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Modalidades de produção de espaços no contexto de uma colina monumentalizada : o sítio pré-histórico de Castanheiro do Vento, em Vila Nova de Foz Côa

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Academic year: 2021

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ANA MARGARIDA APARÍCIO DO VALE

MODALIDADES DE PRODUÇÃO DE ESPAÇOS NO CONTEXTO

DE UMA COLINA MONUMENTALIZADA:

O SÍTIO PRÉ-HISTÓRICO

DE CASTANHEIRO DO VENTO, EM VILA NOVA DE FOZ CÔA.

Dissertação apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto para obtenção do grau de Doutor em Arqueologia, sob orientação do Professor Doutor Vítor Oliveira Jorge

PORTO DEZEMBRO de 2011

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Índice

Índice 3

Agradecimentos 7

Resumo da Dissertação (Abstract) 9

I

Bases Fundacionais: definição e contexto da investigação 17

1. Abertura 21

2. sítio arqueológico de Castanheiro do Vento. Condições de emergência do projecto de investigação 31 3. Metodologia: paradigma e singularidade. 61

II

O passado em imagens: os discursos explicativos dos recintos murados peninsulares do

IIIº milénio a.C. 69

4. Sobre os Recintos Murados “Calcolíticos” Peninsulares. Breve incursão 73 5. Imagens do Calcolítico Peninsular:

O caso de “Los Millares”, Leceia e Zambujal 87

5.1. Imagens fixas, passados petrificados 90

Los Millares: reconstrução de um sítio através de imagens 91 Leceia: imagens enquanto validação de uma narrativa 96

Zambujal: desenhos de campo e fotografias 100

5.2. Imagens do passado: muralhas e bastiões 103

5.3. Questionando imagens: o caso de Castelo Velho de Freixo de Numão e Castanheiro do

Vento 105

6. A tradução de materiais em actividades e actividades em pessoas. Preconceitos de género e imagens estereotipadas na explicação dos recintos murados peninsulares

(4)

6.1. Arqueologia, Feminismo e Estudos de Género em Portugal 120 6.2. O passado familiar e categorias universais 123 6.3. Performatividade de género e as políticas dos discursos sobre o passado 125

7. Imagens familiares/Imagens estranhas: a emergência de um outro discurso 129

III

Arquitectura e organização do espaço em Castanheiro do Vento 137

8. A Arquitectura vista pela Arqueologia 141 Construções do passado enquanto espelhos de comunidades pretéritas 142

Construir e habitar 144

Planeamento funcional ou ausência de plano? 153

Percursos e movimento 156

Labirinto e imersão 159

“Sentir-se em casa” 161

9. Arquitectura como prática construtiva 163 9.1. Que espaços constroem os “bastiões”? 163 9.2. Construindo espaços circulares 179 Estruturas circulares como arquitectura doméstica? Casas e cabanas na Pré-história

Recente 194

De que falamos quando nos referimos a “casas”? 197

Da forma e da organização do espaço 201

Arquitectura como prática e tradições de práticas construtivas 205

10. Arquitectura como relação de materiais 217 10.1. Estudos de Fragmentação em Arqueologia 217

Fragmentação como Metáfora da Modernidade 219

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5

Fragmentação Intencional de Recipientes Cerâmicos – o Todo e a Parte 229

O Tempo do Fragmento Cerâmico 240

10.2. Fragmentos da Grande Estrutura Circular 247

Definições e outros fragmentos de análise 247

Estudo de fragmentação cerâmica – o método 265

Genealogia da intervenção arqueológica 270

Estudo da fragmentação por contextos 282

Estudo da fragmentação por níveis 301

Entrelaçando fragmentos 308

10.3. Aporias arquitectónicas e impasses interpretativos 313

IV

11. Arquitectando espaços em Castanheiro do Vento 319

Planta, Alçado e Projecto 331

Arquitectura monumental / Arquitectura doméstica 343

Função /Forma 348

Arquitectura e Construção 352

Sombra e Claridade 357

“…isto já estava aqui antes de ti.” 361

Bibliografia 365

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7

Agradecimentos

Começo por agradecer ao meu orientador, Professor Doutor Vítor Oliveira Jorge. Todo o meu percurso pelos corredores da faculdade ou pelas encruzilhadas da arqueologia de campo tem sido inspirado por Vítor Oliveira Jorge. Aqui expresso a minha admiração pelo seu trabalho, pela sua capacidade de resistência e persistência e a minha gratidão por ter aceite orientar este projecto de investigação. Agradeço também por me relembrar a cada passo que a investigação não é apenas a observação do imediato e que pensar a Arqueologia extravasa os limites que a própria disciplina impõe. Obrigada por me ter ensinado.

Agradeço ao Professor Doutor Julian Thomas que sempre assumiu o papel de co-orientador deste projecto. O trabalho que desenvolvi na Universidade de Manchester foi essencial para a concretização do texto que em seguida se apresenta. Queria agradecer a sua disponibilidade, o apoio e incentivo que sempre demonstrou pelos temas que me propus desenvolver.

Gostaria também de agradecer à Professora Doutora Susana Oliveira Jorge pelo apoio, pelo incentivo, pela motivação. Mas acima de tudo agradeço a inspiração. Como professora, como arqueóloga, como investigadora. Os seus trabalhos em Castelo Velho de Freixo de Numão, os artigos publicados, as comunicações apresentadas, as suas aulas na FLUP, as inúmeras conversas em Freixo de Numão são indissociáveis do texto que se segue.

Agradeço também à Professora Doutora Maria de Jesus Sanches pelo incentivo, pela palavra amiga que tem sempre tempo para dar. Agradeço também ao Professor Doutor Sérgio Monteiro Rodrigues que desde 1996 marcou o meu percurso académico. Obrigada pela sua amizade e incentivo.

E a Lesley McFadyen pela presença contínua ao longo deste trabalho, pela inspiração, pela “orientação”, pela amizade, por todos os momentos partilhados e pela sua disponibilidade total. Agradeço as inúmeras conversas na varanda, os inúmeros cafés partilhados. A influência de Lesley McFadyen percorre as linhas deste trabalho.

Também expresso o meu agradecimento à Fundação para a Ciência e Tecnologia que permitiu a minha total dedicação a este projecto durante quatro anos. A bolsa de doutoramento que me foi concedida possibilitou a execução deste trabalho. Ao Centro de Estudos das Universidades de Coimbra e Porto, à Professora Doutora Conceição Lopes por todo o apoio sempre disponibilizado. À Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a todos os elementos do Departamento de Ciências e Técnicas do Património.

Ao Sérgio Gomes, companheiro de percurso, impossível colocar por palavras a minha imensa gratidão.

Ao João Muralha Cardoso, pelo apoio, pelas inúmeras conversas em Castanheiro do Vento. Este trabalho apenas foi possível porque o projecto de doutoramento de João Muralha Cardoso estabeleceu as bases, e realizou um estudo notável acerca do sítio que me propus (mais tarde) estudar.

A toda a equipa de Castanheiro do Vento. Sem o trabalho de equipa, sem as discussões em grupo, sem os atritos e ideias que durante estes anos foram surgindo, a minha pesquisa não teria, possivelmente esta configuração. Assim a todos os elementos: Vítor Oliveira Jorge, Susana Oliveira Jorge, João Muralha Cardoso, Leonor Sousa Pereira, Gonçalo Leite Velho, Bárbara Carvalho e Sérgio Gomes o meu profundo agradecimento.

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Agradeço também a todos os que participaram nas escavações em Castanheiro do Vento. Grandes equipas, excelentes voluntários. A todos o meu obrigado por tornarem possível um projecto, um sonho.

Ao Mestre António Sá Coixão expresso a minha gratidão pelo apoio prestado em todas as campanhas de escavação em Castanheiro do Vento. Mas acima de tudo agradeço a sua amizade e a sua disponibilidade em ajudar na concretização deste trabalho. À Associação Recreativa Desportiva e Cultural de Freixo de Numão e a todos os seus elementos, muito obrigada. Ao Miguel, pelo companheirismo, amizade e apoio.

