• Nenhum resultado encontrado

A cor das relações: corpo, idade e afetividade na experiência de mulheres negras em um bairro de Natal/RN

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A cor das relações: corpo, idade e afetividade na experiência de mulheres negras em um bairro de Natal/RN"

Copied!
161
0
0

Texto

(1)

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL – PPGAS

AMANDA RAQUEL DA SILVA

A cor das relações:

corpo, idade e afetividade na experiência de mulheres negras em um bairro de Natal/RN

Natal/RN 2019

(2)

A cor das relações:

corpo, idade e afetividade na experiência de mulheres negras em um bairro de Natal/RN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - do PPGAS/CCHLA, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de Mestre em Antropologia, sob orientação da Prof. Dra. Ângela Facundo

Área de concentração: Antropologia Social

Orientadora: Prof. Dra. Ângela Facundo

Natal/RN

(3)

Silva, Amanda Raquel da.

A cor das relações: corpo, idade e afetividade na experiência de mulheres negras em um bairro de Natal/RN / Amanda Raquel da Silva. - Natal, 2019.

159f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019. Orientadora: Profa. Dra. Ângela Facundo.

1. Afetividade Dissertação. 2. Mulheres Negras

-Dissertação. 3. Corpo - -Dissertação. 4. Geração - -Dissertação. 5. Interseccionalidade - Dissertação. I. Facundo, Ângela. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 39(813.2)-055.2

(4)

Na iniciação, os anciãos orientam os jovens sobre intimidade, sexualidade e ritual, para que saibam o que lhes espera. Assim, evitamos que se firam quando adentram o território desconhecido da maturidade.

(SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade, 2007, pg. 73)

À minha mãe, Antonia Noezilia. À minhas avós, Rita Bernardo e Maria Alzira.

Às colaboradas desta pesquisa, de coração. Às mulheres da minha vida, irmãs de sangue, irmãs de cor, irmãs de luz, irmãs de amor.

À todas as mulheres negras. Às minhas ancestrais, as reverencio e agradeço por minha vida.

Eu sinto, eu vejo, eu aceito, eu honro. Aho!

(5)

Definitivamente, esta dissertação nunca seria possível sem os conselhos, dedicação e contribuição de várias pessoas ao meu entorno.

Agradeço primeiramente à minha ancestralidade, por me permitir continuar nessa jornada, ao me dar força, suporte e guiar, não só a mim, mas acima de tudo o meu espírito.

De coração, agradeço à Prof. Dra. Angela Facundo, professora, orientadora, amiga e parceira, pelo ombro cedido, pela paciência, por tantos conselhos, pelas conversas profundas, por todos os jantares, almoços, risadas... tantas coisas inestimáveis que, sem isso, eu sei que não teria conseguido continuar e terminar esse processo difícil, mas tão sonhado que foi o mestrado em Antropologia Social. Essa dissertação é nossa. Muito obrigada por tudo!

Agradeço às colaboradoras desta pesquisa, por toda confiança, entrega, carinho e abertura, não só de seus lares, mas de suas memórias e histórias, que com toda certeza afirmo, me servirão de conselhos e que lembrarei pelo resto da minha vida.

Às amigas e amigos, por todas trocas, conselhos e entendimentos, em especial Jéssica Camila e Gabriela Lima (Gabow), por todo amor, assistência e proteção.

À minha família de sangue por toda inspiração, apoio e incentivo.

À minha família de jornada espiritual, vocês têm sido essenciais na minha vida e agradeço, do fundo do coração, pelo resgate.

Às companheiras de ativismo, que me fizeram quem eu sou e que contribuíram conscientemente ou não, na formulação dessa pesquisa, com tantas trocas que me auxiliam sempre, no meu crescimento e na constante luta que devemos travar diariamente, enquanto pessoas negras. Nossa vivência é de luta e resistência e essa é regada de afeto e amor. Que nunca esqueçamos disso!

Aos companheiros de curso, em especial a Dominique dos Santos e Artur Costa, com contribuições que foram essenciais para a formulação deste trabalho.

Agradeço à Prof. Dra. Vera Rodrigues, por ter aceitado participar da banca de qualificação e agora da defesa desse mestrado, com inestimáveis trocas não só intelectuais, mas também afetivas, me servindo para rever posturas, sentimentos e tratamentos que carregava com relação a mim mesma.

(6)

leitura também podem ser leves, sem tanta rigidez.

Ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, da UFRN, pelo apoio institucional para realização desse mestrado.

Namastê! Aho!

(7)

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio.

ecoou lamentos de uma infância perdida.

A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado rumo à favela

A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

(8)

RESUMO

Essa dissertação é o resultado de uma pesquisa etnográfica sobre experiências afetivas de mulheres negras brasileiras, mais precisamente habitantes na cidade de Natal/RN. A partir de diálogos, conversas, acompanhamentos e diversos exercícios de escuta com seis interlocutoras, o trabalho explora a forma em que a expressão dos afetos e a construção de vínculos com outros significantes estão relacionados com a dimensão racial. As interlocutoras da pesquisa são mulheres negras residentes num bairro considerado periférico na cidade e estão na faixa etária dos cinquenta aos setenta e cinco anos de idade. A dissertação pretende contribuir com a reflexão sobre um assunto que não tem sido aprofundado nos estudos que tomam como cerne o tema da raça no Brasil; a saber: A afetividade. Assim, a dimensão afetiva atravessa o texto e as reflexões aqui propostas sobre corpo, saúde, beleza, amor, velhice. Simultaneamente a pesquisa visa contribuir com a reflexão sobre as complexidades das relações raciais no Brasil contemporâneo. A maioria de estudos sobre a raça no Brasil reconhece os efeitos contemporâneos do sistema colonial sobre a vida da população negra em matéria socioeconômica e política. Esse texto se inscreve na linha dos trabalhos –menos abundantes– que consideram que à população negra também foi-lhe negada a liberdade da expressão de suas emoções, de sua subjetividade afetiva e da oportunidade de constituir e manter laços e família. Ou seja, reconhece que a dimensão afetiva também carrega as marcas da história de dominação e subalternização das pessoas negras no país. Assim, as páginas a seguir buscam entender em que medida algumas experiências das interlocutoras, informadas pela raça, pelo gênero, pela classe, pela sexualidade e pela geração se interseccionam e impactam na construção de vínculos afetivos.

(9)

Natal/RN

ABSTRACT

This dissertation is the result of an ethnographic research on affective experiences of Brazilian black women, more precisely inhabitants in the city of Natal / RN. From the dialogues, conversations, accompaniments and several listening exercises with six interlocutors, the work explores how the expression of affections and the construction of bonds with other signifiers are related to the racial dimension. The interlocutors are black women living in a neighborhood considered peripheral in the city and are in the age group of fifty to seventy five years of age. The dissertation intends to contribute with the reflection on a subject which has not been deepened in the studies that take like core the subject of the race in Brazil; namely: Affectivity. Thus, the affective dimension crosses the text and the reflections proposed here about body, health, beauty, love, old age. At the same time the research aims to contribute to the reflection on the complexities of race relations in contemporary Brazil. Most studies on race in Brazil recognize the contemporary effects of the colonial system on the life of the black population in socioeconomic and political matters. This text subscribes in the line of works - less abundant - that the black population was also denied the freedom to express their emotions, their affective subjectivity and the opportunity to establish and maintain ties and family. That is, it recognizes that the affective dimension also carries the marks of the history of domination and subalternization of the black people in the country. Thus, the following pages seek to understand to what extent some experiences of the interlocutors, informed by race, gender, class, sexuality and generation intersect and impact on the construction of affective bonds.

