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Dado que nem no conhecimento nem na reflexão nos é possível chegar à totalidade, porque àquele falta a

dimensão interior e a esta a exterior, temos necessariamente de pensar a ciência como arte, se esperarmos encontrar nela alguma espécie de totalidade. Essa totalidade não deve ser procurada no universal, no excessivo; pelo contrário, do mesmo modo que a arte se manifesta sempre como um todo em cada obra de arte em particular, assim também a

ciência deveria poder ser demonstrada em cada um dos objectos de que nos ocupa.

(JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, Materialien zur Geschichte der Farbenlehre [Materiais para a história da teoria das cores])17

(citado em Benjamin, 2004:13)

Giorgio Agamben (2009) considera o estudo do panóptico de Michel Foucault como um paradigma na medida em quepermite questionar e dar inteligibilidade a um conjunto alargado de problemáticas interrelacionadas. O estabelecimento de um paradigma não pretende alcançar generalizações (ou inversamente partir do universal para o particular) mas tão só questionar singularidades, relacionando particularidades entre si (o particular com o particular, como enunciou Aristóteles (Ibid:27-28). Neste sentido, o exemplo paradigmático permite neutralizar um pensamento dicotómico (universal/singular; geral/particular) e investe na relação entre estes pólos, no processo de tensões entre opostos, que por não apresentarem limites bem definidos, interconectam-se, criando áreas de indefinição.

Michel Foucault (1997 [1975]) estudou os dispositivos arquitectónicos panópticos (como prisões e hospitais), o que lhe permitiu questionar um conjunto de outros problemas que se

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interligam, como: disciplina, vigilância, observação, punição, poder, sujeito. Agamben refere que o paradigma é mesmo a característica mais marcante do método foucauldiano. Para além do panóptico, Agamben enuncia também: a confissão, a investigação, a examinação, o cuidado do eu, como paradimas estudados por Foucault (Agamben, 2009: 17). Poderíamos também referir o projecto de Walter Benjamin, Passegen-Werk (obra inacabada, da qual existem apenas fragmentos), como um estudo paradigmático. O autor dispunha-se a analisar um dispositivo arquitectónico particular: as arcadas parisienses (precursoras das modernas galerias comerciais) – em decadência já na década de vinte do séc. XX – juntamente com outros materiais como os manequins, e de figuras como o flanêur. Pretendia problematizar um conjunto de elementos do mundo burguês ocidental do séc. XIX, procurando na descrição atenta e detalhada dos objectos do quotidiano inspiração filosófica, tentado estabelecer a ponte entre a vida de todos os dias e os corredores da academia, o que certamente rompia com os modelos vigentes da estrutura académica. (Buck-Morss, 1989).

Propomos, seguindo V. O. Jorge (2009b) o estudo da arquitectura como um paradigma [(tal como definido por Agamben (2002)]. Neste sentido, a arquitectura enquanto paradigma não pretende estabelecer-se como um universal, não pretende a explicação, mas sim a compreensão de casos particulares que podem ser interconectados uns com os outros. E estes “casos” não são troços de muro ou qualquer outra unidade estática. São as práticas e as teias de actividades que hoje intuímos na nossa relação com as ausências pressentidas ao longo do diálogo com os materiais e com os outros (em trabalho de campo).

Agamben define o conceito de paradigma em seis pontos que optamos por traduzir18:

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At this point, let us try to put in the form of theses some of the features that, according to our analysis, define a paradigm:

1. A paradigm is a form of knowledge that is neither inductive nor deductive but analogical. It moves from singularity to singularity.

2. By neutralizing the dichotomy between the general and the particular, it replaces a dichotomous logic with a bipolar analogical model.

3. The paradigmatic case becomes such by suspending and, at the same time, exposing its belonging to the group, so that it is never possible to separate its exemplarity from its singularity.

4. The paradigmatic group is never presupposed by the paradigms; rather, it is immanent in them. 5. In the paradigm, there is no origin or arché; every phenomenon is the origin, every image archaic. 6. The historicity of the paradigm lies neither in diachrony nor in synchrony but in a crossing of the two.

1. O paradigma não é uma forma de conhecimento indutivo nem dedutivo mas analógico. Move-se de singularidade para singularidade.

2. Ao neutralizar a dicotomia entre o geral e o particular, substitui a lógica dicotómica pelo modelo analógico bipolar.

3. O caso paradigmático revela-se como tal ao suspender e, ao mesmo tempo, ao expor a sua pertença ao grupo, de forma que nunca é possível separar a sua exemplaridade da sua singularidade.

