte seu curso natural. 7

É possível também suscitar o fato da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5, elencar o direito à vida como um dos direitos fundamentais de todo ser humano e, portanto, inviolável. A Constituição tratou da inviolabilidade em sua redação, e também o Código Civil, nos artigos 11 a 21, trata da indisponibilidade dos direitos fundamentais. Ainda assim faz-se necessário uma análise a respeito da flexibilização dessa indisponibilidade para um maior alcance da dignidade.

A inviolabilidade não seria, então, a vedação do fim da vida de um indivíduo por fatores externos à sua vontade, ao passo que a disponibilidade se daria na medida em que um indivíduo pudesse usufruir a própria vida, tendo sua autonomia privada respeitada? Neste diapasão, caberia a ninguém mais além do indivíduo julgar em qual momento sua existência passaria a ser apenas um martírio, sem qualquer tipo de sentido e dignidade. Ele, portanto, decidiria seu desfecho, observando alguns critérios e requisitos para tal.8

No âmbito da não aceitação do suicídio assistido com base no direito à vida, mostra-se imperioso trazer à tona o conceito de mistanásia. No polo oposto dos institutos que garantem a morte digna, mistanásia significa a morte precária por falta, erro ou mau atendimento médico. Pelo fio do apresentado, observa-se que o Estado pratica a mistanásia no momento em que se observa a situação precária da saúde no Brasil. 9

Temos em mãos a seguinte discrepância: o Estado que intervém na autonomia privada existencial do indivíduo na decisão do seu momento de morrer, é o mesmo que não provêm meios de preservar a vida daqueles que necessitam. Ademais, apontamos o contrassenso que é

7 MENEZES, Rachel Aisengart. Em busca da boa morte: Antropologia dos cuidados paliativos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 30.

8 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro: Atlas, 2014. p.26-27. 9 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? 1ª ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 211.

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a proibição de um mecanismo da morte digna e a aplicação de um instituto que está no polo diametralmente oposto.

É oportuna a análise da legislação de outros países – para que sirva como mecanismo de comparação com a legislação pátria – e o exame do comportamento do judiciário brasileiro diante de casos que envolvam a Bioética e o direito à vida.

No primeiro capítulo deste trabalho analisaremos a aplicabilidade do suicídio assistindo, trazendo à tona a importante diferenciação entre princípios e regras. Será necessária a exposição dos princípios que entram em choque, tanto aqueles que são garantidos pelo ordenamento jurídico quanto os que vêm angariados da Bioética e do Biodireito.

O segundo capítulo será responsável por trazer a classificação dos institutos da morte digna, observando como cerne central da discussão o suicídio assistido e o envolvimento moral que a aplicação do mesmo traz para a sociedade. Será oportuno esclarecer os possíveis motivos da ausência de legislação, sendo a religião e a morte como tabu os objetos centrais. É de se estabelecer aqui o conceito de testamento vital, documento tido como aceito no Brasil após a resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina. Apesar de não ser o cerne principal deste estudo, o testamento vital é um documento viabilizador da ortotanásia, uma das vertentes da morte digna. Os conceitos tidos como opostos da morte digna serão mencionados para que se estabeleça um possível paralelo e se delineie o contrassenso que é a proibição do suicídio assistido quando nos pautamos na inviolabilidade no direito à vida.

Ao fim da jornada, o terceiro e último capítulo irá traçar a legislação comparada, usando Holanda, Bélgica, Suíça e Uruguai como parâmetro de comparação. Avaliaremos a legislação brasileira para que a comparação se torne mais eficaz. Ilustraremos o comportamento do judiciário quando a Bioética e o direito à vida são o núcleo de uma decisão. A análise, no entanto, não será com base no suicídio assistido, visto que não existem, no plano nacional, decisões envolvendo o assunto. Teremos de observar decisões relativas a temas semelhantes e simular um possível entendimento caso o suicídio assistido entrasse como base de discussão.

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O presente trabalho se mostra oportuno porque é necessário discutir a liberdade de escolha quanto ao momento de morrer. Entende-se que indivíduo deve ter assegurada a opção de não temer a sua morte em vida, ou seja, os dias de prolongamento de uma existência marcada pelo sofrimento, dor e agonia. É necessário discutir o direito à autonomia pessoal, o reflexo da liberdade e, por conseguinte, a possibilidade de findar com um existir vão, pois, como se acredita “do direito à vida não decorre o dever de viver a qualquer preço.”.

A guisa de ilustração, leia-se um trecho da escritora Rosiska Darcy de Oliveira em sua coluna para o jornal O Globo:

“Nada é mais cruel e injusto do que, em nome de um princípio religioso ou de uma ética médica de outros tempos, impor a um ser humano, já fragilizado e contra a sua vontade, dores atrozes, a imobilidade que aprisiona dentro do próprio corpo ou a convivência insuportável com a certeza de que sua mente e, em consequência, sua capacidade de escolha estão se apagando.10”

10 OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. A última liberdade. O Globo. Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2016. Disponível em: < http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2016/11/ultima-liberdade.html > Acessado em 03/02/2017.

