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Academic year: 2021

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(1)A MEMÓRIA COMO CACOS: Infância e resistência em Boitempo. Josyane Malta Nascimento.

(2) 2. Josyane Malta Nascimento. A MEMÓRIA COMO CACOS: Infância e resistência em Boitempo. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Teoria da Literatura. Orientadora: Profª. Drª. Terezinha M. Scher Pereira. Juiz de Fora Faculdade de Letras da UFJF 2007.

(3) 3. Exame de dissertação. NASCIMENTO, Josyane Malta. A memória como cacos: Infância e resistência em Boitempo. Dissertação de Mestrado em Letras (área de concentração: Teoria da Literatura), apresentada à UFJF, 2º. semestre de 2007.. Banca examinadora. Profª. Drª. Marília Rothier Cardoso (PUC-Rio). Profª. Drª. Maria Luiza Scher Pereira (UFJF). Profª. Drª. Terezinha Maria Scher Pereira – Orientadora (UFJF). Suplentes. Prof. Dr. André Monteiro Guimarães Dias Pires (CES-JF). Prof. Dr. Alexandre Graça Faria (UFJF). Exame em ___/___/______. Conceito: ____.

(4) 4. AGRADECIMENTOS. Ao meu pai, à sua memória, pessoa mais amorosa e inteligente que já conheci.. À minha mãe, grande amiga, agradeço o amor e o cuidado com que sempre me criou. Ao meu irmão, Jonas Jr., pela sua amizade.. Ao Gabriel, agradeço o amor e o companheirismo que nele conheci.. À tia Jurandir, pelo apoio e pela confiança que depositou em mim.. À professora Terezinha Scher, minha orientadora, pelo carinho, cuidado e amizade.. Aos professores do mestrado, em especial as professoras Maria Luiza Scher e Jovita Maria Geheim Noronha, pela assistência tão valiosa..

(5) 5. RESUMO. Esta dissertação tem como objetivo central discutir a trilogia de memórias Boitempo (1968, 1973 e 1979), do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, levando em consideração o debate dos estudos de crítica da cultura. O problema do intelectual que se encontra deslocado em seu próprio meio cultural será discutido a partir das categorias de análise do estrangeiro e do marginal, noções essas que se aproximam em nosso estudo, principalmente quando o intelectual se propõe a discutir os mecanismos de poder e de manipulação cultural. A condição de desajustamento político do escritor é percebida nos poemas que compõem Boitempo, tanto a partir da perspectiva deslocada do poeta nos anos de ditadura militar no Brasil - entre as décadas de 1960 e 1970 -, quanto da ótica da criança, ao ser representada nas memórias de Drummond. Como categoria de análise, a criança será um dos pontos centrais do olhar crítico do poeta em direção às relações de poder. A partir da ótica infantil, encontramos metáforas relevantes, como a do fazendeiro do ar, que ajudarão na reflexão sobre o espaço de exclusão da criança em seu próprio lar. E esse espaço é o que possibilita a construção da alteridade discursiva nos poemas que analisamos. Finalmente, a construção do discurso da criança na obra de Drummond é processada de forma alegórica, quando a representação das "microrelações" autoritárias durante a infância, sob o ponto de vista particular do poeta, adquire uma percepção ampla e universal das diversas relações de poder..

(6) 6. RÉSUMÉ. Cette dissertation a pour but central discuter la trilogie de mémoires Boitempo (1968,1973 et 1979), du poète brésilien Carlos Drummond de Andrade, en tenant compte du débat des études de critique de la culture. Le problème de l´intellectuel qui se trouve déplacé dans son milieu culturel sera discuté à partir des catégories d´analyse de l´étranger et du marginal, des notions qui se rapprochent dans notre étude, surtout quand l´intellectuel se propose à discuter les mécanismes de pouvoir et de manipulation culturelle. La condition de gaucherie politique de l´écrivain est perçue dans les. poèmes qui composent Boitempo, à partir de la perspective. déplacée du poète pendant les années de dictature militaire au Brésil- entre les annés 1960 et 1970- ainsi qu`à l optique de l´enfant, celle-ci représentée dans les mémoires de Drummond. En tant que catégorie d´analyse, l´enfant sera l´un des points centraux du regard critique du poète vers les relations de pouvoir. À partir de l´optique enfantine, nous rencontrerons des métaphores remarquables, comme celle du fazendeiro do ar, qui serviront à la réflexion sur l´espace d´exclusion de l´enfant dans son foyer. Cet espace permet la construction de l´altérité discursive dans les poèmes que nous analysons. Finalement, la construction du discours de l´enfant dans l´oeuvre de Drummond se produit de façon allégorique, quand , selon le point de vue particulier du poète, la représentation des « micro rapports » autoritaires au cours de l´enfance acquiert une immense et universelle perception des diverses relations de pouvoir..

(7) 7. SUMÁRIO. 1. APRESENTAÇÃO--------------------------------------------------------------------------------10 2. O MENINO, O POETA E O CRÍTICO--------------------------------------------------------16 2.1.. O menino e os outros. 2.2.. O ator. 2.3.. O apelo como anedota. 3. O INTELECTUAL E O PODER----------------------------------------------------------------38 3.1.. Memória e resistência. 3.2.. O intelectual pós-64 e seus vínculos com o poder. 3.3.. [N]O local: o poder e as minorias. 3.4.. Dissonante Unheimlich. 4. A CRIANÇA ESTRANGEIRA------------------------------------------------------------------61 4.1.. Civilização e domínio. 4.2.. Vozes da margem. 4.3.. O olhar infantil: uma perspectiva do ar. 4.4.. A criança estrangeira. 5. MEMÓRIA: CACOS DO PASSADO----------------------------------------------------------87 5.1.. O discurso latino-americano: suplemento da tradução. 5.2.. Memória: cacos do passado. 5.3.. Pavores maiores: histórias menores. 5.4.. O alegorista, a História, o narrador. 6. CONCLUSÃO------------------------------------------------------------------------------------106 7. ANEXOS-------------------------------------------------------------------------------------------113 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS--------------------------------------------------------132.

(8) 8. BOITEMPO. Entardece na roça de modo diferente. A sombra vem nos cascos, no mugido da vaca separada da cria. O gado é que anoitece e na luz que a vidraça da casa fazendeira derrama no curral surge multiplicada sua estátua de sal, escultura da noite. Os chifres delimitam o sono privativo de cada rês e tecem de curva em curva a ilha do sono universal. No gado é que dormimos e nele é que acordamos. Amanhece na roça de modo diferente. A luz chega no leite, morno esguicho das tetas e o dia é pasto azul que o gado reconquista. (Carlos Drummond de Andrade).

(9) 9. _ Você deve calar urgentemente as lembranças bobocas de menino. _Impossível. Eu conto o meu presente. Com volúpia voltei a ser menino. (Carlos Drummond de Andrade. Esquecer para Lembrar). Lemos para esquecer e também lemos para não esquecer. Escreve-se para esquecer, e o efeito da escritura é fazer com que os outros não esqueçam. Escreve-se para lembrar, e amanhã outros vão ler essa lembrança. Esquecimento e lembrança... (Beatriz Sarlo).