À Lurdes Oliveira, à Alexandra Vieira, à Lídia Baptista, que desde sempre me acompanharam, que me deram alento, inspiração e motivação. Um agradecimento especial à Lurdes pela paciência e disponibilidade para me “ensinar” e trabalhar comigo na análise do conjunto artefactual. À Irene Garcia Rovira agradeço os momentos que me proporcionou, a alegria, a motivação, o apoio. A todos neste parágrafo enumerados, assim como à Bárbara Carvalho, Susana Mesquita, José Valera e Higino Matos, agradeço o facto de me fazerem acreditar que era possível realizar este trabalho.

Ao André Tomás Santos, inspiração continua, amizade, compreensão, ajuda, disponibilidade, atenção, incentivo, dedicação…impossível também elencar as razões do meu infinito agradecimento. À Joana Alves Ferreira pela amizade, sinceridade, paz e compreensão. Ao André e à Joana agradeço também a revisão deste trabalho.

A um conjunto de pessoas que em momentos distintos me acompanharam, incentivaram, ajudaram das mais diversas formas: Mark Knight, Ian Heath, Colin Richards, Mark Edmonds, Lídia Azevedo (a quem agradeço também a realização de grande parte dos desenhos de peças cerâmicas), e à Cláudia Costa.

Ao Paúl, nomeadamente à Ana Cristina, ao Diogo, à Lúcia, à Guida, à Vera e ao Marco, ao Gabriel, ao Rafael, ao Benjamin porque sempre e desde sempre acreditaram nos meus projectos.

Ao Externato Ribadouro e ao Externato Camões e a todos os meus alunos que me acompanharam na fase final deste projecto.

Ao meu pai, à minha mãe, ao meu irmão e à minha avó, por serem os pilares desta e de todas as construções. Ao meu pai, com quem discuti muitos dos temas aqui tratados, agradeço a inspiração, o apoio incondicional, o acreditar sempre, agradeço por me ter ensinado a importância do rigor e da rectidão. À minha mãe agradeço o carinho e afecto, agradeço por me ter ensinado a contar esta e muitas outras histórias, pela capacidade de narrar com o “coração”. Aos dois agradeço o esforço e a dedicação que depositaram neste trabalho e sem os quais a sua realização seria impossível. Ao meu irmão, porque sempre sonhamos juntos, porque gémeos na vida partilhamos o percurso. À minha avó porque me ensinou a caminhar, pela sua força e resistência.

À Patrícia, e a toda a minha família. Um obrigada especial ao Luís Miguel, ao João Carlos e à Soninha.

Ao Andrew, por fazer os meus dias mais azuis.

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Resumo

Este trabalho tem como objectivo o estudo do sítio arqueológico de Castanheiro do Vento (localizado na freguesia de Horta do Douro, concelho de Vila Nova de Foz Côa e datado do IIIº/IIº milénios AC), a partir de um conjunto de particularidades arquitectónicas. Pretendeu-se prestar especial atenção às duas variáveis que se estabeleceram como interdependentes na análise da arquitectura de Castanheiro do Vento: as unidades construídas e os materiais (fragmentos cerâmicos, objectos líticos, pesos de tear, fragmentos de ossos de animais, etc.). Neste sentido, considerou-se o espaço arquitectónico enquanto um espaço em permanente construção, na medida em que este não se define apenas pela construção de um muro, mas pode ser alterado, construído, refeito pela colocação, rearranjo, disposição, destruição, subtracção de pequenos materiais. Os dispositivos construídos não são considerados apenas como cenários das actividades das comunidades agro-pecuárias de Castanheiro do Vento, como paredes que serviram de palco e anteparo a um conjunto de acções, mas como elementos que se alteram, que dialogam, que comunicam e influem directamente nas acções que co-protagonizam. Assim, destacou-se a definição de arquitectura enquanto prática e gesto (que constrói), como movimento (que faz espaço, por exemplo, pelo andar — os espaços que se percorrem fazem-se à medida que o corpo se movimenta). Procurou-se também sublinhar o papel de outras variáveis na construção dos espaços em Castanheiro do Vento como sejam a luz e a penumbra.

O estudo de um conjunto de unidades identificadas em escavação — bastiões, estruturas circulares e grandes estruturas circulares — procurou analisar as dinâmicas de relação entre forma e função, entre estruturas e actividades, entre construção e deposição, entre a construção do espaço doméstico e a construção do “sentir-se em casa”. Sublinhou-se que espaços morfologicamente semelhantes nem sempre indicam actividades similares, ou seja, dispositivos construídos que são passíveis de se integrarem num mesmo tipo morfológico não encontram conotação directa com uma “função” específica. Sugeriu-se que forma e função terão que desligar-se no estudo das arquitecturas pré-históricas. O carácter especial de algumas associações de materiais tem sido interpretado em Arqueologia como deposição. No entanto, apesar da atenção dada pela disciplina à deposição de pequenos materiais, a deposição dos que “formam” espaços (pequenas estruturas circulares, por exemplo) não foi problematizada. Procurou-se neste trabalho acentuar a potencialidade da deposição enquanto criadora de espaços, assim como se sublinhou a possibilidade das unidades construídas serem consideradas elas próprias deposições.

Por que é que as comunidades que habitavam o território nos inícios do III milénio AC começaram a construção de Castanheiro do Vento, construção esta que se iria demorar durante cerca de um milénio? Que ligações estabeleceram com o sítio? Viveriam no sítio? Servia este apenas de reduto defensivo ou espaço ritual? Castanheiro do Vento seria espaço residencial de uma elite e reservatório de bens especiais/ excedentes agrícolas? Descartaram-se as explicações imediatas e evitou-se a associação de um nome a uma “função” (palavra aqui utilizada na sua acepção mais lata). Isto porque as comunidades que habitariam o meio envolvente a Castanheiro do Vento e se comprometeram na construção de um conjunto de espaços, sentir-se-iam em casa em Castanheiro do Vento, ou seja, fizeram daquele espaço o seu espaço.

Esta dissertação encontra-se organizada em quatro partes, seguida da bibliografia e de anexos. A Parte I, a que se chamou Bases Fundacionais é composta por três pontos. Nesta primeira parte introdutória procurou explicar-se as bases teóricas sobre as quais assentam todos os outros pontos do trabalho, assim como elaborar uma breve apresentação do sítio de Castanheiro do Vento. No ponto 1 esboçaram-se as três bases fundacionais deste trabalho (por negação do que vem sendo sublinhado

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pela Arqueologia tradicional). Assim, sublinhou-se que a Arqueologia não escreve uma história contínua que justifica o percurso humano desde a Pré-história até aos dias de hoje e, nesse sentido, tentou-se sublinhar a importância do trabalho de M. Foucault acerca do conceito de genealogia; a segunda base fundacional acentua que o objectivo da Arqueologia não é a busca das origens e este ponto inspirou-se no filósofo italiano G. Agamben, quando refere que o passado é o que nunca deixou de ser e a origem só pode ser estudada enquanto emergência de algo (na linha de W. Benjamin). Por fim, a terceira base fundacional propõe que o registo arqueológico não pode ser traduzido num discurso cópia do que realmente aconteceu. A tradução deverá ser entendida como um trabalho interpretativo, de compreensão, na qual nunca se pode colocar um ponto final. O ponto 2 faz uma incursão no sítio de Castanheiro do Vento, acentuando sobretudo os resultados das campanhas arqueológicas de 2007, 2008, 2009 e 2010. Segue de perto todos os trabalhos já publicados sobre o sítio e sublinha que o projecto de Castanheiro do Vento é feito por uma equipa da qual é impossível desligar as observações que se tecem acerca da interpretação de Castanheiro do Vento. No ponto 3 propõe-se o estudo da arquitectura de Castanheiro do Vento enquanto paradigma (segundo a definição de Agamben); ou seja, cada unidade arquitectónica (dispositivo construído e materiais associados) é estudada enquanto particularidade e em relação com outras particularidades, o que pressupõe a não existência de uma hierarquia (nenhum unidade é entendida como mais importante ou como exemplo do conjunto).

