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DESCREVER GÉNEROS DE TEXTO: RESISTÊNCIAS E ESTRATÉGIAS

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Academic year: 2021

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DESCREVER GÉNEROS DE TEXTO: RESISTÊNCIAS E ESTRATÉGIAS

Antónia COUTINHO (Universidade Nova de Lisboa)

ABSTRACT: Looking at specialized bibliography, doubts concerning the possibility of genre’s description are strongly emphasized. At the same time, is taken for granted that each empirical and singular text depends on a genre, which is adopted and adapted. Besides, texts’ genres have no ontological dimension: they can not be accessed unless singular texts, as empirical possibilities of a given genre, are taken in consideration. In this context, the viability of describing text’ genres appears as a topic which needs much more theoretical and methodological development. This paper aims at analysing how genres resist to description, proposing some possible strategies to deal with that issue. The main point is to preserve, as far as possible, the possibility of analysing genres without interfere in their ‘natural’ way of life. As we will see, fictionalization of genres can be used as a methodological resource to do so.

KEYWORDS: genre; parameters of genre; methodological strategy; fictionalization.

1. Introdução

É inegável a centralidade da noção de género (de texto/ de discurso), no âmbito dos estudos linguísticos sobre os textos e os discursos – atravessando diferentes enquadramentos teórico-epistemológicos e áreas disciplinares próximas (como sejam, nomeadamente, as disciplinas geralmente designadas como análise do(s) discurso(s) ou linguística do texto, a perspectiva do interaccionismo sociodiscursivo ou a abordagem sistémico-funcional). Sem entrar em aspectos particulares da caracterização da noção, no quadro de cada uma das perspectivas teóricas que a tomam em consideração, poder-se-á sublinhar o papel fundamental de que ela se reveste, evidenciando a articulação estreita entre factores linguísticos, associados a diferentes aspectos da organização textual, e factores situacionais, inequivocamente envolvidos nas tarefas de produção e de interpretação textuais.

O presente trabalho pretende reflectir sobre algumas das questões epistemológicas e metodológicas envolvidas na relação entre género e textos – entendido o primeiro como categoria abstracta, os segundos como objectos empíricos que constituem sempre exemplares de determinado género textual. Na bibliografia especializada, parecem consensuais as reservas relativamente à possibilidade de descrição de géneros – tendo em conta, por um lado, a multiplicidade de factores e de critérios que podem intervir nessa tarefa e, por outro, a natureza mutável que os caracteriza (de que decorre o facto de serem, teoricamente, em número infinito). Ao mesmo tempo, admite-se que qualquer texto se relaciona com um género, que reproduz de forma mais fiel ou mais livre. Assim sendo, parece impor-se a necessidade de pensar, em termos metodológicos, a viabilidade de descrição de géneros de texto – tanto mais que estes só se tornam acessíveis através de textos empíricos que constituem exemplares do género, como já atrás ficou sublinhado. Como se poderá circunscrever a descrição e análise de géneros – que por definição só são observáveis através de textos efectivamente realizados? Quais os contornos epistemológicos e as reservas metodológicas que poderão sustentar um trabalho efectivo sobre géneros de texto?

É face a esta problemática que apontaremos algumas estratégias. Por um lado, importará operacionalizar a duplicidade de planos necessariamente envolvidos na produção e interpretação textuais: o plano da genericidade, que assegura “ares de família” (sem incluir,

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através do qual cada texto se constitui como um caso único (semelhante, em última análise, ao texto literário, cuja singularidade se evidencia em primeiro lugar por razões de ordem estética). Deste ponto de vista, trata-se de definir instrumentos de análise que permitam lidar, de forma controlada, com a a entidade não ontológica que é o género e com a duplicidade de objectos de análise – género e texto(s). Por outro lado, trata-se de equacionar procedimentos metodológicos adequados ao trabalho sobre géneros – nomeadamente os que dizem respeito à necessidade de reunir condições diferenciadas de observação dos textos sem recurso a manipulações que, por mais controladas, não deixariam nunca de desfazer a situacionalidade própria de cada género.

