UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
TATIANE COLEVATI DOS SANTOS
O PROCESSO CRIATIVO EM QUADRINHOS HUMORÍSTICOS: UM
ESTUDO DE CASO DO DESENVOLVIMENTO DA SÉRIE "HELLPETS"
CAMPINAS 2016
O PROCESSO CRIATIVO EM QUADRINHOS HUMORÍSTICOS: UM
ESTUDO DE CASO DO DESENVOLVIMENTO DA SÉRIE "HELLPETS"
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes Visuais.
ORIENTADOR: HERMES RENATO HILDEBRAND
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO(a)
ALUNO(a) TATIANE COLEVATI DOS SANTOS E ORIENTADO PELO PROF. DR. HERMES RENATO HILDEBRAND.
CAMPINAS 2016
Ao meu irmão, Leandro Colevati, ao meu esposo, Vinícius de Souza, aos meus pais,
por todo amor, sempre.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Hermes Renato Hildebrand, que foi e ainda é o maior apoiador da série Hellpets. Uma pessoa que admiro muito como profissional e
amigo, muito obrigada.
Ao Prof. Tarcisio Torres Silva, por sua contribuição ao longo dos exames de conclusão, que foram essenciais para a finalização da dissertação.
À Profa DraLygia Eluf, por todo ensinamento e por valiosamente aconselhar-me a
tornar este trabalho algo divertido e prazeroso de ser lido.
À Profa Dra Rosangela da Silva Leote por todo carinho, pelos ensinamentos e
contribuição no exame final.
Ao Instituto de Artes da Unicamp que me acolheu nesses anos de meu
desenvolvimento no curso de Mestrado em Artes Visuais.
A todos os leitores que seguiram e apoiaram a série Hellpets em seu processo de
desenvolvimento e amadurecimento.
Aos grandes amigos André Camani e Nilson Mendes, por todo auxilio e companheirismo ao longo desta década em que estamos juntos.
Com esta pesquisa pretende-se analisar o processo criativo dos personagens e a concepção da série de tirinhas de quadrinhos humorísticos (HQ) “Hellpets” de autoria da própria pesquisadora (artista plástica e ilustradora Tatiane Colevatti dos Santos). Esta pesquisa foi realizada por meio da análise dos “documentos de processo” utilizados para a concepção destes quadrinhos humorísticos que foram divulgados nas redes sociais. Também pretende-se realizar reflexões sobre o processo criador destas HQ com base na Teoria da Crítica Genética que deve culminar com um levantamento da relevância dos estudos sobre o processo de criação de uma obra artística para sua completa compreensão.
A observação das etapas de desenvolvimento, seus aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos (figurativos, visuais, subjetivos, pessoais, sentimentais, psicológicos, etc.) podem revelar não só o íntimo da obra, mas também o próprio íntimo e a concepção criativa do artista. Nos HQ produzidos encontramos outro objeto de reflexão e problematização que é a formulação da narrativa humorística (a piada), os motivos que despertam a atenção para sua elaboração, a concretização do humor ou sua frustração.
O desenvolvimento teórico desta pesquisa centrou-se nos textos escritos por Fayga Ostrower e Cecília Almeida Salles, objetivando compreender o ato criador com uma característica no trabalho artístico. As considerações de Donis A. Dondis foram as principais referências sobre a criação artística e a composição imagética.
Assim, este estudo que analisa a elaboração dos personagens da série e seus roteiros pretende demonstrar a evolução da criação desta obra artística e humorística, além de observar seu resultado final, possibilitando realizar uma reflexão sobre ela, explicitando um outro olhar para as pessoas que se interessam por esta forma de comunicação.
Palavras-chave: processos criativos;; histórias em quadrinhos;; crítica genética
The creative process of the characters and the series of comic strips (HQ) "Hellpets" authored by the researcher (artist and illustrator Tatiane Colevati dos Santos) intended in this research. The author was conducted to analyzing the "process document" used for the design of these humorous comics that were published on social networks and carry out reflections on the creative process of these HQ based on Genetics Critical Theory that culminate in a survey of relevant studies on the creation of an artistic work process for their complete understanding.
The observation of the development stages, syntactic, semantic and pragmatic (figurative, visual, subjective, personal, emotional and psychological, etc.) can reveal not only the essence of the work, but also the essence and creative artist's conception. In HQ is possible to found another object of reflection and questioning the formulation of the humorous tale (a joke), the reasons that attract the attention for its preparation, the realization of mood or your frustration.
This research’s theorical development centered on texts written by Fayga Ostrower and Cecília Almeida Salles, targeting to comprehend the creative act as an essencial characteristic in the artistic work. The considerations given by Donis A. Dondis served as main references about the artistic creation and imagery composition.
Thus, this study analyzes the development of the characters of the series and intend to demonstrate the evolution of the creation of this artistic and humorous work, and watch your bottom line, allowing perform a reflection on it, explaining another vision at the people who interested in this form of communication.