A parte II debruçou-se sobre as tradições interpretativas relativas aos “recintos murados” do III/II milénios AC localizados na Península Ibérica. Neste sentido, no ponto 4 é chamado ao texto um conjunto de citações referentes à explicação de sítios arqueológicos como “povoados fortificados”. Segundo estas narrativas o sítio de Castanheiro do Vento integraria este modelo explicativo, visto que é rodeado por três linhas de murete interceptadas por “bastiões”. Sem querer fazer um estado da arte, o ponto 4 tentou sublinhar as principais bases que sustentam as narrativas dos “povoados fortificados” e procurou apresentar novas linhas de pesquisa que se têm vindo a consolidar no panorama da Arqueologia peninsular. No ponto 5 perguntou-se pelas imagens (icónicas e textuais) que surgem anexadas aos sítios de Leceia, Zambujal e Los Millares, de forma a problematizar as bases em que se sustenta a narrativa dos povoados fortificados. O ponto 6 procurou denunciar os preconceitos de género associados à narrativa dos povoados fortificados e sublinhou-se o carácter androcêntrico do discurso. A fechar esta segunda parte, no ponto 7, questionou-se a familiaridade do passado representada pelas imagens dos povoados fortificados e perguntou-se se o discurso arqueológico se poderia abrir à estranheza do que não é igual a nós (ao que não é o outro de mim, o familiar, nem o totalmente diferente de mim, o exótico)

A parte I e a parte II estabeleceram as bases para que a parte III pudesse emergir. E nesse sentido regressou-se a Castanheiro do Vento com o intuito de estudar as unidades arquitectónicas segundo os pressupostos enunciados na parte I. O ponto 8 tentou traçar em linhas gerais a forma como a Arqueologia estuda a Arquitectura. Como definir Arquitectura em Arqueologia? A Arquitectura foi pensada como “gesto construtivo”, como expressão de formas de habitar (segundo T. Ingold). Habitar é construir. No entanto, a construção do espaço não se faz apenas pela feitura de um muro, nem implica apenas a fase que antecede a ocupação (segundo L. McFadyen). Sublinhou-se que o estudo da arquitectura em Castanheiro do Vento não poderia ser pensado segundo um projecto, segundo normas de planeamento funcional (ideia muito recente que rege as modernas cidades ocidentais). E acentuou-se que Castanheiro do Vento enquanto espaço labiríntico (acentuou-segundo V. O. Jorge) era mais um espaço de imersão do que de contemplação. Sem desvalorizar a importância dos possíveis contactos visuais que se poderiam estabelecer desde o sítio, o espaço delineado por três muretes de tendência concêntrica,

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pontuados por “bastiões”, e as várias estruturas circulares de diversos diâmetros, potenciavam caminhos sinuosos.

O ponto 9, intitulado “Arquitectura como prática construtiva”, desdobra-se em dois subpontos que se debruçam sobre dois tipos de conjuntos arquitectónicos de Castanheiro do Vento: “bastiões” e “estruturas circulares”. Assim, no ponto 9.1 prestou-se especial atenção a quatro unidades de tipo “bastião”. Procurou-se, na linha do trabalho desenvolvido na parte II, problematizar a associação directa entre as unidades semicirculares (“bastiões) que interrompem os muretes (“muralhas”) e sistemas defensivos. O estudo das quatro unidades mostrou a especificidade de cada uma delas. E cada exemplo paradigmático, cada bastião, permitiu abordar outros problemas, outros paradigmas à escala do sítio (deposições; movimento; tempos construtivos) e à escala peninsular (tema das fortificações calcolíticas; relação entre forma e função). Se por um lado, o ponto 9.1. questionou a associação entre as estruturas semicirculares (apelidadas de bastiões) e sistemas defensivos, o ponto 9.2. reflectiu acerca da palavra “povoado” de “povoado fortificado”. Assim, neste ponto, procedeu-se ao estudo das estruturas circulares identificadas até 2010 em Castanheiro do Vento e problematizou-se o conceito de casa utilizado na explicação de estruturas pré-históricas assim como se introduziu o conceito de “tradições de práticas” (seguindo J. Thomas).

Ao longo do trabalho acentuou-se a importância do estudo dos pequenos materiais na interpretação da arquitectura de Castanheiro do Vento. No ponto 10 introduz-se outra variável: o estudo do fragmento cerâmico e o estudo de processos de fragmentação. Assim, o ponto 10.1 teceu o estado actual da investigação que se preocupa com o fragmento cerâmico como unidade de estudo ainda que, segundo múltiplas formas de ver o fragmento; demonstra-se ainda como o jogo de perguntas e respostas difere segundo diferentes “escolas de pensamento arqueológico”. Tentou-se também contextualizar a valorização dada ao fragmento pela Arqueologia no discurso da Modernidade. No ponto 10.2. elaborou-se o estudo da grande estrutura circular 1 e procedeu-se à análise dos fragmentos cerâmicos segundo o estudo de fragmentação elaborado por L. McFadyen. Procurou salientar-se a quer a importância do fragmento na construção de espaços, quer a multiplicidade de acções em que poderá ter sido manipulado, contornado, ignorado, descartado, integrado em outros conjuntos, trabalhado (afeiçoado, talhado); a esta multiplicidade de acções corresponde uma multiplicidade de relações em que se inserem os fragmentos ou que por eles são promovidas através da sua articulação com diferentes materiais e construções. Os espaços são também feitos com fragmentos, no meio de fragmentos.

Por último, problematizou-se na IV parte um conjunto de conceitos que nos acompanhavam desde o início e que são essenciais para se pensar a arquitectura de Castanheiro do Vento. Assim, no ponto 11, foram agrupadas palavras como: planta; alçado; projecto; programa; monumental; doméstico; função; forma; construção; sombra; claridade. Castanheiro do Vento como uma arquitectura em que as comunidades se sentiam em casa, tecida ao longo de gerações, seguindo um programa não pré-programado, foi espaço construído, mas também construtor de espaços, espaços de negociação e de coesão social, como ainda hoje o é, no seio dos seus mais recentes habitantes, nós, arqueólogos (que fazemos de Castanheiro do Vento nossa casa).

Ao ponto IV segue-se a Bibliografia e os Anexos onde se resume a análise dos fragmentos cerâmicos da GEC1 e se apresentam desenhos e fotografias de contextos tratados em texto.

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Abstract

This work is a study of the archaeological site of Castanheiro do Vento (which is located in Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa and it dates from the 3rd, to the first half of the 2nd millennia BC). The research is essentially based upon the question of how to understand prehistoric architecture. It pays special attention to two variables which are interconnected in the analysis of the site: built units and materials (fragments of ceramics, lithics, loom weights, animal bone, etc) Architectural space is considered as a space in permanent construction. It cannot be defined only by its structural objects e.g. the building of a wall, but also should be understood from a fuller sense of practice e.g. the rebuilding, remaking, placing, rearranging, disposal, destruction, and removal of small materials. The built devices are not understood as scenarios in which the activities of farmers and shepherds took place, or as walls that were used as a stage set for a certain repertoire of actions. Instead, they are seen as elements which could be altered, were in a continuous dialogue, and which had a direct influence upon the actions that were co-performed. In this way I foreground the definition of architecture as practice after (L. McFadyen), as gestures (that build), and as movement (through walking, space transforms as the body moves). I emphasize the role of other variables in the construction of space at Castanheiro do Vento, for example, light and shadow.

From the study of the features identified during the excavation process, in particular ‘bastions’ and ‘circular structures’, I analyze the relationship between the form and function, of particular structures and particular activities, between construction and deposition, between the making of the domestic space and the making of the idea of “feeling at home”. I demonstrate that similar features do not always point to similar activities, that is, built devices that could be integrated into the same morphological type do not need to have a linear correlation with a specific function. I suggest that form and function have to be disconnected in order to take a new approach to prehistoric architecture. The special character of some material associations have been interpreted in archaeology as deposition. However, despite the attention given by the discipline to the deposition of small materials, the deposition of those that “make” space has not been problematized. This study seeks to enhance the creative potential of deposition in the making of spaces, and addresses the possibility that built units could themselves be considered as deposits.