Nas páginas que se seguem começaremos por uma breve panorâmica de alguns marcos significativos, na bibliografia disponível, relativamente a perspectivas de análise de géneros e de textos – pondo em destaque alguns dos hiatos que se afiguram pertinentes, do ponto de vista aqui assumido. Posteriormente, serão apresentadas propostas concretas – por um lado, relativamente à distinção de planos de análise, fazendo intervir as noções de parâmetros de género e de mecanismos de realização textual; por outro, apresentando a ficcionalização de géneros como estratégia metodológica que, deixando preservadas as condições naturais de circulação dos textos, disponibiliza para a análise géneros manipulados sem a intervenção dos investigadores.

2. Géneros e textos: problemas de descrição

Um dos argumentos normalmente apontados para justificar a impossibilidade de uma tarefa descritiva prende-se com a diversidade e a mutabilidade que caracterizam constitutivamente os géneros de texto. No entanto, pelo facto de aparecerem como consensuais aos olhos de teóricos e/ou analistas de textos, essas características não parecem impedir que os géneros funcionem. Por outras palavras, diversidade e mutabilidade não parecem criar grandes dificuldades aos falantes e escreventes que, quando falam e escrevem (e quando ouvem e lêem) recorrem, de forma mais ou menos explícita e consciente, aos géneros de que dispõem – seja individualmente, em função de uma experiência textual mais ou menos diversificada e desenvolvida, seja colectivamente, na sempre relativa instabilidade de uma época.

Um outro argumento forte que costuma ser apresentado tem a ver com a multiplicidade de factores em interacção que mobiliza cada género. Por essa razão, torna-se evidente que as diferentes tentativas de tipologização (situacionais, enunciativas e funcionais), necessariamente parcelares, ficam inevitavelmente votadas ao insucesso. E mesmo que se rejeite, a este propósito, a própria tentativa de tipologização – tendo em conta que é contraditória relativamente à expansão, virtualmente ilimitada, a que estão sujeitos os géneros – permanece, como reserva de peso, a convicção de que a quantidade de critérios a ter em conta inviabiliza praticamente a descrição.

Sem pôr em causa a pertinência das questões que acabam de ser apontadas, parece-nos fundamental assumir a este propósito uma reserva metodológica: a impossibilidade de qualquer classificação exaustiva dos géneros não parece ter de corresponder necessariamente a uma impossibilidade radical de descrição. Admitimos assim que mais forte do que a resistência à descrição que oferecem os géneros – por definição maleáveis e mutáveis – seja a resistência por parte de teóricos e analistas, confrontados com a dificuldade metodológica de lidar com objectos que, ao contrário daquilo a que os habituou a ciência positivista, não são inteiramente controláveis. A questão metodológica geral sobre a qual importará continuar a trabalhar prende-se com a necessidade de conceber estratégias metodológicas e instrumentos de análise adequados a objectos (reconhecidos como) instáveis.

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Apesar das reservas apontadas, a bibliografia disponível aponta perspectivas de descrição de géneros. De acordo com o contributo fundador, poderemos considerar que a descrição de qualquer género passa necessariamente pela descrição de três componentes que o integram: conteúdo temático, construção composicional e estilo (BAKHTINE, 1984, p. 265). Mais do que saber se estes aspectos seriam ou não suficientes para levar a cabo a tarefa, interessa aqui sublinhar que aquele ponto de vista parece ainda constituir uma boa sugestão de trabalho para as ciências da linguagem – que lentamente se deslocam de uma concepção estritamente logico-gramatical para uma abordagem retorico-hermenêutica (cf. RASTIER, 2001)1. No que diz respeito à questão do conteúdo temático, pouco parece ter-se avançado depois do esforço de Voloshinov (atribuído a Bakhtine) para esclarecer as noções de tema e de significação, perspectivando o modo dinâmico como a segunda se relaciona com o primeiro: “La signification ne veut rien dire en elle-même, elle n’est qu’un potentiel, une possibilité de signifier à l’intérieur d’un thème concret”. (BAKHTINE, 1977, p.145). Ainda que de modo meramente sugestivo, vale a pena sublinhar como esta concepção aponta perspectivas de análise que os estudos posteriores sobre os textos e os géneros de texto ainda não desenvolveram cabalmente: a relação do tema com o género; a relação do tema com os outros factores envolvidos na formatação genérica; e, em última análise, a relação entre significação (ou língua) e género(s).