(10)

Introdução ... 9

1. Abordagens sobre afetividades ... 32

1.1 bell hooks e o amor como ato resistência ... 33

1.1.1 É pela vida das mulheres NEGRAS! ... 37

1.2 Beatriz Nascimento – “a mulher negra e o amor” ... 38

1.3 Afetividade negra em pauta: como o tema vem sendo abordado? ... 43

1.3.1 Estudos demográficos e os relacionamentos afetivos da população negra 44 1.3.2 Laura Moutinho e o desejo sexual inter-racial na constituição da nação . 50 1.3.3 Pereira e Rodrigues – O amor tem cor? ... 55

1.4 Afetividade negra e gênero: e quanto às mulheres negras? ... 57

1.4.1 Ana Claúdia Pacheco e a cor da solidão ... 57

1.5 Com quantos corpos negros se constrói uma nação? – Corpo, raça, miscigenação e suas consequências na afetividade de mulheres negras ... 62

1.5.1 Maternais, puras e brancas. De que mulheres estamos falando? ... 64

2. Trajetórias socioafetivas de mulheres negras em um bairro periférico em Natal/RN 70 2.1 Uma breve apresentação das mulheres ... 74

2.2 Escolhas erótico-afetivas orientadas pela raça ou cor de pele ... 82

2.3 Para além da conjugalidade: amores, amizades, pactos e parcerias ... 93

2.4 Donas de casa ou donas da casa? O afeto do lar e a importância da morada 104 3 A produção afetiva e o cuidado de si: saúde, corpo, sexualidade e limpeza .. 118

3.1 Afetividade e saúde... 118

3.1.2 Emoções e saúde ... 123

3.2 “O que tinha de sexo, tinha de doenças!”: afetos e os discursos ginecológicos127 3.3 “Licença aos meus mais velhos?” – perspectivas antropológicas sobre a velhice131 3.3.1 “Tô velha, mas tô viva!” - A velhice, as mudanças no corpo e as relações afetivo-sexuais 136 3.4 “Eu sou suja, mas é só a cor. Graças a Deus eu sou limpinha!”: noções sobre raça, cor e limpeza. ... 143

Considerações finais ... 151

(11)

Introdução

Este trabalho apresentará resultados de uma pesquisa que teve como objetivo etnografar e analisar as experiências afetivas de mulheres negras brasileiras, mais precisamente residentes na cidade de Natal/RN. Me interessa explorar de que forma a expressão dos afetos e a construção de relações erótico-afetivas estão relacionadas com a dimensão racial.

As interlocutoras da pesquisa são mulheres negras residentes num bairro considerado periférico na cidade, dos cinquenta aos setenta e cinco anos de idade, para as quais existem significados e escolhas muito diferentes na auto identificação racial ou no pertencimento a grupos definidos pela raça ou cor. Esse trabalho procura abordar um aspecto que não tem sido frequentemente tratado em estudos que tomam como cerne o tema da raça no Brasil: a afetividade. Com isso, o trabalho reconhece que também a construção subjetiva das relações afetivas carrega as marcas da história de dominação e subalternização das pessoas negras no país. Com algumas exceções, os trabalhos acadêmicos têm focado nos impactos negativos da organização racial, em matéria socioeconômica, para as negras e os negros brasileiros. Porém, poucas pesquisas têm indagado de que forma essas desigualdades e opressões históricas também influenciaram a construção subjetiva das pessoas em relação à dimensão afetiva das suas vidas. Quer dizer, reconhecemos graças a um número significativo de pesquisas, que a situação socioeconômica da maioria da população negra atual no Brasil é produto histórico da desigualdade que caracteriza as relações raciais, mas reconhecemos pouco que as escolhas sexuais e os arranjos erótico-afetivos também são parte desse processo histórico.

A partir disso, considero que refletir sobre a afetividade através da escuta de experiências de vida, possa ajudar a situar melhor tais questões na atualidade, afinal, como as mulheres negras pensam a si e a essas questões? Mesmo reconhecendo as diferenças de cada sujeito, objetiva-se encontrar similaridades entre as experiências, os discursos, as estratégias, as práticas e as explicações que algumas mulheres oferecem. Pensar sobre os papeis historicamente atribuídos a esses corpos pode ser extremamente significante quando falamos de afetividade e constituição de famílias. Logo, a proposta de pesquisa é entender em que medida algumas construções sociais informadas pela raça, pelo gênero, pela classe, sexualidade e geração se interseccionam e impactam na construção de vínculos afetivos de algumas mulheres negras. Acredito que a reflexão acadêmica sobre a afetividade de pessoas negras é uma tentativa de romper com o silenciamento do tema, que pode ser entendido como mais uma forma de violência que também é mediada pelo racismo, na medida em que considera as pessoas

(12)

negras apenas no seu papel nos processos produtivos socioeconômicos, mas desconsidera outras fases da sua construção como sujeitos.

O tema da afetividade das pessoas negras, objetivo desta pesquisa, foi sendo elaborado no decorrer de algum tempo e com a proximidade da pesquisadora com discursos de cunho afetivo e emocional em diversos momentos e espaços. No âmbito pessoal, possuo um interesse de anos pela reflexão sobre sentimentos, afetos e emoções; o que me fez desejar pesquisar na monografia as emoções de mulheres negras que passavam pelo processo de transição capilar e que pretendiam reconstruir uma personalidade e autoestima deteriorada pelos padrões de beleza, que representam um dos âmbitos do racismo. Por consequência, mais uma vez opto por falar com e sobre mulheres negras, mas dessa vez de forma a ressaltar aspectos do cotidiano e realidade de vida dessas, tratando da afetividade e suas diversas formas.

A aproximação com mulheres negras de bairros populares em Natal se deu através dos espaços em que atuo no meu trabalho, visto que durante as visitas como Agente Comunitário de Saúde (ACS) frequentemente são essas mulheres as que trazem demandas, questões, preocupações acerca da saúde própria e de seus familiares. Nos primeiros contatos, não fiz muitas perguntas diretas para nenhuma delas, só demonstrei interesse e curiosidade na escuta, mas em todos os casos o tema afetividade surgiu e assim se manteve, enquanto também apareceram temas que descobri ser correlatos como, por exemplo, a forma que veem seus corpos nessa fase da vida, a autoestima, o lar e o cuidado direcionado mutuamente para o corpo e a casa; as práticas afetivas cotidianas e os diferentes agentes integrantes da rede afetiva de cada uma; entre outros que serão vistos no decorrer desta dissertação.

O fato dessas e outras mulheres1 me procurarem me ocorreu inicialmente como uma necessidade de desabafo e me fez querer refletir sobre a solidão da mulher negra, especialmente na terceira idade. Mas, com o decorrer das conversas e o aparecimento dos outros temas, acima elencados, pensei em fazer dessas visitas e escuta de experiências, meu campo de pesquisa para a dissertação. Com o tempo, o fato em comum de serem todas negras me levou à indagação se tais conversas, relatos e desabafos sucediam em decorrência de uma identificação comigo enquanto mulher negra que permitia minha aproximação da sua rede de afetos, devido não só a tais similaridades, mas também a minha constante escuta e cuidado. A partir disso, passei a

1 Ao longo da pesquisa conheci mais cinco mulheres negras, residentes da área de abrangência do campo delimitado, todas acima dos 50 anos e com discursos acerca da afetividade e suas práticas cotidianas. Apesar do percurso ter sido bastante similar ao das seis mulheres aqui colaboradoras, precisei decidir “fechar” o número de participantes com muito pesar, mas ciente de que a ausência dessa decisão não me permitiria terminar a pesquisa de dissertação, já que o campo é fluido e segue em constantes modificações.

(13)

refletir acerca dessa procura de companhia e escuta das mulheres na terceira idade, inicialmente como Agente Comunitário de Saúde e em seguida como pesquisadora, tudo enquanto me tornava também uma pessoa inserida em suas redes afetivas, o que demonstrou não só uma necessidade de diálogo, como também uma retomada de memórias e ainda ensinamentos.

Trajeto ao tema da afetividade e delimitação do campo

A abordagem da afetividade com recorte de raça, gênero, geração e classe se mostra muito instigante para mim enquanto pesquisadora, destacando ainda a escassez de temas similares nas produções científicas, mesmo na antropologia. A justificativa poderia ser só essa, mas a motivação é principalmente contribuir com um debate que tente proporcionar uma visibilidade para a questão negra, indo além dos dados estatísticos e evidenciando a perspectiva subjetiva de uma parte da população negra. Por isso, são as mulheres negras o foco desta pesquisa, ainda mais quando vemos que tal grupo enquanto “sujeito” de estudo e de uma pesquisadora negra não é ainda um cenário comum nos espaços universitários.

