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Arquitectura e organização do espaço em Castanheiro do Vento

8. A Arquitectura vista pela Arqueologia

toda a paisagem é pré-histórica,

isto é, é anterior ao nosso entendimento à nossa razão de pobres contemporâneos, colados ao acontecimento.

está cheia de volumes,

e quem nela se perdesse poderia talvez encontrar lânguidas tentativas de abraços,

formas do terreno se antropomorfizar, de nos apelar de novo à con-fusão perdida.

(JORGE, V. O., 2003: 102)

“To paraphrase Orson Welles: “I don’t like architecture, I like making architecture.” (Tschumi, 1999: 211)

A palavra “arquitectura” tem sido estudada em diversos trabalhos acerca de Castanheiro do Vento e também de Castelo Velho de Freixo de Numão (v. g. Jorge, V. O. [et al.], 2006; Vale, A. M. [et al.], 2006; Jorge, V. O., 2006, 2007b; Velho, G. L., 2006; Cardoso, J. M., 2002). Em 2004 é construída uma página Web chamada “Prehistoric Architectures”, impulsionada por Vítor Oliveira Jorge, e que reúne um conjunto de investigadores, maioritariamente da Universidade do Porto. Paralelamente, a colaboração da investigadora L. McFadyen conduziu ao aprofundamento do debate em torno do conceito de Arquitectura e criou também novos percursos críticos não só do conceito “arquitectura”, mas sobretudo de linhas de pesquisa de “arquitecturas pré-históricas”, tendo influenciado enormemente as investigações em Castanheiro do Vento e Castelo Velho de Freixo de Numão.

Este texto, introdução à terceira parte deste trabalho não pretende sumariar todas as linhas escritas em redor da palavra “arquitectura”, mas sim continuar esta linha de investigação, com a consciência da amplitude do conceito e da multiplicidade de perspectivas acerca do mesmo. Neste sentido proceder-se-á a uma muito breve revisão da forma como a palavra “arquitectura” tem sido trabalhada por diversos autores2. Nesta análise será, por um lado sublinhada a impossibilidade de delinear um planeamento ordenado para a compreensão

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Uma versão parcial deste texto foi publicada na Revista Portvgália, Nova Série, Volume XXXIX-XXX, 2008- 2009, 43-60, sob o título “Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa). Alguns Apontamentos acerca do Dispositivo Arquitectónico”.

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A literatura arqueológica consultada para a elaboração deste texto debruça-se essencialmente sobre os tradicionalmente designados “povoados fortificados”.

da organização do espaço em Castanheiro do Vento, e por outro enfatizadas duas palavras- chave: movimento e imersão; o movimento enquanto criador de espaços e de múltiplas conexões, e a ideia de imersão no contexto de uma construção que se pressupõe labiríntica.

Construções do passado enquanto espelhos de comunidades pretéritas

“We want to know who last sat on that chair? Who lay on this bed? What happened over

there? What happened down here? What really happened where? (But do we really want to know?)” (Rendell, 2006: 88)

Susana Oliveira Jorge (2007) na “Introdução” do volume 8 das Actas do IV Congresso de Arqueologia Peninsular, dedicado ao tema: “A concepção das paisagens e dos espaços na Arqueologia da Península Ibérica”, enuncia um conjunto de características partilhadas pelos os autores que participam na publicação, (à excepção de V. O. Jorge [et al.], S. O. Jorge [et al.] e M. J. Sanches em alguns aspectos), como a crença na existência de um projecto arquitectónico prévio à execução, e a interpretação do construído enquanto espelho do sistema socioeconómico, político e simbólico das comunidades que edificaram e utilizaram essas mesmas arquitecturas. Sublinha ainda que grande parte dos autores se concentra no estudo das possíveis relações entre a “arquitectura” e o espaço (entendido enquanto paisagem envolvente). (Jorge, S.O., 2007: 11).