Keywords: creative process, comics, genetic criticism
Figura 1: Representação gráfica sobre a evolução do pensamento geral para o
pensamento específico no processo de criação. ... 17
Figura 2: Representação gráfica sobre a relação entre forma e conteúdo no processo de criação de uma obra. ... 18
Figura 3: Hellcat ... 23
Figura 4: A personagem Morte na Turma da Mônica sobre a ... 24
Figura 5: Esboço do gato morto para a primeira tirinha de Hellpets. ... 27
Figura 6: Gato Zumbi, primeira história dos Hellpets. ... 28
Figura 7: Narrativa sobre o Carnaval. ... 29
Figura 8: Personagem Demoníaco. ... 32
Figura 9: Desenho com a temático do anjo caído. ... 33
Figura 10: Tirinha retirada da revista ‘Fradim’. ... 36
Figura 11: Secção da página da revista ‘Hellblazer Volume 1’, 1985. ... 38
Figura 12: Tirinha do livro ‘Deus Segundo Laerte’, 2002. ... 38
Figura 13: Narrativa sobre o Cupido. ... 39
Figura 14: Narrativa sobre Futebol. ... 39
Figura 15: Imagem retirada do blog ‘Um Sábado Qualquer’, de Carlos Ruas. ... 41
Figura 16: Personagens das animações ‘O Laboratório de Dexter’ e ‘As meninas superpoderosas’, dos estúdios Cartoon Network, 1996 e 1998 ... 43
Figura 17: Estudo de composição de cenário com fotografia. ... 44
Figura 18: Frame extraído da vinheta ‘Chega de Bullying’, 2012. ... 44
Figura 19: Versão final do personagem Caronte. ... 47
Figura 20: Esboço do personagem Caronte. ... 48
Figura 21: 'A barca de Dante’. Eugène Delacroix, 1822. ... 49
Figura 22: Narrativa sobre Nelson Mandela. ... 50
Figura 23: Primeiro esboço da personagem Lilith. ... 52
Figura 24: Último esboço da personagem Lilith. ... 53
Figura 25: Versão final da personagem Lilith. ... 54
Figura 26: Caricatura autobiográfica da autora e seu esposo. ... 55
Figura 27: Narrativa com o personagem Cérbero. ... 59
Figura 30: Capa da revista ‘Vertigo Secret Files’ com o personagem John Constantine, 2000. . 63
Figura 31: Primeiro esboço do personagem Lúcifer. ... 64
Figura 32: Último esboço do personagem Lúcifer. ... 65
Figure 33: Versão final do personagem Lúcifer. ... 66
Figura 34: Narrativa sobre final de ano. ... 67
Figura 35: Narrativa sobre política. ... 68
Figura 36: Narrativa sobre música. ... 69
Figura 37: Baphomet de Eliphas Lévi, 1854. ... 71
Figura 38: Primeiro esboço do personagem Baphomet. ... 74
Figura 39: Versão final do personagem Baphomet, 2012. ... 75
Figura 40: Narrativa com caricatura do político Paulo Maluf. ... 76
Figura 41: Narrativa com caricatura do político Marco Feliciano. ... 77
Figura 42: Primeira narrativa com a personagem Velha Louca dos Gatos. ... 80
Figura 43: Segunda narrativa com a personagem Velha Louca dos Gatos. ... 80
Figura 44: Terceira narrativa com a personagem Velha Louca dos Gatos. ... 81
Figura 45: Versão final da personagem Velha Louca dos Gatos. ... 81
Figura 46: Primeiro esboço da personagem velha Louca dos Gatos. ... 82
Figura 47: Narrativa exclusiva da personagem Velha Louca dos Gatos, sem relação com os Hellpets. ... 83
Figura 48: Narrativa com caricatura do músico Paul McCartney. ... 84
Figura 49: Caricatura do músico Jimi Hendrix. ... 85
Figura 50: Caricatura do personagem de histórias em quadrinhos Hellboy. ... 85
Figura 51: Caricatura do músico Kurt Cobain. ... 86
Figura 52: Caricatura do presidente norte-americano Barack Obama. ... 86
Figura 53: Caricatura do apresentador Silvio Santos. ... 87
Figura 54: Caricatura dos políticos Geraldo Alckmin, Fernando Haddad e Dilma Roussef. ... 87
Figura 55 Gráfico que apresenta o número de curtidas da página de Hellpets no período de 31/12/2013 a 31/12/2014. ... 89
Figura 58: Gráfico que apresenta a quantidade de curtidas, comentários e compartilhamentos das publicações da página de Hellpets no período de
31/12/2013 a 31/12/2014. ... 92
Figura 59: Gráfico que apresenta o perfil dos seguidores da página de Hellpets no período de 31/12/2013 a 31/12/2014. ... 93
Figura 60: Narrativa sobre touradas em sua primeira versão. ... 95
Figura 61: Narrativa sobre touradas em sua última versão. ... 96
Figura 62: Narrativa sobre casamento. ... 97
Figura 63: Narrativa sobre comportamento feminino. ... 98
Figure 64: Narrativa sobre reportagem. ... 103
Figure 65: Narrativa sobre vídeo game. ... 103
Figure 66: Narrativa com citação da música ‘Uma barata chama Kafka’(1989), da banda ‘Inimigos do rei’. ... 104
Figure 67: Arte de capa para a página do projeto na rede social Facebook. ... 104
Figure 68: Versão final do personagem Cérbero. ... 105
Figure 69: Narrativa sobre tabuleiro ouija. ... 105
Figure 70: Caricatura da autora. ... 106
Figure 71: Fan art de Marcelo Furuguem representando a personagem Lilith em uma versão realista, recebida no dia 28 de fevereiro de 2013. ... 107
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ... 14
1.1 PROCESSO DE CRIAÇÃO ... 15
2. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA SÉRIE HELLPETS ... 19
2.1 HISTÓRICO ... 20
2.2 PRINCIPAIS REFERÊNCIAS PARA O CONCEITO E CRIAÇÃO ... 35
2.3 PRINCIPAIS REFERÊNCIAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA ARTE ... 42
3. DESCRIÇÃO DOS PERSONAGENS ... 45
3.1 CARONTE ... 45
3.2 LILITH ... 51
3.3 LÚCIFER ... 60
3.4 BAPHOMET ... 70
3.5 VELHA LOUCA DOS GATOS E OUTROS PERSONAGENS ... 78
4. O PERCURSO DE PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO ... 88
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 99 6. REFERÊNCIAS ... 101 7. APÊNDICES ... 103 8. ANEXO ... 107
INTRODUÇÃO
A série de tirinhas humorísticas Hellpets nasceu de um hobby pessoal, sem nenhuma pretensão inicial, a partir de rascunhos de desenhos feitos em cantos de folhas de cadernos e com o emprego do sarcasmo e ironia que eu observava em conversas cotidianas com amigos e familiares. A união desses elementos direcionou-me para a criação de personagens fantasiosos e situações cômicas que vivenciei, servindo como um suporte que me permitiu expressar de forma artística e
chistosa alguns pontos de vista críticos sobre sérios assuntos da sociedade.
