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Relação comparativa entre a comunicação literária de Ulisses (J. Joyce) e Teresa Batista (Jorge Amado)

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RELAÇÃO COMPARATIVA ENTRE A COMUNICAÇÃO

LlTERARIA DE

ULlSSES

(J. JOYCE) E

TERESA

BATISTA

(JORGE AMADO).

Joseph M. Luyten (*)

A writer traces hls vocation back to the reading of a certain poem or a novel; a musician, to a concert he attended; a painter, to a painting he once saw. Never do we hear of the case of a man who, out of the blue so to speak, feels a compulsion do "ex-press" some scene or incident. "I, too, will be a painter". That cry might be the impassioned prelu-de of ali vocations. What makes the artist is the circustance that in his youth he wes more deeply moved by the sight of works of art than by that of the things which they portray ...

(André Malraux)

1 . INTRODUÇÃO

Uma das obras que continuam a assombrar e a deleitar leitores e críticos do século XX é, sem dúvida, U/ysses, do escritor irlandês James Joyce. Através de um recurso comple-to de fazer uma paródia de comple-toda a Odisséia de Homero, em 24 horas de vida cotidiana em Dublin, Joyce consegue trans-mitir em sua plenitude todas as facetas intrincadas de dois personagens: Stephen Dedalus (que representa o próprio au-tor) e Leopold Bloom, um judeu irlandês, publicitário no

sen-(*) Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Doutor em Comunicação pela ECA-USP-SP. Autor de ensaios sobre literatura.

(2)

tido tosco da palavra, no papel de Ulisses. A data escolhida, dia 16 de junho de 1904, é um desses dias em que realmente nada de importante aconteceu em Dublin mas que, justamen-te pela sua banalidade, encerra toda a potência de um povo sofrido, politicamente dominado e economicamente em má situação coletiva.

James Joyce foi buscar sua inspiração justamente no mais antigo relato de heroísmo de que se tem notícia no oci-dente. Justamente a origem daquilo que nos é mais caro: a tradição greco-romana. Sua obra-prima, U/ysses, é uma recria-ção completa e complexa da Odisséia. Não existe um episó-dio que não esteja revisto em Joyce, embora, freqüentemen-te, de maneira irônica. A Penélope de Ulisses, por exemplo, se transformou em Marion Bloom, uma fiel, outra flagrante-mente adúltera. '

Pode-se dizer que a grande personagem de James Joyce sempre foi a linguagem. "Words for words' sake", como ele próprio dizia. Ulysses contém exemplos de praticamente to-, dos os dialetos conhecidos da língua inglesa. Por outro lado, segundo Stuart Gilbert (1), o vocabulário de Homero apre-senta, também, uma série muito grande de inclusões dialetais jônicas, eólias, cipriotas e até áticas.Estudiososde Homero admitem que ele recitava o mesmo poema em várias línguas ou dialetos e que a versão final' tenha sido uma compilação dessas várias modalidades. (2)

As obras de Homero, ao que tudo indica, foram escritas em Mileto, Ásia Menor. Esta cidade, segundo Heródoto, era justamente um grande entreposto comercial, controlado ainda pelos feníclos. Diz M. Bérard (3) um dos mais conhecidos estudiosos de Homero, que a Odisséia não é uma mera cole-ção de contos mas, sim, "uma autoridade geográfica, pintan-do em forma poética, mas sem falsificação alguma, um mun-do mediterrâneo, que tinha seus próprios costumes maríti-mos, sua geodésia e sua própria teoria de navegação."

Ulisses seria, assim, um herói grego incorporado num via-jante fenício. Mr. Sloom, um herói cotidiano de Dublin, incor-porado em um judeu.

Nada em Ulysses é supérfluo. O próprio nome Ulysses e a obra de Homero têm um profundo significado na história ir--landesa. O primeiro documento de cunho histórico da Irlanda

é

o Livro de Bal/ymote de 1391. É uma coletânea de escritos anteriores que inclui genealogias das princlpals faniíliasir-landesas, contos dos reis irlandeses, a tradução de uma "Arqo-náutica" e a História da Guerra de Tróia. Segundo o

historia-42

R. Com. Social~Fortaleza, ,16,(1-2): jan./de:z;.198q

(3)

dor P. W. Joyce, (4) na lista das pessoas descritas como ten-do lutaten-do em Tróia, aparece o nome de Trapcharla, autentica-mente irlandês, derivado de "Torf-Karl" (cortador de turfa) ou "thorp-Kar!" (aldeão). Além disso, as antigas crônicas da Ir-landa sempre se referiram a uma possível origem grega dos irlandeses.