Why did the communities that dwelt in this territory in the beginning of the 3rd millennium BC undertake the construction of Castanheiro do Vento, which took place over a thousand years? In that time what links were established with the hill? Would they “use” the site in everyday life? Or was it just a fortress or a ‘ritual space’? Was Castanheiro do Vento the residence of elites and a place of storage? These questions are not present in this work. Immediate explanations such as these have been discarded, and the link between a name and a function (the word function being used here in its broadest sense) is avoided. This because the communities that dwelt in the “landscape” of Castanheiro do Vento, and engaged themselves in the making of a space, would have felt at home at Castanheiro do Vento, making the space their space. Keeping things open in their meaning allows me to investagate more critically the full nature of the way in which things were constructed and what and how we should use to think architecture.

This thesis is organized into four parts. Part I, entitled “Foundational Basis” consists of three sections. In this introductory part of the work, the aim is the presentation of the theoretical basis of the following points, and an introduction to the site of Castanheiro do Vento. In Section 1 the three foundational bases of this study (by the denial of what has been highlighted by traditional archaeology) are outlined. It is stressed that archaeology does not write a continuous history which

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justifies the human journey from prehistory to the present day, and in that sense the concept of genealogy explained by M. Foucault is emphasized. The second foundational base stresses that the aim of archaeology is not the search for origins, and is inspired by the Italian philosopher G. Agamben. Agamben says that the past is what “somehow has remained present”, and the origin can just be studied as the moment of arising (following W. Benjamin). Finally, the third foundational base suggests that the archaeological record cannot be translated as a copy from a supposed “original” and reveal what really happened. The archaeological translation should be understood as an interpretative work in which a full stop, cannot be added. Section 2 delves into the site of Castanheiro do Vento, especially emphasizing the results of the excavations undertaken between 2007-2010. It follows closely all the papers published about the site and stresses that the research on Castanheiro do Vento’s is a team project from which it is impossible to disconnect the observations that are woven around the interpretation of the site. In Section 3 the study of the architecture of Castanheiro do Vento as a paradigm (as it was defined by Agamben) is proposed, ie, each architectural unit (built unit and associated materials) is studied as a singularity and in relation with others, which presupposes the absence of a hierarchy (no unit is seen as more important or as an example).

Part II focuses on the interpretative traditions relating to the “walled enclosures” dated from the 3rd and 2nd millennia BC in the Iberian Peninsula. In this sense, in Section 4, a set of quotations that in the past explained the Iberian walled enclosures as fortified settlements, were brought forward. According to these narratives, Castanheiro do Vento would integrate with the other examples in this explanatory model as it is surrounded by three concentric walls intercepted by the so called “bastions”. Without aiming to do the state of art, Section 4 tries to highlight the main basis in which the discourse on fortified settlements lies and seeks to introduce some other lines of research that have been presented in Iberian archaeology. Section 5 questions the images presented and suggested in the publications of three archaeological sites: Leceia (Oeiras, Portugal), Zambuzal (Torres Vedras, Portugal) and Los Millares (Almeria, Spain) in order to expose the inconsistency of the foundation on which the narratives about the fortified settlements are sustained. Section 6 seeks to point out the gender preconceptions associated with the narrative of fortified settlements and stresses its androcentric character. The last section of this part, Section 7, questions the familiarity of the past presented by the images about the fortified settlements and asks if archaeology can open its disciplinary space to the strangeness of the other (that is neither the same as me, nor the exotic and opposite of me).

Part I and Part II lay the foundations for Part III. In this sense the text returns to Castanheiro do Vento in order to study the architectural units according to the assumptions set out in Part I. Section 8 tries to trace through general lines how archaeology studies architecture. How to define architecture in archaeology? Here architecture is understood as “constructive gesture” as an expression of dwelling (after T. Ingold). To dwell is to build. However, the construction of space is not made only by building walls, and is not just the phase prior to occupation (after L. McFadyen). I emphasize that the study of Castanheiro do Vento’s architecture cannot be the analyses of a project that would have been done once. It is stressed that it is a labyrinthine space (after V.O.Jorge), a space of immersion more than contemplation. Without devaluing the importance of the net of possible visual contacts that could be established from the site, the space delineated by three concentric walls, with bastions, and with several circular structures, tends to be more a space of winding paths.

Section 9, entitled “Architecture as building practices”, unfolds into two sub-sections that focus on two sets of architectonic units of Castanheiro do Vento: bastions and circular structures. Thus

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between these structures (bastions) and their function as defensive systems is discussed. The study of four units shows the specificity of each one and the analysis of each bastion, as a paradigmatic example, which allows for other paradigms at the scale of the site (depositions, movement, building times) and also at a peninsular scale (the theme of chalcolithic fortifications and the relationship between form and function). If sub-section 9.1 questions the association between bastions and defensive systems, sub-section 9.2. reflects on the word “settlement” of the expression “fortified settlement”. In this way, the circular structures identified at Castanheiro do Vento until 2010’s season are studied, the concept of house expressed, and explanations of prehistoric structures are problematized. The concept of “traditions of practice” (after J. Thomas) is also introduced.

Throughout this work the importance of the study of small materials in the interpretation of Castanheiro do Vento is emphasized. Section 10 introduces another variable: the study of the fragment (ceramic) and the study of fragmentation processes. Therefore, sub-section 10.1 presents the current state of research concerned with the ceramic fragment showing different perspectives and approaches to the issue. It also shows the different inquiries of the different archaeological streams. This sub-section also contextualizes the place of the fragment (as a metaphor and as an image) in discourses of modernity. In sub-section 10.2 the study of a particular circular structure of Castanheiro do Vento is presented and the ceramic fragments are analyzed according to the fragmentation study elaborated by McFadyen. This sub-section seeks to highlight both the importance of the fragment in the construction of space, and the multiplicity of actions in which they were involved. To this multiplicity of actions corresponds a multiplicity of relationships in which they operate as fragments or promote by the interaction with different materials and constructions. The spaces are made with fragments, and surrounded by fragments.

Finally, part IV problematizes a set of concepts that were present throughout the other parts, and are essential in the consideration of the architecture of Castanheiro do Vento. Thus, in Section 11, words such as: plan; elevation; project; programme; monumental; domestic; function; form; construction; shadow; light, were grouped. Castanheiro do Vento was an architecture in which communities felt at home, woven throughout generations, following a programme that is not pre-programmed. It was built space that also constructed other spaces, spaces of negotiation and social cohesion, as it continues to be amongst the most recent dwellers, the archaeologist (who also makes that space their home).

Part IV is followed by the Bibliography and an annexed chapter where is presented the morphotecnic analysis of the ceramic fragments and also drawings and photos of the contexts studied.

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I

Bases Fundacionais:

definição e contexto da investigação

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© JoanaAlvesFerreira 2009

«Ao princípio era o Verbo!», é o que está escrito. Quem me ajuda? Logo aqui hesito!

Tanto não vale o verbo. Não, Outra vai ter de ser a tradução, Se bem me inspira o Espírito. Atento E leio: Ao princípio era o Pensamento. Esta linha tem de ser bem pensada, Para que a pena não corra apressada! É o Pensamento que tudo move e cria? Certo é: Ao princípio era a Energia! Mas agora que esta versão escrevi, Algo me avisa já para não parar aí. Vale-me o Espírito, já vejo a solução,

E escrevo, confiante: Ao princípio era a Acção!