(10) 10. 1 APRESENTAÇÃO. Amar o perdido / deixa confundido / este coração. Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não. As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão. Mas as coisas findas, / muito mais do que lindas, / essas ficarão. (Carlos Drummond de Andrade). Ler a poesia de Carlos Drummond de Andrade sempre foi, para mim, um grande prazer. O primeiro poema que dele li foi "Memória", esse da epígrafe acima. Eu ainda era menina, mas tive sensibilidade para compreender os versos que para sempre me marcaram: nunca podemos recuperar inteiramente o que se passou. As coisas tangíveis podem escapar de nossas mãos no momento seguinte que as tocamos. Mas eu sempre soube que algo ficava marcado: as reminiscências de um belo passado nutrem a certeza de que levamos conosco o que realmente foi importante. Somos constituídos de fragmentos, dos cacos de um passado que se fazem presentes em cada gesto, em cada palavra e por toda a nossa vida. A pesquisa sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade, que agora se apresenta sob o formato de dissertação de mestrado, é resultado dos trabalhos realizados por mim e pela minha orientadora, Professora Drª. Terezinha Maria Scher Pereira, durante o curso de mestrado na Universidade Federal de Juiz de Fora. Nossos estudos são também resultantes de nossa profunda admiração pela poesia do poeta. Até 1968, quando publicou Boitempo, Drummond nunca havia escrito uma obra dedicada inteiramente às suas memórias. Em 1973 ele lançou Menino Antigo e, em 1979, Esquecer para Lembrar, com respectivos subtítulos Boitempo II e III. Nascia, a partir de então, a trilogia memorialística que, posteriormente, seria reunida em um só livro, tornando-se a obra mais extensa de Drummond e o referencial biográfico de sua poesia. Escrita em versos, a obra traz as memórias de infância do poeta na pequena Itabira do Mato Dentro, cidade do interior de Minas Gerais. Boitempo faz parte do acervo da lírica drummondiana, porém conserva marcas da prosa, seja no tom narrativo ou no coloquialismo que o poeta verseja, na maioria das vezes sob a enunciação da própria voz do "menino antigo"..

(11) 11. Nosso trabalho tem como enfoque a obra memorialística de Carlos Drummond de Andrade. Em seu conjunto de poemas, fizemos um recorte temático que levasse em conta, principalmente, a representação da criança na trilogia Boitempo. A partir de uma reflexão acerca da representação da infância nessa obra, percebemos que não somente a memória, como também a criança poderia tornar-se um tema a ser discutido e analisado a partir de uma crítica sobre as relações de poder. Compreendemos, através das representações da figura da criança, que alguma coisa em Boitempo soava marginal. Inicialmente, levemente. Mais tarde, estudando a crítica do poeta, pensando a partir da ótica do gauche e lendo a obra em seu contexto sócio-político e cultural, tivemos a certeza de que o nosso estudo partiria de uma abordagem marginal. Compreendemos também que o fato de Drummond ter sido muito lido e estudado, de ser um poeta canonizado, não afasta a possibilidade de ele poder ser visto como um poeta crítico, "deslocado" em relação aos mecanismos de poder. Afinal, o que garante a sobrevivência de uma obra são as leituras que dela extraímos e o modo como vamos abordá-la nas articulações teóricas e críticas. De todos os poemas que compõem Boitempo, selecionamos trinta e um para serem trabalhados, distribuídos entre os três livros: Boitempo (I), Menino Antigo e Esquecer para Lembrar. Contamos, ainda, com a citação de poemas de sete outras obras do poeta: Alguma Poesia, A paixão Medida, Claro Enigma, Sentimento do Mundo, Versiprosa e Viola de Bolso. Optamos por utilizar separadamente as primeiras edições de cada livro da trilogia qual foram organizadas originalmente, uma vez que há variações de títulos de poemas, supressão de outros, dependendo da edição que trabalharmos. O primeiro capítulo da dissertação, que intitulamos "O menino, o poeta e o crítico", é dividido em três seções. Na primeira seção, "O menino e os outros", procuramos pensar Boitempo como uma obra autobiográfica, a partir da recuperação da infância em suas relações em família e em outros grupos sociais nos quais Drummond conviveu especificamente em Itabira, entre os anos 1902 até aproximadamente 1918. Por incluir o entorno social do poeta, as memórias podem ser compreendidas também como heterobiográficas, isto é, mescla de história pessoal e coletiva..

(12) 12. Os traços autobiográficos da infância são reconstituídos pelo escritor adulto, que transfere seu olhar de crítico à narrativa da criança, quando esta convive em ambientes muitas vezes autoritários. Dessa forma, a narrativa poética não exclui os reais acontecimentos da infância do poeta. Porém, a ótica do adulto pode transfigurar a interpretação dos fatos. Com efeito, há poemas nos quais notamos que a narrativa parece ser de uma criança, porém, com o olhar agudo e crítico do adulto que escreve as memórias. Escolhemos para esta seção de nosso estudo três alvos dessa crítica: o ambiente familiar; o conservadorismo local (de Itabira) que a tudo atribui as idéias de culpa e pecado; e o ambiente escolar. É o poeta, em sua condição de crítico, que representa as impressões dele enquanto menino. Na segunda parte do primeiro capítulo, intitulada "O ator", discutimos a poesia de Drummond em seu conjunto. Consideramos que na década de 1940, o poeta enuncia-se a partir de um tom declaradamente social, pautando-se num lirismo derramado sobre os grandes acontecimentos do mundo. São os anos em que ele publica Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo, (1945). Na década de 1950 ocorre, paulatinamente, a partir da publicação de Claro Enigma (1951), uma mudança de tom, que culmina, em Boitempo (1968), numa poesia menos "derramada", com altas dosagens de prosaísmo. O poeta concentra-se em questões particulares e até mesmo em temas "anedóticos" que tratam de assuntos disfarçadamente - sérios. Isso não irá excluir, porém, que dos temas pessoais ampliemos a leitura para as questões consideradas universais. Essa virada de “tom” na poesia drummondiana será abordada na terceira parte desse capítulo: "O apelo como anedota". O contexto intelectual, social e político da época em que a trilogia foi publicada é o da ditadura militar no Brasil. Por isso, compreendemos o poeta como crítico da cultura dominante, a partir de uma enunciação que não separa o erudito do popular. No segundo capítulo, intitulado “O intelectual e o poder”, procuramos pensar o trabalho poético de Drummond durante os anos de ditadura militar no País. O que representou a escrita de textos de memória durante os anos 1960 e 1970? Essa é uma das questões que discutimos em “Memória e resistência”, seção que abre o primeiro capítulo. Aí, a metáfora dos cacos, extraída do poema “Coleção de cacos”, de Esquecer para Lembrar, recebe atenção especial. Colecionar cacos singulares, como o poeta fala, é uma atividade que compreendemos como sendo providencial no momento em que o poder no Brasil tinha como meta apagar a.

(13) 13. diversidade. A coleção mostra-se como resistência, como nos aponta W. Miranda: “A singularidade do colecionador de cacos (...) delineia o espaço de resistência à totalização tanto do plano do homem individual quanto no plano da coletividade." (MIRANDA, 2004, p. 164). Pensar a importância de se “revelar os cacos” na contemporaneidade nos levará aos estudos de Homi Bhabha em O local da cultura. O crítico procura discutir, sobretudo no texto “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna”, sobre a importância que as margens adquiriram sob a perspectiva da nação. Na segunda parte desse capítulo, intitulada “O intelectual pós-64 e seus vínculos com o poder”, propomos algumas questões a respeito do intelectual pós-64, em especial no Brasil. Partimos dos estudos de Edward Said sobre a noção de margem, discutida em seu livro organizado a partir das “Conferências Reith de 1992”. Pensar o intelectual como um outsider aproxima-o da idéia metafórica do exílio em sua própria "casa", questão essa tão cara aos artistas das décadas de 1960 e 1970. Com Drummond, percebemos que o comportamento gauche é uma constante, seja em sua personalidade ou em seu trabalho artístico. Isso nos permitiu pensá-lo como um intelectual deslocado em sua própria “casa”, conforme Said prevê para os intelectuais contemporâneos. No sub-capítulo seguinte, “[N]O local: o poder e as minorias”, trabalhamos com o livro Microfísica do poder, de Michel Foucault. A partir de uma articulação teórica com Boitempo, pensamos a discussão proposta no capítulo “Os intelectuais e o poder – conversa entre Gilles Deleuze e Michel Foucault”. Ambos os filósofos observam que o poder deve ser analisado exatamente nas malhas mais sutis da sociedade e onde ele mais incide: nas minorias. Para o intelectual que conserva um conhecimento histórico e científico, observar os saberes locais, de acordo com outro estudo de Foucault – “Aula de 7 de janeiro de 1976”-, é também ressurgir os saberes sujeitados, aqueles que foram subjugados pelos discursos hegemônicos. E se de acordo com Michel Foucault, a genealogia é o acoplamento dos saberes históricos e dos locais, Boitempo pode ser visto como genealogia do poder ditatorial, uma vez que resgata histórias locais já passadas, alinhando-as ao conhecimento de Drummond, poeta consagrado, com seus 66 anos de idade e com um vasto conhecimento erudito. Finalmente, para compreender melhor os mecanismos de repressão, encerramos o segundo capítulo com o texto “Dissonante Unheimlich”, que traz um.