Em ambas as obras, Odisséia e Ulysses, há uma grande preocupação com a veracidade dos fatos, circunstâncias e lu-geres físicos citados. As duas obras são orgânicas em todo o sentido. Ulysses chega

à

perfeição de ter em cada capítulo um título, cena, hora, órgão, arte, cor, símbolo e técnica. Desta maneira, James Joyce nos oferece toda a Odisséia recriada em suas diversas partes, uma descrição de todos os luga-res de Dublin onde ocorrem os episódios, uma cronologia de hora em hora, um corpo humano completo, todas as artes (e ciências) principais de nossa época que se basearam nos equi-valentes gregos, praticamente o arco-íris inteiro, os srrnboros modernos equivalentes aos originais gregos e, finalmente, to-das as técnicas de redação existentes no romance moderno.

Assim, por exemplo, o 6.° capítulo HADES: cena - o ce-mitério, hora - 11 da manhã, órgão - o coração, arte - re-ligião, cor - preto e branco (não se esqueça o leitor de que no oriente a cor de luto é branco), símbolo - agente funerá-rio, técnica - incubismo.

Podemos ver, assim, que Ulysses, além de ser uma re-criação perfeita da Odisséia, é uma representação fiel, política. moral e social da Irlanda do início do século e do homem con-temporâneo em geral, desde o intelectual mais sofisticado ao simples homem do povo.

2. JORGE AMADO E CUíCA DE SANTO AMARa

Não conhecer Jorge Amado é, hoje em dia, um esnobismo a que nem os mais refinados intelectuais podem se entregar. Cito os intelectuais porque o povo brasileiro por inteiro o conhece, seja através de suas obras, seja através de filmes e novelas nas mesmas baseadas. Por outro lado, Jorge Amado

é

um daqueles brasileiros que mais bem conhecem a realída-de nacional de seu país. Tanto no aspecto político, como cul-tural, sociológico e religioso, são poucos os escritores' brasi-leiros que têm uma visão tão abrangente como Jorge Amado. Embora por muitos ele seja classificado de regionalista, é jus-tamente por este prisma que ele consegue representar igual-mente outras regiões do país. Muitos outros ainda o acusam R. Com. Social, Fortaleza, 16 (1-2): jan./dez. i986

43

(4)

de traidor ou, pelo menos, esquecido de suas idéias esquerdi-zantes de outrora. Estes simplesmente não leram suas últi

-mas obras, justamente estas mais ousadas, mais sexi e

con-sideradas menos compromissadas. Jorge Amado não perdeu

nunca seu ímpeto iconoclasta nem jamais renegou suas idéias de ordem social, política ou religiosa. Ele apenas as vem

afir-mando de modo mais sofisticado, com um melhor

envolvimen-to artístico.

Nas suas várias obras há sempre um tema central que

é apresentado como o "entourage" amadino, reconhecido como regional baiano. A linguagem vai-se modernizando, de livro em livro, de acordo com os ditames da moda sem, no entanto, ja-mais deixar de ser caracteristicamente sua.

Em diversos trabalhos, Jorge Amado fala de poetas

popu-lares - sempre como um elemento que faz parte da vivência

do povo. No entanto, ele concentra seus esforços no poeta

José Gomes, o conhecido Cuíca de Santo Amara (Ele, o Tal).

(1909 - 1964). Segundo informações, Cuíca morreu de

gan-grena na perna - resultado de maus tratos sofridos na

dele-gacia. Outras pessoas contestam esta versão e, de fato, ele

possuía um salvo-conduto, cujo conteúdo freqüentemente

es-tampava no verso de seus folhetos. (5)

Cuíca de Santo Amaro foi, realmente, uma das pessoas

mais incômodas da cidade de Salvador enquanto viveu.

Esta-va sempre pronto a atacar quem quer que fosse. Era e

consi-derava-se um verdadeiro repórter. Vejamos alguns títulos de

folhetos seus:

- O prefeito que foi pegado com a bôca na botija

- O marido que passou o cadeado na boca da mulher

- O casamento de Orlando Dias. com Cauby Peixoto

- Carlos Lacerda e as suas diabruras

- A capacidade do General Lott

- O homem que pariu em São Paulo

- Padre Tarado (francez)

- A mulher que morreu no "tira-gosto"

- A greve dos ônibus

- Garôtas que andam sem camisa e sem queca

- Sururú na prefeitura

- A bagunça no pleito eleitoral

- O hespanhol que arrancou a orelha do outro

- O salário mínimo e o aumento ... da fome

- O discurso de Luís Carfos Prestes - O beija-beija atraz da igreja

(5)

- o

ex-prefeito que mordeu o sacerdote - O namoro no cinema

- O menino que nasceu pedrez

- A discussão do feijão, com a carne verde - A volta triunfal do prefeito de Nazaré - O feitiço virou contra o feiticeiro - O tarado de Cruz das Almas - O monstro de Nazaré

- O Bahia no Velho Mundo

- A bronca na Casa do Jogo ao Gravatá n," 8 - Olhe Cosme e Damião.