A dissertação, “O processo criativo em quadrinhos humorísticos: um estudo
de caso do desenvolvimento da série ‘Hellpets’”, estruturou-se como uma análise de minha produção e como se deu o processo de criação desta série de histórias em quadrinhos, e também como uma ferramenta de pesquisa e investigação para contribuir com o seu amadurecimento futuro, trazendo conteúdo, reflexão e
apoderamento sobre os aspectos observados.
No primeiro capítulo realizei uma fundamentação teórica que foi estabelecida
para fomentar o estudo do desenvolvimento da série: a teoria da Crítica Genética com base na Teoria Semiótica de Charles Sanders Peirce e a análise dos documentos do processo de criação. Sobretudo, embasada pelos textos de Fayga Ostrower (2001) e Cecília Almeida Salles (2008), procurei apresentar o percurso realizado sobre os arquivos: documentos de processo encontrados, buscando criar
um distanciamento da obra para melhor compreendê-la.
O segundo capítulo é uma continuidade da elaboração teórica, agora aplicado
à obra. Apresento o momento de criação da série, a motivação da autora, as influências que contribuíram para sua idealização, a argumentação que destaca as características da arte e o início da pesquisa de histórias e mitologias que influenciaram o desenvolvimento das personalidades dos personagens e a evolução de cada um.
O terceiro capítulo apresenta, explica e ilustra cada personagem, seus aspectos físicos e psicológicos, seu humor e temática principal, além de elucidar a
No quarto capítulo busquei demonstrar o caminho percorrido pela série, seu processo de divulgação online, a aceitação do público e os planos para o futuro do projeto.
Por fim, encerramos esta dissertação com um capítulo de conclusão concebido após dois anos de produção e publicação da série em redes sociais na internet, somado à absorção do conteúdo teórico fundamentado a partir das pesquisas aqui apresentadas. Hellpets permanecerá em produção e em constante
busca por melhorias, almejando ampliação e um maior amadurecimento do projeto.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Os textos de Fayga Ostrower, Cecília Almeida Salles e Donis A. Dondis foram
as principais referências para o estudo de caso do processo de criação da série de quadrinhos humorísticos ‘Hellpets’. A reunião de suas teorias buscou contribuir para a derrubada do mito da obra final como expressão única do artista. Através do estudo e análise dos documentos deixados pelo artista durante sua criação, como esboços e anotações, podemos compreender a obra antes de seu nascimento, e assim ampliar nosso entendimento sobre ela. A teoria guia a observação do pesquisador que possui os documentos do processo em mãos e tentar refazer os passos do ato criador.
1.1 PROCESSO DE CRIAÇÃO
Processo de criação é o nome dado ao desenvolvimento de algo novo, uma
formação para algo que não existia anteriormente ou uma nova formatação para algo que já existia, mas passa a ter uma significação diferenciada. O processo resulta em um objeto finalizado que satisfaz o artista, e deixa uma série de rastros de seu desenvolvimento, de forma consciente ou inconsciente, como esboços, rascunhos, planos e discussões, cuja análise nos permite compreender melhor como se dá o processo criativo. Estes registros apresentam uma tendência do
artista pela obra, sua ideia original e o caminho para o amadurecimento do projeto.
No entanto, a tarefa de refazer os passos do artista é um trabalho que necessita de informações pessoais do artista, até mesmo íntimas, que muitas vezes não são possíveis de se adquirir, ou foram descartadas. Além disso, é preciso que o pesquisador faça a análise e que tente manter-se com certo distanciamento da obra, para que seu estudo seja o mais neutro possível. No entanto, sabemos que isso é praticamente impossível considerando que o processo de interpretação é definitivamente subjetivo, e assim, obviamente não conseguiremos esta
neutralidade na elaboração da análise.
A Crítica Genética é uma teoria que propõe a fundamentação da análise da obra a partir dos “documentos de processo” (SALLES, 2007) do artista, que armazenam os registros e experimentações sobre o processo, a fim de demonstrar
o caminho por ele percorrido e assim, buscar uma compreensão mais ampla de sua produção. Os críticos genéticos acreditam que a documentação (rascunhos, esboços, textos, desenhos, etc.) e aquilo que é apresentado ao público como obra finalizada são partes de uma obra única, e ao entrarmos em contato com o
processo, conseguimos observar a obra em sua totalidade.
Os estudos sobre Critica Genética iniciaram-se em 1968, na França, quando o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) criou uma pequena equipe de pesquisadores, de origem alemã, encarregados de organizar os manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine que tinham acabado de chegar à Biblioteca Nacional da França (BNF). No Brasil, os primeiros estudos com base nesta teoria aparecem no ano de 1985, em São Paulo no I Colóquio de Crítica Textual: o Manuscrito Moderno e as Edições na Universidade de São Paulo. Neste Colóquio foi criada a Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), que elaborou a Revista Manuscrítica em 1990, sobre os estudos em Crítica Genética e vem organizando encontros internacionais sobre o assunto. À princípio, tratou-se de uma análise proposta exclusivamente para obras literárias, porém, seu potencial para
servir de análise para produções em diversas áreas de criação logo foi identificado.