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1. Abertura

Na abertura espera-se encontrar o enquadramento, os limites da pesquisa e os caminhos de investigação. Atentos a esse apelo, ao nosso apelo, delineamos os contextos e as opções metodológicas que foram enquadrando este texto. Este ponto, primeiro no trabalho, não segue a enganadora linha cronológica que se pode pressentir na numeração sequencial das páginas. Foi sendo elaborado à medida que permitia também a elaboração do texto que se espraia pelos pontos seguintes. O contexto deste trabalho poderia ser definido pelas três linhas de murete de Castanheiro do Vento. Na verdade, o que nos ocupa, preocupa e, consequentemente, o centro das nossas atenções, é o sítio arqueológico de Castanheiro do Vento (Horta do Douro, V.N. de Foz Côa). Todo o trabalho procura entrar no sítio através da sua Arquitectura. A Arquitectura de Castanheiro do Vento é assim o tema. Mas a palavra “arquitectura” não é unidireccional e unívoca. Assim, as páginas seguintes tentam esboçar definições e métodos de estudo. Este texto pretende sobretudo ser uma convocação de vozes e particularidades construídas, de figuras e de coisas por vezes pequenas, do detalhe não raras vezes descurado. Este trabalho move-se no curioso labirinto das arquitecturas da ausência.

Abrimos este trabalho com as palavras de W. Benjamin:

“Escavar e Recordar

A linguagem fez-nos perceber, de forma inconfundível, como a memória (Gedachtnis) não é um instrumento, mas um meio, para a exploração do passado. É o meio através do qual chegamos ao vivido (das Erlebte), do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão soterradas as cidades antigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem que se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria (Sachverhalt) – espalhá-la, tal como se espalha terra, revolvê-la, tal como se revolve o solo. Porque essas “matérias” mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas a todos os seus contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da nossa visão posterior – como torsos na galeria do coleccionador. E não há dúvida de que aquele que escava deve fazê-lo guiando-se por mapas do lugar. Mas igualmente imprescindível é saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tacteante no escuro leito da terra.

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E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado. Assim, o trabalho da verdadeira recordação (Erinnerung) deve ser menos o de um relatório, e mais o da indicação exacta do lugar onde o investigador se apoderou dessas investigações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes.” (Benjamin, 2004a: 219-220)

Pensemo-s estas linhas nos corredores da Arqueologia, como inspiração, como momento contemplativo mas crítico da disciplina. Benjamin diz-nos que “imprescindível é

saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tacteante no escuro leito da terra”. Nesta frase está

implícita a necessidade do domínio da técnica de escavação, o “saber enterrar”, assim como a definição das ferramentas de trabalho (de reflexão) concretizada na pá. Também percebemos a necessidade do domínio do método de escavação (ou da forma de abordagem do problema) – “de forma cuidadosa e tacteante” –, reconhecendo o autor a vastidão do não conhecido, da cegueira perante “o escuro leito da terra”. Mas na frase seguinte Benjamin adverte: “E

engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado”. Ou seja, o catálogo não é suficiente, a enumeração não é o objectivo, mas essencial

é pensar sobre as condições que enquadram a pesquisa, é preciso saber marcar o ponto no qual o investigador se situa e olha as coisas do passado, ou melhor – as transforma em coisas do passado. Benjamin termina dizendo “um bom relatório arqueológico não tem apenas de

mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes”. Neste sentido, antes de nos

concentrarmos nos estratos de Castanheiro do Vento começamos por pensar os outros, os estratos nos quais se desenvolveu e se posiciona este trabalho.

Começamos por enunciar o que apelidaremos de bases fundacionais, plasmadas nos três pontos seguintes:

• A Arqueologia não produz uma narrativa linear que ilumina o percurso humano desde a pré-história até aos dias de hoje;

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• O registo arqueológico não pode ser traduzido num discurso cópia do que realmente aconteceu.

A primeira base fundacional enunciada prende-se com o problema do tempo contínuo, da articulação entre passado e presente de forma linear elaborada por acontecimentos sequenciais, anotados na barra do tempo cronológico. A genealogia proposta por M. Foucault (2004), seguindo os trilhos de F. Nietzsche (2008 [1877]) e posteriormente recontada por G. Agamben (2009), inspira o primeiro ponto basilar deste trabalho e os seguintes na medida em que estes não são entidades delimitadas mas em relação. Assim, a reflexão de um exige a problematização dos seguintes e abre-se a outros pontos reflexivos que aparecem ao longo do texto. A genealogia não busca a história linear e descritiva que explica o percurso que resultou no presente. A genealogia não procura as origens. Não procura revelar a essência primeira das coisas, o seu significado primeiro e autêntico (Foucault, 2004: 171). A genealogia demora-se “nas meticulosidades e nos acasos dos começos” (ibid: 19), na emergência de algo quando

começa a ser e não no seu ponto de origem; na emergência que se cria nos interstícios, no

não-lugar da origem (Agamben, 2009:84), sem responsáveis que se possam auto-glorificar (Foucault, 2004:242). A genealogia não permite o nosso reencontro, o reconhecimento do outro no passado, como o outro igual a mim, ou o outro exótico que contrasta comigo. Não permite o reconforto da familiaridade do passado. Nada é estável, nem o nosso próprio corpo, para que se possam dar reconhecimentos passivos nas narrativas sobre o passado (Ibid:273).

1

“Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exacta da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exactamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira”. (Foucault, 2004: 17)

2

“Ninguém é portanto responsável por uma emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela sempre se produz no interstício.” (Foucault, 2004: 24)

3

“A história “efectiva” se distingue daquela dos historiadores pelo facto de que ela não se apoia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo o seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o homem se apoia para se voltar em direcção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto. É preciso despedaçar o que permitia o jogo constante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica não significa “reencontrar” e sobretudo não significa “reencontrar-nos”. A história será “efectiva” na medida em que ela reintroduziu o descontínuo em nosso próprio ser.” (Foucault, 2004: 27)

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“Do pensar faz parte não apenas o movimento dos pensamentos, mas também a sua paragem. Quando o pensar se suspende subitamente, numa constelação carregada de tensões, provoca nela um choque através do qual ela cristaliza e se transforma numa mónada” (Benjamin, 2010:19). É aquela concentração de tensões que conduz o nosso trabalho, é a cristalização de energias (de ideias contraditórias) que pretendemos aprofundar. Este rasgão no discurso tradicional permite que outras vozes sejam convocadas e que se multipliquem as histórias, versões, interpretações de um “passado arqueológico”. Permite a criação construtiva, a destruição da fixidez explicativa dos sítios arqueológicos. “A genealogia é cinza” (Foucault, 2004: 15), é o interstício, o choque, a incerteza. A genealogia é o percurso e o processo da investigação questionado porque expõe dúvidas e acidentes. A genealogia é paciente, descritiva, acumula informações, procura o detalhe.

A segunda base fundacional reconhece que a Arqueologia não pode pretender a elaboração de um discurso que busque as origens (do ser humano e de tudo o que o rodeia), situando-as num ponto primeiro do qual parte uma linha passível de ser retraçada pelo arqueólogo a partir do presente, aqui entendido como a outra extremidade da linha. Essa linha ligaria assim o passado (a origem) ao presente, e desta forma ao longo da sua extensão revelaria, por intermédio da História, as causas e efeitos que conduziram à construção do

nosso mundo. O problema nasce quando o investigador se apercebe que a deterioração da

linha não lhe permite mais identificar explicitamente causas e/ou efeitos.A linha de tempo linear desmistifica-se e a construção da evolução, por exemplo das técnicas, não é mais possível. Com a linha rasgada como retroceder então? E sem retrocesso como pode o passado tal como entendido actualmente (aquilo que foi) ser acessível? O que passa então a ser o Passado? Um contentor para onde se atiram as ideias, preconceitos e até banalidades do Presente? Assim define Nietzsche a narrativa histórica produzida no século XIX (edição portuguesa sem data, [1874]). Quão distante desta definição está a Arqueologia nos alvores do século XXI? Importa, portanto, procurar um “Passado novo” (na linha de Nietzsche (ibid. 101-122). Um passado “that will have been when the archaeologist’s gesture (or the power of the imaginary) has cleared away ghosts of the unconscious and the tight-knit fabric of tradition which block access to history. Only in the form of this “will have been” can historical consciousness truly become possible.” (Agamben, 2009:106-107). Seguindo as palavras de Agamben, o que identificamos hoje como passado é que o que nunca deixou de ser, o que permaneceu presente, na ruína. Mas a ruína não é contentor de um passado acontecido, que o

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Benjamin, “Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi”(Benjamin, 2010:11)

V. O. Jorge referiu na sua lição de sapiência apresentada em 2010 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto4 o desejo da Arqueologia Tradicional de perseguir o original, o mais antigo, o fundamento. Este impulso lê-se na própria palavra “arqueologia”, construída a partir da palavra grega arché, que designa o arcaico, a origem. Este desejo tem sido concretizado através de uma narrativa histórica sequencial, baseada na sequência do tempo cronológico. Jorge cita três autores que introduziram ruído nesta forma linear de contar o passado: Aby Warbur, Walter Benjamin e Giorgio Agamben. Também nós aqui seguimos este caminho crítico e por caminhos outros que perspectivam a escrita da história de forma não sequencial.