Como se pode ver, Cuíca tratava de tudo o que pudesse interessar o povo: escândalos, jogo, política, reivindicações. Sua virulência e capacidade de divulgação chegavam a tal ponto que ele recebia delações e cartas acusando determinadas pes-soas. Freqüentemente, ele anunciava obras futuras, como ver-dadeiro jornalista:

Leia breve:

A mulher casada do Taboão, que vai ao Tororó, na casa n." 6, de uma Enfermeira, fazer suas vira-ções. Será que o marido não sabe? Dolorosa inter-rogação!

A sair:

Porque a mulher do Gerente de um Banco quiz ma-tar o Hermano Gotschall na sua própria residência nos Dendezeiros? Aguardem.

Aguardem a continuação deste livro, com os no-mes dos jogadores .e elementos que recebiam pro-pinas na Casa de Jôgo do Mariano, no Gravatá n," 8. Reportagem completa e positiva. Aguardem !!!

A sair:

A Diretora que virou Raposa em Pojuca e comeu as galinhas de D. Vanda.

A sair:

O pai que vendeu a filha a um político por Duzentos Mil Cruzeiros em Feira de Santana.

A sair;

(6)

o

noivo que atirou na noiva dentro da

próprla

casa do pae, em Cruz das Almas pois a mesma desman -chara o noivado pois descobrira que o mesmo tinha um grande defeito.

Aguardem - Edição Extra!

A vingança do eleitorado - A maior bomba de to-dos os tempos a qual ficará gravada nas páginas da nossa história.

Obviamente, muitos desses livretos jamais saíram. Pes-soas interessadas iam

à

casa do poeta e compravam toda a edição ou, então, mandavam a polícia. O próprio Cuíca che-gou a ser candidato a vereador na capital baiana. Não foi eleito, provavelmente pelo medo que inspirava. Imagine-se o que ele teria podido dizer sob imunidade parlamentar.

Cuíca de Santo Amaro aparecia sempre vestido de fraque e cartola no chapéu coco e de cravo na lapela. Era encontra-do, invariavelmente, nas cercanias do Elevador Lacerda. Não se sabe quantos folhetos chegou a escrever. Foram muitos. Entre 500 e 1.000. Boa parte, porém, simplesmente desapare-ceu e hoje paga-se na Bahia de 2 a 5.000 cruzeiros por um exemplar. O que caracteriza, porém, o poeta popular Cuíca de Santo Amaro é a sua posição inabalável a favor do povo e de seus anseios. Segue o início do poema "Cosrne e Damlâo":

Gritam aqueles que votaram Veja que situação ! ! ! Na feira sobe a farinha Ouando o povo reclama

Lá vem Cosme e Damião Sobe o peixe no mercado Também sobe o camarão O Bacalhau de barrica Também sobe o de caixão E quando o povo reclama Lá vem Cosme e Damião

Jorge Amado conheceu muito bem Cuíca de Santo Amaro. Como escritor, já passou por diversas situações idênticas. Além de suas posições políticas, que durante muito tempo ü marginalizaram, Jorge Amado teve sua entrada vedada na cidade de Ilhéus, no começo da década de 60, por causa de seu romance Gabriela, Cravo e Canela.

Achava

a população

(7)

que esta obra denigrira a cidade. Particularmente ofendida es-tava a família Maron, identificada como sendo a de Nacib e' muitos sulistas chegaram a apanhar por elogiar os quitutes do Bar Maron, chamando-os de "salgadinhos da Gabriela".

Uma outra obra de Jorge Amado, porém, o identifica muito mais com Cuíca de Santo Amaro, a Literatura de Cordel bra-sileira e toda a sua técnica de elaboração. Chama-se

TEREZA

BATISTA CANSADA

DE GUERRA

.

3.