A Crítica Genética surge da necessidade de se compreender o ato de criação
artística, e ao mesmo tempo, ampliar seu contexto e conteúdo. A escrita literária auxilia a valorização da obra, e derruba o mito criado pelo fascínio, de que a obra nasce pronta e que o “insight” é algo que pode ser considerado como um “dom divino”. O pesquisador pode retomar e analisar o percurso de criação de qualquer tipo de produção que deixa os “documentos de processo”, através de elementos arquivados em rascunhos, esboços, desenhos e material que possibilite visualizar a criação, reativando a evolução do pensamento, o aperfeiçoamento das ideias e,
enfim, a ação do artista no processo criativo.
Ao iniciarmos os nossos estudos, notamos que nesse processo, ação e
pensamento não ocupam ordem cronológica;; eles dependem um do outro. A ação só é possível com o pensamento e, durante a ação, o pensamento evolui. Logo, a crítica deve caminhar pela análise dos elementos que permeiam tanto o pensamento como a ação, e não apenas empenhar-se em desvendá-los. Elementos estes que são determinantes no processo, como limitações e possibilidades de materiais e técnicas. Assim, ficamos diante do pensamento específico e direcionado
da criação, que só pode começar a existir a partir do momento em que são compreendidas e respeitadas as possíveis e impossíveis ações da materialidade escolhida. As limitações que esta materialidade impõe não agem em demérito do pensamento original, mas sim como orientador do caminho a ser seguido (Figura 01).
Figura 1: Representação gráfica sobre a evolução do pensamento geral para o pensamento específico no processo de criação.
Fonte: a autora (2016)
É de suma importância analisar a relação do artista com tudo o que é por ele
manipulado e utilizado para a concretização da obra, pois assim é possível compreender a interdependência de um e outro. Além disso, a observação desses elementos pode revelar informações de outros contextos, como por exemplo, o período histórico e político em que a obra foi concebida, que não pode estar
desvinculada do tema e contexto propostos.
O período de elaboração é o início do ato que servirá para dar forma a certo
conteúdo. Sendo assim, existe também uma relação direta e dependente entre forma e conteúdo dentro do processo de criação: a forma surge pela necessidade de o artista expressar-se sobre determinado assunto (conteúdo), que só poderá ser visualizado ou discutido no momento em que passa a existir (forma). Assim, aos estudos dos documentos do processo cabe a tarefa de estabelecer distinção entre forma e conteúdo no desenvolvimento da obra, porém, nem sempre é possível esta associação, pois estão estes dois aspectos convivem conectados (Figura 02).
Figura 2: Representação gráfica sobre a relação entre forma e conteúdo no processo de criação de uma obra.
Fonte: a autora (2016)
Tendo ciência de forma, conteúdo e materialidade, é preciso compreender que o movimento de criação possui ainda outros elementos determinantes. De fato, certos temas atraem mais o artista do que outros e isso pode estar relacionado ao seu repertório cultural pessoal, ao domínio específico de uma técnica, ferramenta ou conhecimento, ou ainda, por empatia. A análise da Crítica Genética sobre isso caminha para uma investigação mais íntima do artista, procurando arquivos que deixem transparecer o modo como o artista observa o mundo, sua visão e opinião sobre determinados assuntos, acontecimentos cotidianos, registros de devaneios, entre outros.
É sobre esses documentos que Cecília Salles (2008) fala e estabelece relações entre a Semiótica e a Crítica Genética e que estas duas teorias e linguagens devem buscar compreender. O próprio storyboard de uma peça videográfica é uma mistura de linguagens que auxilia no processo de criação de uma produção artística deste tipo e, de fato, nenhuma dessas linguagens será utilizada na produção do vídeo, logo, existe um trabalho de tradução que deve ser realizado, tanto para o desenvolvimento da obra, quanto para o estudo do seu processo criativo. Algumas vezes o artista não é capaz de resolver a obra apenas com seu repertório pessoal ou conhecimento técnico, ele necessita realizar pesquisas direcionadas sobre temas que ele desconhece para o desenvolvimento de seu trabalho. Esta pesquisa também gera outros arquivos importantes para o
estudo da gênese de uma obra e para entendimento do caminho percorrido e dos
insights que aconteceram neste processo criativo.
Enquanto a pesquisa trata de fomentar o conteúdo ao longo do processo, a experimentação é a parte prática do trabalho que resulta na forma final da obra. Porém, tanto Fayga Ostrower (2001) quanto Cecília Salles (2008) concordam que as experimentações não apresentam uma evolução da forma. Não é possível afirmar sobre erros e acertos e não cabe ao pesquisador buscar por essa cronologia. As experimentações demonstram conflitos e decisões do artista, e até mesmo um diálogo com a obra;; as rasuras mostram o que o artista deseja de sua criação, o que ele espera, o que não lhe agrada e como poderá alterá-la. Essas
alterações e adaptações fazem parte da construção do conhecimento da obra.
Sobre o relacionamento artista e público, Dondis (1997) aponta a obra final como a verdadeira manifestação do artista, que tem, no entanto, seu significado dependente da resposta do espectador, pois este a interpreta de acordo com seus critérios subjetivos. Sendo assim, a obra só existe como expressão quando contemplada, e sua compreensão foge ao controle de seu criador.
Assim, estudar as etapas do processo criador faz parte do interesse em entender o homem como ser único criativo e formulador, capaz de estabelecer relações e interpretar significados. É um desejo de penetrar no universo do artista, que a obra não revela e ainda se apresenta como perfeita, completa e única. No entanto, a investigação dos registros de seu desenvolvimento acaba com a impressão de que a obra nasce pronta e desvenda o longo trabalho de elaboração, pesquisa, experimentação e finalização que a precede. É uma forma de nos
aproximar intimamente do artista e da arte.
2. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA SÉRIE HELLPETS
Segundo Ostrower (2001), o processo de criação possui uma relação
dependente entre conteúdo e forma pré-estabelecidos, sem hierarquia entre si. Na série de quadrinhos ‘Hellpets’, o conteúdo surgiu inicialmente, com uma necessidade da autora em expressar-se artisticamente sobre determinado assunto e desencadeou a busca por uma forma ideal para este desenvolvimento.