Metodologicamente, eu enquanto pesquisadora e com auxílio da orientadora assumimos o compromisso de focar em um grupo de mulheres negras residentes numa comunidade produzida e pensada na organização dos capitais urbanos como “periférica”. Explico isso porque inicialmente a proposta era relatar as perspectivas de dois grupos de mulheres negras, para tentar contemplar um maior número de perspectivas possíveis. De acordo com os diferentes locais em que atuo, como pesquisadora, ativista e ACS, planejei abarcar dois grupos de mulheres negras acima dos cinquenta anos de idade, sendo um desses atuantes no movimento político organizativo, como o movimento negro e movimentos partidários. A pretensão não era distanciar grupos e construir um viés meramente comparativo, mas sim evidenciar a diversidade da circulação de ideias que se entrelaçam e se comunicam especialmente entre mulheres e inclusive as vivências comuns dessas mulheres a respeito de sua vida afetiva, apesar das diferenças de trajetórias profissionais, formação, escolaridade, pertencimentos de classe e até mesmo auto identificação racial.

Considero ainda importante pontuar que atuo há cerca de seis anos no movimento negro do Estado e, mais precisamente, há quatro no Coletivo de mulheres Negras “As Carolinas”. Essa informação é importante para explicar o trajeto que fiz para me familiarizar com os

(14)

discursos de mulheres negras ícones do movimento negro no Brasil e inclusive para dialogar sobre o tema da pesquisa com algumas delas. Atualmente o grupo “As Carolinas” integra a Rede de mulheres Negras do Nordeste, a Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas e a Rede de ciberativistas negras, também nacional. A partir disso, ao colaborar com encontros e reuniões com representantes de vários Estados do país, pude construir uma aproximação com mulheres que admiro há anos. Ao participar em setembro de 2017 do II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas, que ocorreu em São Paulo, enquanto ainda reformulava o que pretendia com a pesquisa, conversei com algumas delas e em oportunidades posteriores consegui fazer entrevistas. Duas das lideranças vieram para o Rio Grande do Norte para atividades e formações políticas e outra conheci pessoalmente no 3º Seminário Internacional Desfazendo Gênero, em 2017, na Paraíba, quando participava do “ST: Feminismo Negro e Territorialidades Negras” que integrei com uma comunicação oral. Logo, foi a partir desses encontros e desencontros que tive a oportunidade de entrevistar algumas dessas mulheres inseridas em grupos de ativismo negro no Brasil.

É nesses termos que perpassarei algumas das considerações dessas mulheres ativistas sobre o tema, para além disso as minhas análises que também estarão informadas pelos diálogos que mantenho com elas e por perguntas que as entrevistas me ajudaram a formular. Contudo, reitero que o foco neste trabalho não será a análise da situação dessas mulheres ativistas. Quer dizer, essas entrevistas, conversas e trocas de diversos tipos, constituem uma fonte importante de informação e reflexão para essa pesquisa, mas o grupo de mulheres ativistas não será construído como objeto de pesquisa nem delimitado como tal.

Afirmação, reconhecimento e meu lugar enquanto pesquisadora

Um corpo negro representa imageticamente diversos outros corpos ou uma totalidade étnico/racial, mesmo que não se coloque assim de modo afirmativo individualmente. Todavia, ao se impor reconhecendo sua identidade consegue deslocar um local de poder e torná-lo possível para diversos outros sujeitos que não se viam representados.

Durante mais de vinte anos de minha vida eu acreditava que a identidade “morena” era a adequada para minha tonalidade de pele, que nunca foi clara, mas também não é retinta apesar de ser descendente de uma família quilombola. Nem mesmo lá, na comunidade, muitos sujeitos

(15)

se afirmavam enquanto negros, o que vem reforçar as pesquisas que apontam para o incipiente processo de autoafirmação positiva da negritude aqui no Estado do Rio Grande do Norte. Pelo contrário, o processo de identificação racial continua se manifestando, em muitos momentos e espaços, de modo negativo. Para além das pesquisas, pude perceber em experiência própria, por exemplo, como se construíram identidades negativadas entre as pessoas em terras resistentes de quilombo, inclusive de meus familiares, na comunidade do Sítio Sobrado, em Portalegre, no interior do Estado. Contudo, nos últimos anos, a partir de minha própria experiência, percebo também uma tendência por parte dos negros e negras para repensar os conceitos e os conteúdos associados ao corpo e a identidade negros.

Não é incomum que o desenvolvimento da construção identitária de negritude seja muitas vezes tardio na vida de vários sujeitos aqui no Brasil, principalmente em decorrência do processo de miscigenação que faz com que frequentemente se acredite que a negritude só pode ser afirmada a partir da cor de pele mais escura, o que repercute muitas vezes numa rejeição do corpo negro e seus traços diacríticos, quando tal identificação ainda é vista de modo negativo. Com isso, desejei falar sobre o processo de afirmação positiva, de como o contato com outros sujeitos e discursos similares são capazes de propiciar uma autoestima elevada em pessoas que por vezes não tiveram essa conscientização, justamente por efeitos do racismo.

Sou a segunda pessoa da família a adentrar os muros da Universidade. A primeira foi minha irmã mais velha, que entrou um ano antes. Somos a primeira geração a vislumbrar o ensino superior como uma possibilidade de ascensão econômica, mesmo que nossos cursos não possuam status de renome, se assim posso dizer. A geração anterior a nossa, com nossa mãe e todas as tias trabalham como empregadas domésticas, com salários abaixo do mínimo nacional; enquanto os homens da família continuam na agricultura, como a geração anterior a deles.

Ao me colocar enquanto sujeito ativo nessa exemplificação pretendo demonstrar que a oportunidade de redistribuição com a política de cotas nos colocou como as primeiras em um local que antes nos era quase inacessível. Sou a primeira em uma pós-graduação e a partir desse novo trajeto familiar, agora temos primos quilombolas que estão em Institutos Federais e essa se torna uma possibilidade nova em nossa família. Logo, eu e alguns dos meus familiares somos exemplos vivos de políticas de redistribuição e de reconhecimento e de como esses dois aspectos estão intrincados, pois meu corpo é político pelo simples fato de ser, de representar ainda uma estética que agora pretende falar sobre nós mesmos. Considero imprescindível que utilizemos dessa oportunidade para resgatarmos nossa história de invisibilizações, para reconstruirmos nossa identidade coletiva de um modo positivo e para que nos amparemos, pois

(16)

só assim teremos forças para resistir, atuar e dar continuidade a tantas ações e pesquisas nesse e outros espaços que tentam nos fazer acreditar que não devemos estar.

Os movimentos negros no Brasil, conforme mostrado por Neves (2005), denunciam a exclusão social e adotam como política estratégica a inversão do estigma para transformá-lo numa fonte de orgulho, auxiliando a autoestima do grupo estigmatizado e assim, abrindo perspectivas para que a exclusão seja percebida. Todavia, isoladamente, apenas o trabalho da autoestima e da produção estética, não consegue superar a exclusão e outras formas de racismo, apesar de sua importância na melhoria da autoimagem dos indivíduos marginalizados. O curso de Ciências Sociais me despertou assim o anseio pela mudança, me auxiliou no reconhecimento da história de pessoas negras no Brasil e me colocou no caminho do ativismo negro no Estado do Rio Grande do Norte. Ao decidir construir como objeto de estudo uma dimensão que perpassa minhas vivências, me coloco em situações nas quais me sinto afetada para além da minha posição de pesquisadora. Nessas situações divido experiências com várias pessoas negras e com isso, considero que tal decisão em muitos momentos altera a visão e sentimentos acerca de questões caras a mim, como aconteceu em pesquisa sobre cabelo crespo e construção/reconstrução de uma identidade negada e embranquecida que nos é imposta. Após me envolver tão profundamente com o tema da estética negra e com isso passar além de pesquisá-lo, também construir eventos na cidade sobre o assunto, percebi que o desejo em dar continuidade aos estudos pode proporcionar um autoconhecimento, além de individual, também coletivo. Afinal, o movimento de uma pessoa negra dentro da Universidade falando sobre outras pessoas negras ainda gera um estranhamento, mas tem sido algo cada vez mais presente. A presença negra nas reflexões acadêmicas e no próprio espaço universitário era, até pouco tempo, apenas um “objeto de estudo”. Mais recentemente, com a presença física, epistêmica e política de negras e negros pesquisadoras e pesquisadores é possível enxergar o reposicionamento perante alguns temas e a inclusão de outros; assim como é possível perceber mudanças nas demandas e expectativas, tanto dentro quanto fora da universidade, por parte de professores, colegas estudantes, familiares, colegas de militância etc.