No que diz respeito à construção composicional, destacaremos os contributos de J.-M. Adam e de J.-P. Bronckart. Ao primeiro devemos uma longa reflexão, sistematicamente revista, de elementos de composição textual. Com efeito, aos trabalhos centrados sobre tipos de texto e/ou sequências textuais (mais ou menos) prototípicas, a que o nome deste autor costuma estar predominantemente associado, junta-se a reflexão que vem fazendo sobre outros elementos a considerar na composição textual: simples períodos (pouco ou nada tipificados) e planos de texto, que podem ser fixos (relativos ao género em causa) ou ocasionais (ADAM, 2002a, pág.174-175).

No quadro da abordagem teórico-epistemológica que designa como interaccionismo sociodiscursivo, Jean-Paul Bronckart não tem contributos específicos relacionados com o tópico que estamos a passar em revista, uma vez que aborda aspectos de descrição de textos mas não de géneros. Tendo em conta, no entanto, que o modelo de descrição de textos apresenta propostas convergentes e divergentes relativamente à concepção de composicionalidade textual que acabámos de apresentar sumariamente, parece-nos importante referi-lo desde já – o que não impedirá que seja retomado e discutido mais à frente. Bronckart considera que a infraestrutura geral do texto compreende os seguintes elementos: plano de texto (que organiza o conteúdo temático), tipos de discurso (ou modos de enunciação) em Discurso interactivo e discurso teórico, da ordem do expor), Relato interactivo e narração, da ordem do contar); modalidades de articulação entre os tipos de discurso (Encaixe, Fusão, outras possibilidades); Sequências (Narrativa, Descritiva, Injuntiva, Explicativa, Argumentativa, Dialogal) e outras formas de planificação (a esquematização, como forma mínima da ordem do expor, em que o objecto se apresenta de modo puramente expositivo, como em definições, enumerações e enunciados de regras; e o script, como forma mínima da ordem do contar, em que a organização linear reproduz a ordem cronológica dos acontecimentos, sem qualquer processo de criação de tensão).

Embora não possamos aqui desenvolver a problemática do estilo – que mereceria por si só uma reflexão aprofundada e actualizada, na perspectiva das ciências da linguagem – importa reter o modo como o tema vem sendo perpsectivado no âmbito da descrição dos textos e dos discursos – nomeadamente por J.-M. Adam. (ADAM, 1999). Como mostra a Figura 1 (cf. ADAM, 1999, pág. 93), o autor distingue três zonas diferentes, no que diz

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respeito às possibilidades ou probabilidades de variação: uma zona normativa, definida pelas constantes de mais alta frequência; uma zona de relativa normatividade, a que corresponde a gramática e os géneros (com normas mais rígidas no caso da gramática, mais flexíveis no caso dos géneros); e a zona de variação do sistema, em que se situam o estilo e o texto.

Fig. 1 – Questões estilísticas (cf. ADAM, 1999, pág. 93)

Na perspectiva do autor, o estilo (no singular) corresponde à variação individual, enquanto estilos (no plural) estarão relacionados com os casos de “phraséologie d’un groupe social (juridique, médicale, sportive, etc., (…)”. Para além da questão de saber se os estilos correspondem apenas, de facto, a essas fraseologias, importa aqui sublinhar como o género aparece como factor de estabilidade e mesmo de normatividade, enquanto os textos constituem casos de variação, relativamente ao género.

Na medida em que, mais á frente, voltaremos a referir-nos a questões de composicionalidade e de estilo, voltaremos agora ao tópico em análise, a saber – que dizem os autores sobre a possibilidade de descrição de géneros?

Dominique Maingueneau começou por considerar os seguintes factores de definição de um género (“contraintes définitoires”): o estatuto dos enunciadores e co-enunciadores, as circunstâncias de espaço e de tempo associadas à enunciação, o suporte, o tema e o modo de organização (Maingueneau, 1996, 44). Em trabalhos posteriores, o autor introduziu ligeiras formulações, retendo as seguintes componentes de género: finalidade, lugar, temporalidade, estatuto dos interlocutores, suporte/apresentação material e organização textual/ plano de texto (Maingueneau 1998: 51-54, 2002: 55-62). Reportando-se explicitamente ao contributo de Maingueneau que acaba de ser evocado, Jean-Michel Adam propõe um alargamento das componentes referidas por aquele autor, tomando assim em consideração oito componentes, a seguir rapidamente elencadas: semântica, enunciativa, pragmática, estilística e fraseológica, composicional, material, peritextual e metatextual (Adam, 2002c, 40-41).