A investigação da pesquisa buscou documentos de todo o repertório da autora, contanto inclusive com elementos de sua infância e adolescência. O histórico deste processo e a descrição dos personagens são a apresentação de todo este conteúdo reunido e analisado.
2.1 HISTÓRICO
Hellpets é uma série de tiras de história em quadrinhos humorísticos que
narra a vida cotidiana de personagens demoníacos em um mundo fantástico. A plataforma de veiculação escolhida para a série foi a internet, por meio de redes sociais, de forma independente. De fato, a rede social se mostrou uma excelente ferramenta de distribuição e compartilhamento de conteúdo, além de fornecer dados e estatísticas de visualizações das publicações e ainda permitir certa filtragem de
público o qual se almeja alcançar, por faixa etária, gênero, localização e outros.
A origem do projeto se deu quando, no ano de 2012, comecei a me engajar em casos de proteção animal. A princípio, ajudava apenas financeiramente ONGs e projetos independentes de resgate e tratamento de animais em situação de risco e abandono. Neste período, passei a receber, via redes sociais, imagens violentas, conteúdos e relatos muito tensos e tristes sobre o assunto, e isso me afetou
profundamente a ponto de me deixar em um estado real de depressão. No entanto,
com o tempo, senti uma forte necessidade de me expressar artisticamente sobre o assunto, desenvolvendo algo visual que gerasse reflexão em outras pessoas, porém, sem causar o sentimento de repulsa e mal-estar que as imagens reais
tinham me causado.
Dondis (1997) fala sobre necessidade de expressão quando inicia um
capítulo sobre função e mensagem das artes visuais em seu livro:
Quais são as razões básicas e subjacentes para a criação (concepção, fabricação, construção, manufatura) de todas as inúmeras formas de materiais visuais? As circunstâncias são muitas, algumas vezes claras e diretas, outras, multilaterais e sobrepostas. O principal fator de motivação é a resposta a uma necessidade, mas a gama de necessidades humanas abrange uma área enorme. Podem ser imediatas e práticas, tendo a ver com questões triviais da vida cotidiana, ou podem estar voltadas para necessidades mais elevadas de auto-expressão de um estado de espírito ou de uma ideia (DONDIS, 1997, p. 183).
Analisando sobre o ponto de vista da Crítica Genética, neste momento eu já estava no processo de elaboração de conteúdo, já possuía o assunto e precisa me preocupar com a forma das produções. Apenas estabelecendo a forma eu poderia evoluir para um pensamento específico e escolher os materiais e técnicas a serem utilizados. No entanto, este momento foi bastante conturbado em minha vida, pois nada se encaixava nos meus desejos de concretização do conteúdo. Buscando um tipo de arte para desenvolver, pensei em técnicas de xilogravura, fotomontagem, escultura e pintura em tela. Porém nenhuma delas parecia ter o potencial desejado para abordar a questão dos maus-tratos animais sem resultar em um produto final também violento, assim como as imagens reais. A segunda opção foi pensar em trabalhar opostos;; a observação do tema poderia me indicar um caminho oposto e ao exagerá-lo, poderia induzir a reflexão. Este caminho me levou a considerar a
charge humorística, pois poderia sugerir uma piada e ainda discutir o tema.
Assim, foi este o formato escolhido para começar a desenvolver meu trabalho crítico. Eu estava diante do que Ostrower (2001) chama de “imaginação específica” que é a evolução do pensamento sobre o conteúdo e que é filtrado pelas reais possibilidades de execução. O trabalho só pode ser pensado no momento em que as ferramentas de trabalho são definidas, pois elas irão orientar e ordenar as novas ideias, considerando as limitações possíveis e as viabilidades de ação sobre um fazer concreto. Assim, criei o primeiro esboço do que viria se tornar o projeto de quadrinhos Hellpets, que tinha como tema central a narrativa sobre um animal de estimação, que sofreu algum tipo de violência e demonstrava sentir muita raiva (Figura 03).
De fato, este esboço de um gato foi o desenho que originou o nome do projeto Hellpets. Ao analisá-lo após concluí-lo, notei que a aparência do gato tinha, não só características de uma vítima de agressão, mas também elementos que encontramos em ilustrações de zumbis e mortos-vivos, com olhos vazados, unhas cumpridas à mostra e mandíbula deslocada, porém, com uma postura de animal vivo. Por isso, ele parecia um gato ressurgido dos mortos ou do inferno, e eu o batizei de Hellcat (gato infernal em tradução livre da língua inglesa). Este desenho ficou guardado por anos, até que eu retomasse e evoluísse a ideia no final do ano de 2011.
Como eu pretendia criar outros personagens de aspectos semelhantes, o nome da série evolui para um contexto mais genérico que englobava outros animais de estimação e, assim, passei a utilizar a palavra pet no lugar de cat e o projeto consolidou-se com a contração das palavras inglesas hell, que significa inferno e
pet, que significa animais de estimação.
Além do título do projeto, a ideia do gato que volta do mundo dos mortos para se vingar da violência sofrida em vida, acabou gerando uma pequena história que posteriormente foi traduzida em desenhos com diálogos, dando origem à primeira história da série Hellpets. Assim, o projeto deixou de ser pensado no formato reflexivo de charge e passou a ser elaborado com tiras de humor, com esquetes e piadas.
Fonte: a autora (2009). Figura 3: Hellcat
Para desenvolver o diálogo do quadrinho foi preciso criar um personagem com quem o Hellcat iria se encontrar no inferno, alguém que já vivesse lá por algum tempo. De fato, eu quis fugir do senso comum de criar o diálogo com a personificação da morte, pois isso já estava bastante explorado em animações e em quadrinhos. Por exemplo, temos as histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, criada por Maurício de Sousa (Figura 04).