Percebe-se então que o atravessamento da dimensão racial tem sido importantíssimo em relação a minha trajetória, tanto de vida como na que tenho construído enquanto pesquisadora e antropóloga. Assim, o fato de o trabalho ter se dado em um terreno familiar me permitiu um melhor entendimento das dinâmicas em campo. Aos poucos as questões que queria pesquisar a partir de uma perspectiva dos sentimentos, emoções e afetos, que inicialmente se apresentavam numa dimensão meramente individual, foram aparecendo nas discussões teóricas sobre o tema

(17)

como socialmente relevantes. Inclusive relevantes coletivamente para população negra. Desse modo, a partir de minha inserção, obtive dos dois grupos que acompanhei informações que ampliaram meus conhecimentos sobre essas questões e sobre mim mesma, apreendendo dados que, mesmo com os limites das generalizações, podem falar a respeito a uma camada da sociedade de forma mais geral.

A partir da experiência em minha pesquisa de monografia, pude notar como trabalhos que tratam da questão da construção corpórea e subjetividade e, em específico, da construção da autoestima da população negra são escassos. Ao mesmo tempo são muito comuns diálogos no âmbito da afetividade, tanto dentro de grupos da militância negra nos quais participo, quanto em conversas informais nos círculos de amizade com outros sujeitos negros. Com isso, resolvi dar continuidade às reflexões sobre corporeidade negra e, de certa forma, aprofundar o foco do que pesquisava, refletindo acerca dos aspectos subjetivos dessa população quando mais uma vez minhas experiências pessoais se tornam ponto de partida, no tempo em que os grupos que acompanho e as leituras que faço se encontram com o que vivencio e assim meu foco passa a ser corpo e afetividade da mulher negra.

A chegada ao campo de pesquisa

O processo de municipalização da saúde no Brasil significou um investimento no atendimento por meio do Programa de Saúde da Família (PSF) e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), considerados portas de entrada ao sistema de saúde. Tais programas procuram criar uma relação mais pessoal dos profissionais com os usuários, prevendo uma capacidade resolutiva de 80% das demandas da população. A categoria dos ACS vem se constituindo, nesses programas, como segmento efetivo do trabalho em saúde, representando novos atores nos cenários da assistência. É um segmento efetivo da produção dos serviços, que se apresenta não apenas como suporte para gerar determinadas ações em saúde, mas, também, como peça essencial na organização da assistência. Por conhecer e vivenciar os problemas nos espaços de dentro da comunidade em que desempenha a sua prática de trabalho, o ACS figura como importante elo de interlocução entre a equipe e o usuário, na produção do cuidado.

O ACS é treinado para reunir informações de saúde de uma determinada comunidade, realizando visitas domiciliares na área de abrangência da sua unidade e produzindo informações

(18)

capazes de dimensionar os principais problemas de saúde de lá. Inicialmente era indicado que o agente residisse na área em que trabalharia, para que assim pudesse ter uma relação com seus vizinhos, além da capacidade de dedicar oito horas do seu dia ao trabalho. Por isso, enfatizo que a construção de uma relação de confiança entre o ACS e os moradores é de extrema importância e, como mostrarei a seguir, tal ligação tem sido o diferencial em vários âmbitos, para mim, também enquanto pesquisadora.

Após a aprovação nos testes e exames, fui assumir o cargo e devido ao meu atraso com os resultados médicos, somente as áreas de abrangência consideradas “mais perigosas” da Zona Norte ainda estavam disponíveis. Ao longo desse tempo em que acompanho tal localidade, ouvi muitos estereótipos relacionados ao local que é minha microárea. Por exemplo, algumas pessoas que residem “fora” da comunidade a chamam de favela, e nem todo mundo concorda em “descer” até lá. Para chegar de fato a “comunidade do Paraíso2” é necessário fazer uma

caminhada de mais de dez minutos e lá, não são raras as reclamações de sucateamento e esquecimento. Por exemplo, parte do local é atravessado pela linha do trem que atravessa a cidade e neste ponto existe uma massiva quantidade de lixo que, segundo os moradores, as pessoas da parte de cima da rua jogam.

As maiores casas da área se encontram no início da rua e conforme vamos descendo, o tamanho delas diminui, mas não só isso. Ao aplicar questionários da situação socioeconômica dos usuários da Unidade Básica de Saúde (UBS) ou Unidade de Saúde Familiar (USF), tenho noção de que em sua grande maioria, moradores da parte baixa não possuem vínculos empregatícios fixos, mas o contrário, sendo geralmente atividades instáveis e de baixa remuneração.

Reafirmo as minhas tentativas em todo tempo enfatizar os modos como pude ter acesso aos conteúdos tratados nesta pesquisa. Contudo, além das possibilidades que a função de ACS me trouxe, também é necessário mostrar que foi a escuta compreensiva como pesquisadora a prática fundamental para que essas mulheres desejassem falar sobre suas vivências comigo e para suas demonstrações de empatia. Assim, minha atenção e escuta foram essenciais para não ficarmos apenas no primeiro diálogo, mas para garantir a continuidade das trocas que permitiram o estudo. Afinal, trabalho junto com mais dezenove agentes dos quais cinco são homens e eu não enxergo tal proximidade com os usuários como as mulheres conseguem. Ainda

(19)

assim, nem todas as mulheres estão também tão dispostas para ouvir trajetórias de vida, histórias e reflexões, mas buscam cumprir suas funções conforme o cargo exige.

Logo, reafirmo minhas constantes tentativas em desempenhar o exercício cuidadoso de escuta, respeito, entendimento e relativização do meu próprio lugar nessas relações, esperando que possam permitir uma análise mais informada e localizada das falas das mulheres que aceitaram participar da pesquisa.

Como nos mostra Abu-Lughod no texto “Localizando a etnografia” (2000), a etnografia é capaz de unir estudos de diferentes aspectos do nosso mundo social e os colocar sob as mesmas ferramentas metodológicas. A partir dessa reflexão, a autora utiliza o pronome “nós”, para demonstrar a importância da localização para trabalhos etnográficos, que são, nesse caso, estudos subalternos, “histórias do presente”. Desse modo, salienta a importância de explicitar as posições particulares e as identidades daquele ou daquela que está fazendo etnografia.

No texto “Autoetnografias. Conceitos Alternativos em Construção” (2005), a autora Daniela Versiani faz uma discussão acerca dos modos alternativos de pensar processos de construção de autobiografias e etnografias a partir da autoetnografia, na qual pesquisador ou pesquisadora deve tentar dar conta das complexidades dos objetos, da percepção de sua própria subjetividade e de seus interlocutores, e da própria relação entre subjetividade do produtor de conhecimento e a produção de objetos de estudos, teoria e saber. Assim, se caracteriza por uma escrita do “eu” que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si. Pretendo, com isso, registrar informações do meu próprio caminho até a pesquisa e o desenrolar dela até então, a fim de encontrar uma singularidade e uma significação mais completa sem, entretanto, pesquisar uma ilusória universalidade, tentando ultrapassar a aventura individual, mesmo que os assuntos pesquisados sejam também expressões da experiência pessoal. Para isso, devo mostrar que essa não deve ser feita de modo singular, mas a partir do contexto em que ela pode ser usada por mim enquanto pesquisadora.

(20)

A pesquisa de campo foi desenvolvida no município de Natal, que está localizado no Estado do Rio Grande do Norte, na região Nordeste do Brasil. A cidade possui atualmente 36 bairros, que são distribuídos em quatro regiões administrativas. Atuo desde 2015 como agente comunitário de saúde (ACS)3, na Unidade Básica de Saúde, localizada na Zona Norte de Natal (onde também resido).

