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1. Abordagens sobre afetividades

1.5 Com quantos corpos negros se constrói uma nação? – Corpo, raça, miscigenação e

1.5.1 Maternais, puras e brancas De que mulheres estamos falando?

Angela Davis em “Mulher, raça e classe” (2016), expõe a forma em que o sistema escravista utilizava o povo negro como propriedade e a mulher negra, antes de tudo, como trabalhadora em tempo integral. A ideologia de feminilidade do século XIX, que enfatizava o papel das mulheres como mães e donas de casa amáveis para os maridos, não se direcionava às mulheres negras e desse ponto de vista essas eram tidas praticamente como anomalias. Enquanto isso, as mulheres brancas estavam sob tutela de preceitos religiosos e morais, devendo suas sexualidades à lógica de procriação e reprodução ideológica na família branca.

Verena Stolke (2006) mostra que religião e política eram inseparáveis no período colonial e, com essa influência, a Igreja Católica interagia junto com a Coroa estabelecendo princípios administrativos e valores espiritual-religiosos e sociais relativos à honra e hierarquia social, através de ideais de gênero e moralidade sexual. A doutrina da limpieza de sangre associava virgindade, castidade, honra e proeminência social, tudo isso vinculado a uma estrutura política, moral e simbólica entre hierarquias sociais e identidades. De modo similar, Giacomini (1988) mostra que cor de pele é sinônimo de classe ao colocar a brancura e sua gordura como aspecto distintivo, refletindo o aspecto econômico, que assim imprimem ociosidade e brancura. Já o corpo da mulher negra respondia a uma seleção que colocava sua aparência num índice de valor de uso sexual. Assim, a branca teria sua sexualidade somente para fins de procriação através das relações de parentesco, enquanto a negra seria apropriação como objeto sexual do branco, ao passo que lhe é negada a maternidade (negam a essa, mas não a procriação) e relações familiares. De todo modo, a mulher branca mesmo sendo oprimida em seu papel de mulher, exercia quotidianamente seus abusos e poder sobre os outros – escravizados.

A partir disso, Stolke (2006) utiliza a categoria limpeza de sangre para mostrar como o status dos nascimentos legítimos se construía por meio da prova de sangue puro e requeriam

garantir a manutenção da virgindade e castidade das mulheres brancas (e católicas), sendo estas vigiadas pelos homens, com respaldo da Igreja e da Coroa. Na sociedade colonial ibérica, durante os dois primeiros séculos após a conquista, a doutrina da limpeza de sangue funcionava como uma forma cultural-religiosa de discriminação. Sua forma simbólica determinava a maneira pela qual as concepções e as relações entre homens e mulheres eram construídas sócio politicamente. No momento em que o status social tem por base o “sangue”, ao invés de “méritos” individuais, o que se torna decisivo no campo das honrarias passa a ser as mulheres e o controle de suas sexualidades, já que somente elas poderiam atestar a legitimidade dos nascimentos. Assim, a pureza de sangue era entendida como a qualidade de não ter como ancestral um mouro, um judeu, um herético ou um penitenciado, enquanto viam o sangue puro como forma de autenticar a fé cristã, demonstrando que essa seria inabalável. Além disso, o valor dado ao sangue representava um veículo de pureza de fé, que transmitia vícios e virtudes religioso-morais de uma geração para outra, sendo por isso analisado, já que até então se buscava investigar genealogicamente a fé religiosa, como a cristã, que seria considerada a única e verdadeira religião. A partir disso, a conduta sexual das mulheres garantiria a origem pura e legítima dos seus descendentes e “provas de sangue” passam a ser exigidas, dando um ônus especial para a conduta sexual das mulheres cristãs como garantia de origem pura e legítima.

Contudo, os controles de sexualidade não traziam consequências para as famílias quando os homens não cumpriam os preceitos morais-religiosos. Já as mulheres brancas passavam por rígidas vigilâncias. Enquanto isso, inúmeras violências, estupros, abusos e tantas outras atrocidades promovidas por tais homens acometiam principalmente as mulheres negras, que por vezes ainda eram culpabilizadas como sedutoras e depravadas – desdenhada imagem da “mulata”.

As mulheres brancas podiam ser vistas como guardiãs da cultura e civilizadoras, mas também podiam ser percebidas como uma ameaça possível para o corpo da nação se seu comportamento sexual não fosse “adequado”. Uma característica que considerariam como comportamento inadequado para uma mulher branca seria ter relações fora de seu grupo étnico- racial ou social. Também podem se referir ao descumprimento das ordens de moralidade sexual, como a prostituição. Com isso, podemos ver que raça, etnicidade e classe social se entrecruzaram com a sexualidade para criar normas conjugais e familiares e as imagens que o Brasil buscava construir.