Figura 4: A personagem Morte na Turma da Mônica sobre a morte do Papa João Paulo II, criado por Mauricio de Sousa.
Fonte: www.enquadrinhados.blogspot.com.1
Ao buscar por uma referência para este personagem, cheguei à mitologia grega, que possui um extenso volume de personagens relacionados ao além-vida. Sobre os personagens que recebem as almas dos mortos, dois pareciam se encaixar muito bem com o meu tema: Caronte e Cérbero. O processo de criação da série ocorre juntamente ao processo de criação deste primeiro personagem. No livro ‘Contos e Lendas da Mitologia Grega, de Claude Pouzadous e Fréderick Mansot, existe a descrição deste momento de recepção das almas no mundo dos mortos:
No limite da terra, onde o sol se põe e o oceano começa, abria-se o império dos mortos, no qual reinava o poderoso Hades. O mundo subterrâneo era rodeado de todos os lados por pântanos e rios. Portanto, as sombras dos defuntos tinham que passar pelas águas lamacentas do Estinge e do Aqueronte para entrar nos domínios de Hades. O barqueiro Caronte
1 Disponível em http://enquadrinhados.blogspot.com/2013/11/as-varias-versoes-da-morte-ou- thanos.html. Acessado em 07 de janeiro de 2016.
aguardava na margem e só aceitava a bordo da sua barca os mortos que tivessem sido sepultados. Os outros, os que não foram encontrados ou foram abandonados, eram condenados a errar eternamente na entrada do Inferno, enquanto esperavam que um vivo resolvesse enterrá-los. Aqueles que embarcavam tinham que pagar Caronte. Era por isso, para que o morto pagasse sua passagem, que os gregos punham uma moeda entre os dentes dele durante o funeral. Uma vez na barca, os defuntos deixavam definitivamente o mundo dos vivos. Quem fazia a viagem num sentido, jamais podia retornar nem ver de novo a luz. Cérbero, o cão de três cabeças, tratava de impedir os que tentassem fazê-lo. Postado na entrada do reino, recebia com amabilidade os passageiros de Caronte. Mas se alguém procurasse voltar, mostrava-se um guardião feroz (POUZADOUX, 2010, p. 71).
Esta ideia de receber almas em um outro mundo após a vida pareceu fértil
para criar mais histórias sobre os Hellpets. A inserção de Caronte ou Cérbero iria legitimar possíveis atos de justiça ou vingança dos animais recém-chegados contra os humanos, pois deixaria claro tratar-se de um mundo mitológico, onde forças e
seres sobrenaturais poderiam auxiliar.
Conforme vemos nas figuras 05 e 06, na primeira história da série, as características do gato morto mudaram consideravelmente para representar um exemplo bem comum de maus-tratos: jogar um animal num rio, dentro de um saco plástico amarrado. Existe também nesta representação, uma referência ao episódio da clássica série de desenhos animados Tom e Jerry: um gato no céu (1960), em que Tom, ao chegar ao céu dos gatos, encontra três filhotes dentro de um saco molhado.
Assim, Caronte tornou-se o primeiro personagem fixo de Hellpets, ainda que, a princípio, deveria ter uma participação secundária e ser apenas um apoio para a tira. O desenvolvimento do conflito da narrativa, a ação em si e a conclusão ficaria para os Hellpets: os animais mortos. Com o tempo, ele foi ganhando mais personalidade, maiores falas e tornou-se um personagem autônomo, não mais dependendo de outros personagens para a criação dos diálogos. Porém, como o tema ficou centrado apenas na violência contra os animais, rapidamente esgotaram- se os recursos humorísticos, e as tiras passaram a ser apenas críticas, ou em
outras palavras, “sem graça”.
Apesar da história sobre o carnaval (Figura 07) ter sido a mais compartilhada nas redes sociais: Facebook, tanto no primeiro como no segundo ano de existência da página Hellpets, é notório o quanto o tema impede o desenvolvimento do humor. Mesmo sendo uma forma criativa de criticar os malefícios ecológicos de um
costume tão enraizado na nossa sociedade, como o carnaval, não se torna uma
crítica bem-humorada. As narrativas tornaram-se reflexivas, porém, triste.
Neste momento, me deparei com uma bifurcação no caminho a seguir para dar continuidade ao processo de criação: manter o tema original com críticas reflexivas apenas sobre os maus-tratos animais, correndo o risco de não conseguir mais desenvolver a piada;; ou abrir o leque de temas, caminhando para outras áreas
e deixando a causa animal apenas como um dos temas possíveis.
Optei por retomar a criação humorística, pois à essa altura eu já estava compensando minha necessidade pessoal em ajudar a causa animal no mundo real, com ações de resgate de animais em situação de risco. Agora, para a série Hellpets, era necessário criar outros personagens e desenvolver novas temáticas.
Figura 5: Esboço do gato morto para a primeira tirinha de Hellpets.
Fonte: a autora (2012).
Figura 6: Gato Zumbi, primeira história dos Hellpets.
Fonte: a autora (2012).
Figura 7: Narrativa sobre o Carnaval.
Fonte: a autora (2013).
Assim como Caronte foi retirado da mitologia, caberia buscar referências semelhantes para os outros personagens. No entanto, a ideia de fixar a mitologia grega como eixo principal não me agradava, pois ela não é de compreensão imediata ao público leigo, na maioria das vezes necessita contextualização, e isso poderia comprometer o entendimento da série. Procurei buscar culturas mais populares, para que se tornassem compreensíveis tanto visualmente como psicologicamente. A mitologia mais acessível me pareceu ser a do Cristianismo, devido à recorrência midiática e literária do ocidente.