É o arqueólogo que escolhe as “fontes” do passado, as ruínas que remetem para um passado que ainda permanece, para o que poderíamos chamar de arquitecturas da ausência. Castanheiro do Vento tornou-se numa dessas “fontes”, a sua antiguidade foi atestada pelos arqueólogos, a sua autenticidade como sítio pré-histórico é-lhe conferida pelos investigadores. É nesta arquitectura que trabalhamos, não para suprimir as suas ausências povoando-a com caracteres familiares, mas antes explorarmos o “estranhamento” desse encontro com a ausência. Ausência essa que, sublinhamos, é criada por nós hoje na medida em que validamos a ruína (o passado que ainda é, ou seja o passado presente) como evidência agora de um passado que terá sido. Julian Thomas assinala que o passado está à nossa volta, que o “habitamos” (Thomas, 2004: 170), e segundo o autor, se esta imagem não está presente em Arqueologia talvez seja porque a disciplina se concentrou em estudar o que estava enterrado nas profundezas, o misterioso que o arqueólogo procura desvendar pela remoção de solo. O passado caracteriza-se nesta linha pelo que é distante, o que se traz à luz do dia pela escavação5. De que forma a investigação arqueológica é condicionada por este paradigma interpretativo? Será que é possível escapar ao espartilho do pensamento binário que divide o

4

A lição de sapiência de Vítor Oliveira Jorge encontra-se disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ws_Y1sXvapE&feature=related 5

“It could be argued that this disciplinary orientation towards depth, concealment, mystery and revelation is quite obstructive, for it enhances the belief that the past is entirely separate from the present: it is “somewhere else” that has to be accessed in a particular way. This essentialist view of the past could be compared with the post-Cartesian view of the mind, hidden away in the interior of the person. In the same way, it is unhelpful to imagine that the past is a substance that is secreted in the dark places awaiting its recovery. The remains of the past are all around us, and we inhabit the past in important ways.” (Thomas, 2004:170)

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passado/presente; interior/exterior; profundidade/superfície e que permite o contar da história numa barra cronológica? Será possível a articulação de um discurso que fuja ao tempo linear e sequencial e potencie o encontro de tensões, o choque das contradições, elaborado no interstício, na fissura de tempos desencontrados?

A nossa terceira base fundacional prende-se com o problema da “leitura” do “registo arqueológico”. Os problemas inerentes à interpretação dos traços do passado são essencialmente os problemas da tradução. A tradução do registo arqueológico para um passado inteligível ao investigador e ao grande público parece derivar de uma relação estreita entre forma e significado, onde um objecto é traduzido por uma palavra que o identifica e que o substitui. A explicação de um traço do passado em texto revela-se enquanto tradução de um texto original. Esta tradução afigura-se enquanto cópia, enquanto reprodução fiel de um (con)texto primeiro. Benjamin, no seu texto “A tarefa do tradutor” (1999:70-82) considera que a tradução não é a substituição de uma palavra por outra, a conversão de uma língua numa outra. Neste texto, escrito como introdução a uma tradução feita pelo próprio Benjamin da obra Tableaux Parisiens de Baudelaire, o autor recorre à imagem do vaso e dos fragmentos. De acordo com Vilela (2010: 472) “a imagem do vaso aponta para a língua original, a obra literária constitui um pedaço e a tradução é um pedaço desse pedaço.”.

A que diferentes tempos se processam as traduções em arqueologia? Em que suportes? Quais as expressões, gramáticas e técnicas de tradução? A escavação, a criação de contextos/unidades estratigráficas, a descrição de sedimentos e inclusões, a definição a lápis do contorno das unidades, a identificação da proveniência do fragmento cerâmico, as listas de materiais, a fotografia de campo e do objecto, o desenho do possível vaso, o relatório, o artigo científico, o livro ou panfleto de divulgação. Diferentes códigos são empregues na tradução de um sítio arqueológico. “Traduzir é compreender” segundo Steiner (2002). Seguimos esta afirmação. Mas de que forma compreendemos? Que ferramentas e que expectativas? Que passado imaginamos? É aqui que reside o centro do problema. A tradução, enquanto conversão de um objecto ou de uma estrutura, por intermédio de palavras ou desenhos, numa tipologia ou numa função, admite que o trabalho da tradução pode converter o passado em estruturas familiares do presente. Admite a possibilidade de reconstituir, de aceder à língua original, ao vaso inteiro, ao passado tal como aconteceu.

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língua outra, o que é sempre inquietante. Somos compelidos a traduzir. O desejo e o prazer de traduzir levam a uma compulsão para traduzir, para traduzir a tradução, para um contínuo retraduzir. Poderíamos dizer que a segunda parte do nosso trabalho, reservada ao questionamento do regime explicativo tradicional para recintos semelhantes ao sítio de Castanheiro do Vento, pode ser entendido como uma retradução, na medida em que se trata de uma releitura da tradição. Mas nessa segunda parte apontamos também a fragilidade das bases desse discurso tradicional, que assentam precisamente no paradigma da tradução enquanto cópia, enquanto reprodução do passado acontecido. O ponto III deste trabalho pode ser definido como um exercício de tradução de Castanheiro do Vento. A tradução no terceiro ponto será encarada enquanto possibilidade de interpretação. Castanheiro do Vento “tem” latente a possibilidade de ser interpretado. Interpretação que se materializa em texto, mas que não se fecha. O texto será porventura, por vezes, ambíguo. Convoca sobretudo para a nossa “língua” a estranheza de uma outra que é, paradoxalmente, apenas falada por nós. E por isso não deixa também de ser uma apropriação (ou, dado o paradoxo, uma socialização?). Um desejo de transformar em discurso escrito um sítio, ou melhor, uma prática de investigação num sítio arqueológico.

Derrida, no texto, Des Tours de Babel, refere que o tradutor quer tocar o intocável (2007: 214). Talvez seja exactamente este o desejo do arqueólogo: tocar o intocável, chegar perto do que foi, combinando a nostalgia do todo, do absoluto, do texto original, do passado acontecido, com a surpresa do presente, a necessidade da descoberta, de desvelar o escondido, de comunicar o que há muito se silenciou. No entanto, partindo dos princípios que o passado é o que ainda resta no presente (o que permanece, o que ainda é agora) e que a tradução é sempre uma criação do tradutor (em relação, claro, com outra(s) materialidade(s)), o discurso arqueológico é interpretação mais talvez da língua para a qual traduzimos (com a qual criamos), do que da suposta outra que pretendemos alcançar. Pois tal como Benjamin referiu, a tradução não é recepção, comunicação ou representação. Não é imagem nem cópia. No entanto, o arqueólogo/tradutor não se movimenta livre de constrangimentos no texto. Seguimos Barrento (2002) numa aproximação entre a tradução e a arqueologia textual de Hodder quando refere que o arqueólogo não colecciona apenas “peças e fragmentos significantes” em museus mas pode dar aos materiais (arqueológicos) a sua “chama original”. Barrento reescreve assim uma afirmação de Hodder: “Só podemos compreender o passado a partir do presente [e de um sujeito hermenêutico nesse presente, J.B.], mas temos de fazer um esforço enorme para perceber que o passado [o objecto do acto hermenêutico, incluindo a

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tradução, J.B.] é diferente do presente. Se assim não for, estaremos apenas a impor o nosso presente ao passado.” (Barrento 2002:99) Mas no entanto essa tradução que não é cópia nem imitação também não pode ser egoísta e resultar numa versão livre.