(14) 14. estudo do texto de Freud, intitulado na tradução para o espanhol de “Lo siniestro”. Analisamos com essa leitura os possíveis mecanismos de repressão tanto incidentes sobre o intelectual quanto presentes nas representações da figura da criança nos poemas de Boitempo. Consideramos que reconhecer uma identidade diferente e apropriar-se de outras é também construir o unheimlich dissonante e desafiador. O terceiro capítulo, intitulado “A criança estrangeira”, é o mais extenso. Nele compreendemos por que motivo a criança pode ser considerada um elemento deslocado em sua própria casa, tornando-se estrangeira em seu lar. Iniciamos essa seção com um estudo de Sigmundo Freud, do livro O mal-estar na civilização. Tratamos do deslocamento que há na identidade da criança, no processo de amadurecimento do “ego civilizado”, quando ocorre o choque entre os princípios que Freud denominou prazer e realidade. Esse confronto entre realidades distintas poderia nos levar a pensar a criança entre dois mundos, o seu e o do adulto. Nesse sentido, a criança tem a constante necessidade de deslocar-se para universos outros, como por exemplo, o da leitura de Robinson Cruzoé. O universo imaginário do livro é o lugar onde o menino pode trabalhar a sua criatividade, incluir-se nas aventuras do herói de Defoe e garantir o seu espaço de inclusão e individualidade. A criança enuncia-se, então, num espaço imaginativo, porém, muitas vezes também de exclusão. É a partir desse espaço de imaginação criativa e criadora que a criança identifica-se consigo e com o mundo. O seu discurso torna-se, portanto, híbrido. Esse espaço de onde se pode sair do exílio em família para dar lugar à imaginação criativa, de inclusão no universo do outro, chamamos "do ar". Por fim, a última parte desse capítulo dedica-se aos estudos de Jacques Derrida sobre a questão da hospitalidade. Uma vez que a representação da criança em Boitempo oferece leituras amplas das relações de repressão que culminam no desajustamento de si em seu meio social, julgamos adequado trabalhar a noção de estrangeiro discutida pelo filósofo da desconstrução. Derrida vê o estrangeiro acometido por uma série de atributos e funções. O estrangeiro é aquele que se questiona e é também o ser-em-questão; ao mesmo tempo, ele também pode ser aquele que, questionado pelo outro, traz a questão. A criança, representada nos poemas de Boitempo, ao questionar o adulto, ao mesmo tempo em que tenta pedirlhe a hospitalidade, pode também ser questionada por ele, tornando-se assim o problema em questão e trazendo consigo a própria questão..

(15) 15. Finalmente, o último capítulo começa discutindo sobre o problema do intelectual latino-americano, a partir do ensaio de Silviano Santiago “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Percebemos em nossa articulação teórica que tanto a criança quanto esse intelectual têm como espaço de enunciação a leitura do Outro. Com a noção de tradução discutida por Walter Benjamin em Tarefa-renúncia do tradutor, refletimos que a experiência da leitura do Outro é sempre suplementar, tornando-se, dessa forma, um espaço textual híbrido. Nosso trabalho encerra-se, enfim, com um estudo da prática alegórica em Boitempo. Durante toda a dissertação, falamos em representação, em discursos historicizantes, enfim, sobre conceitos que reservamos ao estudo da alegoria, a partir de Walter Benjamin. É com o filósofo alemão que extraímos o conceito de História. Para Benjamin, é tarefa do Materialista Histórico desenterrar os discursos que foram “apagados” pelo discurso historiscista. Relacionando tal conceito com Boitempo, pudemos pensar que o trabalho poético de Drummond não é diferente do Materialista Histórico, uma vez que o poeta conta a sua infância a partir das relações mais autoritárias vivenciadas por ele. Com o texto “Tiergarten”, de Infância em Berlim por volta de 1900, de Benjamin, comparamos a representação da criança sob a ótica do filósofo e a partir da do poeta. Ambos resgatam as “ruínas” do passado, falam dos resíduos, iluminando-os para dar-lhes nova significação: pensar o discurso da criança é, com Drummond e Benjamin, compreendê-lo como alegoria das relações autoritárias. A prática alegórica é o meio pelo qual o alegorista pode tentar escrever a história, segundo seu propósito ideológico; pois somente assim seu objeto está salvo, garantindo a significação que lhe foi imposta por toda a eternidade. Salva-o, portanto, do discurso dominante que escreve a "história oficial". Em Boitempo, Drummond reescreve a sua história a partir de leituras tão particulares e pessoais, de seu clã, de sua fazenda ou da pequena Itabira. Porém, dessas historietas, retiramos leituras grandiosas, como das representações de poder a partir de uma perspectiva aparentemente tão simples como a da criança. São dessas grandes representações que Drummond salva seu propósito do curso hegemônico e homogêneo da História oficial, mantendo-se como grande escritor universal que foi..

(16) 16. 2 O MENINO, O POETA E O CRÍTICO. Poesia eu não te escrevo eu te vivo e viva nós! (Cacaso). 2.1 O menino e os outros. Desde o primeiro livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia, de 1930, são conhecidos os poemas de memória do poeta, como o célebre "Infância", retratando a vida de um menino na fazenda da pequenina Itabira. Mas até 1968, com a publicação de Boitempo, os relatos de memória de Carlos Drummond são esparsos por sua obra. Vê-se ao longo da produção literária evocações do cenário itabirano, em "Confidência do Itabirano", de Sentimento do Mundo, em 1940; "Viagem na família", do livro José, de 1942; para citar apenas alguns. Boitempo foi, portanto, o primeiro livro dedicado integralmente às memórias do poeta. Da temática memorialística, nasceram outras duas obras: Menino Antigo (1973) e Esquecer para lembrar (1979), respectivamente com os subtítulos Boitempo II e III. Quando nos anos 1980 Drummond trocou de editora (da José Olympio para a Record), a trilogia foi condensada em um só livro: Boitempo 1 , tornando-se a obra de poesia mais extensa do poeta e o referencial biográfico de toda sua produção literária. Carlos Drummond de Andrade é o nono filho do casamento de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e D. Julieta Augusta Drummond de Andrade. Nasceu em 1902, em Itabira do Mato Dentro, cidade do interior de Minas Gerais. Os poemas da trilogia Boitempo têm como principal cenário a cidade natal do poeta, descrita através da narrativa poética de um menino. Em Esquecer para Lembrar, podemos encontrar, também, a descrição dos internatos Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte,. 1. Optamos por utilizar os três livros em edições separadas..