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CAPÍTULO 1

1.1 – Análise sobre a Colisão de princípios

Neste capítulo será feito um traçado geral das características e diferenças entre princípios e regras e análise das possíveis aplicações caso estes princípios colidam. Uma análise mais aprofundada dos princípios e direitos fundamentais no caso do suicídio assistido virá em seguida.

Ronald Dworkin avalia que o positivismo é um instituto que enseja a aplicação exclusiva das regras, o que prejudicaria a solução dos hard cases (casos difíceis). O suicídio assistido trata-se de um hard case, uma vez que encontramos nessa seara alguns princípios e direitos fundamentais que colidem. Segundo Dworkin, em casos concretos em que não existam soluções pré-definidas o juiz deve criar uma nova solução para o caso, de uma maneira parcial e racional, porém, de forma discricionária11. Entretanto, a decisão do juiz não deve se dar de maneira completamente livre. É daí que se observa a necessidade clara da aplicação dos princípios que fazem parte do ordenamento jurídico da sociedade.

Primeiro, uma breve caracterização entre algumas diferenças entre regras e princípios se faz necessária. De antemão destacamos que toda regra opera na condição da validade, portanto mandando ou proibindo alguma determinada conduta. Não se podem aplicar regras de maneira ampla, não cabendo discricionariedade nem ponderação entre elas diante de uma colisão.12 As regras, segundo Dworkin, funcionam no sentido do “tudo ou nada”: ou são válidas e seus mandamentos devem necessariamente ser aplicados, ou inválidas e, portanto, não se aplica em nada o que é mandado por ela.13 Os princípios, ao contrário, não funcionam no sentido de “tudo ou nada”, mas servem como um conjunto de motivos que levam a aplicação de uma decisão ou de outra14. São, portanto, normas aplicadas de maneira ampla de

11 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 9ª ed. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 14-80.

12 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p.91. 13 DWORKIN, Ronald. op. cit p.39.

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acordo com as possibilidades fáticas, sendo assim, caracterizados como “mandamento de otimização”.15

Outra diferença clara entre princípios e regras é: diante da colisão de duas regras, para que uma delas seja aplicada é necessário que a outra seja considerada inválida, justamente pela característica de “tudo ou nada” que é conferida às regras. De outro giro, o mesmo não acontece com os princípios, já que dois princípios que colidem diante de um determinado caso concreto podem continuar convivendo em um mesmo ordenamento jurídico, tendo um que ceder momentaneamente em detrimento do outro. Diante dos casos difíceis, cabe ao judiciário resolver e reconhecer uma determinada solução a partir da existência de princípios, dotados de força coercitiva16. Fica claro que Dworkin não se apega apenas às regras positivadas.

Como já supramencionado, quando princípios colidem é necessário ponderá-los diante da análise dos casos concretos. Robert Alexy em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais afirma que diante do conflito, observam-se quais características o caso concreto estabelece, para que daí justifique-se aplicar um princípio em detrimento de outro. O seguinte trecho elucida com clareza a problemática em questão: “O princípio P1 tem, em um caso concreto, um peso maior que o princípio oposto P2, quando existem razões suficientes para que P1 preceda a P2, sob as condições C dadas em um caso concreto”17.

Segundo Alexy, um dos institutos mais significativos para a ponderação dos princípios é o princípio da proporcionalidade. É este instituto que configura uma maior otimização na aplicação dos princípios, na medida em que a proporcionalidade é composta por três subprincípios que possibilitam esta árdua tarefa. Os subprincípios da proporcionalidade são: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação confere avaliação se o meio empregado vai alcançar o objetivo. A necessidade ocorre na avaliação da existência de outro meio que alcance o mesmo fim, mas que seja menos gravoso. Já a

15 ALEXY, Robert. op. cit. p.90.

16 SERTÃ, Renato Lima Charnaux. A distanásia e a dignidade do paciente. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.50.

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proporcionalidade em sentido estrito pode ser configurada quando se analisam as vantagens e desvantagens da aplicação de determinada conduta. Isto posto, Alexy afirma que “quanto mais alto é o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro”18.

A ponderação também pode ser aplicada de maneira abstrata quando não necessariamente existam casos concretos a serem analisados, mas sim possíveis colisões de princípios, situações ou normas. Se um caso concreto surgir, o legislador não precisará então decidir sem parâmetros, e sim de acordo com a ponderação realizada previamente, não sendo possível, por óbvio, que sejam avaliadas todas as situações concretas possíveis.19 Diante da difícil conclusão acerca do tema e da nítida necessidade de avaliar situações de acordo com os casos concretos, aplicar um instituto que não atue no sentido do “tudo ou nada” mostra-se de suma importância na proteção da dignidade da pessoa humana e contra o aviltamento da mesma.

A crítica da ponderação dos princípios proposta por Alexy se baseia em dois argumentos centrais. Eles embasam que, podendo o juiz decidir a aplicação de um princípio ou de outro, poderia ocorrer uma interferência de um poder sobre o outro, ou seja, do judiciário no legislativo. Isso também conferiria um poder discricionário muito grande ao aplicador do direito que, em tese, escolheria o princípio a ser aplicado de maneira parcial, de acordo com suas posições ideológicas.