4. O grupo paradigmático nunca é pressuposto pelos paradigmas, é-lhe antes imanente.

5. No paradigma não há nenhuma origem ou arché; todo o fenómeno é a origem, toda a imagem é arcaica

6. A historicidade do paradigma não assenta na diacronia nem na sincronia mas no cruzamento das duas.

A analogia coloca par a par singularidades determinadas. Traduz-se no estudo da relação entre duas ou mais relações, por exemplo, entre um bastião – enquanto nódulo de relações – e outro; entre os bastiões e as estruturas circulares, etc. Não pretende a obtenção de linhas explicativas gerais para o sítio (nem para a região nem sequer para o IIIº milénio a.C. peninsular), por indução, partindo do particular para o universal, nem pretende a explicação das unidades contextuais presentes nos bastiões e estruturas circulares por dedução, partindo do universal para o particular. Em Arqueologia o método analógico tem sido questionado geralmente em relação ao “uso” de exemplos etnográficos ou de estudos antropológicos na construção das narrativas sobre o passado (Thomas 2004: 238-241). Segundo Thomas (Ibid.:239) os trabalhos realizados na esfera da etnografia devem sobretudo contribuir para desfamiliarizar os discursos sobre o passado ao trazerem para a discussão formas outras de estar no mundo com as quais nós (ocidentais nascidos no século XX) não estamos familiarizados. A crítica fundamental no uso da analogia prende-se com a procura de uma explicação para as materialidades de comunidades passadas pela comparação destas com comunidades presentes, como foi elaborado (e é) pelo histórico-culturalismo. Contudo, pelas razões apontadas por Thomas não podemos, de igual modo, rejeitar liminarmente a analogia tal como proposto pelos processualistas. No entanto, o método analógico pode ser pensado em Arqueologia como o que permite a reflexão entre uma singularidade e outra, entre uma

particularidade e outra, libertando-se da relação comparativa entre estudos etnológicos e “realidades” arqueológicas.

Agamben (1993) refere que:

“A singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal. Já que o inteligível, segundo a bela expressão de Gersonide, não é um universal nem um individuo enquanto incluído numa série, mas a “singularidade enquanto singularidade qualquer”. Nesta, o ser- qual é tomado independentemente das suas propriedades, que identificam a sua inclusão em determinado conjunto, em determinada classe (os vermelhos, os franceses, os muçulmanos) – e considera-se que ele não remete para uma outra classe ou para a simples ausência genérica de pertença, seja ela qual for, mas para o seu ser-tal, para a própria pertença. Assim, o ser-tal, que fica constantemente escondido na condição de pertença (“há um x tal que pertence a y”) e que não é de modo nenhum um predicado real, revela- se claramente: a singularidade exposta como tal é qual-quer, isto é, amável.” (Agamben, 1993:11-12)

É necessário tratar cada singularidade enquanto tal e por momentos não atender ao grupo tipo a que pertence. No entanto, não propomos a eliminação da elaboração de tipologias e da reflexão acerca da construção das mesmas. As tipologias em Arqueologia devem ser entendidas enquanto poderosas formas de comunicação (de partilha de dados entre investigadores que familiares com a gramática das imagens apreendem imediatamente a informação contida em tabelas tipológicas) e como formas de organização da informação (perante milhares de fragmentos cerâmicos e dada a impossibilidade de estudo (de descrição) de cada unidade (cada fragmento) e seu contexto (de registo) é inevitável a criação de tipos que representem o conjunto e tornem a diversidade passível de ser estudada. No entanto, as tabelas tipológicas não podem ser criadas e manipuladas como testemunhos do que foi encontrado num sítio e consequentemente como indicadores que permitem a explicação de comunidades pré-históricas, mas antes como instrumentos de trabalho dirigidos para objectivos muito específicos. Atipologia anula dois vectores essenciais: o estudo do fragmento cerâmico enquanto fragmento (e não como mera parte de um todo que é o recipiente) e o estudo das unidades registadas enquanto singularidades, enquanto exemplos, enquanto nódulos de tensão que permitem a conexão e a abordagem de outras

Cada caso paradigmático revela-se enquanto singularidade que pode ser trabalhada na sua particularidade mas revela-se também enquanto exemplo do conjunto de particularidades das quais emerge e com as quais se relaciona. Não um exemplo enquanto tipo que pode ser encontrado numa tabela tipológica porque o caso paradigmático rompe com a relação do exemplo/modelo e a amostra. Não se trata do exemplo modelo de um tipo que encerra em si grande parte das características de todas as unidades a partir das quais é definido o tipo (ainda que o tipo não seja abstracto, é apresentado enquanto modelo). Gostaríamos de apresentar aqui o trabalho de Aby Warburg pela mão de Agamben. Este autor salienta uma obra específica deste historiador de arte, o painel 4619, chamado de Pathosformel “Nymph”, exactamente para questionar a relação entre exemplaridade e singularidade de um caso paradigmático. Trata-se de um painel constituído por 27 imagens relacionadas com o tema da mulher em movimento. Agamben (2009) pergunta: “What is the relation that holds together the individual images? In other words, where is the nymph?” (Ibid: 28). Segundo o autor nenhuma das imagens pode ser identificada como a primeira imagem que sustem e inicia a sequência de imagens que lhe são adicionadas posteriormente, ou seja, nenhuma das imagens é a original e nenhuma é apenas cópia ou repetição. Também nenhuma declara o inicio da construção do painel, nenhuma é posterior. A diacronia e a sincronia das imagens são indecidíveis. A ninfa é o caso paradigmático das imagens e cada imagem o exemplo da ninfa, ou seja, a ninfa é o paradigma de cada imagem, e cada imagem é o paradigma da ninfa. No estudo das estruturas tipo “bastião” o movimento pode ser entendido enquanto o paradigma e cada bastião um exemplo. No entanto, cada bastião constitui-se também enquanto paradigma, na sua singularidade, na sua especificidade, chamando cada um a si a sua importância no estudo dos movimentos que potenciam.