TERESA BATISTA

CANSADA

DE

,GUERRA E A

LITERATURA DE CORDEL

Escrita em

1972,

foi a

21."

obra de Jorge Amado e uma das menos apreciadas pelo seu público. Acreditamos, porém, que tenham sido as 462 páginas mais bem elaboradas do autor e é por isso que nos lembra U/ysses de James Joyce, embora não tenhamos a certeza de que ele (Jorge Amado) tenha lido esta última. Por outro lado, as coincidências são muitas (como procuraremos mostrar nas conclusões) mas elas importam mais ao leitor, o analista da obra. Jorge Amado apenas se limitou a escrever um excelente trabalho em que ele apresenta uma visão global da sociedade brasileira de seu tempo e uma série de reivindicações implícitas de ordem política e social.

A começar pelo' título, bombástico, que contrasta com os das outras obras, igualmente o nome da personacem prin-cipal é Significativo. Tereza, nome neutro e BATISTA, repre-sentante de um aglomerado de famílias muito conhecidas pelo Nordeste inteiro. O' próprio Padre

Cícero

era Batista. Há pelo menos 50 poetas de cordel e cantadores vivos com este sobrenome, alguns famosos até fora do Brasil como Abraão Batista, Otacílio Batista, Paulo Nunes Batista e seu irmão, o pesquisador Sebastião Nunes Batista, No início do século, Chagas Batista e seu irmão eram, além de famosís-simos poetas, importantes editores de literatura de cordel.

As ilustrações feitas pelo Calazans Neto, adequadamen-te inspirado na gravura popular, que enfeitam boa parte dos folhetos vendidos pelo Brasil todo, também vêm ao encontro de um desejo do romancista. Ele poderia muito bem ter pe-dido as ilustracões a Minelvino' Francisco Silva, o melhor gravador popular da Bahia. Ou então a José Costa Leite ou Dila de Caruaru. No entanto, como no resto da obra (como James Joyce), Jorge Amado prefere recriar a partir de

ele-mentos populares.

(8)

Há uma definição do próprio autor no início da obra:

"Peste, fome e guerra, morte e amor, a vida de Tereza Batis

-ta é uma história de cordel". Só isso basta para mostrar toda a sua preocupação quanto ao trabalho proposto. Em seguida, a divisão dos episódios:

- A estréia de Tereza Batista no Cabaré de Aracaju ou

o

dente de ouro de Tereza Batista ou

Tereza Batista e o castigo do usurário

- A menina que sangrou o capitão com a faca de cortar carne seca

- ABC da peleja entre Tereza Batista e a bexiga negra - A noite em que Tereza Batista dormiu com a morte - A festa do casamento de Tereza Batista

ou

A greve do balaio fechado na Bahia ou

Tereza Batista descarrega a morte no mar Podemos ver que:

a - Os títulos são exatamente aqueles que veríamos de

fato em folhetos de cordel

b - Os ítens representam exatamente os assuntos mais co -muns da literatura de cordel da Bahia. Bastaria ver autores como o próprio Cuíca de Santo Amara, Rodolfo Coelho Cavalcante, Erotildes Miranda dos Santos, Fran-klin Maxado, Valeriano Felix dos Santos e Minelvino Francisco Silva (excetuando-se as produções de cunho

(9)

A soberba me arrebata A uma total perdição, E com esta condição, Em vez de vida, me mata; Sem ver como, me maltrata, Em vez do céu, dá-me inferno, Que há de ser em fogo eterno, Onde, a quem é pertinaz, Atormenta Satanaz, Inimigo sempiterno.

religioso do último). O que predomina na Bahia é o "fo-lheto de época" é o poema tipo jornalístico, normalmen-te crítico ou, pelo menos, portador da opinião do poeta popular. Essa tradição, aliás, é muito antiga, sobretudo em Salvador. Ela vem desde Gregório de Matos (1623 - 1696) que chegou a ser degredado para Angola por causa da sua produção poética corrosiva

à

sociedade de então. Ele próprio sabia muito bem a sua facili-dade para satirizar e, assim, acabar com a honra de outros a ponto de expressá-lo no seguinte poema:

Para onde imos, meus sentidos? Onde me levais, potências? Para que são diligências E tantos passos perdidos? Se todos andais feridos Da espora do meu furor, Vede que é erro maior Ter este conhecimento E prosseguirmos no intento De matar com tal rigor. (6)

c - Há indicações de modalidades, muito em uso, de poemas de cordel como ABGês (em que cada estrofe começa com uma letra do alfabeto) e a peleja, ou desafio, se desen-rola entre dois poetas que se digladiam ao som da viola ou do pandeiro. (7) A alternância interna dos títulos. re-presentados pelos "ou ... ou" também é muito comum e visa atrair o maior número possível de leitores para a obra.