Estabelecer uma hierarquia entre os direitos fundamentais e, portanto, a desnecessidade da ponderação, faria com que um princípio sempre se sobressaísse quando houvesse colisão. A ponderação é um instrumento necessário para a preservação dos próprios direitos fundamentais, devendo as decisões dos juízes serem pautadas em uma argumentação racional

18 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality. Ratio Juris, v.16, n. 2, 2003. p.136.

19 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade jurisdicional. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pag 149

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que evite a usurpação da atividade legiferante pelos juízes nessas ocasiões 20. Ademais, uma análise das três fases da ponderação já explicitadas (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) confirma a racionalidade da teoria, não sendo a ponderação um mecanismo irracional aplicado de forma leviana.

Enquanto a teoria das regras só se avalia a validez ou a não validez, a teoria dos princípios possibilita uma maior flexibilidade, fazendo com que os direitos fundamentais não sejam apenas tidos como válidos ou não diante de uma colisão, tendo que um ser necessariamente excluído do ordenamento jurídico para a aplicação do outro.

Diante do exposto, observamos um trecho de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que usa em sua argumentação a ponderação de princípios:

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele

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conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (RE 349703 -CARLOS BRITTO)21

1.2 – Princípios da Bioética

Com o avanço da medicina, várias possibilidades médicas antes impensadas ganharam destaque. A citar o transplante de órgãos, a inseminação artificial e, inclusive, possibilidades para uma vida mais duradoura. Tornou-se necessário um estudo capaz de analisar até que

21 Disponível em < https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14716550/recurso-extraordinario-

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ponto a ciência e a medicina podem interferir na vida e como se dará esta interferência. Surgiu então o conceito da Bioética, preenchido de princípios norteadores que regem este instituto.

Os princípios norteadores da Bioética foram criados pelo Congresso dos Estados Unidos da América, de uma Comissão Nacional que tinha como objetivo elencar os principais valores necessários para se permitir a interferência e os limites do comportamento da medicina e da ciência em seres humanos22. Da Comissão foi possível extrair três princípios, quais sejam: autonomia, beneficência e justiça. A autonomia tem como principal característica o respeito pelas escolhas e convicções pessoais; o da beneficência, o dever de minimizar os danos e aumentar os benefícios; por fim o da justiça, que pode ser resumido pela ideia de parcialidade, ou seja, apenas distinguir os seres humanos na medida da desigualdade dos mesmos, não podendo esta distinção ser feita por nenhum fator que gere qualquer tipo de discriminação23. Observados os princípios acima, postula-se uma não hierarquia entre eles, devendo ser utilizada a ponderação diante da análise dos casos concretos.

Em relação ao Biodireito, podemos configurá-lo como um ramo do Direito em que será possível regular de que forma se darão os avanços da Biologia e da Medicina, através de normas e legislações24. Com o avanço da tecnologia e da ciência, o Direito teve de se adaptar a uma nova gama de situações e algumas leis precisaram ser adaptadas em virtude desse avanço. Porém, fica claro que não se pode limitar o direito às leis, que são regras de comando no sentido “tudo ou nada”, partindo para a necessidade da influência dos princípios no campo do Biodireito. Refere-se tanto aos princípios da Bioética quanto aos princípios constitucionalmente protegidos, não podendo as normas do Biodireito desrespeitar os princípios constitucionais25.

Considerando o Biodireito um ramo novo onde não é possível a caracterização de princípios próprios e, considerando ainda ser um ramo de nítida colisão entre princípios, fica

22 BARBOSA, Heloisa Helena. Princípios da Bioética e do Biodireito. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina, v. 8, nº 2, 2000. p. 211.

23 Ibidem. p.211. 24 Ibidem. p.212. 25 Idem.

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clara a necessidade da utilização da ponderação para que ocorra a aplicação da decisão mais acertada26.

1.2 – O conceito de Dignidade da pessoa humana

Tendo considerado os pensamentos dos filósofos Ronald Dworkin e Robert Alexy, além dos da professora Heloisa Helena sobre a diferença entre princípios e regras, ponderação dos princípios e alguns princípios pertinentes da Bioética e do Biodireito, podemos afirmar que o princípio mais importante no que tange a possibilidade da aplicação do suicídio assistido no Brasil é o da dignidade da pessoa humana, que será analisado no decorrer do presente capítulo.

A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, dispõe a vida como um dos direitos fundamentais que deve ser protegido sob todos os aspectos, é esse direito que, obviamente, possibilita o exercício de qualquer outro direito. Desse modo, se um ou mais direitos colidem, tende o direito à vida prevalecer. Mas ele pode ser tratado de forma quase absoluta e obrigar a preservação da vida a qualquer custo? A dignidade da pessoa humana não estaria relacionada também a uma morte digna? A vida tida como um direito, quando levada de maneira sofrida e obrigatória, não se tornaria um dever? Até que ponto a liberdade, representada pelo princípio da autonomia privada existencial, é realmente exercida? São questões importantes que merecem destaque para aperfeiçoamento do tema.