Como Vilela sublinha: “Considerando a problemática da tradução como uma íntima relação entre o texto original e o texto traduzido, Benjamin não perspectiva essa relação como uma forma de reprodução. Para ele, nenhuma tradução seria possível se a sua aspiração fosse

a semelhança com o original. Essa relação entre o original e a tradução é nomeada, no

contexto da história, através de conceitos de pós-maturação e de sobrevivência. A relação entre o texto original e o traduzido é a mesma que existe entre a maturação e a pós-maturação, entre a vida e a sobre-vivência, sendo esta última entendida, por um lado, como uma

continuação da vida (Fortleben) e, por outro, como a vida que excede a vida, que vai mais

além da morte (Überleben). A tradução não afecta a vida do texto porque ele já está morto. No entanto, a tradução implica a sobrevivência do texto na medida em que essa vida

post-mortem que excede a vida do texto, apenas revela e confirma a sua morte. Daí que, como nota

Derrida, o tradutor esteja «já em situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente numa genealogia, como sobrevivente ou agente de sobrevivência. A sobrevivência das obras, não a dos autores. Talvez a sobrevivência dos nomes e das assinaturas, mas não a dos autores» (Derrida, 1987a:214)” (Vilela, 2010: 473)

E nesse sentido, o sítio (o texto original), sobre-vive mediante a acção (tradução) dos arqueólogos (tradutores, entendidos como agentes de sobrevivência). Esta acção não guarda, no entanto, qualquer relação com os autores mas apenas com a obra. O arqueólogo escreve a vida póstuma do sítio. Mas esta vida sobre a qual escreve não é a vida que já foi e que agora está morta (é “agora”, lembramos, “a vida que teria sido”). Como herdeiros, como tradutores, e continuando pela mão de Ricoeur (2005), a tradução faz-se pela construção, pela construção de comparáveis, de equivalências (sem identidade)6. A construção nasce, desde logo, da impossibilidade de transposição de uma língua para outra. Mas também da própria praxis que é o acto de traduzir. E na medida em que qualquer construção envolve opções, a tradução é também um problema ético: “parece-me, de facto, que a tradução não coloca apenas um problema intelectual, teórico ou prático, mas um problema ético. Conduzir o leitor ao autor,

6 “…uma boa tradução só pode visar uma equivalência pressuposta, não baseada numa identidade de sentido demonstrável. Uma equivalência sem identidade. Essa equivalência só pode ser procurada, trabalhada, pressuposta. É a única forma de criticar uma tradução – o que se pode sempre fazer – é propor uma outra,

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conduzir o autor ao leitor, correndo o risco de servir e trair dois amos.” (Ricoeur, 2005: 43). Em Arqueologia este problema é premente. Que discursos produzimos acerca do passado? Como traduzimos a nossa própria prática? Como interpretamos um conjunto de materialidades que revelamos segundo um conjunto de práticas e técnicas definidas no contexto preciso da Modernidade (segundo Thomas, 2004)?

Introduzimos novamente uma longa citação:

“Todo o acto de traduzir remete para uma origem (…) mítica e metafórica, que tem sido vista, a um tempo, como pressuposto e como estigma de toda a tradução: o mito de Babel, a torre geradora de todas as diferenças entre as línguas e, com isso, da necessidade da tradução. Acontece que a metáfora da Torre, que implica uma noção de tradução fundada na diferença, não é a única. O caminho da tradução, tal como o entendem por exemplo Walter Benjamin ou Derrida, pode ser um caminho de sentido inverso ao da Torre de Babel. Em cada tradução escavamos «o poço de Babel» (a imagem vem de um aforismo de Kafka), e esse poço, uma espécie de descida (sem fim) aos infernos turvos da significação na língua-outra, é o caminho espiralado que teria como objectivo o reencontro com um estado pré-babélico e com aquele substrato adâmico que aproxima todas as línguas. (…) A tradução nasce de um sonho insensato (com o seu preço e o seu fascínio) e faz-se como um trabalho arqueológico. Mais do que um prolongamento ou uma extensão do outro, cada tradução seria então (…) Em ultima análise, um mergulho, uma morte que gera uma ressurreição, um acto de desejo (impossível e sempre repetido).” (Barrento, 2002:123-124, ênfases nossas).

Depois de Babel somos compelidos a traduzir, mas como refere Barrento, através de uma outra poderosa metáfora, essa tradução “faz-se como um trabalho arqueológico”, escavando o “poço de Babel” com o intuito de perceber o momento em que as línguas se desencontram ou o estrato comum que devem partilhar. Este exercício de escavação, de dirigir a atenção ao que está enterrado, às profundezas, o indagar um tempo anterior e nesse sentido sempre inferior em termos estratigráficos, foi também referido por V. O. Jorge na lição de sapiência apresentada na FLUP em 2010.

Anteriormente referimos os suportes em que a tradução arqueológica se materializa. No entanto, em Arqueologia a tradução também se processa ao nível da escavação. Desenhos, fotografias e descrições registam momentos da prática arqueológica. São imagens. Flashes. Transportam o código e a descodificação desta prática. A “torre de Babel” enquanto construção, enquanto dispositivo arquitectónico que pretendia alcançar o céu, é a criação que

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origina a divisão das línguas por vontade divina. O poço de Babel enquanto a escavação que permite a tradução, é o momento pós-Babel, o que pretende alcançar os alicerces da grande torre inacabada e a comunidade humana no seu estado mais puro (o momento pré-Babel), revelada para lá da diversidade das línguas, atingível no seu estado mais puro porque revelada à luz da linguagem original (o Verbo que o era no princípio). A imagem mítica de Babel e o aforismo de Kafka não representarão as fundações da própria arqueologia tradicional?

No ponto 2 continuamos a estender este texto através da apresentação do sítio de Castanheiro do Vento, objecto que nos ocupa neste trabalho. Esta apresentação não pretende ser exaustiva mas tentaremos reunir um conjunto de particularidades que nos parecem essenciais para pensar quer o sítio hoje quer as “arquitecturas pré-históricas”. O ponto 3 pretende abordar a metodologia geral, ou os pressupostos, em que se baseia o nosso estudo da arquitectura do sítio de Castanheiro do Vento, as regras do jogo entre a arquitectura de Babel e a escavação de Babel com vista à “compreensão” dessa arquitectura. Delineadas as bases fundacionais deste trabalho prosseguiremos com a análise das bases fundacionais de outros discursos. Apelidados de “tradicionais”, estes discursos outros, que poderiam-se definir como herdeiros de uma tradição narrativa de explicação de sítios semelhantes a Castanheiro do Vento – designados por “povoados fortificados” – que durante décadas caracterizou o discurso arqueológico acerca do III milénio A. C. na Península Ibérica (ponto 4, 5, 6 e 7). A terceira parte pretende regressar a Castanheiro do Vento (ponto 8, 9, 10 e 11), após a incursão nestas outras explicações. Estas últimas começaram a ser revistas/criticadas muito antes deste trabalho que agora iniciamos, pela dita escola do Porto, pela mão de Vítor Oliveira Jorge e Susana Oliveira Jorge (aos quais se associa Maria de Jesus Sanches). Assim, estabelecendo as bases de trabalho tentaremos estudar um conjunto de unidades, de singularidades que surgem no sítio ou que o sítio invoca. O trabalho de escrita deu-se a par do trabalho de escavação, que se faz em equipa, como salientaremos. Nesse sentido, diversas perspectivas podem aparecem entrelaçadas, resultantes que são de um processo de tradução contínuo. A fechar este trabalho (no ponto 12) regressamos à palavra “arquitectura” para a pensar em relação a Castanheiro do Vento.

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2. O sítio arqueológico de Castanheiro do Vento.

Condições de emergência do projecto de investigação

“The internal layout of the top of these hills was a sort of “labyrinth”, composed by a series of concentric walls.”

(Jorge [et al.], 2006:240)

Fig. 2.1 Croquis de Castanheiro do Vento, após campanha de escavação de 2009. Tratamento gráfico de André Santos sobre desenhos de Bárbara Carvalho e João Muralha Cardoso.