Esta linha interpretativa, denunciada por S. O. Jorge, associa normalmente a palavra “arquitectura” ao edificado, cujo estudo permite a integração do sítio arqueológico num esquema interpretativo geral (por indução), e também a elaboração de explicações e interpretações que se estendem a outros sítios e espaços (por um processo dedutivo). Neste sentido, arquitectura, entendida enquanto construção, é interpretada como uma unidade estática3, passível de ser traduzida em funções e significados unívocos. A arquitectura permite assim inferir, por exemplo, contextos de guerra, processos de complexificação social, de formação de elites, de controlo de espaços de exploração agrícola, de linhas de comércio, etc. Por outras palavras, é interpretada como uma imagem bem definida de quem ocupou, mais do que quem construiu. A construção – o acto de fazer – raramente é enunciado, e quando o é, é apenas equacionado enquanto evidência de fases de mudança no seio da comunidade, como espelho dessa mesma mudança. Seguindo este esquema interpretativo, a existência de um

plano prévio, de um projecto que depois se executa, normalmente num curto espaço de tempo, compreende as construções e reformulações como acções bem definidas no tempo, representadas de forma sequencial, ou seja, por fases construtivas (intervaladas por fases de ocupação). É na longa duração da arquitectura que as narrativas acerca do passado se constroem, na quase ausência de tempo, descrevendo e personificando actividades atemporais, condenadas a repetir-se por centenas de anos. Desta forma, pretende-se a recuperação do edifício original. Os textos acerca do passado arquitectam-se pela tradução dos materiais do passado como cópia, o mais fiel possível do original, relatando o que realmente aconteceu, apresentando o passado sem tempo, preso em molduras, em imagens fixas.

Este modelo de tradução pretende revelar um pretenso significado autêntico que estaria encerrado nas estruturas e deveria ser desvelado pelos arqueólogos. Nesta linha, os materiais, desde o fragmento cerâmico ao muro de base pétrea, são contentores de significados originais (únicos, autênticos, fixos), e podem anunciar as intenções de quem os fez, de quem os manuseou e descartou, arrumados em quadros de funcionalidades, sejam da esfera do “doméstico”, do simbólico/religioso, de actividades guerreiras, comerciais ou agrícolas…. Neste caso, será um muro de base pétrea sempre indicador imediato de actividades guerreiras? Será uma estrutura semi ou subcircular – normalmente apelidada de “bastião” – sempre denotativa de estratégias de defesa? As correlações imediatas muitas vezes condicionam a interpretação. Num ciclo vicioso, as estruturas semelhantes são indicadores de práticas semelhantes. A elaboração de explicações para unidades construídas, baseadas na observação do imediato no presente, conduz à repetição do quadro explicativo definido, ao reconhecimento do já visto e nunca se procede à negação do imediato (seguindo Adorno & Horkheimer, 1992 [1944]: 27), à reflexão do que aparece perante os nossos olhos, à critica do óbvio.

A representação do passado autêntico recorre a imagens realistas, que pressupõem a existência de um referente externo existente num mundo objectivo (Jordanova, L., 1989: 47). Neste sentido a construção de imagens realistas conduz a uma extrema familiaridade dos intervenientes do presente com as personagens do passado, numa tentativa de alcançar as origens, o nostálgico outro que um dia fomos. Contudo, se por um lado, fazer do passado um lugar familiar é necessário para a própria inteligibilidade dos sítios arqueológicos, por outro, remete para “nota de rodapé”, ou dilui na narrativa, os casos de estranheza relativos às incongruências das estruturas registadas pelos arqueólogos, como são exemplo os “sistemas defensivos” que pecam por excesso ou escassez de capacidade defensiva, seja porque o complexo de vários muretes ultrapassa as necessidades práticas de defesa, seja porque a

volumetria das “muralhas” não permitiria uma defesa eficaz (ver a título de exemplo, Esquivel, J.A. & Navas, E. (2007) acerca do sítio de Los Millares, trabalho já por nós referido algumas linhas atrás).

Construir e habitar

“Arquitectura é a “arte” de transformar o espaço numa rede de lugares e de trajectos significativos para as comunidades que os habitam ou neles circulam, através de materializações (por acrescentamento e/ou ablação) mais ou menos intensas.” (Jorge, V.O., 2006: 106)

Nos últimos anos tem-se assistido em Portugal a uma crescente reflexão acerca do conceito de Arquitectura no âmbito da Arqueologia Pré-histórica, e dos limites e possibilidades interpretativas em torno dos traços materiais do passado, registados pelo arqueólogo. Esta reflexão dá-se sob influência da Antropologia [por exemplo de T. Ingold (2000) e de L. Lefevbre (2000)], da literatura arqueológica anglo-saxónica (v. g. J. Thomas, 2004; 2006; M. Pearson & C. Richards, 1997) e da leitura de bibliografia portuguesa que propõe uma reflexão crítica da arquitectura [por exemplo, F. Távora (1999)]. Neste sentido, a arquitectura, passa a ser entendida, não apenas como o conjunto de estruturas identificadas num determinado sítio arqueológico, mas enquanto relação de materiais, relação de actividades e práticas, como parte e extensão de um espaço que não se restringe às áreas intramuros das estações arqueológicas. Desta forma, multiplicam-se as definições do conceito.