O princípio da dignidade da pessoa humana surgiu no cenário mundial a partir de eventos históricos que levaram o homem ao estado de absoluta degradação. Depois de episódios como a Segunda Guerra Mundial e o nazismo, sentiu-se a necessidade de garantir uma proteção maior aos indivíduos. Foi neste contexto que, em 1948, as Nações Unidas

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proclamaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo primeiro garante que "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidades e direitos".27

A dignidade humana é um fim a ser alcançado e não um meio para alcançar outro fim. A condição humana dos indivíduos, por si só, faz com que a dignidade seja garantida em qualquer situação. Fica claro que dignidade é tratar humanos como tal, sendo assim, sempre que um ser humano estiver se afastando da sua condição única e servindo como meio para o alcance de algum objetivo degradante, a dignidade da pessoa humana estará sendo veementemente prejudicada. Neste sentido, Maria Celina Bodin de Moraes no livro Danos à pessoa humana faz a seguinte passagem:

Para distinguir os seres humanos, diz-se que detêm uma substância única, uma qualidade própria apenas aos humanos: uma "dignidade" inerente à espécie humana. A raiz etimológica da palavra dignidade provem do latim dignus -"aquele que merece estima e honra, aquele que é importante.28

Luis Roberto Barroso em seu texto A morte como ela é: dignidade e autonomia afirma, em consonância com os pensamentos de Maria Celina Bodin de Moraes, que a dignidade da pessoa humana é um valor intrínseco do homem. O seguinte trecho elucida de maneira clara a questão em tela:

Na sua expressão mais essencial, a dignidade exige que toda pessoa seja tratada como um fim em si mesma, consoante uma das enunciações do imperativo categórico kantiano. A vida de qualquer ser humano tem um valia intrínseca. Ninguém existe no mundo para atender os propósitos de outra pessoa ou para servir a metas

27 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: Uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 2003. p. 66

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coletivas da sociedade. O valor ou princípio da dignidade humana veda, precisamente, essa instrumentalização ou funcionalização de qualquer indivíduo.29

Após tais desastres mundiais, a dignidade da pessoa humana passou a ser um valor moral, e implementá-la passou a ser necessário em qualquer Estado Democrático de Direito. Afirma-se que a dignidade humana é mais do que um princípio: ela foi incorporada nos ordenamentos jurídicos como base de ponderação, que por sua vez é o princípio basilar de qualquer constituição e um elemento necessário para a configuração de um Estado democrático de direito.

A constituição brasileira de 1988 – considerada como a “constituição cidadã” por ser a primeira constituição democrática após o longo período da ditadura – tem a dignidade da pessoa humana como um princípio norteador e necessário de ser observado quando da colisão de direitos em casos concretos, não sendo preterido em colisão com qualquer outro princípio.

Vislumbra-se que indivíduos que desejam pôr fim a própria vida, mas que se encontrem em situações extremas e precárias, possam encontrar no suicídio assistido uma proximidade maior com a dignidade da pessoa humana. Ao ter seu direito de escolha negado, porém, o mesmo princípio, aos poucos, será subtraído. Se a previsão e a proximidade da morte acompanham a todos durante a vida, da mesma forma o princípio da dignidade da pessoa humana deve estar presente desde a concepção até o momento do último suspiro.

É notória a colisão de direitos (direito à vida e direito à morte digna) quando discutida a possibilidade do suicídio assistido no ordenamento jurídico brasileiro. O direito a uma morte digna não está positivado, mas é fácil notar que a doutrina reconhece que o rol de direitos fundamentais e da personalidade trazidos pela Constituição da República e pelo Código Civil

29 BARROSO, Luis Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. 2011.40 f. Artigo (Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. p.8-9.

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de 2002 não são taxativos e sim exemplificativos, possibilitando novos direitos no contexto constitucional. O direito à morte digna é um exemplo claro de direito não positivado que faz parte dos direitos da personalidade constitucionalmente tutelados30.

Os argumentos em defesa de uma morte digna colidem com os argumentos em defesa vida e da dignidade da pessoa humana. Questiona-se se aplicar o princípio da dignidade da pessoa humana seria defender a vida a qualquer custo ou permitir a escolha do momento de findar a mesma. Diante deste hard case pode-se interpretar a morte digna como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao analisarmos o artigo 5º da CRFB e os artigos 11 a 21 do Código Civil, observamos que o direito à vida está elencado como um dos direitos fundamentais de todo ser humano e, portanto, inviolável. Porém, é necessário depreender que existe discussão acerca do que seria estabelecido como inviolabilidade.

A inviolabilidade seria a vedação do fim da vida de um indivíduo por fatores externos à sua vontade e fica garantido a qualquer cidadão que nenhum terceiro irá subtrair seu direito de viver. O estado tem como uma de suas obrigações garantir a segurança para que esse direito seja respeitado. Ao mesmo tempo, garantir a flexibilização e a disponibilidade do indivíduo, permite que ele possa fazer escolhas que ajude a fomentar sua própria personalidade. Caberia ao indivíduo, portanto, decidir o momento em que a vida se torna apenas um martírio, sem qualquer tipo de sentido e dignidade. É em consonância com esse tipo de pensamento que Rachel Sztajn afirma:

O que o preceito constitucional faz é tutelar um bem jurídico, a vida, sem alcançar a vontade de morrer e a faculdade de provocar a própria morte. A norma protege a vida contra ação de terceiros, daí

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porque o induzimento ao suicídio é tipificado como conduta delitual. A autonomia na escolha de entre viver ou não deve ser absoluta, resultar da manifestação livre e informada, sem interferência externa de qualquer ordem, especialmente do médico ou do Estado.31