A apresentação interna das partes da epopéia de Tereza. isto é, o seu aparente desarranjo, também são típicos de as-R. Com. Social, Fortaleza, 16 (1-2): janJdez. 1986

49

(10)

50

R. Com. Social, Fortaleza, 16 (1-2): jan./dez. 1986

suntos veiculados pela literatura popular em verso.

Freqüen-temente, sobre um mesmo tema, são escritos vários poemas

de diversos autores e o leitor acaba por ter que reunir os fatos

como se montassem um mosaico. Muitas coisas vêm

repeti-das, outras, com opiniões diversas até conflitantes. Há

deta-lhes que são simplesmente relatados e outros que são

exaus-tivamente explicados. (8)

O aspecto mais importante é a inserção do que é dito pelo

poeta popular e os diversos relatos em si. A fala do poeta

apa-rece em itálico e, geralmente, precede descrição geral dos

fatos.

As partes em itálico, as apresentações do poeta Cuíca

de Santo Amaro (que, finalmente, se revela, na p. 304).

consti-tuem, por si só, um conjunto que já seria a história

propriamen-te dita. As diferentes partes são como folhetos (grandes) de

cordel, contando alguma parte da vida da heroína mas não se

restringem necessariamente a isso. Cada parte é

apresenta-da com uma técnica diferente, sendo que o ABC fica

inteira-mente por conta do poeta popular - tudo sempre em prosa,

com exceção de alguns pequenos versos, a título de

exem-plo.

As apresentações do poeta popular estão nas páginas 3-5,

42-44, 65-66, 98-99, 166-168, 197-240 (o ABC). 43-245, 301-304,

345-347, 368-369, 443-444.

As cinco partes de que o romance se compõe seguem

ordem cronológica diferente.

A

1.

8 A estréia de Tereza Batista no Cabaré de Aracaju ou

GUERRA O dente de ouro de Tereza Batista ou Tereza Batista

e o castigo do usurário (p. 1-62) 17 episódios

Cena: Cabaré - tribunal

Cronologia: 4." parte

Órgão: membros

Arte: oratória

Símbolo: justiça - GUERRA

Técnica: narrativa

Homem: Lula Santos - rábula (há.o rufião Libório e

alusões a Emiliano Guedes e Januário Gereba).

A

2."

A menina que sangrou

o

capitão com

a

faca de cortar FOME carne seca (p. 63-193) 43 episódios

Cena: casa-armazém Cronologia: 1.a parte

(11)

Arte: Sociologia

Símbolo: violência - FOME

Técnica: jornalismo

Homem: Capitão Justo - (Justiniano Duarte da

Rosa) e Daniel Gomes (estudante parasita) (Há

alu-sões a Emiliano Guedes).

A

3.·

ABC da peleja entre Tereza Batista

e

a Bexiga Negra

PESTE (p. 195-240) - 26 episódios

.Cena: Posto de saúde

Cronologia: 3." parte

Órgão: epiderme

Arte: medicina

Símbolo: coragem - PESTE

Técnica: Literatura de cordel (ABC)

Homem: a rigor, nenhum. Há um vazio, inclusive

uma demonstração de falta de coragem dos homens

envolvidos.

A 4.·

A Noite em que Tereza Batista dormiu com a morte

MORTE (p. 241-342) 38 episódios

Cena: Velório

.Cronologia: 2." parte

Órgão: cabeça

Arte: economia

Símbolo: virtude - MORTE

Técnica: diálogo (da vida com a morte)

Homem: Or. Emiliano Guedes

A

s.a

A festa de casamento de Tereza Batista ou A greve

AMOR do balaio fechado na Bahia ou Tereza Batista

des-carrega a morte no mar

(p. 343-462) 77 episódios

Cena: prostíbulo - saveiro

Cronologia: 5." parte

Órgão: coração

Arte: política

Símbolo: repressão - AMOR

Homem: Januário Gereba (em termos menores,

AI-mério das Neves)

Técnica: romance

(12)

Seguimos acima uma divisão feita por Stuart Gilbert em

seu estudo James Joyce's U/ysses. (9) Sob o ponto de vista

de estrutura de folhetos de cordel, podemos dizer, segundo a

divisão feita por Alceu Maynard de Araujo: (10)

1.8 parte - fato local (de época)

2.8 parte - banditismo

3." parte - ABC (de época)

4.a parte - desafio

5.a parte - fato local (de época)

Esta divisão, a rigor, não poderia ser feita pois há

gran-des polêmicas entre os estudiosos da Literatura de Cordel

quanto às possibilidades e divisões da Literatura Popular em

Verso. Portanto; este aspecto não passa de mais uma

(infru-tífera) tentativa. O que importa aqui é notarmos a intenção

deliberada de Jorge Amado de incluir as diversas partes de

Tereza Batista cansada de guerra em conteúdos do gênero cordel.