(17) 17. e o de Nova Friburgo, o Colégio Anchieta, onde Drummond de fato estudou, respectivamente em 1916 e 1918. É. relevante. considerarmos. que. Boitempo. é. uma. obra. sobretudo. autobiográfica, apesar de fugir da escrita tradicional desse gênero, uma vez que é narrada em versos. Nesse aspecto, o livro adquire um ponto interessante, pois seu pacto com o leitor não é o de oferecer uma história completa da vida do autor, ou cronologicamente organizada, como acontece com as narrativas autobiográficas mais tradicionais. Boitempo conta, fragmentariamente, passagens da infância do poeta em suas relações com a família e com a sociedade em que conviveu. Para Chantal Castelli, Boitempo é heterobiográfico e autobiográfico. Heterobiográfico porque além de contar a história pessoal do poeta (por isso também autobiográfico), Boitempo traz também a história da sociedade em que Drummond viveu sua infância: Boitempo traz a simultaneidade entre a autobiografia e a heterobiografia; o que o poeta escreve não é exclusivamente sua história privada, individual, mas também a biografia de um grupo, a história da sociedade e do tempo em que viveu. (CASTELLI, 2002, p.125). Acrescentamos, ainda, que as histórias do tempo em que o menino viveu não são contadas somente através de uma perspectiva puramente infantil, como também são representadas conforme a ótica do poeta já adulto, que transfere uma parcela de seu posicionamento intelectual à narrativa da criança. Essas duas perspectivas ocorrem simultaneamente na obra e interdependem uma da outra. Sobre isso nos fala W. Miranda: A postura assumida pelo poeta de Boitempo, ao introduzir a percepção infantil como determinante do processo de rememoração, tem conseqüências que vão além da mera reconstrução biográfica de uma infância empírica. Como observa Silviano Santiago, "Drummond, ao querer voltar a ser menino, não o faz com o desejo de ver a criança que existe no adulto, mas com o desejo de ver a criança que existe na criança, ou, de forma mais definitiva (...) com o desejo da criança que é o velho, ou o velho que é a criança". 2 (MIRANDA, 1995, p.104). Dessa forma, Drummond não busca meramente a infância, sobretudo o poeta deixa que a voz do adulto seja determinante para a configuração da perspectiva infantil nas memórias. 2. SANTIAGO, Silviano. Discurso memorialista de Drummond faz a síntese entre confissão e ficção. Folha de São Paulo, 7 abr. 1990, Ilustrada, p.5..

(18) 18. Castelli também discute esse ponto e considera que quando se escreve passagens de sua própria vida de forma poética, o material biográfico é transfigurado através da perspectiva do adulto: Boitempo é livro em que ficção e memória mesclam-se em proporções iguais e indissociáveis; as referências à biografia de Drummond são evidentes, embora a matéria do vivido seja transfigurada pela invenção ao ser plasmada na forma poética, a partir da perspectiva do homem maduro, distanciado temporalmente dos eventos de sua infância e primeira juventude. (CASTELLI, 2002, p.125). Castelli considera que Boitempo oferece ao leitor uma "leitura de 'dupla entrada' " (CASTELLI, apud CANDIDO, 1987) pois enquanto a memória é o material a ser utilizado como dados concretos do passado, o poético é o material da criação artística que transfigura a informação. Nosso estudo sobre Boitempo tem como foco que essa "leitura de dupla entrada" está permeada por relações autoritárias, que são percebidas, relidas e recriadas pelo poeta já maduro. A criança apresenta-se como veículo de denúncia dos vínculos de poder nas "microrelações" experienciadas pelo menino. Por isso a lógica infantil, de interpretar figuras típicas do interior ou situações características das cidades pequenas, está presente no livro muitas vezes como forma de desmascaramento do exercício do poder. Escolhemos para esta seção de nosso estudo três alvos dessa crítica do poeta: o ambiente familiar, através da descrição da casa dos Andrade; o conservadorismo local que a tudo atribui a idéia de pecado, ao ponto de tolher os primeiros impulsos amorosos e/ou sexuais do menino; e o ambiente escolar, a partir do autoritarismo praticado pelos professores. Os acontecimentos narrados na obra contam desde as primeiras recordações de Itabira até aproximadamente o ano em que o Drummond entra para o internato do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, em 1918, quando tem os seus 16 anos. No primeiro Boitempo há pequenas "esquetes" do cenário itabirano: as relações humanas, os costumes da cidade e informações sobre a casa dos Andrade no "azul 1911", como podemos verificar no poema "Casa" (ANDRADE, 1973, p. 39, 40)..

(19) 19. Há de dar para a Câmara, de poder a poder. No flanco, a Matriz, de poder a poder. Ter vista para a serra, de poder a poder. Sacadas e sacadas comandando a paisagem. Há de ter dez quartos de portas sempre abertas ao olho e pisar do chefe. Areia fina lavada na sala de visitas. Alcova no fundo sufocando o segredo de cartas e baús enferrujados. Terá um pátio quase espanhol vazio pedrento fotografando o silêncio do sol sobre a laje, da família sobre o tempo. Forno estufado fogão de muita fumaça e renda de picumã nos barrotes. Galinheiro cumprido À sombra de muro úmido. Quintal erguido em rampa suave, flores convertidas em hortaliça e chão ofertado ao corpo que adore conviver com formigas, desenterrar minhocas, ler revista e nuvem. Quintal terminando em pasto infinito onde um cavalo espere o dia seguinte e o bambual receba telex do vento. Há de ter tudo isso mais o quarto de lenha mais o quarto de arreios mais a estrebaria para o chefe apear e montar na maior comodidade. Há de ser por fora azul 1911. Do contrário não é casa. (ANDRADE, 1973, p. 39, 40). "Casa" é um poema que mostra um cenário/modelo quase que "fotografado" de como era o lar dos Andrade, típica casa patriarcal. Nos versos, podemos perceber que quatro poderes são retratados: a Câmara, a Matriz, a serra e a casa. Para Silviano Santiago, "por primeira vez eis a descrição da casa patriarcal, fincada.

(20) 20. como quarto poder, entre os três poderes, a Câmara, a Matriz e a Serra. O mandonismo local tem olhos." (SANTIAGO, 2003, p. 37). Na retratação da casa itabirana, o narrador insere o seu lar entre esses quatro poderes, mas entre eles há de existir um espaço para o menino "(...) desenterrar minhocas, / ler revista e nuvem", pois ele já se destaca da saga fazendeira da família para ser um "Fazendeiro do ar", metáfora essa que denuncia a não vocação do poeta para o trabalho na fazenda. No terceiro Boitempo, Esquecer para lembrar, percebemos que o menino está um pouco mais velho em idade. Pudemos chegar a essa conclusão a partir de poemas que falam das primeiras experiências com o sentimento amoroso, como nos indica o poema "Amor, sinal estranho": Amo demais, sem saber que estou amando, [...] Que fazer deste sentimento que nem posso chamar de sentimento? Estou me preparando para sofrer Assim como os rapazes estudam para médico ou advogado. (ANDRADE, 1979, p. 60). O contato com o sentimento amoroso é novo para o menino, um "sinal estranho", um sentimento desconhecido e quase sempre não correspondido. O estudo do sentimento amoroso seria uma tese à parte na obra de Drummond. Diferente de Esquecer para Lembrar, em que o poeta admite seus desejos, já com indicativos de sua sexualidade, no primeiro Boitempo encontramos narrativas que evidenciam mais as formas femininas, apreciadas pelo narrador, por exemplo, do poema "O banho". O olhar curioso do menino revela-se mais pela novidade que pelo desejo. Banheiro de meninos, Água Santa lava nossos pecados infantis ou lembra que pecado não existe? Água de duas fontes entrançadas, uma aquece, outra esfria surdo anseio de apalpar na laguna a perna, o seio a forma irrevelada que buscamos quando, antes de amar, confusamente amamos. (...) (ANDRADE, 1973, p. 25).