Tendo em pauta o conflito entre o direito à vida e o direito à morte digna, e sendo certo que um não se sobrepõe ao outro, pois inexiste hierarquia entre direitos fundamentais, aplicar-se-á a solução calcada na maior aproximação com a dignidade diante da análise de casos concretos. Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes:

[...] conflito entre princípios de igual importância hierárquica, o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, em favor do conceito da dignidade humana. Somente os corolários, ou subprincípios em relação ao maior deles, podem ser relativizados, ponderados, estimados. A dignidade [...] vem à tona no caso concreto, quando e se bem feita àquela ponderação. 32

Não é o direito à vida que deve ser tido como absoluto e sim o princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, é ele o parâmetro de ponderação diante da colisão de direitos fundamentais. Neste sentido, Luis Roberto Barroso em sua obra A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporânea sabiamente explicita que:

Ao longo do tempo, consolidou-se a convicção de que nos casos difíceis, para os quais não há resposta pré-pronta no direito posto, a construção da solução constitucionalmente adequada precisa recorrer a elementos

31 SZTAJN, Rachel. In: COHEN, Cláudio; GARCIA, Maria (orgs). Questões de Bioética clinica: pareceres da comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p.23.

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extrajurídicos, como a filosofia moral e a filosofia política. E, dentre eles, avulta em importância a dignidade humana.33

Para Barroso, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser aplicado em três dimensões: aplicabilidade direta, negativa e interpretativa. No caso do suicídio assistido a aplicação seria de maneira interpretativa, na medida em que o que se extrai do princípio não é uma regra, como acontece na aplicabilidade direta, mas sim, que da aplicação do direito à morte digna observa-se a maior proximidade com o conceito de dignidade conforme foi possível analisar a partir de casos concretos.34

Em suma, percebe-se que a discussão gira em torno do princípio da dignidade da pessoa humana e, até que ponto proibir ou permitir o indivíduo a escolher o momento de sua morte se aproxima ou se afasta dele. É nesse contexto que os ensinamentos acerca da ponderação e proporcionalidade são aplicados de forma direta.

1.4 O conceito de autonomia da vontade

Além do conflito entre a morte digna e o direito à vida previamente estabelecido, é necessário debater a autonomia da vontade. No que tange as relações privadas, ela é decorrente da liberdade que está no vértice do próprio princípio da dignidade humana, prescrita na Constituição. A discussão deve ser baseada não somente no que concerne o direito à vida, mas também no motivo que leva o Estado a garantir a liberdade a cidadãos pertencentes a determinado ordenamento jurídico e, ao mesmo tempo, proibir a autonomia deste mesmo cidadão em decidir a hora de sua morte.

33 BARROSO, Luis Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: Natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Artigo. Verão provisória para debate público. Rio de Janeiro. Mimeografado. 2010. p. 11.

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Essa autonomia pode ser retratada de acordo com a capacidade de autodeterminação que um indivíduo tem para fazer escolhas e tomar decisões no âmbito pessoal. Ademais, a autonomia privada na esfera do suicídio assistido é a autonomia privada existencial. Ela, por sua vez, é diferente da autonomia privada patrimonial. Essa distinção é feita a partir do momento em que situações existenciais influenciam diretamente na personalidade do indivíduo, enquanto as patrimoniais têm como principal objetivo as questões econômicas envolvidas.35

Essas duas situações, existenciais e patrimoniais, não são excludentes e podem atuar dentro de uma mesma circunstância. Elas não são pautadas, no entanto, pelo mesmo fundamento constitucional. Enquanto as situações jurídicas patrimoniais têm como base a livre iniciativa, as situações jurídicas existenciais têm como fundamento constitucional a própria dignidade da pessoa humana segundo o artigo 1°, III da CRFB. Desse modo, observa-se com nitidez a diferença entre atos de autonomia existencial e patrimonial, e a hierarquia da primeira sobre a segunda.36

É certo que o Código Civil estabelece, do artigo 11 ao 21, alguns critérios para classificar as situações existenciais. É impossível, porém, para o legislador, regulamentar todas as situações existenciais possíveis e existem situações em que a autolimitação dos direitos da personalidade não estarão positivadas. Diante disso, assim como exigir uma regra positivada para a morte digna é uma visão afastada, exigir uma regra positivada para permitir a autonomia privada nas relações existenciais também deve ser deixada de lado.37

A autonomia privada existencial tem respaldo constitucional no princípio da dignidade humana, através do conceito de liberdade. Portanto, apenas admitir a disposição dos direitos da personalidade em situações pré-definidas é um aviltamento da liberdade. Por consequência, isso também fere a própria dignidade humana, uma vez que a autonomia privada existencial é um mecanismo que garante o livre desenvolvimento da personalidade.38

35 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. op. cit. p. 103 36 36 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. op. cit. p.104-105. 37 Ibidem. p. 187.