A área de abrangência da Zona Norte da cidade é a maior zona tanto em população, quanto em extensão territorial. É composta por sete bairros e esses se dividem em conjuntos e loteamentos. Segundo o Índice de Qualidade de Vida (IQV)4, a Zona Norte (juntamente com a

Zona Oeste de Natal) é a região mais deprimida socialmente e economicamente. O conjunto possui grande contingente populacional e é visto como uma área com um quadro de precariedades e carências. Até 2016, a estimativa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)5 era de que a região possuía 354.901 habitantes; os últimos dados colhidos em 2008 apontavam para 77.205 domicílios, cuja renda média mensal, a terceira maior entre as quatro zonas da cidade, era de 2,94 salários mínimos.

Para se ter uma noção da visão da Zona Norte da cidade, ao se buscar sobre a localidade em sites de pesquisa, as notícias que tomam destaque divulgam assaltos, homicídios, índices elevados de sucateamento da saúde etc. É considerada como a zona que possui os bairros mais violentos da cidade e isso repercute nos estereótipos construídos pelos moradores de outras zonas. Todavia, também é a zona que demonstra grande crescimento econômico, sendo vista atualmente, por autoridades e investidores, como local promissor para vetores de crescimento6, com a chegada de investimentos de empresas privadas, além de unidades habitacionais e o aeroporto da cidade.

A população local da comunidade Paraíso apresenta altos índices de desemprego e subemprego, com grande parte inserida no mercado informal de trabalho e com isso, a renda dos moradores não costuma ultrapassar um salário mínimo. A rua principal M.J.L. é ampla e

3 Exerço este cargo pela Prefeitura da cidade de Natal.

4 O Índice de Qualidade de Vida - IQV foi desenvolvido com o propósito de medir a qualidade de vida da população residente nos diversos bairros de Natal, a partir de sete indicadores, sintetizados em três dimensões: renda, educação e dimensão ambiental, que estabeleceram os três índices específicos. Em seguida esses índices foram agrupados em um único índice, resultando no Índice de Qualidade de Vida. Dados acessados em BARROSO, Arimá Viana. “Mapeando a qualidade de vida em Natal”, Natal – RN, 2003.

5 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativas populacionais para os municípios e para as Unidades da Federação brasileiros em 01.07.2016. IBGE/DPE/COPIS, 2016.

(21)

de asfalto irregular e normalmente pela manhã alguns moradores ficam pelas calçadas ou visitando os vizinhos, o que me faz considerar a área segura nas minhas visitas no turno matutino. Mas as pessoas do bairro me avisam não ser assim nos demais horários do dia. Em alguns pontos são jogados lixos e isso torna uma área de forte propagação de doenças, como sempre ouço reclamações sobre focos do mosquito da dengue e de caramujos.

A fisionomia das casas, como dito anteriormente, diminui seu tamanho na medida que descemos a rua e vão mostrando uma aparência tida como de setores populares, assim como a condição social das pessoas que ali residem. Quanto mais abaixo e próximo a linha do trem que atravessa a comunidade, mais carentes são os lares e as famílias. Vários cachorros perambulam pelas ruas ao longo do dia, o que já me deixou em situação de não poder fazer algumas visitas por conta dos seus latidos e aproximações, o que geralmente causa risadas quando moradores veem de longe a cena.

O elo entre o posto e a comunidade

É importante salientar que aqui não será feita uma avaliação do Programa da Saúde da Família, do SUS ou do próprio Posto de Saúde e seus programas de atuação através da figura do Agente Comunitário de Saúde, mas considero necessário trazer alguns pontos por terem sido centrais no estabelecimento dos vínculos com as interlocutoras que participaram da pesquisa.

A função de ACS opera como uma espécie de ponte que liga as pessoas da comunidade às informações do posto, além disso, faz uma atividade de promoção a saúde, tentando viabilizar o cuidado ao paciente antes que este precise de atendimento médico. Enquanto agentes comunitários é preciso conhecer as condições de moradia e de seu entorno, de trabalho, os hábitos, as crenças e os costumes; conhecer os principais problemas de saúde dos moradores da comunidade; perceber quais as orientações que as pessoas mais precisam ter para cuidar melhor da sua saúde e melhorar sua qualidade de vida. Com isso, ocupamos espaço de mediação entre comunidade e a unidade, mas acima de tudo, devemos conseguir fazer um trabalho que se direcione para dois lados: dialogar com a comunidade e ainda fazer os repasses necessários para a UBS, de modo a contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas ao desenvolver ações de promoção e vigilância em saúde. Assim, uma das principais demandas é o tratamento humanizado, para que desta forma os agentes possam promover a construção do

(22)

vínculo entre profissional e morador da comunidade. Todavia, de certa forma, o ACS atua como uma figura que representa um órgão público ou, melhor, um órgão a disposição da comunidade em prol de serviços da saúde, o que garante certa facilidade para entrar nas casas das pessoas e ainda, ouvir sobre suas demandas.

Na função de ACS7 desenvolvo atividades dentro e fora da unidade básica de saúde, mas mais precisamente devo atuar visitando casas de moradores dentro da minha área específica de abrangência, como uma extensão dos serviços de saúde dentro dessa localidade. A partir disso devo acompanhar tais famílias para trocar informações entre a comunidade e a unidade de saúde, mas para também notificar e promover saúde, levando informações que ultrapassam a esfera da saúde nos moldes “médicos”, incluindo aquelas consideradas tradicionais ou populares. Com isso, visitas a pessoas específicas se tornam corriqueiras, já que devo acompanhar as mesmas famílias e assim, ocorre uma aproximação maior com algumas que possuem mais demandas de doença/saúde. Foi então que construí uma proximidade maior com algumas mulheres negras que frequentemente me convidam para conversas que, apesar de inicialmente terem foco em suas situações de saúde e demandas para a unidade de saúde, com o decorrer das trocas se aprofundaram em temas afetivo-sexuais de suas trajetórias, desde as primeiras relações até os momentos atuais.

Trabalhar como Agente Comunitário de Saúde tem me proporcionado descobertas que cabem a mim mesma e o convívio com outras pessoas. Seja com os pacientes ou com os funcionários do posto, em uma só manhã posso me deparar com situações de violências extremas, racismos, preconceitos de gênero e sexualidades, preconceitos religiosos etc., mas, ao mesmo tempo, defronto-me com sentimentos de gratidão que são proporcionados por meio de um simples “bom dia” e uma pergunta de como tal pessoa está, convites para lanches e festas pelos moradores, cuidados entre os funcionários que compartilham de suas angústias

7 As atribuições designadas ao ACS estão dispostas na Portaria GM/MS nº 1.886, de 18 de dezembro de 1997, e no Decreto Federal nº 3.189, de 04 de outubro de 1999, que fixa diretrizes para o exercício de suas atividades, possibilitando uma proposição qualitativa de suas ações e evidenciando um perfil profissional que concentra atividades na promoção da saúde, seja pela prevenção de doenças, seja pela mobilização de recursos e práticas sociais de promoção da vida e cidadania ou mesmo pela orientação de indivíduos, grupos e populações, com características de educação popular em saúde e acompanhamento de famílias.

Estas características apontam para uma singularidade e especificidade profissional, que o situa na interface intersetorial da saúde, ação social, educação e meio ambiente. Para o setor saúde, a formação do agente comunitário requer, então, a identificação técnica, ética e humanística das competências que ele deve desenvolver para a realização de seu trabalho.

(23)

particulares, até sonhos e aventuras, ainda uma porção de momentos de carinhos, entre festas de boas-vindas, aniversários e despedidas que nunca deixamos passar. Esses são apenas alguns exemplos da intensidade de causos e emoções que tenho vivenciado ao longo dos últimos anos por meio dessa função.

Apesar do cansaço em se trabalhar andando sob o sol escaldante que assola a conhecida “cidade do Sol” e mesmo tendo pego a área mais distante do posto de saúde e ainda a mais populosa, não consigo me desvencilhar dos laços que criei e mantenho com as pessoas que ali habitam. Quando, por exemplo, em um conturbado dia de trabalho, caso ainda no meio da semana me sinta exausta da leva incessante de trabalho e estudos, sei quais casas e pessoas específicas posso visitar, pois sei que me sentiria melhor com esse contato. Algumas dessas são as mulheres que se tornaram interlocutoras nesta pesquisa, e o engraçado é que neste caso não me sinto melhor por desabafar ou falar dos meus dias, mas porque posso proporcionar isso nas mulheres que acompanho e que de fato desejam conversar, desejam ser ouvidas e que aparentam se sentir felizes com minha presença, mesmo que ainda cedinho da manhã. Além disso, tenho considerado cada uma dessas conversas como grandes fontes de aprendizado, a partir dessas mulheres que a cada dia admiro mais.