(21) 21. Semelhante ao "Poema das sete faces", de Alguma poesia, o sentimento amoroso expressa-se através da anatomia feminina: (...) O bonde passa cheio de pernas Pernas brancas pretas amarelas Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos Não perguntam nada. (...) (ANDRADE, 2003, p. 5). Em artigo publicado em homenagem ao centenário de vida de Drummond, Manuel Graña Etcheverry, o Manolo, genro do poeta, escreveu para uma revista eletrônica italiana, a Sagarana, sobre o sentimento amoroso no poeta: Un tema spesso trattado da Drummond nelle sue poesie è l´insoddisfazione sessuale, e per connessione la mancanza di una donna o l´incomprensione femminile. Non si tratta di una donna specifica, bensì in generale; poiché per saziare questa insoddisfazione qualunque donna poteva andar bene (...) 3 (ETCHEVERRY, 2003, nº. 10). Em Boitempo, o amor nunca é compreendido pelo narrador, ele é sempre "estranho" ao eu poético, e está, por vezes, associado ao sentimento de pecado. Esta consciência do pecado com que o menino se depara ganha maior destaque em Esquecer para lembrar: É o que nos revela o poema "Sentimento de pecado": Pecar, eu peco todo santo dia. Às vezes mais. Outras nem tanto. Mas sempre a sombra, na consciência, visão de inferno, crepitante, subimpressa nos atos, nos lugares. Sei todos os pecados e cometo-os. (...) (ANDRADE, 1979, p. 61). Nessa altura das memórias, há não mais um menino pequenino e inocente, mas um "rapazinho" que já tem a consciência do "bem" e do "mal" e sabe que há um Deus que "Castiga depois", como indica o poema "Ele", do terceiro Boitempo:. 3. Um tema freqüentemente tratado por Drummond em seus poemas é a insatisfação sexual e por extensão a falta de uma mulher ou a incompreensão feminina. Não se trata de uma mulher específica, uma vez que para saciar esta insatisfação qualquer mulher serviria..

(22) 22. Ele vê, ela cala. Castiga depois. Seu olho-triângulo devassa o país do mato-dentro. No escuro me vê e me assusta. No claro me deixa sozinho sem um sinal, um só que me previna. O que faço de errado, principalmente o que faço de gostoso, tudo lhe merece a mesma indiferença enquanto vou fazendo. Tarde é que ele mostra sua condenação. Interrogo-me, sinto que dói dentro de mim. Não devia ter feito. Como poderia evitar de fazer? Só agora percebo que condenado fui a fazer e provar a pena interior. Seu nome (e tremo) é Deus do catecismo. (ANDRADE, 1979, p. 62-63). No terceiro Boitempo, é mais comum encontrarmos poemas que expressem o sentimento de pecado. A idéia católica de um Deus que pune já assola a consciência do narrador de Esquecer para Lembrar. Não se trata de questionar a figura de Deus, mas sobretudo o catolicismo local que atribui as diversas práticas cotidianas do menino a pecados, como por exemplo no poema "Certas palavras" (proibidas): Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer. Estritamente reservadas para companheiros de confiança, devem ser sacralmente pronunciadas em tom muito especial lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança. Entretanto são palavras simples: definem partes do corpo, movimentos, atos do viver que só os grandes se permitem e a nós é defendido por sentença dos séculos..

(23) 23. E tudo é proibido. Então, falamos. (ANDRADE, 1974, p. 143). Esse poema estabelece-se a partir da seguinte lógica: proibir as crianças de falarem certas palavras configura-se como uma atitude hipócrita dos adultos, pois se eles "se permitem" falá-las, deveriam conceder também essa licença às crianças. A máxima "tudo que é proibido é mais gostoso" resume, portanto, a fala final do menino: "E tudo é proibido. Então, falamos". Essa fala do narrador também explicita uma certa vocação dele à rebelião. Essa consciência de crítica às convenções também pode ser lida em relação às autoridades políticas, quando essas definem leis sem o menor sentido, como no poema "Câmara municipal": Aqui se fazem leis aqui se fazem tramas aqui se fazem discursos aqui se cobra imposto aqui se paga multa aqui se julgam réus aqui se guardam presos ensardinhados em cubículos. Os presos fazem gaiolas para que também os pássaros fiquem presos dentro e fora dos cubículos musicalando a vida. (ANDRADE, 1974, p.58). Podemos perceber que as obrigações civis se resumem na Câmara Municipal, onde inclusive o cidadão é levado a seguir leis que não fazem o menor sentido. Os presos não são exatamente os detentos, eles são metáforas da própria vida dos burocratas "fabricantes" das normas a serem impostas às pessoas. Se a câmara é por excelência um lugar burocratizado, e se é lá onde se decidem "leis", "tramas", "discursos", "imposto" e "multa", também é lá a prisão dos homens, esses metaforizados através da figura dos "pássaros engaiolados". Em Esquecer para Lembrar, não se trata mais da narrativa de uma criança, mas de um rapaz de 1918, com seus 16 anos indo para o internato de Nova Friburgo, na "Fria Friburgo", nome dado à penúltima repartição desse livro. A seção do livro é apresentada como um diário em versos que se inicia com o poema "Primeiro dia" e termina com o "Adeus ao colégio" 4 , em que o menino narra sua volta 4. Vide anexo 1.

(24) 24. a Minas Gerais, devido à expulsão dele do Colégio Anchieta, de Friburgo. Essa conhecida passagem da vida de Drummond deveu-se à alegação de um professor de português de que o menino sofria de "insubordinação mental", quando na ocasião Drummond discordou da conduta do professor. Segundo Chantal Castelli O poeta não poupará a escola de seu agudo olhar, que a focalizará menos como local de verdadeiro aprendizado, e mais com a crueza do que de fato foi: palco para o exercício de autoritarismo, que procura sufocar o pensamento crítico. (CASTELLI, 2002, p. 126). Para Castelli, este acontecimento prolongou-se por toda a vida de Drummond, o que certamente contribui para a "formação do espírito crítico do poeta", (CASTELLI, 2002, p.141) Os poemas dedicados aos dias passados no internato de Friburgo quase sempre apresentam passagens que denunciam o autoritarismo praticado por professores, o que não tolheu o sentimento ao mesmo tempo de rebelião e liberdade por parte do menino. Podemos observar isso no poema "Punição": "74, fique de coluna." Lá vou eu, de castigo, contemplar por meia hora o ermo da parede. Meia hora de pé, ante o reboco, na insensibilidade das colunas de ferro (inaciano?) me resgata. Eis que eu mesmo converto-me em coluna, e já não é castigo, é fuga e sonho. Não me atinge a sentença punitiva. Se pensam condenar-me, estão ilusos. A liberdade invade minha estátua e no recreio ganho a azul distância. (ANDRADE, 1979, p. 115). Este poema assemelha-se ao "Certas palavras", pois em ambos, a proibição ou o castigo dão resultado inverso: só servem para acirrar o inconformismo do menino às imposições feitas pelas "autoridades". Dessa forma há uma intensificação do sentimento de liberdade e até mesmo do de libertinagem, num espaço de convivência em que a rebelião é combatida com punição, como também nos indica isso o poema "Doido":.

(25) 25. O doido passeia pela cidade sua loucura mansa. É reconhecido seu direito à loucura. Sua profissão. Entra e come onde quer. Há níqueis reservados para ele em toda casa. Torna-se o doido municipal, respeitável como o juiz, o coletor, os negociantes, o vigário. O doido é sagrado. Mas se endoida de jogar pedra, vai preso no cubículo mais tétrico e lodoso da cadeia. (ANDRADE, 1974, p. 73). A loucura, nesse poema, pode ser lida também como metáfora de desregramento. A prisão é um castigo para o doido, naturalmente um ser que já é, por excelência, um indivíduo que está fora dos padrões sociais esperados. O doido é, aí, o outro que se destaca do conservadorismo local e que tem sua liberdade assegurada, desde que não incomode o seu "vizinho". Há uma identificação do narrador com o doido quando comparamos esse poema com "Punição" ou "Certas palavras", porque tanto o doido quanto o poeta estão deslocados em seus ambientes de convivência. Por isso as atitudes deles além de incomodarem, também rendem punições. Boitempo não revela apenas a história particular da vida do narrador, e por isso não podemos considerar a obra puramente autobiográfica, mas como apontou Castelli, autobiografia e heterobiografia mesclam-se na narrativa poética; a primeira por se pautar nos fatos do passado individual; a segunda por contar também um pouco da história da sociedade em que viveu o poeta, marcada pela hipocrisia e pelo abuso de autoridade. Outra história, aí, também se envolve na narrativa: a do próprio adulto que reconta o seu passado. Dessa forma, não somente um passado ou uma determinada sociedade, como também a consciência crítica do escritor revelam o autoritarismo presente nas relações da infância..