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A autodeterminação faz com que uma pessoa capaz consiga tomar decisões e fazer escolhas acerca da sua vida, sem que essas escolhas sejam impostas e pré-ordenadas e desde que não interfiram e nem violem direitos alheios. Algumas decisões têm que ser, por óbvio, já pré-definidas pelo Estado, com base em interesses coletivos representativos de uma vida em sociedade, mas, à parte deste contexto do interesse social, faz parte da dignidade humana ter o poder de tomar decisões sobre sua própria vida.39

Para que as pessoas possam fazê-lo, no entanto, é necessário que o Estado em que elas estejam inseridas lhe garanta subsídios e meios para tal, e neste sentido Barroso faz uso da seguinte passagem:

Não basta garantir a possibilidade de escolhas livres, mas é indispensável prover meios adequados para que a liberdade seja real, e não apenas retórica. Para tanto, integra a ideia de dignidade o denominado mínimo existencial (v. supra), a dimensão material da dignidade, instrumental ao desempenho da autonomia. Para que um ser humano possa traçar e concretizar seus planos de vida, por eles assumindo responsabilidades, é necessário que estejam asseguradas mínimas condições econômicas, educacionais e psicofísicas.40

É de se destacar, contudo, que a autonomia da vontade existencial em grande parte é cerceada por uma postura paternalista por parte do Estado. Esse tipo de postura gera estranheza na medida em que a liberdade é, por si só, uma das características mais importantes do próprio conceito de dignidade.

Traçadas as primeiras considerações acerca da autonomia privada, também é importante mencionar o conceito de dignidade como heteronomia. A dignidade humana significa dizer que, como culturas diferentes traçam conceitos morais distintos, valores compartilhados socialmente, por vezes, tem mais importância do que a própria escolha pessoal.

39 BARROSO, Luis Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Ibidem. p.10.

40 BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: Dignidade e autonomia individual no fim da vida. Ibidem. p.19.

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Neste sentido, defende-se que o conceito de dignidade serve mais para limitar as escolhas pessoais calcadas em um valor moral e ético compartilhados pelos indivíduos, do que conferir a liberdade de escolhas propriamente dita. Diante desta ótica, a seguinte passagem de Barroso consegue elucidar as questões trazidas até então: “Nessa acepção, a dignidade não é compreendida na perspectiva do indivíduo, mas como uma força externa a ele, tendo em conta os padrões civilizatórios vigentes e os ideais sociais do que seja uma vida boa”. 41

No Brasil, a dignidade como heteronomia possivelmente é o maior entrave no caminho de uma possível legislação voltada ao conceito de morte digna, na medida em que nossa sociedade possui valores éticos e morais muito influenciados pela religião. Essa característica finda por impedir um debate mais aprofundado sobre o poder de decisão que um indivíduo tem em relação ao momento de morrer.

De um modo geral, as constituições democráticas revelam um ideal muito mais voltado É dignidade como autonomia do que como heteronomia, pois a dignidade à luz da primeira valoriza as escolhas pessoais e os conceitos morais avaliados pelo próprio indivíduo. A dignidade como autonomia é um reflexo das democracias pluralistas e do próprio conceito de liberdade. 42Não seria diferente com a constituição brasileira de 1988. O fato citado, porém, não é o mesmo que dizer que não exista uma preocupação com o coletivo e que todos os indivíduos possam usar o texto como uma justificativa para o uso desenfreado da liberdade. 43

No campo da Bioética e do Biodireito, essas duas perspectivas de dignidade entram em choque na medida em que tentam definir possíveis soluções em casos extremos, onde exista a impossibilidade de cura ou melhora do quadro clínico, fazendo com o que o paciente sofra em demasia, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Defender a autonomia do indivíduo em casos como estes é defender que a vida é una do início ao fim e que a dignidade deve ser estendida do nascimento até o seu desfecho.

41 Ibidem. p.22.

42 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2009. p.18.

43 BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de CamposVelho. A morte como ela é: Dignidade e autonomia individual no fim da vida. Ibidem. p.28.

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A proibição do suicídio assistido reitera o caráter paternalista do estado que, ao tentar decidir pela pessoa interessada, tira dela um poder imprescindível para a garantia da dignidade da pessoa humana. Além de inferiorizar, essa ação deslegitima o poder de decisão de um ser humano capaz. O Estado estaria agindo de modo a tentar proteger o indivíduo dele mesmo, na medida em que afasta a autonomia que é um elemento necessário da própria construção do “eu”.44

Esse caráter paternalista é um conceito ultrapassado no âmbito das democracias pluralistas, uma vez que se entende que o estado não deve intervir nos valores dos cidadãos e não devendo a comunidade impor princípios e sanções penais àqueles que escolhem outra perspectiva de pensamento. Essa imposição, segundo Dworkin, significaria uma destruição da responsabilidade moral individual.45

Em relação ainda à autonomia privada, outro ponto merece importante destaque: o fato de estarmos todos inseridos em uma sociedade dotada de um poder normalizador, ou seja, tende a fazer com que todos os indivíduos pensem seus ideais são compatíveis com os ideais estatais. O homem que inserido nessa conjuntura é livre de uma maneira “maquiada”, sendo incentivado a estar sempre de acordo com o pensamento central. 46

Em situações excepcionais, proibir uma pessoa de decidir o momento de pôr fim à própria vida faz com que ela perca o poder de autodeterminação sobre seu próprio corpo e de fazer escolhas livres, sendo essas escolhas a própria configuração do conceito de personalidade. Como é exposto por Dworkin “levar alguém a morrer de uma maneira que outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição de sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania”47.