Segundo V. O. Jorge (2009a) a arquitectura deverá ser entendida enquanto criação, enquanto movimento, enquanto relação (de actividades, de materiais, de estruturas). O autor sugere “transplantes” como palavra-chave, transplantes de coisas de um lugar para o outro, como a extracção de uma laje de xisto para a feitura de um muro, com toda a carga simbólica que a laje, o sítio de onde foi extraída, o próprio afloramento rochosos e o murete envolveriam. De acordo com a mesma linha interpretativa, S. O. Jorge (2007) alerta para o facto de os elementos construídos não traduzirem as actividades que nelas se desenrolaram, pois as “arquitecturas só expressam sentidos se articuladas com os cenários da acção que nelas se operaram. As arquitecturas não espelham a “natureza” das sociedades, nem “falam”,

interior e à volta das arquitecturas não tem correspondência directa na forma dos espaços e nas materialidades que deram vida aos cenários da acção.” (Jorge, S.O., 2007:12)

Apesar de para muitos autores, a arquitectura continuar a estar relacionada com as unidades edificadas, a sua relação com outras variáveis (como possíveis actividades e tempos de duração) é questionada (ver por exemplo, Sanches, 2008) Por outro lado, alguns arqueólogos estendem o horizonte do conceito ao alargar a área de análise, como é visível no trabalho de J. M. Cardoso (2007). O autor reflecte acerca da arquitectura à escala de um território, enquanto movimento, vivência, enquanto organização de um território que simultaneamente “estruturava” as comunidades que o habitavam (Cardoso, J.M., 2007: 442). Cardoso explora também a importância das texturas (por exemplo, do xisto e do granito) e dos sons (do vento e da água) na arquitectura do espaço (Ibid: 308). Na mesma linha A. C. Valera (2006) entende a arquitectura como resultado da interacção das comunidades com o meio, numa tentativa de superar a dicotomia entre Natureza e Homem, realçando que não existe uma ruptura entre espaço construído e paisagem envolvente. O autor concebe a arquitectura enquanto a materialização de formas de organização de espaço. Contudo, parece perseguir o momento original em que o “espaço físico indiferenciado” se converte em espaço categorizado, referenciado pelo Homem, ou seja, almeja ainda o princípio da organização do espaço.

A equipa envolvida no projecto de escavação do sítio de Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa) tem enunciado palavras-chave como: fluidez, relação, transformação; estas são vistas como essenciais para repensar, redefinir e recontextualizar o conceito de arquitectura. Procurou (e procura) diluir, ou pelo menos denunciar, um pensamento dicotómico, e a pergunta “para que serve?” sai definitivamente do inquérito. Tem problematizado a ideia de projecto, sugerindo antes que o sítio está em construção, em reformulação permanente e propõe a moldagem do sítio em terra crua, juntamente com a pedra, materiais perecíveis e outros elementos como a água. E, como já sublinhamos por diversas vezes, o sítio passa a ser entendido enquanto uma colina monumentalizada. (ver por exemplo Jorge, V.O. [et al.], 2006).

Nos trabalhos da equipa de Castanheiro do Vento é patente a influência de Ingold, principalmente das ideias desenvolvidas no texto “Building, dwelling, living: how animals and people make themselves at home in the world” (2000b). Ingold, inspirado pela Biologia (principalmente pela Biologia do desenvolvimento), Psicologia ecológica e Filosofia fenomenológica (nomeadamente pelos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty e Martin Heidegger), perspectiva o indivíduo (ou qualquer organismo) como “ser no mundo”, onde a

vida não é a revelação de uma forma pré-existente, mas o próprio processo em que as formas se geram e se desenvolvem. O mundo torna-se um todo significante porque é habitado – preposição que está na base da “dwelling perspective” por oposição à convencional “building perspective” na qual Ingold iniciou o seu percurso de investigação. Ingold introduz-nos no percurso que fez do estudo do significado da Arquitectura e parece-nos importante resumir aqui o caminho protagonizado pelo autor.