Neste momento, é notório à pesquisa que o processo de criação passou por uma transição do pensamento inicial para o pensamento específico, sendo este orientado pelo estudo de composição dos personagens. Há também uma alteração no conteúdo do projeto, que à princípio buscava ocupar-se apenas de uma temática e agora passaria a explorar outros assuntos. Todas essas mudanças necessitaram novas pesquisas de conteúdo e materialidade, tanto para a criação dos
personagens como para o desenvolvimento de roteiros.
Cecília Salles (2008), quando discorre sobre o ato criador, afirma que existem combinações que atraem mais o artista do que outras, e cabe a ele impor uma ordem seletiva. No mesmo sentido, Fayga Ostrower (2001) explica que dentro do processo formador, alguns elementos inerentes ao homem destacam o potencial de criação, dentre eles, a memória é a parte consciente capaz de interligar passado, presente, futuro e fazer análise de fatos ocorridos para estabelecer preceitos a se desenvolver futuramente, de acordo com erros e acertos. A memória também atua no momento criativo de forma intuitiva e inconsciente, quando surgem aspectos que, ao serem analisando posteriormente, apresentam referências antigas e não explícitas. Sobre isso, posso afirmar que a temática do sobrenatural de Hellpets sempre me atraiu. Literatura, filmes e música que carregam este universo sempre foram apreciados por mim, como por exemplo, os contos de vampiros de Anne Rice, o músico satanista Marilyn Manson, o gênero de terror e suspense no cinema e nas séries de televisão dos anos 1990 e 2000. Ostrower (2001) diz sobre
materialidade:
Lembramos que nos termos ‘matéria’ e ‘materialidade’ nos referimos a todas as áreas de comunicação ao nosso alcance. Assim nunca se excluem das atividades formadoras do homem as áreas psíquicas e espirituais. Também são matérias do fazer humano (OSTROWER, 2001, p. 70).
Em minha da adolescência tive interesse em estudar astrologia, wicca2 e demonologia. Logo, a parte fantasiosa do conteúdo do roteiro de Hellpets emergiu no projeto de forma natural, devido ao repertório cultural pessoal que eu já possuía. Em meus arquivos pessoais anteriores ao projeto Hellpets, existiam registros de estudos que trazia este tema como algo central, ainda que abordado sem a introdução do humor, como podemos observar nas figuras 08 e 09.
2 A Wicca é uma religião moderna que busca manter similaridades com o paganism antigo e a feitiçaria. Possui um pensamento sincrético e intuitivo, criando uma vasta diversidade de crenças e práticas entre os próprios wiccanos. Mas podemos encontrar certas linhas comuns na maioria delas, que são: panteísmo, feminismo, rejeição do conceito de pecado e reciprocidade espiritual. (BEZERRA, 2010)
Figura 8: Personagem Demoníaco.
Fonte: a autora (2003).
Figura 9: Desenho com a temático do anjo caído.
Fonte: a autora (2005).
No projeto de Hellpets, o mundo dos mortos, ou Inferno, já estava inserido e consolidado, então resolvi manter este cenário como pano de fundo para as
histórias. Conceitualmente, Lúcifer foi o primeiro personagem a ser elaborado.
Como não quis inserir Hades3 para não focar na mitologia grega, ele surgiu como
uma resposta cristã ao que seria uma regência deste Inferno. Lúcifer possui sua história bem difundida na cultura ocidental e é um personagem muito interessante para trabalhar questões de dualidade, pois possui uma origem angelical e uma
personalidade rebelde.
A segunda personagem criada, Lilith, entrou no projeto como um contra- ponto de gênero. Sua mitologia é mais difundida no Judaísmo como a primeira mulher de Adão, criada também do barro por Deus, que se rebela contra a soberania masculina e deixa o Paraíso por vontade própria. Esta personagem abriria possibilidades de explorar questões do gênero feminino e do feminismo, conflitos de relacionamentos, além de permitir expressar mais explicitamente partes
da minha própria personalidade.
A fim de criar uma tríade para a regência do Inferno em Hellpets, procurei por um outro personagem que fosse neutro na questão de gênero, para que este quesito não influenciasse mais no desenvolvimento dos roteiros. Já inserida nos estudos de demonologia, busquei por um mito que tivesse alguma referência animal em si mesmo, e assim, cheguei na figura de Baphomet, o demônio com cabeça de
bode, uma forma bastante conhecida de representação do diabo.
Desta forma, Hellpets teve uma significativa mudança em seu conceito original: deixou de tratar de animais que morrem e vão para o inferno e passou a tratar de seres do inferno que possuem um apelo e a temática animal. Para aumentar essa relação do inferno com a questão do pet, animais de estimação, os personagens demoníacos não deveriam ter aspectos monstruosos, e sim,
características afetuosas.
2.2 PRINCIPAIS REFERÊNCIAS PARA O CONCEITO E CRIAÇÃO
Os temas principais de Hellpets são: o sobrenatural, mitologias religiosas e a vida cotidiana. Os personagens extraídos dessas mitologias personificam questões como bem e mal, paraíso e inferno, certo e errado. Este é um terreno fértil para criar situações de conflito e reflexões comportamentais, pois no meio de toda esta
dualidade, encontra-se o homem, que é quem sofre com ações e consequências.
Alguns desenhistas e outras obras específicas que tratam do tema do sobrenatural ou da religiosidade foram influências significativas no processo de criação e desenvolvimento da série Hellpets. O trabalho destes cartunistas e a aceitação do público passaram-me a segurança de poder abordar os temas de religiosidade e espiritualidade sem ofender o leitor ou criar situações indelicadas e
constrangedoras.
Henrique de Souza Filho (1944 — 1988), que assinava suas obras como Henfil, lançou em 1972 a revista Fradim pela editora Codecri, retratando diálogos de dois personagens principais, Cumprido e Baixim, dois frades travessos que
questionavam e confrontavam os ensinamentos cristãos.