Apesar do “homicídio piedoso” e do auxílio ao suicídio estarem expostos no Código Penal como crimes, interpretar esses artigos conforme a Constituição é avaliar se, em casos

44 MARANO, Pablo Galvão. op. cit. p. 58.

45 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Ibidem. p.18. 46 KRAVETZ, Rafaella Zanatta Caon; CASTRO, Matheus Felipe. O suicídio assistido na esfera dos direitos fundamentais: Análise da autonomia da vontade na sociedade disciplinar. Artigo. Revista Jurídica – UNICURITIBA. Curitiba, 2015, v.2, n.39. p. 349.

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concretos, existe a expressa vontade do paciente de ter a sua vida encurtada. Assim, o direito à morte digna e a autonomia privada seriam respeitados no âmbito da dignidade humana, já que os dois princípios mencionados configuram princípios constitucionais que devem estar sob constante proteção.48

48 DIAS, Roberto. Disponibilidade do direito à vida e eutanásia: uma interpretação conforme a

Constituição. In IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; FACHIN, MelinaGirardi (Coords.). Direitos humanos na ordem contemporânea: proteção nacional, regional e global. Curitiba: Juruá, 2010, v. 4. p.174.

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CAPÍTULO 2

2.1 – Institutos viabilizadores da morte digna: conceitos e diferenciações

Neste capítulo serão explicitados os principais institutos da morte digna. O meio de aplicação mais conhecido é a “eutanásia”. Em termos gerais, ela significa a possibilidade de indução da morte. Trata-se de ação médica intencional de apressar a morte de pessoas que estejam acometidas por doenças ou quadro clínico irreversível ou incurável e, por consequência, sintam dor e sofram em demasia, tanto física quanto psicologicamente. Essa indução pode ser feita com ou sem o consentimento do paciente, tratando-se a primeira da eutanásia voluntária e a segunda da involuntária.49

O termo “indução” é um mecanismo necessário para diferenciar a eutanásia da ortotanásia. Há ainda a necessidade de diferenciar a ortotanásia da eutanásia passiva, visto que neste último, a morte não é certa. Na eutanásia, o resultado final da conduta médica é promover a morte, suspendendo ações que ainda seriam proporcionais ao paciente e, portanto, essa omissão do médico configuraria crime. Em contrapartida, na ortotanásia a morte é iminente, portanto o resultado final não é a morte em si, mas sim evitar que se prolongue demasiadamente o estado de sofrimento do paciente, não aplicando uma determinada conduta quando da certeza que o resultado não será satisfatório à reversão do quadro clínico do mesmo50. Segundo Luciano de Freitas Santoro, Mestre em direito pela PUC/SP “Enquanto na ortotanásia a causa do evento da morte já se iniciou, na eutanásia passiva esta omissão é que será a causa do resultado, ou seja, é a conduta omissiva do médico, ou de terceiro, que será a causa do evento morte.”51

A ortotanásia tem como característica o conceito de omissão, o que significa dizer que enquanto a eutanásia ativa necessita de uma ação que possibilite algum meio de encurtamento da vida, seja através de remédios ou do desligamento de aparelhos, a ortotanásia nada mais é

49 ARAÚJO, Marilene. Aspectos filosóficos e jurídicos sobre a morte, a eutanásia, a ortotanásia e o suicídio assistido. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, 2015, v. 90, p. 6. 50 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro. Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina.v.16, nº 2, 2008. p. 63.

51 Disponível em: < http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/morte-digna/5880 > Acessado em 23/04/2017.

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que não submeter o paciente a nenhum tratamento médico, deixando que a morte ocorra naturalmente.52 É frisada a necessidade de diferenciação na medida em que alguns doutrinadores tratam a eutanásia passiva e a ortotanásia como sinônimos, como pode ser observado na seguinte passagem da obra Problemas da Bioética do autor português Andrew C. Vargas: “A omissão do tratamento desnecessário, isto é, não prolongar o processo da morte através de aparelhos que mantêm a vida, tal como a respiração artificial, é chamado de eutanásia negativa ou passiva”. 53A omissão na ortotanásia decorre de um estado terminal do paciente, onde a morte já é prevista e o objetivo central é o não prolongamento da vida através de métodos e medidas arrazoáveis.

Podemos afirmar, portanto, que a ortotanásia é o único mecanismo aceito no Brasil conforme Resolução 1.085/2006 do Conselho Federal de Medicina, expressa no seguinte texto:

“O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, (...) CONSIDE-RANDO o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil; CONSIDERANDO o art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”;

CONSIDERANDO que cabe ao médico zelar pelo bem-estar dos

pacientes; CONSIDERANDO que o art. 1° da Resolução CFM n° 1.493, de 20.5.98, determina ao diretor clínico adotar as providências cabíveis para que todo paciente hospitalizado tenha o seu médico assistente responsável, desde a internação até a alta;

CONSIDERANDO que incumbe ao médico diagnosticar o doente

como portador de enfermidade em fase terminal RESOLVE: Art. 1º É permitido ao médico limitar ou

52 VILLAS-BÔAS. op. cit. p. 54

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suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”54

O texto da resolução cita o princípio constitucional da dignidade humana e a não necessidade do indivíduo se submeter a tratamento desumano ou degradante. Essa citação também serviria como argumento que embasa a viabilidade de aplicação dos outros mecanismos da morte digna.