A humanidade das pessoas negras em situação de escravidão era negada, implicando também a negação de suas subjetividades e das suas possibilidades de constituição de família e

relações: mãe escrava-filhos, pai escravo-filhos e homem-mulher escravos. Assim, os senhores é que decidiam se poderia ou não haver relações familiares, se conviveriam ou não e onde, e em que condições viveriam. Infelizmente existem poucas informações documentadas, mas tal conhecimento permite analisar composições familiares, afastando-se desse modelo “convencional” de família ocidental e mostrando a multiplicidade de arranjos familiares.

Por exemplo, Florestan Fernandes (1978) escreve que o negro foi socialmente desestabilizado em todos os seus aspectos, inclusive afetivo-sexual. Esse autor percebe que a mulher negra seria a base para sustentação da família negra, quando mesmo sozinha chefiava a família economicamente e educacionalmente. No plano sexual e afetivo, as mulheres negras sofreram a penúria, a humilhação e a infelicidade por ter relações amorosas transitórias, não estáveis. As suas experiências afetivas com homens negros e brancos seriam frutos da desorganização social do “meio negro”. Assim, prostituição, alcoolismo, poligamia e abandono seriam fatores anômicos do modo de vida dessa parcela da população. Desse modo, o abandono e a solidão entre as mulheres negras seria fruto dessa tensão social que as associa ao sexo, às relações transitórias, ao “amor físico”, afastando-as dos projetos de vida “conjugal” e do amor “verdadeiro”.

Como vimos, o modelo de família inspirado nos moldes do sistema patriarcal em si já se consistiria como mais um tipo de violência imposta, visto que possuía viés cristão e sob autoridade de uma figura, nesse caso a masculina, o que difere enormemente da multiplicidade de formatos de família advindos do contexto de povos do continente africano ou recriados no contexto da escravidão nas Américas.

Para pensar arranjos afetivos que escravizados forjaram para vivenciar o afeto, Gizêlda Melo do Nascimento (2006) abordou as mais diversas relações afetivas protagonizadas por esses, partindo da memória dos(as) mais velhos(as) para captar as dinâmicas que compuseram a formação das famílias negras quando ocorreu a escravidão. A amizade na vizinhança entre mulheres que auxiliavam mutuamente umas às outras na criação dos(as) filhos(as), o ato de agregar parentes que precisavam de moradia por meio da construção dos famosos “puxadinhos”, a dificuldade encontrada pelos homens negros de sustentarem suas famílias diante do desemprego, que algumas vezes levava ao alcoolismo, são alguns dos fatores que moldaram outra dinâmica afetiva para esse grupo social (apud SILVA, 2013, p. 21).

Como dito no início deste capítulo, tenho sido levada a acreditar que um amor que se busque construir entre sujeitos negros é resistência, já que sócio historicamente as relações inter-raciais têm sido enfatizadas, sobretudo para apagar ou desmistificar os estupros sofridos

pelas mulheres negras desde tempos de escravização. Enfatizo mais uma vez como o sistema objetificador colonial praticava violências simbólicas, psíquicas e físicas, e sua herança e consequências se perpetuam até hoje. A subjetividade e o modo de lidar com as emoções de muitos sujeitos negros se dá pela negação desses e isso em muitos momentos passa a ser apropriado e reproduzido, como quando se acredita que mulheres e homens negros precisam ser fortes física e emocionalmente e tal cobrança encarada como “regra” pode causar danos às subjetividades. Do mesmo modo com relação a seus corpos e o imaginário de sensualidade e força, que mais uma vez relegam papeis específicos para tais corpos e que podem ser apropriados e reproduzidos por esses.

Nesta pesquisa, não tento me posicionar colocando a construção entre casais do mesmo grupo étnico-racial como regra, mas problematizar a miscigenação, pois é um problema quando se é imposta como modelo para construção de uma nação, como ocorre em solo brasileiro. Preciso ainda salientar que a discriminação racial não é um impedimento para as relações inter- raciais, que, apesar do que se poderia esperar, acontecem habitualmente, como vimos com Moutinho (2003), que inclusive mostra que tais relações não impedem a ocorrência de situações de cunho racista e de preconceitos sociais.

Alianças sempre foram feitas e sou pessoalmente tentada a pensar que várias análises colocando a população negra como desajustada em termos familiares levava como base comparativa os modelos eurocêntricos que aqui dominavam. Mas afinal, é possível definir um modelo ideal de constituição familiar ou modelo afetivo, dadas constantes exclusões e violências?