O autor começa por referir as perguntas que despoletaram a pesquisa: o que é que distingue ambientes humanos de não humanos? O que é que difere entre a actividade humana de construir espaços e o processo pelo qual os animais (não humanos) moldam os seus ambientes? O que é que significa dizer que um ambiente é construído? E por que é as construções empreendidas pelos humanos são convencionalmente identificadas como artificiais?

O autor começa por dar o exemplo da concha de um molusco, da toca de um castor e da casa construída pelo Homem. A concha poderia imediatamente ser descartada, na medida em que nasce agarrada ao próprio molusco e para ser considerada um artefacto teria de estar despegada do corpo. O molusco é um elemento passivo na elaboração da concha. O castor, ao contrário, trabalha arduamente para construir a sua toca. No entanto, uma diferença imediata é assinalada por Ingold nesta primeira fase de investigação: enquanto os castores sempre construíram da mesma forma, as construções humanas, designadamente a casa, sofreram uma mudança histórica significativa. A diferença entre a toca e a casa não reside na construção em si mas na origem do design inerente ao processo construtivo. O ser humano tem a capacidade de projectar e construir a casa, enquanto o castor é um mero executante de um design incorporado no seu corpo (Ingold, 2000b:174-175).

Nesta fase do seu projecto de pesquisa, Ingold avança que a casa é feita (made) e não apenas construída (constructed), porque o fazer implicava para Ingold, nesta etapa, uma construção imaginada, consciente, prévia à sua concretização material. O fazer tinha subjacente a “consciência da autoria do design”. Por exemplo, na ausência de um martelo, uma pedra com certas características pode desempenhar o papel de martelo. A pedra é feita martelo sem sofrer nenhuma modificação. A esta acção Ingold chama de co-opção(Ingold, 2000b:175) e propõe que a história das coisas, dos artefactos, da arquitectura e da paisagem poderia ser entendida como uma sucessiva alternância entre co-opção e construção.

Para explorar estas questões, recorre ao trabalho do biólogo Jakob von Uexküll4, que escreve sobre uma árvore habitada por diversos inquilinos: a raposa que construiu o seu covil entre as raízes, a coruja que se empoleira nos seus ramos, o esquilo que descobre labirintos de escadas e trampolins na sua copa, a formiga que encontra alimento na casca, o bicho da madeira que deposita os seus ovos entre centenas de outros animais. Cada um concede uma qualidade específica à árvore mas para nenhum dos animais esta existe enquanto árvore. Ou seja, cada um no mundo construído pela sua própria actividade (Umwelten) é incapaz de percepcionar a árvore enquanto elemento neutro, porque está nela, interiorizada no seu modus

operandi. O ser humano, apesar de percepcionar a árvore de diversas formas (por exemplo,

um lenhador ou uma criança, apreendem a árvore de maneiras distintas) não se encontra ligado a esta. E neste ponto residiria a diferença entre humanos e animais que Ingold procurava: o animal estabelece relações entre ele e o objecto, relações essas que são activadas pela sua própria imersão no mundo e pelas suas orientações corporais; o ser humano estabelece as suas relações num plano de representações mentais, formando uma tapeçaria de significados que cobre todo o mundo (Ingold, op.cit.: 177).

Neste momento, Ingold introduz a “building perspective”. Esta abordagem assenta nas dicotomias Natureza/Cultura, ambiente pré-existente/ambiente construído, entre o mundo/o que é apreendido pela mente, e envolve uma reconstrução desse mesmo mundo para em seguida o dotar de sentido. Seguindo esta linha de pesquisa introduz a diferença entre caçadores-recolectores e agricultores/construtores de cidades. Os primeiros seriam considerados como criadores de um contexto arquitectural ténue, os segundos construtores de formas duráveis. Os primeiros seriam basicamente sociedades sem arquitectura, os segundos, sociedades com arquitectura, na linha de P. Wilson.5 E aqui surge a pergunta – o que é que permite afirmar que os caçadores-recolectores não possuíam arquitectura? E se verdadeiramente não tinham, como é que se poderá compreender a sua actividade construtiva?