(26) 26. 2.2 O Ator. Não podemos pensar a obra de memórias Boitempo como mera tentativa de resgatar as histórias da infância do poeta, tampouco apenas reconstrução de um "resumo de existido", como nos indica "(In) Memória": De cacos, de buracos de hiatos e de vácuos de elipses, psius faz-se, desfaz-se, faz-se uma incorpórea face, resumo do existido. (...) (ANDRADE, 1973, p. 7). De que forma poderia Boitempo questionar acontecimentos do mundo através das memórias? Dos aspectos particulares da infância fazendeira extraem-se reflexões que poderíamos considerar "universais"? É necessário pensarmos as obras anteriores ao livro Boitempo, a fim de compreendermos se há, e de que forma acontece, uma crítica social a partir das memórias. Se em Sentimento do mundo (1940), José (1942), ou em A Rosa do povo (1945) temos um poeta que tratará diretamente dos temas considerados universais, como a guerra, o amor ou a liberdade - para citar apenas alguns -, a partir de Claro Enigma (1951), percebemos um poeta que se distancia dos grandes acontecimentos do mundo. A epígrafe desse livro, de Valéry, já nos indica isso: "Les événements m'ennuient" (Os acontecimentos me enjoam). É a fase poética de Drummond considerada "metafísica", em que o poeta parece acalmar o seu espírito em relação às "dores do mundo", ao ponto de reconciliar-se com algum classicismo que talvez lhe tenha restado. Os versos de "Dissolução", de Claro Enigma, explicam bem o que se quer mostrar, esse tom de reconciliação com os grandes problemas da vida: Escurece, e não me seduz tatear sequer uma lâmpada. Pois que aprove ao dia findar, aceito a noite. E com ela aceito que brote uma ordem outra de seres e coisas não figuradas. Braços cruzados. Vazio de quando amávamos,.

(27) 27. mais vasto é o céu. Povoações surgem do vácuo. Habito alguma? E nem destaco minha pele da confluente escuridão. Um fim unânime concentra-se e pousa no ar. Hesitando. E aquele agressivo espírito que o dia carreia consigo, já não oprime. Assim a paz, destroçada. Vai durar mil anos, ou extinguir-se na cor do galo? Esta rosa é definitiva, ainda que pobre. Imaginação, falsa demente, já te desprezo. E tu, palavra. No mundo, perene trânsito, calmo-nos. E sem alma, corpo, és suave. (ANDRADE, 2003, p. 248-49). A partir de Claro Enigma, o aparente desapego aos grandes acontecimentos insere-se em "uma ordem outra". Se antes, na sua poesia social, discutia-se diretamente questões como a do operário ou da brutalidade da guerra, vê-se agora um poeta sem "povoações", ou poderíamos dizer, sem causas aparentes. Ele se questiona: "Habito alguma?". E, hesitando, os versos respondem que o "agressivo espírito" "já não oprime". Diferentemente de "Rosa do Povo", esta rosa de agora é outra, sem causa: "Esta rosa é definitiva, / ainda que pobre". A preocupação, porém, com as coisas finitas e coisas do tempo ainda povoam a poesia de Drummond, igualmente em fases anteriores a Claro Enigma. Em Sentimento do Mundo, o poeta escreveu em "Mãos dadas": "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente." (ANDRADE, 2003, p. 80). Dessa forma, a consciência do mundo como "perene trânsito" é conservada na poesia de Drummond. Sobre isso escreve Sérgio Buarque de Holanda, em "Rebelião e convenção", do livro Cobra de Vidro: Há de iludir-se, porém, quem veja nesse aparente desapego ao "acontecimento" o reverso necessário de alguma noção transcendental da poesia: poesia entendida como essência inefável, contraposta ao mundo das coisas fugazes e finitas. Se a voz de Drummond pareceu-nos quase de repente mais severa e pausada, mais rica, além disso, em substância emotiva, e não raro envolta numa espécie de pátina artificial, que chega a denunciar neste poeta inesperadas complascências com certa.

(28) 28. preocupação retórica, ela ainda é, em suma, a mesma voz (...). (HOLANDA, 1978, p. 154). A mudança em Claro Enigma dá-se, sobretudo, na dissolução do tom do discurso e de uma certa "rebelião" modernista que metamorfoseia-se em maior "aceitação" à convenção clássica. Nesse livro, podemos apreciar sonetos em versos dodecassílabos, em "Legado", ou até mesmo em decassílabos, como no poema "A ingaia ciência": A madureza, essa terrível prenda que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, todo sabor gratuito de oferenda sob a glacialidade de uma estela, a madureza vê, posto que a venda interrompa a surpresa da janela, o círculo vazio, onde se estenda, e que o mundo converte numa cela. A madureza sabe o preço exato doa amores, dos ócios, dos quebrantos, e nada pode contra sua ciência e nem contra si mesma. O agudo olfato, o agudo olhar, a mão, livre de encantos, e destroem no sonho da existência. (ANDRADE, 2003, p. 248). Segundo José Guilherme Merquior, nos primeiros livros de Drummond, Alguma poesia e Brejo das almas, o poeta (...) extrematiza a índole humorística da referência ao prosaico e da permeabilidade ao coloquial inerentes ao estilo da nova lírica; ele começa, portanto, radicalizando o discurso de 22, numa cáustica intensificação da ironia modernista (...). (MERQUIOR, 1972, p. 45-6). Em Claro Enigma, Drummond além de adotar certos traços classicistas na composição poética, também resgata o estilo impuro, batizado por Auerbach de "mescla estilística" que, segundo Merquior, "contrariamente aos preceitos da poética do classicismo, aspira à apresentação de acontecimentos ou de situações sérios, trágicos ou problemáticos mediante o emprego de uma linguagem prosaica ou 'vulgar' ". (MERQUIOR, 1972, p. 44)..

(29) 29. No poema "A mesa" 5 , de Claro Enigma, percebemos esse resgate do "estilo impuro", isto é, "da fusão de visão problemática e matéria vulgar" (MERQUIOR, 1972, p. 44). Esse poema, dedicado à morte de Carlos de Paula Andrade, pai de Carlos Drummond, é um exemplo da retomada do estilo poético da lírica moderna, que misturava um acontecimento trágico a uma linguagem vulgar, e que Merquior afirma ser uma "fusão revolucionária", pois ela permitiu a Baudelaire converter a poesia de nível filosófico em crítica da cultura" (MERQUIOR, 1972, p. 44-5). A mudança que acontece a partir de Claro Enigma é crucial para compreendermos Boitempo. As transformações formais e temáticas na poesia drummondiana apontam para uma reconciliação consigo e com o mundo, pois culminam, na obra de memórias, em uma maior aceitação não só dos acontecimentos, como também de si e de suas origens. De acordo com Merquior, O rir de si, a auto-ironia, sinal distintivo da poesia de Drummond desde as formas inaugurais, assume agora um giro deliberadamente brincalhão, como se (para dizê-lo na língua de Freud), o humor drummondiano, reconhecido tão "superdeterminado", tão equívoco ou polissêmico, emergisse desta vez alacremente unívoco, solto e gaio, sem as restrições mentais da emotividade ferida ao choque do mundo. (MERQUIOR, 1972, p. 50). Temas universais como a liberdade são, em Boitempo, tratados através de situações particulares, a partir de um senso cômico e irreverente, e não mais com a tensão trágica que se dá na fase poética de Drummond denominada "social". No poema "O ator" 6 , do primeiro Boitempo, percebemos que o tema da escravidão é retratado a partir de um caso acontecido na fazenda do avô. As redondilhas desse poema não poupam a descrição do contexto triste da escravidão. O "coronel", representado como avô do narrador, ao deitar-se para ter o seu "sono imperial" garantido deixou um escravo de vigília. Mas a tentação de ver "A Vingança do Passado", peça que seria exibida no povoado, atormentou o escravo, descrito no poema como o "ator". Nome sugestivo esse da peça se compararmos aos versos de principal teor crítico do poema: "Para um escravo fugido / não há futuro, há passado". A peça confunde-se com o drama do escravo e o espetáculo funde-se na história do "ator". O tom de crítica social é centrado em uma situação particular da família do narrador, não concentrando densas indagações e nem falando diretamente do tema, pois trata-se de uma crítica com caráter de anedota. 5. Vide anexo 2.