4. JORGE AMADO, O POETA E A SOCIEDADE

O POETA

Há uma série de alusões a poetas populares reais e

fic-tícios. Nota-se que Jorge Amado considera o poeta popular

como porta-voz indiscutível e inalienável do dia-a-dia do povo.

Na p. 167, cita o cego Simão das Lerenieires (aludido). Na p.

301, há toda uma descrição do labor do poeta popular:

Quando se registrou a ocorrência a notícia correu

de boca em boca, tudo que era cantador foi

agar-rando a viola, há muito não aparecia assunto mais

maneiro para uma glosa de patifaria. Da Bahia ao

Ceará, nesse fim de mundo, se repetiu o mesmo

mote:

O bode velho morreu

em riba da rapariga no meio da putaria.

Muitos folhetos foram escritos, não só os três

de seu conhecimento, senador. Na Paraíba saiu um,

intitulado O RICAÇO 'QUE MORREU COMENDO

UMA DONZELA, pelo título o chefe já vê que o

(13)

R. Com. Social, Fortaleza, 16 (1-2): janJdez. 1986

53

autor ouviu cantar o galo mas nâo

sabe onde. No

dito folheto não houve referência direta ao nome

do doutor, sempre tratado de ricaço, milionário,

fu-lano, beltrano, sicrano, mas como diabo o violeiro de

Campina Grande aprendeu o nome todo de Tereza?

Folheto mais sujo nunca vi - e olhe que eu tenho

escrito alguns porretas -, tudo rimas em ica, alho,

êta, oda, já vê o nobre vereador as palavras nele

usadas .

. .. Se Toninho da livraria não arranjou, ninguém vai

lhe conseguir um exemplar, seja por que dinheiro

for, do CASO DO VELHO QUE MORREU GOZANDO

NA MULATA, composto em Aracaju pelo cego

He-Iiodoro, com pouco nome feio mas com uma

des-crição retada da folgança antes da morte, que se

a gente tiver mulher por perto chama aos peitos e

se desforra dos cruzeiros gastos na compra do

fo-lheto. A descrição da morte, de tão bonita e

como-vente, chega a dar vontade de se morrer da mesma

forma. Nem por ser cego Heliodoro enxerga

me-nos. Parece ter visto o acontecido acontecer.

Possa ser que o Toninho lhe arranje algum dos que

se publicaram aqui na Bahia: O VELHO QUE LEVOU

A BRECA NA HORA DE GOZAR, de um novato, tudo

à

moda dele, versos de pé quebrado, rimas

ta-canhas, uma pinóia, e A MORTE DO PATRÃO EM

RIBA DA CRIADA, de mestre Possidônio de

Alagoi-nhas, violeiro de valor mas infeliz nesse livrinho .

. .. O que se passou comigo foi pior pois dei nome

aos bois e não me reduzi ao caso da morte do

dou-tor, contei os podres todos da família, chifres,

des-falques, cheques sem fundos, contrabando, os

ir-mãos, os filhos e o genro e por aí afora, uma

anto-logia, acredite. Dei com os costados na cadeia e

para me livrar tive que ceder por ninharia a

edi-ção completa. O advogado dos parentes fez questão

de vir à minha casa acompanhado pelo comissário

de polícia, arrebanhou e destruiu uns poucos

exem-plares escondidos em baixo do colchão guardados

para servir a amigos como o distinto. Me

ameaça-ram de mais cadeia e de porrada se algum

apare-cesse

à

venda; veja quanto risco corre um pobre

trovador.

Assim sendo, se o prezado deseja mesmo ler A

(14)

Inspirado em Romance Do Escritor Jorge Amado Dei o título do seu livro E no mesmo baseado Vou descrever com lhaneza A história de Tereza Cujo drama foi narrado.

A

GÂ,

tem de pagar o preço dos versos

é

o

préçõ

do perigo ...

Assim escrevi por assim pensar e entender, eu, Cuíca de Santo Amare, o Tal, de

fraque

e chapéu coco em frente ao Elevador Lacerda, mercando mi-nha inspiração e minhas rimas.