Mais do que discutir ou tomar posição sobre o número ou a natureza das componentes consideradas, interessa-nos evidenciar o facto de os textos estarem ausentes dessa reflexão. Uma interpretação possível para esse silêncio – que deixaria então de ser lacunar – passaria

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pelo aceitar de uma total sobreposição dos planos genérico e textual. À primeira vista, a solução pode parecer mais do que evidente: uma vez que, como já foi várias vezes sublinhado, o género não tem realidade ontológica, as componentes de género seriam também, necessariamente, componentes textuais. Mesmo admitindo que esta hipótese seja válida, não deixa de ser problemática a consideração de duas categorias (género e texto) com as quais a análise não é capaz de lidar – ou que a análise não é capaz de interrelacionar de forma articulada. De facto, ficaria nesse caso por esclarecer o tipo de relação que une o género ao(s) texto(s) efectivamente produzido(s) – relação essa que os mesmos autores não deixam de tomar em consideração. Jean-Michel Adam, em particular, tem sublinhado o modo como os géneros regulam a prática textual através de dois princípios só aparentemente contraditórios: um princípio de identidade, orientado para a repetição e a reprodução, e um princípio de diferença, orientado para a inovação e a variação (Adam, 2002, p. 38). Deste ponto de vista, não pode deixar de se reconhecer a insuficiência da hipótese atrás colocada – isto é, que as mesmas componentes sejam suficientes para analisar simultaneamente géneros e textos. Como dar conta, então, das inovações que realizam (ou se realizam em) textos concretos? Como saber se são ainda (ou não) exemplares do mesmo género de partida?

No quadro da abordagem designada como interaccionismo sociodiscursivo, Jean-Paul Bronckart descreve a arquitectura textual através de uma organização em camadas (à semelhança de um folhado): em primeiro lugar, a infraestrutura geral, que inclui plano de texto, tipos de discurso, sequências e outras formas de planificação (script e esquematização); a seguir mecanismos de textualização (mecanismos de conexão, por um lado, de coesão nominal e verbal, por outro); finalmente, mecanismos enunciativos (responsabilidades enunciativas e modalizações). Também neste caso não discutiremos a pertinência ou adequação do modelo proposto, sublinhando antes, na sequência de Anna Rachel Machado (MACHADO, 2005, p. 252)., que se trata de um modelo de análise de textos e não de géneros – o que recoloca o problema que vinhamos analisando. Jean-Paul Bronckart tem sistematicamente sublinhado que entre um texto empírico e o género de que depende se estabelece uma relação dupla de adopção e de adaptação, que pode ser mais orientada num ou noutro sentido de acordo com múltiplos factores envolvidos na avaliação da situação de produção. Mas ficando a conceção de arquitectura textual alheia à noção de género, não parece evidente saber onde e como se faz a adopção e a adaptação.

Em síntese, poderemos dizer que qualquer uma das soluções apontadas (descrever géneros ou descrever textos) deixa em aberto uma das questões centrais nesta problemática – a interrelação entre as categorias em causa. Assim, um repertório de componentes de género não assegura a descrição efectiva de qualquer texto que dependa desse mesmo género; e inversamente, um modelo de arquitectura dos textos deixa-nos sem capacidade de relação com os formatos de que aqueles dependem (de forma mais ou menos rígida ou mais ou menos criativa). Na secção seguinte será descrito um instrumento de análise que pretende contemplar os dois planos em causa2.

3. Parâmetros de género e mecanismos de realização textual

O ponto de partida para a elaboração das noções/instrumentos de análise que vamos passar a descrever está relacionado com uma convicção já atrás referida: a de que a impossibilidade de qualquer classificação exaustiva dos géneros não corresponda necessaria e inevitavelmente a uma impossibilidade radical de descrição. Este ponto de vista situa-se, em última análise, na esteira do posicionamento de vários autores já atrás referidos: de uma forma

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ou de outra, e para além das reservas que apontam, todos tomam em linha de conta o interesse ou mesmo a necessidade de distinguir estabilidade e variação, na problemática em causa. Apesar de, como já foi dito, não perspectivar o modo como cada texto adopta e/ou adapta o género de que depende, Bronckart refere-se às "diferenças objetivas" no interior do arquitexto (cf. BRONCKART, 2006, p.146), o que parece sugerir, apesar de tudo, a possibilidade de identificar aspectos diferenciadores de géneros. Adam, por sua vez, atribui aos géneros uma função de normatividade (mais flexível do que a normatividade da língua como, de resto, já Bakhtine apontara (BAKHTINE, 1984, pág. 285). Posteriormente, o autor reformulou e/ou explicitou este mesmo ponto de vista, fazendo referência a dois princípios norteadores: um princípio de identidade (centrípeto), orientado para a repetição e a reprodução, que desempenha um papel normativo; e um princípio de diferença, centrífugo, orientado para a inovação e a variação (cf. ADAM, 2002, pág. 38).