Abrimos este ponto para apresentarmos uma overview do sítio de Castanheiro do Vento. No entanto, ao longo dos capítulos subsequentes o sítio irá também ser abordado

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mediante a análise de unidades arquitectónicas particulares ou especificidades que permitam equacionar um conjunto de problemas que elencamos como fulcrais na criação de um discurso interpretativo. Torna-se necessário neste ponto sistematizar e partilhar (ou relembrar) as informações disponíveis para a análise global do sítio. Trata-se da apresentação de um dos estratos, pelo qual, este trabalho teve de passar, antes de proceder à análise de um conjunto de particularidades. Assim, a primeira parte segue de perto o trabalho de João Muralha Cardoso (2007), na medida em que este autor sistematizou as informações disponíveis até 2006, sendo portanto o responsável pelo primeiro trabalho à escala do sítio. Posteriormente apresentaremos de forma sumária os resultados das campanhas de escavação empreendidas em 2007, 2008, 2009 e 2010.

Fig. 2.2. Localização do sítio arqueológico de Castanheiro do Vento no mapa da Península Ibérica

O sítio arqueológico de Castanheiro do Vento localiza-se na freguesia de Horta do Douro, concelho de Vila Nova de Foz Côa, Alto Douro, Nordeste de Portugal. As coordenadas geográficas calculadas a partir de um ponto central do sítio arqueológico são: 41º 3’ 49’’ Latitude Norte e 7º 19’ 18’’ Longitude Oeste (Greenwich), segundo a “Carta Militar de Portugal”, escala 1/25000, folha 140. Situa-se no topo de uma colina, à altitude absoluta de 730 metros7. As escavações arqueológicas tiveram início em 1998 sob direcção de Vítor

7

Geomorfologicamente, situa-se nos níveis do Douro dos Planaltos Centrais (Ferreira, 1978: 124-129). Integra-se no complexo xisto-grauváquico, constituído essencialmente por xistos e grauvaques, com inclusões ocasionais de granitos (Ibid:16). Especificamente posiciona-se na Formação de Desejosa, Grupo do Douro, essencialmente composta por filitos escuros, normalmente calcossilicatos com um aspecto listrado, conferido pela alternância de níveis de xistos escuros com leitos estreitos de psamitos esbranquiçados (Silva & Ribeiro, 1991: 13). Para mais informações acerca da geomorfologia da região e sua relação com os sítios arqueológicos de Castanheiro do Vento e Castelo Velho de Freixo de Numão veja-se Cardoso, 2007 e Velho, 2009.

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Oliveira Jorge, João Muralha Cardoso e António Sá Coixão, aos quais se foram associando Susana Oliveira Jorge, Leonor Sousa Pereira, Ana Vale, Gonçalo Leite Velho, Bárbara Carvalho e Sérgio Gomes. As datas de radiocarbono permitem enquadrar o sítio entre 2875 e 1519 cal AC, intervalo em que recaem 81,5% do conjunto das datas disponíveis (Cardoso, 2007: 103). Como nos podemos mover num tempo lato de cerca de 1300 anos?

Gráfico 2.1. Gráfico de barras representando a totalidade de datas 14C disponíveis para Castanheiro do Vento

A serpente formada pela representação das datas de Castanheiro do Vento denuncia o que poderíamos designar, e de forma paradoxal, uma “continuidade sincrónica” entre os finais do primeiro quartel do III milénio calAC e o segundo quartel do II milénio calAC: trata-se de uma imagem de continuidade, de processo, de acções encadeadas ao longo de um período de

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tempo lato8. Uma data muito antiga evidencia uma realidade prévia às arquitecturas até ao momento detectadas e um conjunto de datas da Idade do Ferro denota um conjunto de práticas aí realizadas que se caracterizam pela discrição.

Gráfico 2.2. Gráfico de barras das datas 14C disponíveis estruturas tipo bastião e estruturas circulares (sempre que dispúnhamos de várias datas para a mesma unidade contextual foi realizada a média ponderada)

Poderíamos tentar “apertar” os intervalos temporais pela selecção de datas. O gráfico 2.2. refere-se apenas a carvões recolhidos em estruturas tipo bastião e em estruturas circulares. Pretendeu-se reduzir os contextos exactamente tomando como critério as estruturas cujos limites fossem mais evidentes. Para algumas das datas representadas no gráfico anterior, e porque provenientes dos mesmos contextos e estatisticamente semelhantes, foram calculadas as respectivas médias ponderadas que aqui se apresentam. Assim, poderíamos sugerir um intervalo, igualmente lato, que se situaria genericamente entre 2700 e 1700 cal BC (excluimos as duas datas mais recentes por colocarem problemas de possíveis anomalias/contaminações, como será discutido no ponto 10.2, e a data obtida sob a linha basal do Bastião D). Os gráficos por onde se distribuem os intervalos de datas absolutas representam quer a diacronia, quer a sincronia de uma série de práticas decorridas no sítio. Ilustram a sucessão e a contemporaneidade genérica de eventos, de construções, de dinâmicas

8

Os problemas inerentes às datas de 14C têm sido discutidos em trabalhos de Castanheiro do Vento e do sítio arqueológico vizinho, Castelo Velho de Freixo de Numão. (Cardoso, 2007 e Velho, 2009).

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que ocorreram e que resultaram no que o sítio é/foi, assim como o ilustram as relações estratigráficas ou a articulação entre materiais. No entanto, o jogo entre estas duas variáveis, o tempo sequencial ou diacronia e o tempo da simultaneidade ou sincronia não são entrelaçados no discurso vigente. Nas narrativas arqueológicas actuais o que observamos é a predominância de uma de duas abordagens ao nível do tempo: ou uma essencialmente diacrónica (onde a dimensão crono-sequencial é relevada) ou uma essencialmente sincrónica (onde a dimensão espacial é a mais pertinente). No entanto, como é possível pensar algo quando nada é simplesmente puro evento (diacronia absoluta) nem pura estrutura (sincronia absoluta) (segundo Agamben, 2007a: 85). Importa pensar as intersecções entre diacronia e sincronia. É o jogo entre estes dois eixos que deveriam estruturar o discurso: tempo e espaço.

Como referiu Tim Ingold (2000), tudo está suspenso no movimento. Nos gestos da construção, nos gestos da colocação de um fragmento cerâmico ou de um vaso num determinado local, nos gestos de ida e de volta ao sítio, nos gestos das tarefas diárias (no sentido de Ingold — como forma de habitar). A cronologia perde o gesto, a sincronia petrifica-o. A temporalidade da acção raramente é equacionada. Mas não nos referimos à acção intencional desempenhada por um ser humano com o intuito de transformar ou de dar sentido ao mundo inerte que o rodeia. Como alerta Ingold: “In dwelling in the world, we do not act upon it, or do things to it; rather we move along with it. Our actions do not transform the world, they are part and parcel of the world’s transforming itself. And that is just another way of saying that they belong to time.” (Ingold, 2000a: 200). É o entrelaçado de acções e de gestos que, não se distinguindo pela sua assinatura mas pelo seu envolvimento colectivo — pela partilha e pela prática — fazem arquitectura. A arquitectura cria-se na prática e na (con)fusão de materiais e (re)arranjos ilimitados: é pelo fazer que os espaços são criados.

O tempo cronológico com que medimos os nossos dias, o hoje e agora, revela-se incapaz de criar qualquer discurso para um sítio arqueológico. Enforma-o em barreiras temporais, mas mesmo esta afirmação aparentemente simples, se contradiz nas “coisas” que hoje identificamos como passado. As coisas carregam consigo outros tempos, ou tempos de quem as carrega. O construir demora, leva tempo. Como datar um murete? A duração da construção raramente é questionada. Os embasamentos pétreos destes muretes seriam erguidos em terra crua. A construção em terra crua não pode ser realizada durante todo o ano (Vale [et al.], 2006). Terá a construção assumido um carácter sazonal em Castanheiro do Vento? Mas resumir-se-á a construção do sítio apenas à elaboração de muretes?

Referências

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