Retomamos aqui o problema da procura das origens, esboçado no ponto anterior, e que em Arqueologia, ainda que não explicito em muitas narrativas, está implícito nas explicações que se tecem acerca do passado baseado numa suposta “realidade arqueológica” que é passível de tradução linear. Ora, como foi dito anteriormente, cada paradigma não é a origem dos seus exemplos nem é a origem de um fenómeno qualquer, porque todo o fenómeno é a origem. Por outras palavras, a origem pode ser entendida como um ponto fixo no tempo e determinado no espaço de onde irradiam as imagens que a partir deste ponto se criam, mas também como emergência, como quando algo começa a ser. Ora a emergência é fluida, não

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Aby Warburg colecionou entre 1924 e 1929 (ano da sua morte) um conjunto de imagens (reproduções de quadros, manuscritos, fotografias…) que distribuiu por 63 painéis, aos quais deu o nome de Mnemosyme.

especificada, não determinada, está em acontecimento. Assim todas as imagens no painel de Aby Warburg são a origem, todas são arcaicas, assim como todas são contemporâneas. Todos os bastiões são a origem, todos são arcaicos. Tratados enquanto paradigmas a sua diacronia e sincronia não são enunciadas separadamente (em Castanheiro do Vento quase todas as estruturas não apresentam relações estratigráficas imediatas, ou seja, não existem sobreposições ou cortes entre elas). Assim, em Castanheiro do Vento, sincronia e diacronia cruzam-se no bordado de embasamentos que hoje identificamos e registamos. Este trabalho não pretende assim problematizar a construção de Castanheiro do Vento enquanto algo inserido numa barra cronológica. Não se pretende averiguar fases construtivas ou momentos de ocupação. Ainda que como referimos não existam relações estratigráficas entre os embasamentos pétreos que nos permitissem avançar com relações de posterioridade/anterioridade imediatas, o estudo de fases construtivas poderia ser esmiuçado. Contudo, optamos por nos referir a cada estrutura ou a conceitos chave que nos permitem operacionalizar um conjunto de ideias como paradigmas. Estes permitem-nos questionar o sítio sem que se pretenda ao estudar uma estrutura estender o conjunto de observações obtidas para o conjunto do sítio. Cada estrutura será sempre encarada como uma particularidade, como um nódulo de tensões que na sua abordagem multiplica as relações possíveis. Através do método analógico proposto por Agamben (2009) encadeiam-se em relações, colocadas lado a lado, sem hierarquias de matérias ou estruturas (não existe o mais importante para a compreensão do sítio) e sem hipótese de generalizar observações.

Segundo Agamben (2002), Foucault libertou a História do contexto metonímico, ou seja, do enquadramento geográfico e cronológico que era (e é) inerente a qualquer pesquisa histórica. Assim, o título provável de “A França no século XVIII”, dá lugar à criação metafórica de “Panóptico”. Agamben sublinha também que “The apparent seriousness of metonymical contexts, like the chronological and geographical, have no epistemological basis at all.” (Ibid.). Por exemplo, a organização da pesquisa histórica por séculos apenas entra em voga após a Revolução Francesa.

Como começamos por referir na abertura deste trabalho, a genealogia de Nietzsche pela mão de Foucault reclama a demora nas pequenas coisas, nas “meticulosidades e acasos do começo” (Foucault 2004:19); Agamben propõe o método analógico de casos paradigmáticos atento ao detalhe, ao que é particular, na medida em que o estudo de singularidades exige o estudo demorado, tal como a genealogia, “exige a minúcia do saber,

acumulação de dados, da inventariação exaustiva de objectos, de citações, ou de situações. Não é um trabalho de catálogo, mas sim um pensar com (o) detalhe. É o estudo atento, que necessariamente requer descrição, para que cada particularidade possa ser enunciada e partilhada, e que cada particularidade possa entrar em relação com outra. O estudo generalista que abarca por exemplo os objectos como um todo perde toda a espessura destes. Contudo o método descritivo não é apenas atento às qualidades físicas de cada coisa, mas antes atento aos detalhes de relação. Ou seja, em Arqueologia não se trata apenas de descrever um artefacto arqueológico ou uma estrutura mas também exactamente onde e como o arqueólogo os identificou e como os registou. É a atenção ao pormenor, não só no trabalho de gabinete, em relação às peças, fotografias e desenhos, mas também em escavação a demora da atenção ao detalhe, a identificação e observação atenta das meticulosidades das relações encadeadas.

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II

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