A resolução foi alvo de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal que alegou, dentre outras coisas, o seguinte: “O Conselho Federal de Medicina não tinha o poder de regulamentar para estabelecer como conduta ética uma conduta considerada crime; o direito à vida era indisponível só podendo ser restringido por lei em sentido estrito e que, considerando o contexto socioeconômico brasileiro, a ortotanásia poderia ser utilizada indevidamente.” Porém, foi emitida sentença que considerou improcedente o pedido formulado pelo Ministério Público, alegando que:

“[...] o CFM tem competência para editar a Resolução nº 1805/2006, que não versa sobre direito penal e, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares; 2) a ortotanásia não constitui crime de

54 Disponível em < http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2007/1819_2007.htm > Acessado em 01/05/2017

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homicídio, interpretado o Código Penal à luz da Constituição Federal; 3) a edição da Resolução nº 1805/2006 não determinou modificação significativa no dia-a-dia dos médicos que lidam com pacientes terminais, não gerando, portanto, os efeitos danosos propugnados pela inicial; 4) a Resolução nº 1805/2006 deve, ao contrário, incentivar os médicos a descrever exatamente os procedimentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência e possibilitando maior controle da atividade médica; 5) os pedidos formulados pelo Ministério Público Federal não devem ser acolhidos, porque não se revelarão úteis as providências pretendidas, em face da argumentação desenvolvida55.”

Diante do apresentado, surge a necessidade de se estabelecer o conceito de testamento vital, tema de importante apreciação. De acordo com Vladia Maria de Moura Soares Sanches56, o testamento vital é um documento com diretrizes antecipadas, realizado por um indivíduo em momento de lucidez, que estabelece quais as medidas a serem adotadas pelos médicos em casos de inconsciência, quando observada condições físicas e mentais irreversíveis ou terminais.57

Em casos de perda da consciência e, por conseguinte, diante da impossibilidade do indivíduo de tomar decisões, o testamento vital deve ser observado a fim de se estabelecer o tratamento aplicável, buscando observar a autonomia do redator do documento. Em suma, trata-se de um documento escrito em que o indivíduo é capaz de estabelecer sua vontade quando se encontra incapaz de manifesta-la. Além de garantir a autonomia do paciente, garante também uma segurança legal ao médico que toma qualquer decisão em situações peculiares e conflituosas que possam advir da junção do estado de inconsciência com a irreversibilidade ou terminalidade.

55 Disponível em < http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15785 > Acessado em 02/05/2017.

56 Mestre em Direito do Estado/Direito Constitucional pela PUC/SP.

57 SANCHES, Vladia Maria de Moura Soares. O testamento vital e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, 2014, v. 87, p.2.

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Apesar de não existir uma lei que trate sobre as diretivas antecipativas de vontade, assim como não existe alguma que positive qualquer instituto viabilizador da morte digna, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução de número 1.995. Oportuno transcrever o seguinte trecho que elucida de forma clara o entendimento do Conselho de se admitir a aplicação das diretivas:

“Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.(...)”

Contra essa resolução foi proposta a Ação Civil Pública 0001039-86.2013.4.01.3500, contudo a decisão proferida pelo juízo federal de Goiás é a favor da possibilidade das diretivas, na medida em que protege a dignidade da pessoa humana e a autonomia privada. Válido salientar que as diretivas antecipativas de vontade são instrumentos que auxiliam a aplicação da morte digna, mais precisamente da ortotanásia. Através do documento, se estaria atestando através o desejo pela não manutenção de tratamentos para o prolongamento da vida quando o paciente se encontra em estado terminal ou irreversível.

É nesse contexto que se faz necessária a seguinte passagem doutrinária:

Testamento é ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, segundo norma jurídica, dispõe, no todo ou em parte, de seu patrimônio para depois de sua morte, ou determina providências de caráter pessoal ou familiar.58

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Sendo assim, o artigo 1.864 do Código Civil estabelece alguns requisitos necessários para a validade do testamento público, como se observa na transcrição do seguinte artigo:

Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público:

I - ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos;

II - lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;

III - ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.

Parágrafo único. O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.

Entretanto, apesar do testamento vital também ser um testamento, é necessário trazer à tona algumas diferenças oportunas entre o testamento estabelecido pelo Código Civil e o vital. Enquanto o primeiro tem seus efeitos estabelecidos pós-mortem, o segundo tem por necessidade que os efeitos comecem a serem produzidos antes do cessar da vida, visto que é justamente um fim digno o que se busca alcançar.59 Além do mais, o negócio jurídico unilateral em questão é de natureza existencial e não patrimonial, não devendo as decisões serem pautadas por conteúdos econômicos. Observando o tratamento patrimonial que o Código Civil estabelece aos negócios jurídicos, é imperativo interpretar o Código Civil de

59 AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin; PONA, Éverton Willian. Autonomia da vontade privada e

testamento vital: a possibilidade de inclusão no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <

http://www.uel.br/revistas/direitoprivado/artigos/Everton_e_Ana%20Cl%C3%A1udia_Autonomia_da_vontade_ privada_e_testamento_vital.pdf >Acessado em 24/04/2017.

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