Entre diálogos e confidências

Acho relevante demarcar que me sinto confortável em acompanhar tal localidade e tais sujeitos, principalmente por perceber uma grande receptividade das pessoas que moram ali. Este local é considerado em situação de risco, já que pode ser agravado por obstáculos ou fatores que dificultam ou impedem as pessoas de terem acesso de infraestrutura, como saneamento básico e moradias adequadas, o que faz com que desenvolvam doenças e epidemias em maior gravidade ou com maiores complicações. Enquanto pesquisadora notei uma espécie de sentimento de gratidão que se dá entre as pessoas que visito, já que frequentemente me oferecem presentes, comida, bebidas… Já ganhei roupas, um quadro, frutas, verduras, plantas, enfeites de decoração para a casa; além de lanches que me oferecem bolos, sucos, cafés, tapiocas etc.

Acredito que tais acontecimentos retratem um importante dado de reciprocidade, pois quem me ofereceu tais “presentes” muitas vezes o fez quando desejavam saber de uma informação, pedir um favor ou agradecer algo, até mesmo a visita, como se dissesse um “volte

(24)

logo”. Durante a escrita desta introdução vieram lembranças de que todas as colaboradoras da pesquisa já me presentaram de alguma forma e geralmente com objetos que as identificaria, que eu poderia considerar suas “marcas”. Dito de outra forma, Dona Sueli ganhava a vida vendendo comida de porta em porta, como tapiocas e cocadas, coisas com as quais já me presenteou, mesmo que ela mesma não coma nenhuma dessas preparações; diz odiar tapioca e está diabética, por isso precisou deixar sua paixão por cocadas de lado. Já Dona Edenice vende roupas numa cidade do interior, onde já possui sua clientela fixa e por isso, já me deu várias roupas, como conjuntos de calcinhas, sutiãs etc. Dona Acotirene possui um bazar onde vende roupas que ganha de doadoras, sempre que chegam peças novas me mostra, oferece, diz que serviria perfeitamente para minha mãe, mesmo sem conhecê-la, por exemplo. Dona Dandara já me presenteou com roupas também, que ela sempre diz acreditar que combinariam comigo, ao dizer que tenho o perfil de “menina de Malhação”, em referência a uma novela juvenil e me dando calças que não cabem mais nela, mas que usava anteriormente. Dona Zeferina nunca me deixou sair de sua casa sem uma mudinha de alguma planta que ela tenha dito os benefícios. E Dona Anastácia e sua filha já me deram colares, comidas etc.

Com a intensificação das visitas e com a anuência das mulheres em participar da pesquisa e falar comigo enquanto antropóloga, fui construindo uma relação de proximidade com as participantes. Em boa parte, pelo fato de eu ingressar no universo dos seus lares onde a pesquisa aconteceu, sempre, é claro, com suas permissões e convites. Com a pesquisa, meu interesse por seu bem-estar e minhas perguntas, adentrei o local não só da residência, mas de suas perspectivas e emoções, assistindo angústias, desabafos, brigas familiares etc., já que, como disse anteriormente, me faço presente em um meio extremamente pessoal – a casa. É inevitável, assim, não desenvolver um sentimento de preocupação por essas mulheres ao conhecer mais de suas trajetórias de vida, seus enfrentamentos, seus históricos de resiliência, seus cuidados não só com si, mas com os outros e inclusive comigo.

Em diferentes momentos da dissertação, tentarei transcrever o que presenciei e vivi nas visitas à tais mulheres, mas nunca será possível dar conta da transmissão de significados de um olhar, um sorriso, um suspiro, uma entonação que rememore e transmita os múltiplos e abundantes significados e riquezas das suas falas. Tento a todo tempo respeitar estas mulheres e suas partilhas de histórias tão íntimas, zelando para que utilizem daqueles momentos como uma prática de saúde e digo isto pelos vários momentos que me chamavam somente para conversar, sem nenhum interesse além deste.

(25)

Método ou saúde?

A partir do desenvolvimento da pesquisa e da inevitabilidade do assunto da saúde nas conversas com as minhas interlocutoras, considero relevante enfatizar a necessidade de falarmos sobre saúde, já que frequentemente nos debruçamos mais sobre a doença, sem tanto evidenciar a diversidade de roteiros possíveis para manutenção de uma saúde, como encontraremos em vários discursos das interlocutoras. De uma simples visita e seus desabafos, às receitas de chás ou até mesmo a manutenção de um vínculo com um contato extraconjugal, podem ser (por que não?) exemplos de cuidado e estratégias de saúde.

É importante nos indagarmos a quem interessa os frequentes focos em temas das mazelas dos povos lidos como subalternos. Obviamente, quando idealizamos um universo de pesquisa ele muito provavelmente não seguirá os anseios ou planejamentos iniciais e foi o que ocorreu nesta pesquisa. Inicialmente a proposta era tratar da solidão afetiva de mulheres negras e como esse tema estava ganhando visibilidade nas redes sociais e em alguns espaços de militância. Em seguida, desejei sair em busca de histórias de famílias negras, tratando de amor e resistência, ao ansiar uma perspectiva além das mazelas que geralmente são mais retratadas quando discorremos sobre população negra. Tal pretensão almejava dar visibilidade a histórias que inspirassem mais de nós de modo positivo, perpassando não só a identidade negra, mas também a importância dessas constituições familiares, talvez até como modo de resistência étnica (SODRÉ, 2013).

De todo modo, mesmo com históricos de resiliência de muitas destas mulheres, para chegar a tal postura foi necessário passar por dores e enfrentamentos. Com isto, aqui serão evidenciadas sim histórias de amor, mas não só isso. Nos debruçaremos sobre trajetórias de superação e talvez isto também funcione de estímulo a outras pessoas negras e quem sabe também a estudos de temática similar, além de incrementar a produção científica sobre algo que não é tão farto academicamente como com outros temas (BERQUÓ, 1987; HOOKS, 1995; SILVA, 2003; MOUTINHO, 2004; PACHECO, 2013; PEREIRA e RODRIGUES, 2010; PRESTES, 2013).

Para além dessas, mais recentemente me deparo com a preocupação de outras áreas que estão reconhecendo o tema como importante a ser tratado. Na produção cinematográfica,

(26)

Viviane Ferreira dirigiu o curta-metragem “O dia de Jerusa”8, que traz em seu enredo a jovem Silvia, trabalhando em pesquisa de mercado e que em uma de suas visitas conhece Jerusa, mulher negra na terceira idade e moradora de um sobrado em uma cidade extremamente verticalizada. Durante o diálogo, noções sobre tempo, ancestralidade, geração, memória, identidade e relações humanas ganham enfoque. A história contada consegue refletir em detalhes muitas das experiências que vivencio em campo, o que pode demonstrar a amplitude da temática. Já na música, encontro com a cantora e compositora baiana Luedji Luna como a potencialidade em se falar de afetividade negra9 e como o amor é sua inspiração na produção

de músicas que retratem da identidade negra. Além desses, na literatura temos poetas pretas que ganham visibilidade por todo o Brasil, em vários saraus poéticos e slam das minas, ao falarem sobre resistência, amor, negritude, entre outros temas caros a nós.

Como bem sabemos, quando nos dispomos a escrever estamos rompendo com o lugar que normalmente tentam nos reservar enquanto mulheres negras. Falar sobre si e sobre outras mulheres negras é mais uma das formas de resistência que têm sido produzidas atualmente na academia. Afinal, quantas vezes nos dispomos a ouvir as mulheres negras? Ouvir suas trajetórias de vida, seus sonhos, anseios, passado, amores, memória, entre outras coisas. Quando temos acessos às suas falas muitas vezes aparecem de modo sensacionalista, dando enfoque para dores, sofrimento, entre outros. Mas, por que não falamos mais de resiliência? De resistência? De afeto e amor? Sei que posso soar utópica ou até mesmo romântica. Sei também que nunca serão histórias simples ou fáceis, ainda mais porque existem nuances e complexidades nas histórias de todas as mulheres negras que vivem em uma sociedade racista e por isso, carregam várias ramificações. Todavia, almejo que compartilhemos histórias de afetividade dentro e fora dos muros acadêmicos, pois considero que precisamos disso como também uma estratégia de sobrevivência.