Para Hellpets, a obra de Henfil foi uma influência marcante no que diz respeito às atitudes dos personagens principais em relação aos humanos e o prazer que esses personagens sentem ao pregar peças e constranger os outros. A forma caricata que Henfil trabalha o comportamento humano foi traduzida para os
personagens demoníacos de Hellpets (Figura 10).
Figura 10: Tirinha retirada da revista ‘Fradim’.
Fonte: https://quadrinhos.wordpress.com4
Uma outra série de quadrinhos, de gênero terror e suspense, do selo Vertigo da editora estadunidense DC Comics, lançada em 1985, Hellblazer, também foi
4 Disponível em https://quadrinhos.wordpress.com/2015/08/10/henfil-maravilha/. Acessado em 07 de janeiro de 2016.
uma fonte inspiradora para a criação de Hellpets. A obra de Alan Moore, Steve Bissette e Totleben John, conta histórias sobre o personagem John Constantine, que luta contra demônios, exorcizando-os, e transita entre o mundo dos vivos e dos mortos utilizando magia. Esta obra influenciou o projeto Hellpets desde o início, a construção do título, a temática demoníaca, o uso sem receios dos nomes mitológicos dos demônios e entidades espirituais de diversas culturas e também na concepção psicológica e física de personagens. A caracterização do personagem Lúcifer em Hellpets foi baseada em seu personagem principal: cabelos loiros, curtos e repicados, queixo quadrado, calças jeans e um trench coat, tal qual o personagem
John Constantine.
Apesar de seu gênero ser terror, as revistas Hellblazer também possuem um toque de humor. Assim como o raciocínio dos protagonistas da revista Fradim (1972), Constantine se importa muito pouco com o destino dos homens, não tem receios em castigá-los caso seja necessário para os fins de seus interesses e
parece se divertir com isso (Figura 11).
Em outra obra do cenário das tiras de quadrinhos nacionais, o humor de Laerte Coutinho foi uma das maiores referências para a criação de Hellpets. Publicado em 2000 pela editora Olho d’Água, a edição “Deus segundo Laerte”, retrata um deus muito simpático, bastante irônico e sarcástico, que explica a criação
do mundo e, por vezes, vive situações cotidiana dos humanos (Figura 12).
Essa proximidade da entidade religiosa com o cotidiano humano foi o ponto de partida do projeto. Ainda que em Hellpets não exista Deus até o momento, em quadrinhos esporádicos há a citação sobre os Heavenpets, fazendo alusão à personagens angelicais, e alguns poucos fizeram breves aparições, como o Cupido
e São Pedro, por exemplo (Figura 13 e Figura 14).
Figura 11: Secção da página da revista ‘Hellblazer Volume 1’, 1985.
Fonte: www.comixology.com.5
Figura 12: Tirinha do livro ‘Deus Segundo Laerte’, 2002.
Fonte: www.louge.obviousmag.org.6
5 Disponível em https://www.comixology.com/John-‐Constantine-‐Hellblazer-‐Vol-‐1-‐Original-‐Sins/digital-‐ comic/50780. Acessado em 07 de janeiro de 2016.
6 Disponível em http://lounge.obviousmag.org/with_a_little_help_from_my_friends/2014/06/o-‐humor-‐ divino-‐de-‐laerte.html. Acessado em 07 de janeiro de 2016.
Figura 13: Narrativa sobre o Cupido.
Fonte: a autora (2013).
Figura 14: Narrativa sobre Futebol.
Fonte a autora (2014).
No ambiente virtual, algumas webcomics (história em quadrinhos na internet) também serviram de referência durante o desenvolvimento do projeto. A internet parecia o ambiente ideal para iniciar a publicação das tiras. Em 2008 o cartunista carioca Carlos Ruas lançou o blog ‘Um Sábado Qualquer’, onde publicava tiras diariamente. Suas histórias, assim como as de Laerte, têm como personagem principal Deus da cultura cristã e falam sobre a criação do mundo e do universo. Com o passar do tempo, Carlos Ruas introduziu deuses de outras culturas, personalidades históricas como Freud e Nietzsche, e até pastores evangélicos, para refletir sobre a real existência de deus e o papel da religião na sociedade
contemporânea.
Após ter seu trabalho reconhecido pelos públicos das redes sociais e leitores de blogs, com mais de dois milhões de seguidores, Carlos Ruas publicou seu primeiro livro pela editora Devir em 2011, que leva o nome do blog. Posteriormente, o sucesso de seus personagens tornou-se tão grande que Carlos Ruas passou a produzí-los e comercializá-los em pelúcia e como estampa de outros produtos, como canecas, cadernos e camisetas, atendendo uma nova tendência de mercado
de consumo.
Possivelmente, Carlos Ruas foi a maior fonte inspiradora para a criação dos Hellpets (2012), sobretudo, sua profunda investigação sobre a mitologia e história dos personagens e a apropriação deste conteúdo para desenvolver críticas e reflexões sobre situações cotidianas. Ele mantém um humor leve, expõe o que considera erros da criação divina, como a guerra e o ódio, e atribui a Deus diversas
características humanas.
O uso da internet como meio de projeção do seu trabalho foi outro fator no qual Hellpets se inspirou. Utilizando um blog como suporte para sua produção e as redes sociais como principal veículo de publicação, Carlos Ruas conseguiu atingir diversos públicos e difundir suas tirinhas de forma independente. De forma semelhante, Hellpets manteve sua existência na rede social de maior significância
atualmente, o Facebook, onde possui cerca de 2.700 seguidores (Figura 15).
Figura 15: Imagem retirada do blog ‘Um Sábado Qualquer’, de Carlos Ruas.
Fonte: www.umsabadoqualquer.com.7
7 Disponível em http://www.umsabadoqualquer.com/6-igual-semelhanca/. Acessado em 07 de janeiro de 2016.