Esta pesquisa se pretende a retirar a centralidade de que ao se falar em afetividade, essa sempre deva estar atrelada à conjugalidade, que por mais que ela possa ser importante, não deve se resumir somente a isso, como temos visto com algumas pesquisas anteriores que tratam sobre o tema. Aqui, encontraremos discursos afetivos construídos por mulheres negras na “mais velhas”, que estando ou não com parceiros, seja namorando, ficando, uniões estáveis etc., encontram afetos em tantas outras formas. Ao serem indagadas sobre o tema, me surpreendi com as tantas perspectivas do que entendem (e sentem) ser o afeto em suas vidas e com isso, comprovo que nunca podemos presumir o que encontraremos nos campos de pesquisa.

Ao cruzar afetividade e o atual momento de suas vidas, onde se afirmam e são reconhecidas como mulheres “velhas”, a resposta muda e no lugar da ênfase na conjugalidade,

encontro as relações com as filhas como centrais, ao menos nesse período da vida17, assim como as relações com suas casas, de suma importância para todas, demonstrando a relevância pela posse de algo que as demonstre em segurança e como donas (da propriedade e de sim mesmas). Além desses dois exemplos, me deparo com uma miríade de considerações e sentimentos, seja o afeto por um animal de estimação, por seus netos. Afeto por suas vizinhas, pelos genros, noras, pelas plantas, pela religião, por mim... e até mesmo pela admiração ao céu e com isso a possibilidade em admirar a cotidiana passagem do avião, que reafirma e a relembra que ele passa ali, no espaço do céu que a pertence porque é ela que pode admirá-lo diariamente do quintal da sua casa. E por que não por uma cura de uma doença que após longos tratamentos está sendo sanada?

Enfim, essas e outras demonstrações do que entendem por tal tema me colocaram a refletir o quanto temos reduzido a importância e magnitude de tantas questões, por vezes as colocando em polos duais do que deve ser ou não, mas que nem sempre (quase nunca) conseguem compreender a esfera das emoções, como veremos aqui, com mais detalhes nos próximos capítulos.

É importante enfatizar como as perspectivas individuais se modificam de acordo com os momentos da vida, trajetórias possíveis, personalidades etc. O olhar sobre as relações, sobre o amor, sobre seus corpos, estéticas, idades, saúde, raça aparecem nos discursos de modo frequente, na busca em compartilhar o que sentem, o que acreditam, o que as machucam ou o que as alimentam positivamente. Mas devo frisar como a experiência racial se modifica nas diferentes gerações e acredito que isso seja uma questão de suma importância para o que essa pesquisa se propõe.

A partir de todo esse aparato teórico e análises do campo, se constrói a percepção de que a afetividade funciona como uma disputa permanente do que perdemos e ganhamos. Algo que será melhor aprofundado no próximo capítulo, mas que necessita da adição de outros marcadores, já que nem sempre virá imbuído do viés positivo, nem tampouco somente negativo. Os afetos perpassam muitas coisas e com este grupo de mulheres noto o constante discurso relacional de negociação.

17 Meyer Fortes (1984), insiste sobre como muitos antropólogos erroneamente projetam nos grupos categorias relacionadas a idade cronológica. O autor propõe uma periodização da vida, ao se estabelecer diferenças entre estágio de maturidade, ordem de nascimento, idade geracional e idade cronológica.

Neste capítulo apresentei autoras negras que trataram da afetividade negra, no contexto do Brasil e Estados Unidos, mas ambas pautando as mulheres negras em relação a este tema que nos é tão caro, apesar de pouco abordado em pesquisas acadêmicas e visto como tabu em espaços do movimento social negro. Além disso, vimos que as pesquisas acadêmicas que tocam no tema o abordam geralmente relacionando à conjugalidade e frequentemente sob a perspectiva de homens brancos, enquanto pouco se fala sob a ótica das mulheres negras. Ademais, conferimos como os papéis relegados a seus corpos desde a constituição da nação podem ser influentes na perpetuação de máximas que colocam essas somente sob o viés da erotização. No capítulo seguinte, pretendo apresentar um pouco mais de cada uma das seis mulheres e ainda, discorrer acerca dos caminhos feitos para chegada ao tema, tratando da problemática da afetividade e temas que aparecem em rizoma na etnografia, como a escolha por parceiros afetivos-sexuais e sua relação com a cor/raça; as múltiplas possibilidades para a afetividade e; como a afetividade se demonstra nas casas e nos lares das mulheres entrevistadas.

2. Trajetórias socioafetivas de mulheres negras em um bairro periférico em