O fato de problematizar o conhecimento acadêmico estabelecido e de fazermos ouvir, nos legitima e possibilita a difusão de um saber que pouco conhecemos na academia ou que nos estereotipa. Por isso, escrever é uma proposta ideológica e costumo dizer que só disputarei o espaço de poder da academia enquanto eu puder falar sobre os meus, sobre as pessoas negras, vislumbrando que tais informações retornem para nós, pois as memórias nos importam e nos colocam onde devemos estar. Por que não usar o conceito da Conceição Evaristo sobre

8 Para assisti-lo, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=0RY3pkRcPiQ.

9 Entrevista pode ser encontrada em:

(27)

escrevivência? Essa escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida, da memória que pode ser da própria autora e também do seu povo. A partir dela temos uma geração que se consolida afirmando a identidade negra e colocando a mulher negra como protagonista das histórias narradas.

A literatura escrita por mulheres negras tem um papel empreendedor de trazer para o debate contemporâneo a responsabilidade de usar a escrita como ferramenta teórica e também um recurso de um tipo de ativismo, que em muitos momentos vem ainda mesclado com questões relacionadas não só a raça, mas gênero, sexualidade, classe e aqui, também, questões geracionais.

Por isso, pretendo tratar das tentativas de invisibilização do povo negro por meio da linguagem, visto que essa carrega poder e ideologia, sendo também um instrumento para manter histórias vivas. Logo, tentarei evidenciar algumas vozes de mulheres negras que historicamente são silenciadas pelo discurso hegemônico, tentando todo tempo garantir respeito por suas partilhas. Além disso, enquanto pesquisadora tenho o desejo e a pretensão em pensar as análises de tais discursos priorizando a utilização de autoras e autores negros, aspirando contribuir com um viés de resistência aos referenciais dominantes.

Contudo, como pensar o racismo e seus impactos quando as interlocutoras não necessariamente reconhecem que suas problemáticas decorrem dos efeitos deste na estruturação da sociedade brasileira? Digo isto levando em conta as informações que coletamos como ACS em questionários familiares e individuais que indagam sobre dados sociais e de saúde, especialmente as informações derivadas das perguntas sobre a auto declaração contendo as opções: branco, preto, pardo, amarelo ou indígena. Com a experiência enquanto pesquisadora, percebo o visível constrangimento na autodeclaração das opções “preta” e “branca” em tais entrevistas. Com isso, a grande maioria se diz “morena” e na falta de tal opção nos questionários optam pelo termo “pardo”, mesmo muitos garantindo não entender o que significa tal nomenclatura. Nem sempre tento me manter imparcial, pois considero que não se adequaria tal posicionamento sendo eu não só cientista social, mas também ativista. Ao menos com as interlocutoras da pesquisa, quando me indagavam o que seriam, me utilizei como exemplo e perguntei o que consideravam que eu era. Algumas disseram “morena”, outras “negra” e daí em diante a formulação de suas respostas foi sendo construída. A partir disso, considero importante explicitar que as interlocutoras desta pesquisa nem sempre se afirmaram como negras, mas algumas como pardas, o que ainda as mantém na categoria de pretos e pardos pelo

(28)

IBGE. Ainda assim, não é raro ouvir um “tenho orgulho da minha cor”, mesmo sem se dizer preta, mas evidenciando uma afirmação de positividade de uma cor não-branca.

Um olhar fora da caixa eurocêntrica – Do apagamento ocidental à valorização africana

Em função dos estigmas que o envelhecimento promove em algumas sociedades “ocidentais”, a pessoa idosa passa por diversos preconceitos e estereótipos racistas. Não são raras as indicações, seja na mídia, na família, vínculos empregatícios, entre outros, de que uma pessoa mais velha passa a ser um fardo, sem utilidade, até mesmo não funcional. O que acontece então quando for somado o fator raça/cor se tal idoso for negro? Quais implicações ocorrem nas vivências desses sujeitos? A exclusão se dá não só pelo estigma do idoso, mas também pelo racismo?

Executo uma abordagem metodológica que advém da minha sensibilidade e identificação negra, visando não só a problematização do conhecimento acadêmico estabelecido, mas ainda uma perspectiva de um olhar focado numa forma de tradição, que encara o costume da oralidade das pessoas “mais velhas” como um modo de transmissão de conhecimentos aos mais novos. Por isso, em alguns momentos utilizarei a denominação “mais velha” por tê-la aprendido em espaços de ativismo negro, empregado por vezes como modo de promover uma forma de preservação da identidade cultural negra. Além disso, considero um modo de estima e obediência que não diz respeito somente à idade, mas ao acúmulo de conhecimento. É a partir disso que pretendo trazer um olhar de valorização e desconstrução de estereótipos e estigmas sobre a pessoa idosa e essa suposta falta de funcionalidade com a qual me deparo em diversos espaços, que adotam tal postura em relação aos mais velhos.

Após cada contato que tive com as mulheres que acompanho e que com o tempo vieram a ser colaboradoras desta pesquisa, assumo que mudei minha postura frente a temas e perspectivas. Cada diálogo tem sido de intensos aprendizados e suas falas muitas vezes me serviram de conselhos que talvez elas nem imaginem. As experiências em campo me trouxeram, entre outras coisas, a necessidade em ouvir mais, estar mais presente e perceber que apesar da diferença geracional temos mais características em comum do que eu poderia supor.

Uma reflexão importante para mim ocorre através do texto “A memória dos velhos e a valorização da tradição na literatura africana: algumas leituras” (2011), que analisa a

(29)

representação literária da função social do velho sob uma perspectiva da literatura africana, como guardião de memória e tradição, conservando passado e interligando o presente, respeitando a tradição e contribuindo na formação identitária dos mais novos. O texto enfatiza a importância da memória das narrativas, mostrando que abordá-la em estudos se torna relevante por tentarem tratar de aspectos da cultura popular, vida em comunidade, sublinhando a identidade de um povo, quando se atenta aos costumes, religiosidade, tradições etc. Demonstra também que as narrativas dos mais velhos não podem e nem devem ser consideradas invenções particulares, mesmo que sejam suas histórias pessoais e trajetórias de vida, pois ao contar e recontar histórias, sustenta-se a ciência do sujeito sobre si mesmo e sobre os outros com quem interage em comunidade. A partir desse pensamento, acredita-se que o ato de recordar se realiza em sociedade, ao chamar a outros e suas obras. Todavia, cabe salientar que mesmo sendo coletivo são os indivíduos que se lembram e essa memória individual representa um dentre vários pontos de vista possíveis (NASCIMENTO e RAMOS, 2011).

Outro texto que aborda a velhice sob o viés africano na literatura é em “Um olhar sobre a velhice em ‘Sangue da avó manchando a alcatifa’, de Mia Couto”, onde Maria Nascimento Dias (2014) disserta sobre o valor atribuído ao idoso em algumas sociedades tradicionais africanas e sua função de transmissão de saberes oralmente às demais gerações. Mostra que nessas sociedades os idosos são os guardiões da memória e suas alas deveriam ser guardadas com muito zelo pelos mais jovens. Sua categoria social tem a autoridade de repassar a sabedoria dos antepassados e perpetuar a cultura. Todavia, com os projetos de modernização esse lugar de representatividade vai se modificando e a “valia” dos idosos vai se perdendo.

Contudo, apesar de supostamente ser uma perspectiva diferente tratada até aqui, a sensibilidade da escuta à procura de lembranças das trajetórias com um grupo de mulheres negras promove sentimentos que me remetem a tais caminhos, mas principalmente da busca desse envolvimento que valoriza o diálogo, enfatizando o repasse de conhecimentos dessa experiência em campo. Afinal, por que essas mulheres aceitaram dividir suas memórias com uma pesquisadora que vive em um contexto que aparentemente é distante dos seus? A prática da conversa e escuta traz consigo não só a elaboração de discursos que mantém uma história, mas também pode significar um exercício de acolhimento meu com relação às suas memórias e narrativas. De todo modo, esse percurso foi pretendido me inspirando em tais perspectivas de modo particular, ao utilizar de concepções parecidas em cada um dos momentos trocados não só em campo, mas no meu próprio cotidiano.