Admitindo assim a necessidade de dar conta dos movimentos de estabilidade e de variação associados ao funcionamento dos géneros, poder-se-á ainda acrescentar um último argumento: é que parece difícil dispensar a possibilidade de descrição de géneros, sob pena de nos ficarmos com um modelo de organização dos textos sem capacidade de relação com os formatos de que aqueles dependem (de forma mais ou menos rígida, mais ou menos criativa).

Partindo desta hipótese de trabalho, admitimos que o mesmo modelo de análise poderá, e deverá, ser aplicado aos dois planos – o dos textos empíricos e o do(s) género(s) de que eles relevam. Para a elaboração do instrumento que estamos a apresentar foi usado, fundamentalmente, o modelo de análise de textos tal como vem sendo concebido no quadro do ISD – fazendo-se intervir, em qualquer caso, contributos de outras propostas e/ou de outros autores, no âmbito dos estudos linguísticos sobre os textos e os discursos, sobretudo no que dizia respeito a aspectos menos explícitos ou menos evidenciados no modelo seleccionado (para mais pormenores, veja-se COUTINHO et al., no prelo e LEAL e GONÇALVES, neste volume). Sublinhe-se, entretanto, que não pretendemos aqui discutir as opções ao nível da concepção do modelo de análise mas sim a enfatizar a hipótese de que qualquer modelo deverá poder funcionar, simultaneamente, para a análise de textos e para a análise de géneros.

Os mesmos itens de análise (no que diz respeito, em termos gerais, às condições de produção e à arquitectura textual) são considerados relativamente ao plano da formatação genérica e ao plano da organização dos textos singulares. No primeiro caso, o da formatação genérica, trata-se de identificar as caractrísticas previsíveis que constituem a identidade do género – características essas que foram designadas como parâmetros de género. Note-se que não estão assim em causa características absolutamente fixas ou obrigatórias, mas sim previsibilidades. No segundo caso, o dos textos singulares, trata-se de identificar o modo como o texto (cada texto) dá conta das previsibilidades determinadas genericamente; as escolhas de cada texto, estabelecendo um recorte relativamente às possibilidades do género, foram designadas como mecanismos de realização textual.

Como se poderá constatar, são estas noções que sustentam a possibilidade de dar conta de dois tipos de objectos diferentes, apesar de muito próximos: por um lado, os géneros, destituídos de realidade ontológica e funcionando como factores de (relativa) estabilidade e normatividade; por outro, os textos empíricos que, aproveitando as pssibilidades de variação genérica, constituem sempre, em última análise, casos singulares.

No que diz respeito ao modo de funcionamento, interessa sublinhar explicitar que o movimento parte dos textos concretos – os únicos directamente disponíveis para análise; o levantamento dos mecanismos de realização textual permite identificar parâmetros de género, devendo estes ser de novo confrontados com o plano dos textos, de modo a assegurar uma análise de controle.

A Figura 2 apresenta uma visão global dos instrumentos e procedimentos de análise considerados.

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Fig. 2 – GeTOC – Instrumentos e procedimentos de análise.

Como já ficou dito, o interesse do modelo de análise exposto passa, em larga medida, pela possibilidade de articular descrição de textos e descrição de géneros, sem pretender qualquer fixação da maleabilidade e mutabilidade características da categoria género: com efeito, a distinção entre parâmetros de género e mecanismos de realização textual permite captar a variação (sincrónica) e, nessa mesma medida, contribuir para a possibilidade de a perspectivar diacronicamente (identificando então o processo de mudança genérica). Reconhecemos, como é evidente, a necessidade de continuar a desenvolver trabalho empírico sobre textos (e géneros) – de modo a testar, de modo mais conclusivo, a relação entre parâmetros de género e mecanismos de realização textual. No entanto, parece desde já possível testar alguma rentabilidade dessas mesmas noções – tal como se verá na secção seguinte.