(30) 30. Esse novo modo de fazer crítica social diferencia-se de livros anteriores, como na fase da poesia social, dos anos 1940. No poema "O Ator", o exame social amplia a discussão sobre a relações marcadamente patriarcais para o âmbito das relações de poder de maneira geral, como num movimento que partisse do particular para o público. Diferentemente do belíssimo poema, por exemplo, de Sentimento do Mundo (1940), "O operário do mar", em que temas como o do operariado são versados de maneira direta, carregados de um tom lírico e dramático. O problema do operário, ligado às questões políticas do Brasil dos anos 1940, como o golpe do Estado Novo, ou da segunda Guerra Mundial, é tratado com alto teor lírico e dramático. São apontamentos diretamente ligados à esfera social do povo brasileiro. O operário é descrito a partir de sua ignorância perante um governo manipulador. Esse posicionamento crítico difere-se das discussões de Boitempo, em que a crítica está, sobretudo, em casos particulares, nas anedotas, nas recordações e não mais nos grandes acontecimentos do Brasil e do mundo. Segundo R. Marques: Essa atitude cética em relação ao poder, extensiva aos homens públicos, não deve nos levar a atribuir a Drummond uma atitude de alienação, frente aos acontecimentos, como poderia sugerir a epígrafe de Claro Enigma, tomada a Valéry: "Les événements m'ennuient", (...). Indica antes a adoção de um distanciamento estratégico em relação à cena política e histórica. (MARQUES, 2003, p. 55, grifos nossos). O próprio contexto político em que é escrito Boitempo também pode explicar essa crítica (re)velada nos assuntos particulares, em pleno 1968, quando o governo militar institui o Ato Institucional número 5, o mais abrangente e autoritário de todos os atos. O aparente desapego aos acontecimentos, na poesia de Drummond, dá-se somente no modo como se escreve, de como se fala sobre os assuntos sociais, na diminuição do tom trágico-dramático do poema. Ainda em Boitempo o poeta de Sentimento do Mundo faria jus a tal sentimento, mas de modo mais sutil, através de uma crítica velada, ao menos aos olhos do poder. Drummond seria mais esperto do que "o ator".. 6. Vide anexo 3.

(31) 31. 2.3 O apelo como anedota Não podemos nos esquecer, ao falarmos das produções literárias entre as décadas de 1960 e 1970, do contexto político e cultural em que elas se inserem. É relevante salientar que a trilogia Boitempo foi escrita em três importantes datas, no que tange o contexto político-cultural no Brasil: 1968, 1973 e 1979. Entre esses anos ocorreu o acirramento do poder militar, o afrouxamento desse regime e o período de abertura política no País. Qual é a relação entre essas datas e a obra de memórias de Drummond? Como se relacionam o contexto político do País, na década de 1960, e o Brasil do início do século passado, no interior de Minas Gerais, como nos descreve a narrativa poética de Boitempo? Para começar a delinear essa relação é necessário que nos concentremos em uma análise sobre o contexto social no período negro que se deu no Brasil, no campo político e das artes, a partir de 1964 com o golpe militar. Comecemos por uma questão colocada por Silviano Santiago no artigo "Democratização no Brasil - 1979-1981 (cultura versus arte)": "Quando é que a arte brasileira deixa de ser literária e sociológica para ter uma dominante cultural e antroplógica?" (SANTIAGO, 1998, p. 11) Para Silviano Santiago os estudos acadêmicos e a arte passavam por uma transição. Textos como entrevistas não eram tratados apenas como meros relatos mas, sobretudo, eram objetos de análise e estudo do pensamento intelectual da época. De acordo com Santiago, "o paladar metodológico dos jovens antropólogos não distingue a plebéia entrevista do príncipe poema." (SANTIAGO, 1998, p. 14). Da mesma forma, o texto poético "passa a funcionar como um depoimento informativo e a pesquisa de campo é analisada como texto." (SANTIAGO, 1998, p. 14). Em artigo publicado em 13 de agosto de 1981, Heloisa Buarque de Hollanda detectava, segundo Santiago, "um certo mal-estar dos intelectuais em relação à prática acadêmica" (HOLLANDA, apud Santiago, 1998). Antes, ainda, Heloisa já refletia sobre essa virada do pensamento dos intelectuais, no artigo publicado no Jornal do Brasil, em 13 de dezembro de 1980: "Depois do poemão". O artigo discutia sobre o que representou a atuação dos intelectuais durante o final dos anos 1960 até 1978. Todos estariam escrevendo um "poemão", poesia do dia-a-dia, cotidiana e prosaica. Essa nova forma de se fazer literatura distanciava-se de uma crítica aberta e direta para ganhar terreno na experiência individual. Para Heloisa, o espaço de.

(32) 32. resistência cultural estaria na "alegria e humor como guerrilha" (HOLLANDA, 2000, p. 186). Heloisa também considera que: A grande novidade desse poema, e também sua maior força, vinha no deslocamento de eixo da crítica social que passava a se atualizar na experiência individual, no sentimento, na subjetividade. Mudança que soube ser perigosa e, certamente, política. (HOLLANDA, 2000, p. 187). Esse panorama artístico apontava para uma virada de pensamento que cada vez mais se distanciava das Academias, numa época em que o poder estava nas mãos dos militares. Afastar as práticas culturais – até então consideradas puramente artísticas – das instituições legitimadoras do Saber configurou-se como um ato de resistência: Em pleno vazio, os jovens - e os não tão jovens - põem em pauta os impasses gerados no quadro do Milagre e desconfiam progressivamente das linguagens institucionalizadas e legitimadoras do Poder e do Saber. Simultaneamente, evidenciase na produção novíssima a significativa reavaliação de um certo sentimento que informou o engajamento político e cultural pré-68. Instala-se a ênfase na importância das questões relativas à prática cotidiana, à dúvida e à descrença nos programas, no alcance do projeto revolucionário na arte e, por extensão, nas formas da militância política tal como foram encaminhadas pela geração anterior. (HOLLANDA, 2000, p. 187). Em 1967, com o livro Versiprosa (crônicas da vida cotidiana e de algumas miragens), Carlos Drummond de Andrade adiantava essa nova tendência da literatura no Brasil, em que a vida cotidiana não se separava do poema, nem da prosa, tampouco da crônica. São espécies de observações de acontecimentos do dia-a-dia brasileiro que foram publicadas em versos, com teor de prosa, em jornais como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil. São crônicas? Poemas? Prosa poética? A confusão em estabelecer um gênero para os textos de Versiprosa não é mérito somente da autora: também Drummond arriscou um gênero cujo resultado foi chamá-lo de Versiprosa. O texto abaixo é uma pequena introdução escrita pelo próprio poeta: Versiprosa, palavra não dicionarizada, como tantas outras, acudiu-me para qualificar a matéria deste livro. Nele se reúnem crônicas publicadas no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil; umas poucas, no Mundo Ilustrado. Crônicas que transferem para o verso comentários e divagações da prosa. Não me animo a chamá-las de poesia. Prosa, a rigor, deixaram de ser. Então, versiprosa. Quero lembrar que as farpas dirigidas nestes escritos à ação de políticos jamais filtraram paixão ou interesse partidário nem assumiram cunho pessoal. Exprimiram a reação de um observador sem compromisso, que há muito se desligou de ilusões.