Há uma alusão a outro grande poeta da Bahia na

p.455:

A festa de casamento de Tereza Batista foi tema de conversa e louvação durante longo tempo na cI-dade da Bahia.

Rodolfo Coelho Cavalcanti celebrou-lhe a alegria e a grandeza num folheto de cordel, festa mais fa-lada e referida, inesquecível.

Na realidade, Rodolfo Coelho Cavalcante escreveu um folheto chamado Tereza Batista cansada de guerra mas cuja primeira edição saiu em setembro de 1973 em que ele diz:

A SOCIEDADE

A crítica social de Jorge Amado, sobretudo nesta obra, aparece de forma velada e indireta. No livro em questão, é quase sempre pela boca do poeta (em itálicos). Por exemplo:

Vossa Senhoria não é político? Não é vereador nem Deputado? Não é senador nem candidato? Uma pena: os políticos sempre afrouxam um dinheiri-nho, também pudera, não gastam dinheiro deles e sim do povo brasileiro. (p. 302)

Há em Tereza Batista cansada de guerra uma série muito grande de depreciações a respeito da política, justiça, forças policiais, Igreja e sociedade constituída. O leitor desavisado, porém, perde-se muitas vezes, por entre as saborosas descri-ções de ordem amorosa e sexual e chega

a

pensar que o ve-lho Jorge Amado, político, já morreu.

(15)

1 - Ambas as obras são recriações, em prosa, de obras

poéticas consideradas como legítimas fontes culturais.

. Pode-se dizer, de forma reduzida, que Tereza Satistá

cansada de guerra é, sobretudo, uma obra contra a opressão

desumana a que o povo brasileiro tem estado sujeito há muito

tempo e, principalmente, no ano em que o livro foi escrito

-1972.

OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS COMPARATIVAS ENTRE

ULYSSES E TEREZA BATISTA

Se formos levar em consideração todos os elementos que

compõem os respectivos trabalhos literários, suas fontes (a

partir das quais foi feita a recriação), os autores, suas outras

obras e o meio literário cultural de suas devidas épocas,

tal-vez encontremos mais diferenças do que semelhanças.

Vamos, no entanto, baseados nas preocupações iniciais

de ambos os autores, recriar algo, conscientemente, a partir

de outra(s) obra(s) literária(s) de valor cultural intrínseco e

veicular mensagens que, de outra forma, ficariam incompletas

ou sem o necessário fluxo comunicativo.

Notamos dez identidades entre os esforços de ambos os

autores que vamos relacionar a seguir para a consideração do

leitor:

2 - Ambas são buscas de renovação estilística.

3 - Há uma preocupação permanente de perfeição

detalhis-ta na reestruturação das técnicas poéticas originais.

4 - Ambas procuram chegar ao geral, global, através do

particular, individual.

5 - O herói másculo de Homero vira pacífico em James

Joyce. O sertanejo-cangaceiro da Literatura de Cordel

torna-se prostituta em Jorge Amado.

6 - Os ciclos narrativos naturais são intercalados.

7 - A realidade social/política está, aparentemente, em

se-gundo plano.

8 - O sexo (e seus abusos) é uma constante considerada

natural.

(16)

9

O

"

consclous stream" -

os dlál

õ

qos lnterlores de

Leo-pold Bloom e Sthephen Dedalus são equivalentes às manifestações do poeta Popular Cuíca de Santo Amaro.

1 O ~

O conhecimento das relações sociais respectivas é

tnuito apurado em ambos os autores.

Haverá, certamente, outras considerações e outras iden -tidades a serem estabelecidas mas isso poderia vir como re

-sultado de discussão deste texto com outras pessoas interes-sadas na área.

O

que nos preocupou sobretudo neste trabalho foi pro-curar mostrar que o escritor brasileiro Jorge Amado fez sua

Tereza Batista cansada de guerra após sérias pesquisas e muito conhecimento prático do linguajar e da técnica dos poetas po-pulares brasileiros, em especial, os da Bahia.

5 NOTAS

1 - STUART GILBERT, [ames [oyce's Ulysses. Bristol, U.K., Penguin

Books, 1969. p. 77.

2 - A mesma coisa acontecia com os trovadores medievais europeus que

acompanhavam seus poemas em uma mistura de dialetos e os tradu

-ziam à medida em que se locomoviam. Mesmo no Brasil, o primeiro

poeta de cunho popular conhecido, Gregório de Matos (1623 - 1695)

escreveu parte de sua obra em espanhol - língua de dominação de

sua época.