(30)

Metodologia e estrutura do trabalho

Sobre os procedimentos metodológicos de investigação, opto por falar com e sobre essas mulheres, de forma a ressaltar aspectos do seu cotidiano e realidade de vida. Como Camila Antunes (2015), em “Antropologia dos Afetos: sobre flores, curvas e cores da experiência de campo”, me inspiro em Lila Abu-Lughod (2008) que trata de narrativas compostas por conversações e histórias de mulheres, que compartilham umas com as outras e com ela. Esse formato de etnografia “contando histórias” (storytelling) torna inevitável o posicionamento, pois uma história sempre estará situada e em nenhum momento me esquivo de deixar traços de mim mesma nos diálogos que mantenho, as vezes compartilhando até meu próprio estado de humor naquele dia (apud ANTUNES, 2015, p. 7-8).

Não pretendi em nenhum momento construir um trabalho fechado nos moldes clássicos do distanciamento do pesquisador em campo. Muito pelo contrário, nas conversas que mantive será perceptível a minha participação que ia além da curiosidade, mas que foi demonstrada nos meus gestos, na minha corporeidade, nas minhas expressões e também no não-dito. A minha principal preocupação sempre foi ter a sensibilidade de estar aberta e disposta a entender os sentidos passados, adotando uma postura que requer uma abertura holística daqueles momentos compartilhados entre pesquisadora e pesquisadas.

Reuni diversas notas, frases, palavras que considerei chave, expressões, entre outra gama de notas, que precisaram ser selecionadas sob risco de não contemplar a importância de cada uma dessas. Relembro o quanto algumas dessas mulheres, enquanto contavam um pouco de suas histórias cotidianas que vinham em suas memórias, já diziam que suas vidas dariam livros. Fiz perguntas e tomei nota de muitos diálogos, como também desenvolvi diversos cuidados éticos para continuação desta pesquisa. Conversei em muitos momentos com orientadora e colegas de curso sobre minha preocupação em conseguir me desvincular da minha atribuição de ACS e passar a ser reconhecida como pesquisadora. Retornei ao campo com roupas diferentes da minha farda habitualmente usada e ainda horários distintos também. Além disso, reiterava constantemente sobre a pesquisa a cada uma dessas mulheres, o que se tornou até mesmo insistente (ou chato mesmo), mas que somente assim me fizeram relaxar acerca das minhas frequentes preocupações com a ética de pesquisa. Para minha surpresa (e felicidade, assumo) todas as mulheres lembravam com clareza que eu já havia falado sobre o assunto e insistiram em estarem felizes por poder participar da pesquisa.

(31)

Aproveitei em uma dessas idas em tom “diferente” para enunciar o fato da pesquisa se dar somente com mulheres negras, dando ênfase ao termo e esperando com isso algum posicionamento daquelas que anteriormente se declaravam como pardas ou “morenas”. Dessa maneira, poderia suscitar uma negativa enfática à negritude ou um momento a pensar o olhar de “outros” sobre si racialmente, sem tentar impor uma identificação construída pelo olhar da pesquisadora. Além disso, tenho usado como método me afirmar como negra, mas, ainda assim, algumas delas me chamam de “morena” em certos momentos, já em outros me apelidam de “nêga” ou “neguinha”, em um tom carinhoso e isso também me coloca questões. Isso porque esse trabalho, além de pretender analisar experiências de vida de mulheres concretas, também tentará refletir sobre a forma em que a dimensão racial, de forma mais geral, e seu desenvolvimento histórico no país incide na afetividade de mulheres negras. Em que medida estereótipos e outras construções sociais informadas pela raça, classe, sexualidade, gênero e geração impactam na construção e manutenção de vínculos afetivos de algumas mulheres negras?

Logo, como dito anteriormente, relatarei diálogos e experiências etnográficas (com sua consequente carga de afetos e preocupações específicas) envolvendo seis mulheres negras das faixas etárias dos cinquenta aos setenta e cinco anos de idade. Dessas, duas estão viúvas, uma divorciada e três se encontram em relacionamentos estáveis. Considero importante demarcar que as que estão em relacionamentos o estão com homens negros, sendo esse um dado que será tratado ao longo da pesquisa. A partir disso, revelo ainda um recorte que não me foi produzido como macete metodológico ou mesmo foi um interesse de pesquisa, pois nunca foi uma pretensão delimitar um grupo de mulheres heterossexuais como universo de pesquisa, mas isto aconteceu no campo. Assim, pude observar aspectos do universo heterossexual, que possui uma perspectiva de sexualidade hegemônica, mas dentro de um quadro de afetividade e relacionamentos de mulheres negras. Em contrapartida, nos espaços que transito e dos diálogos e entrevistas que mantive com três mulheres negras do universo organizativo e institucional, a homossexualidade feminina foi apresentada não só como uma orientação possível em suas vidas, mas também uma forma ativa de resistência e subversão.

Além da sexualidade, outro marcador que será alvo de análise diz respeito ao recorte etário, o que demanda um olhar atento e cuidadoso sobre as dimensões do envelhecimento, já que aqui trataremos de mulheres acima dos cinquenta anos de idade. Podemos desde já destacar uma intricada conexão simbólica que associa juventude, saúde, beleza, libido, disposição física

(32)

e atividade sexual nos processos de patologização das fases ou das condições de vida e de como se encara o envelhecimento nessa ordem (ROHDEN, 2001; 2011).

Além disso, é necessário informar que todos os diálogos citados durante a pesquisa foram transcritos mantendo as expressões linguísticas e gírias utilizadas tanto pela pesquisadora quanto pelas colaboradoras. Tal escolha é feita a fim de conservar os trejeitos particulares e regionais de cada uma, sem tentar enquadrar nos moldes linguísticos hegemônicos da língua portuguesa sob risco de perder a singularidade das participantes. Ainda veremos no decorrer dos capítulos a repetição do tratamento das mulheres ser feito a partir do “Dona”, sem modificações, pois consegue falar sobre a realidade social dessas, ou seja, temos tal pronome como relevante para demarcar um lugar social específico, que foi aprendido nesses espaços sociais e continuou sendo reproduzido por mim, como pesquisadora e em forma de respeito.

Ainda é importante enunciar que ao longo dos capítulos alguns conceitos que considero ser relevantes para esta pesquisa aqui empreendida foram destacados em negrito, visando que o leitor os reconheça e compreenda os motivos que esses foram repetidos e acentuados. Também adianto que os nomes e locais foram todos modificados, pensando em não revelar as verdadeiras identidades das participantes. A escolha dos nomes passa a ser em homenagem a mulheres negras símbolos de lutas históricas, no Brasil e outras partes do mundo, pensando em dar mais um local de visibilidade e prestando, principalmente, a minha igual admiração a todas essas, tanto as mulheres referenciadas, quando as colaboradoras na pesquisa.

A partir disso, como forma de apresentação, a pesquisa estará dividida em capítulos, que tentarão ter uma sequência lógica que se complemente, buscando coerência.

A Introdução traz a apresentação da pergunta de pesquisa e do enquadramento do trabalho, detalhando a formulação do tema e da proposta de pesquisa e a chegada ao campo. Também traz uma breve reflexão autoetnográfica sobre minha condição de pesquisadora, ativista e Agente Comunitário de Saúde, além de explicar o uso de alguns instrumentos metodológicos de investigação e cuidados éticos.

O primeiro capítulo apresenta algumas autoras negras que fizeram contribuições acadêmicas sobre a afetividade, mostrando a importância de se falar sobre o tema para a população negra. Em seguida, aborda as formas em que a subjetividade de negras e negros foi por vezes invisibilizada e as maneiras em que o tema da afetividade, quando tocado, foi geralmente relacionado à conjugalidade. Veremos também como a construção de estereótipos relacionados às mulheres negras podem impactar negativamente em suas subjetividades e como

Referências

Documentos relacionados