(33) 33. políticas, e, geralmente, prefere falar de outras coisas mais gratas entre o céu e a terra. (ANDRADE, 2003, p. 508). Segundo Gilberto de Mendonça Teles: Ao publicar Versiprosa, em 1967, Drummond tem consciência de que está num meio termo entre a poesia e a prosa (..). É claro que o neologismo [Versiprosa] tem endereço certo e se restringe a um livro de crônicas em verso, mas, visto num sentido mais longo, ele pode apontar também para as duas vertentes, para os dois gêneros - a poesia e a prosa (...). (TELES, 2004, p. 13). Versiprosa consiste, então, na produção de pequenos textos escritos para jornais, com versos aparentemente descomprometidos, que não discutem a ditadura diretamente, ou melhor diríamos, não geram maiores conflitos com o governo; porém os versos incomodam de maneira sutil, o que rendeu a Drummond a censura de algumas crônicas. A censura não poupou Drummond nem mesmo quando o poeta era inocente. Houve a vez em que Jaguar publicou uma charge no extinto Pasquim. O cartunista desenhou pessoas miseráveis, contando com a inscrição: "Avante seleção!" e citação dos versos de "José" 7 . A intenção de Jaguar era denunciar a alienação do povo causada pela copa do mundo futebolística de 1970, num País em franca pobreza e em plena repressão militar. Sobre isso rescreveu Jaguar: Esta ilustração que fiz para os versos do Carlos Drummond de Andrade quase provocou a prisão do poeta. Tive um trabalho danado para convencer o general da Censura que publiquei o desenho sem pedir autorização do autor. (JAGUAR, 2006, p. 154). O poema "Apelo", de Versiprosa, que o poeta escreve sobre a prisão de Nara Leão, também não foi poupado pela censura: Meu honrado Marechal dirigente da nação, venho fazer-lhe um apelo: não prenda Nara Leão. Soube que a Guerra, por conta, lhe quer dar uma lição. Vai enquadrá-la - esta é forte no artigo tal... não sei não. A menina disse coisas 7. Vide anexo 4.

(34) 34. de causar extremação? Pois a voz de uma garota abala a revolução? Narinha quis separar o civil do capitão? Em nossa ordem social lançar desagregação? Será que ela tem na fala, mais do que charme, canhão? O pensam que, pelo nome, em vez de Nara, é leão? Se o general Costa e Silva, já no meio chefão, tem pinta de boa praça, por que tal irritação? Ou foi alguém que, do contra, quis criar amolação a Seu Artur, inventando este caso sem razão? Que disse a mocinha, enfim, de inspirado pelo Cão? Que é pela paz e amor e contra a destruição? Deu seu palpite em política, favorável à eleição de um bom paisano - isso é crime, acaso de alta traição? E depois, se não há preso político, na ocasião, por que fazer da menina uma única exceção? Ah, Marechal, compre um disco de Nara, tão doce, tão meigamente brasileira e remeta ao escalão que, no Palácio da Guerra, estuda, de lei na mão, o que diz uma cantora dentro da (?) Constituição. Ao ouvir o que ela canta e penetra o coração, o que é música de embalo em meio a tanta aflição, o Gabinete zangado, que faz um tarantantão denunciando Narinha, mudava de opinião. De música precisamos,.

(35) 35. para pegar no rojão, para viver e sorrir, que não está mole não. Nara é pássaro, sabia? E nem adiante prisão para a voz que, pelos ares, espalha sua canção. Meu ilustre Marechal dirigente da Nação, não deixe, nem de brinquedo, que prendam Nara Leão. (ANDRADE, 2003, p. 612-4). Escrito em 1966, "Apelo" é uma tentativa de protesto à prisão da cantora Nara Leão. Um protesto irônico, que trata os "Generais" e "Marechais" por pronomes de tratamento respeitosos, numa tentativa de parecer uma carta formal aos "dirigentes da Nação". O tom jocoso expressa-se mais quando Drummond tenta ser formal e educado do que quando fala diretamente para não prenderem Nara Leão. Os versos são encadeados a partir de jogos retóricos que muitas vezes se expressam mais numa aparente ignorância das leis pelo poeta: "esta é forte / no artigo tal... não sei não". E coisas que Drummond diz nem saber se Nara talvez tenha falado mesmo: "A menina disse coisas / de causar extremação?" Numa mistura de ignorância dissimulada e inocência forjada, "Pois a voz de uma garota / abala a Revolução?", Drummond convida os generais a ouvirem a música da cantora e avisa: "Nara é pássaro, sabia? / E nem adianta prisão", fazendo clara alusão à música Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, cantada por Nara Leão no III FIC (Festival Internacional da Canção). Drummond adverte sutil e ironicamente que os artistas brasileiros são livres para criar, para cantar ou pintar, o que prisão nenhuma poderia impedi-los de fazer. Percebemos, então, que Drummond não deixa de se preocupar ou escrever sobre acontecimentos políticos, mas seu tom expressa-se mais pela ironia, pela irreverência e em casos particulares, seja dos artistas, da vida cotidiana, ou mesmo pelas suas memórias. Expressar-se não mais pelo tom trágico-dramático, ou pelo viés da erudição não é somente uma característica de Carlos Drummond de Andrade, como também do intelectual brasileiro, num tempo em que não há mais fronteira entre a alta literatura e o popular. De acordo com Silviano Santiago, a nova tendência das artes concentrava-se mais em.

(36) 36. Esvaziar o discurso poético da sua especificidade, liberá-lo do seu componente elevado e atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava dos outros discursos, enfim, equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o cotidiano, com o fim duma entrevista passageira, tudo isso corresponde ao gesto metodológico de apreender o poema no que ele apresenta de mais efêmero. Ou seja, na sua transitividade, na sua comunicabilidade com o próximo que o deseja para torná-lo seu. (SANTIAGO, 1998, p. 14). Boitempo seguiria esta tendência da literatura brasileira nos anos 1960 e 1970, ao contar anedotas do cotidiano de uma cidade, com humor e ironia. O tempo da narrativa, porém, é outro, é o tempo do passado, a época de menino. Não se excluem, entretanto, as críticas sociais, pois o poder em Itabira é descrito no mesmo tom jocoso "à moda drummondiana", e acaba por nos revelar um Brasil com suas mesmas relações de poder: displicentes, autoritárias e com a marca da irresponsabilidade, tão presente ainda hoje no cenário político do País. É como nos revela o poema "Cautela", do primeiro Boitempo: Hora de abrir a sessão da Câmara. O presidente não aparece. O presidente está impedido. O presidente está preso em casa. Monta guarda junto ao quarto repleto de ouro em pó. Pode a campainha tilintar, o sino do Rosário bater e rebater, o Senado da Câmara implorar protestar destituir o faltoso. O presidente tesoureiro de ouro em pó tributo do povo à regência trina vê lá se vai abrir sessão. Presida quem quiser, que esse ouro aqui ladrão nenhum virá roubar. (ANDRADE, 1973, p. 11). Nesse poema, notamos que a falta de responsabilidade dos políticos já no início do século incomodava o poeta. A esfera governamental torna-se alvo de crítica debochada de Drummond, num triste cenário político que permaneceu por todo o século passado, e que infelizmente ainda hoje perdura. O que notamos é que não há uma política centrada nos problemas sociais do País, mas pequenos grupos de interesse que procuram chegar ao poder..

(37) 37. Durante a análise dos poemas de Boitempo, queremos perceber que as memórias não excluíram os acontecimentos políticos e culturais principais do Brasil, nos anos 1960 e 1970. Mesmo em poemas aparentemente descomprometidos, como as lembranças de menino, notamos que o movimento poético se desloca do aspecto privado para o cenário público, em um tempo em que mais importante para o intelectual era representar a sua individualidade, de modo a fazer com que os poemas, sejam eles de memória ou não, tornassem-se metonímias para uma questão mais ampla de cunho político-cultural sobre o que acontecia no País. As relações entre o artista e o poder, entre o intelectual e a sua resistência aos atos totalitários é o que nós propomos analisar no capítulo seguinte..

Referências

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