3 - STUART GILBERT - p. 79.

4 - STUART GILBERT - p. 67.

5 - No verso do folheto OSORIO VILAS BÓAS VERSUS PAULO

SAN-TOS SILVA aparece o seguinte aviso:

PARA O SEU GOV~RNO

Pelo Desembargador Dr. Mario Lins, que serve no Forum Ruy Bar-bosa, foi concedida a ordem de habeas-corpus preventivo, requerido pelo

major Cosme de Farias em favor de José Gomes, popular Cuíca de

Santo Amaro, para que possa fazer livremente suas propagandas

co-merciais.

Para tal finalidade, determinou ainda que lhe fosse fornecido o

competente salvo-conduto a fim de livrá-lo de perseguições e agres-sões por parte de elementos covardes e inescru pulos os pelo que man-do todas as autoridades judiciais e policiais que a cumpram e gua

r-dem tão fielmente o que nele contém e declara.

Dr. Mário Lins - Desembargador

Manoel Freitas Campos - Escrivão

6 - ~ Gregório de Matos - Obras Completas. Tomo I e 11.São Paulo,

Edições Cultura, 1943.

7 - Embora nunca se veja um livreto de cordel que seja, ao mesmo tempo,

ABC e peleja, Jorge Amado deve ter-se referido ao sentido factual da palavra "peleja

=

luta".

(17)

S -

Na recente visita do Papa Íoão Pauto

tt

ao Brasi1 houve mais de

60

poemas escritos, além de outros 30 por ocasião do atentado, um ano após.

9 - Idem nota 1.

10 - ARAUJO, Alceu Maynard de, et alii. Cordel e comunicação. São Paulo, ECA/USP, 1971.

6 - BIBLIOGRAFIA

AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo, Livraria Mar-tins, 1972.

GILBERT, Stuart. [ames [oyce's Ulysses. Bristol - U. K., Penguin Books, 196~.

JOYCE, James. Ulysses. Middlesex, U. K., Penguin Books, 1969.

LEVIN, Henry. The essencial [ames [oyce. Middlesex, U. K., Penguin Books, 1974.

LUYTEN, [oseph M. A literatura de cordel em São Paulo: Saudosismo e Agressividade. São Paulo, Loyola Ed. 1981.

LUYTEN, [oseph M. Bibliografia especializada sobre literatura popular em

verso. São Paulo, ECA/USP, 1981.

LUYTEN, [oseph M. La literatura de cordel: o clamor de um pueblo en bus-ca de sus derechos. Cultura Popular. Lima, Peru, Celadec, 1981. n.O 3/4. MATOS, Gregório de. Obras Completas vol. I e lI. São Paulo, Edições

Cul-tura, 1943.

FOLHETOS CONSULTADOS:

DE CUfCA DE SANTO AMARO: - A bagunça no pleito eleitoral - O bahia no velho mundo

- A bronca na Casa de Jogo ao Gravatá n.O 8 - O beija-beija atraz da igreja

- A capacidade do General Lott - Carlos Lacerda e as suas diabruras

- O casamento de Orlando Dias com Cauby Peixoto

- O discurso de Luís Carlos Prestes - A discussão do feijão com a carne verde - O ex-prefeito que mordeu o sacerdote - O feitiço virou contra o feiticeiro

- Garotas que andam sem camisa e sem cuéca - A greve dos ônibus

- O hespanhol que arrancou a orelha do outro - O homem que pariu em São Paulo

(18)

~ Ó marido que passoti

o

cadeado na boca da mulher

- O menino que nasceu pedrez

- O monstro de Nazaré

- A mulher que morreu no "Tira-Gosto" .

- O namoro no cinema

- Olhe Cosme e Damião

- Osório Vilas Bôas versus Paulo Santos Silva

- Padre tarado (Francez)

- O prefeito que foi pegado com a bôca na botija

- O salário mínimo e o aumento... da fome

- Sururu na prefeitura

_. O tarado de Cruz das Almas

- A volta triunfal do prefeito de Nazaré

DE RODOLFO COELHO CAVALCANTE

- ABC de Jorge Amado

- ABC.da meretriz

- Crueldade dos donos de terras para com os pobres lavradores

- Cuíca de Santo Amaro, o poeta popular que conheci

7,'História do Cel. Gavião e o escravo sofredor

- A meretriz que virou santa

- Tereza Batista cansada de guerra

- O viver da meretriz

Referências

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