Na linha de Wilson, Ingold refere que a construção de abrigos pelos caçadores- recolectores se integra na sua vida, e tal como a recolecção, o fabrico de utensílios, a preparação de alimento, é parte e parcela da sua vivência num ambiente que já foi dado pela Natureza e que não foi construído artificialmente. Já a arquitectura de um povoado implica a transformação de um espaço natural e a vivência num ambiente construído pelos próprios habitantes. Em ambos os casos o ambiente é dado antecipadamente como contentor passível

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Uexküll, J. von (1957) A Stroll through the Worlds of Animals and Men: a pictures book of invisible worlds. In

Instinctive behavior: the development of a modern concept, ed. C. H. Schiller. New York: International

Universities Press. 5

de ser ocupado. Mas, em que ponto da nossa história se tornaram os nossos antepassados autores dos seus próprios projectos de construção? Joseph Rykwert6 afirmou, como refere Ingold, que a essência da arquitectura reside em pensar a construção, então, quando é que o Homem começou a pensar sobre o que constrói?

Assim, assumindo que o macaco e o ser humano partilham os mesmos antepassados tentou-se estabelecer um continuo evolutivo para os comportamentos construtivos, do ninho dos macaco ao complexo residencial de grupos humanos. No entanto, o ninho do macaco não marca um ponto fixo para o movimento do animal, não tem um carácter durável, cada animal constrói o seu ninho todas as noites e usa-o com o único propósito de dormir, abandonando-o no dia seguinte. Além disso, não é exigente na escolha do material para construir o seu ninho, utilizando o que está à mão e dispondo os materiais à volta do corpo de maneira a encontrar uma forma oval, uma cama côncava. O “ninho humano” marca um ponto no espaço, o qual pressupõe um regresso regular e a ele estão associados sentimentos de segurança. A construção da cabana exige um hábil entrelaçado de materiais previamente escolhidos que podem ser de proveniências várias. Trata-se de uma estrutura convexa, que se suporta a si própria e que depois de construída se entra nela. No entanto, a grande diferença reside na capacidade humana de antever a cabana, de visualizar na imaginação a construção que se deseja efectuar.

A procura da primeira cabana, do ponto de origem é também a procura das origens da arquitectura e do ponto de transição para a “verdadeira humanidade”, cruzando as teorias evolucionistas que traçam o percurso desde os primeiros hominídeos ao homem moderno e a história que traça o caminho desde os primeiros caçadores - recolectores até ao mundo industrial moderno. É esta dicotomia que suporta as tentativas de busca da cabana perdida, e para desmascarar este mito, Ingold aponta como necessário dissolver a divisão entre humanidades e ciências naturais, entre evolução natural e história ou entre os processos temporais inerentes à cultura e à natureza (Ingold, 2000b:185). E aqui Ingold rompe com o modelo vigente, corporizado na “building perspective” e introduz o que chamou de “dwelling

perspective”.

Para desenvolver esta perspectiva recorre a Martin Heidegger e ao seu ensaio “Building, Dwelling, Thinking7”, onde o pensador alemão se interroga sobre o significado de construir, de habitar e da própria relação entre os dois. O discurso da modernidade ocidental

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Rykwert, J. (1972). On Adam’s House in Paradise: the idea of the primitive hut in architectural history. New York: Museum of Modern Art.

considera a construção e a habitação como duas actividades distintas, mas complementares, relacionadas com meios e fins. Construímos para habitar. Primeiro ergue-se a casa para depois a habitar, como um contentor onde se realizam as actividades da vida, ou mais especificamente algumas actividades, já que existem tantas outras que se desenrolam no exterior, ao ar livre. Mas se a casa é construída para ser habitada, o que é que garante – pergunta Heidegger – que a habitação se processe nela? Ingold reformula a questão colocando-a do seguinte modo – o que é preciso para a casa ser um lar?8 Esta pergunta pressupõe já uma diferença entre habitar e ocupar. Assim, o que significa habitar? Heidegger responde através de um exercício de etimologia. A palavra alemã para designar o verbo construir é bauen, que deriva do Inglês e do Alemão antigo buan, que significa habitar. Segundo Heidegger este significado de habitação não se restringe a uma esfera especifica da actividade humana, antes diz respeito a como cada um vive a sua vida na terra, e neste sentido “eu habito, tu habitas…” é idêntico a “eu sou, tu és…” (Ingold, 2000b:185)

O termo alemão bauen refere-se ainda à actividade de preservar, de cuidar ou, mais especificamente, de cultivar ou lavrar o solo. E depois o terceiro sentido – construir. Mas

bauen ficou reservado apenas à cultura e construção, esquecendo-se que estas actividades se

processam porque o homem habita. Heidegger pretende restaurar a perspectiva original, para

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