4. A ficcionalização de géneros como estratégia metodológica

A noção de ficcionalização de que vamos fazer uso corresponde a uma re-elaboração conceptual que mobiliza contributos vários, de ordem litarária e linguística – a serem aqui evocados de forma sucinta. Em primeiro lugar, impõe-se a referência à noção de hipertextualidade, definida por Genette (1982) e retomada por Adam (2005, pág. 15) nos seguintes termos:

“reprise d’un texte A (hypotexte) par un texte B (hypertexte) qui lui est postérieur, sous forme de pastiche (imitation), de parodie (transformation), mais aussi de simple continuation, voire de traduction; c’est dire transposition ou subversion à des fins ludiques, satiriques ou sérieuses d’un texte par un autre (voir Palimpsestes, Genette

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Em segundo lugar, a noção de intertextualização proposta por Miranda (2004; cf. também MIRANDA, neste volume), que dá conta do fenómenos de cruzamento de géneros – etapa decisiva para a elaboração da noção de ficcionalização. Este último termo – ficcionalização – parece surgir de forma muito pontual na bibliografia. Sem tentar qualquer levantamento exaustivo, interessa destacar uma dessas ocorrências – pela proximidade que manifesta, relativamente ao sentido que pretendemos aqui estabilizar. Trata-se da perspectiva apontada por J.-P. Bernié (2002, pág. 331):

“…montrer que les variations sémantiques observables entre textes d’un même chercheur, relatifs au même type de problème scientifique, sont liées à des variations génériques qui ne peuvent être expliquées ni par un simple ajustement des techniques de présentation ni même par les fameuses vertus réflexives de l’activité, mais par une «fictionalisation» différente des paramètres contextuels de l’activité scripturale; c’est-à-dire par la représentation et la mise en scène d’un contexte socio-discursif différent”.

Como se pode constatar, o autor fala de ficcionalização para se referir a casos em que há encenação dos parâmetros contextuais – considerando-os integrados no âmbito mais largo das variações genéricas. Na mesma linha de pensamento, estabelecemos a distinção entre actualização e ficcionalização de géneros – noções que serão objecto de exposição mais desenvolvida e de exemplificação, noutra contribuição (cf. LEAL e GONÇALVES, neste mesmo volume). No âmbito do presente trabalho, interessa sobretudo insistir na especificidade da ficcionalização enquanto pastiche de género: não se trata, neste caso, de cruzar géneros, mas de simular um género. Por outras palavras: o género é usado para fins diferentes daqueles que lhe estão em princípio associados – fins humorísticos ou lúdicos em geral, publicitários, estéticos. Isso significa que pelo menos alguns parâmetros de género terão necessariamente de ser mantidos, de forma a assegurar que o género é reconhecido – condição sine qua non para que o fim pretendido (humorístico ou outro) seja atingido.

De acordo com o que acaba de ser dito, assumimos que lidar com textos que ficcionalizam géneros obriga a que se tomem simultaneamente em conta os mesmos géneros na sua vertente actualizada (ou não ficcionalizada). O processo oferece assim condições diferenciadas de observação: deixando preservadas as condições naturais de circulação dos textos, ficam disponibilizados para análise materiais diferenciados sem que estes resultam do recurso a manipulações que, por mais controladas, não deixariam nunca de desfazer a situacionalidade própria de cada género.

Desse ponto de vista, a ficcionalização de géneros pode constituir uma estratégia de grande utilidade no trabalho de descrição de géneros e de textos.

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Referências

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BERNIE, Jean-Paul. Les genres discursifs, des outils sociaux de transformation des

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BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006

BOTA, Cristian e BRONCKART, Jean-Paul. Voloshinov et Bakhtine: deux approches radicalement opposées des genres de textes et de leur statut. Linx, nº especial, no prelo COUTINHO, Maria Antónia; ALVES, Marisa, GONÇALVES, Matilde; MIRANDA, Florencia & PINTO, Rosalice. Parâmetros de géneros e mecanismos de realização textual – aspectos teóricos. Diácritica, v. 21, n. 1. 2007. (no prelo).

MAINGUENEAU, Dominique. Les termes clés de l’analyse du discours, Paris: Seuil, 1996 _____. Analyser les textes de communication. Paris: Dunod, 1998.

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