3. DESCRIÇÃO DOS PERSONAGENS 45
3.2 LILITH 51
Lilith foi a primeira personagem a ser criada e o modelo utilizado na segunda etapa do desenvolvimento do projeto, após sua reformulação e a proporção criada em seu desenho serviu de base para que todos os demais personagens a serem criados.
As primeiras características definidas, antes mesmo dos primeiros esboços serem feitos, foram a cor dos cabelos e o tom de pele. Apesar de sua descrição mitológica afirmar que os cabelos eram vermelhos, a cor roxa simboliza algo sobrenatural, relacionado à sensualidade e faz alusão à jovens com influência punk,
que costumam aplicar este tipo de coloração aos cabelos.
Mesmo que o estilo chibi de desenho crie um aspecto infantil no traço, a personagem precisava ter uma sensualidade exagerada, para referenciar os mitos de Lilith relacionados às práticas sexuais pervertidas, ou ao menos, sugerir isto.
Para tal, seus seios e quadril foram demasiadamente aumentados.
Contudo, sua personalidade cômica reside em ser uma figura sempre feliz e bem-humorada, logo, uma boca bem grande com os dentes à mostra, como um enorme sorriso é sempre presente em seu semblante. Posteriormente, caninos de vampiro foram adicionados, para mais uma caracterização de uma personagem
sobre natural (figura 23).
Após os primeiros estudos sobre a personagem, resgatei uma caricatura que havia feito de mim mesma, meses antes, e decidi utilizar este desenho como molde para a criação da personagem. Podemos ver que na figura 24, um dos últimos esboços, e na figura 25, sua versão final, existem muitos elementos similares à caricatura, figura 26, como a silhueta, o vestido e o sorriso. As asas também foram
retiradas, para deixá-la com aspecto mais humano.
Figura 23: Primeiro esboço da personagem Lilith.
Fonte: a autora (2012).
Figura 24: Último esboço da personagem Lilith.
Fonte: a autora (2012).
Figura 25: Versão final da personagem Lilith.
Fonte: a autora (2012).
Figura 26: Caricatura autobiográfica da autora e seu esposo.
Fonte: a autora (2011).
A intrigante figura mitológica de Lilith foi introduzida no universo de Hellpets para compor a tríade que rege o inferno e ser a figura feminina que equilibra a disposição de gêneros entre os personagens. A personagem foi inspirada na mitologia judaica, onde é tida como a primeira esposa de Adão, criada igualmente da terra pelo Deus criador. Este mito foi introduzido no Judaísmo na Idade Média, quando o Alfabeto de Ben Sira foi agregado aos textos sagrados. Antes disso, ela já era uma personagem conhecida na antiguidade, porém, relacionada a um demônio feminino cujo nome deriva da palavra suméria lilitu (demônio feminino), e representava o caos, sedução e perigo mortal para crianças e mulheres grávidas. Também era responsabilizada por copular com homens que dormiam sozinhos,
durante seu sono, justificando ereções noturnas e sonhos eróticos.
O Alfabeto de Ben Sira é um texto anônimo que possui 22 episódios que correspondem às letras do alfabeto hebraico. O quinto episódio fala de Lilith e cita a passagem bíblica de Gênesis. Janet Howe Gaines, professora da Universidade do
Novo México e especialista na Bíblia como literatura, diz:
[...] Ben Sira cita a passagem da Bíblia que indica que após a criação de Adão, Deus percebe que não é bom para o homem ficar sozinho (Gênesis 2:18). Nos acréscimos fantasiosos de Ben Sira ao conto bíblico, o Todo- Poderoso, em seguida, molda outra pessoa da terra, uma fêmea chamada Lilith. Logo o casal humano começa a brigar, mas nenhum realmente ouve o outro. Lilith se recusa a deitar debaixo de Adão durante o sexo, mas ele insiste que embaixo é o seu lugar de direito. Ele aparentemente acredita que Lilith deve executar deveres de esposa submissa. Lilith, por outro lado, não quer dominar ninguém. Ela apenas está afirmando sua liberdade pessoal. Lilith afirma: “Nós somos iguais porque ambos fomos criados a partir da terra” (GAINES, 2001).
No episódio do Alfabeto de Ben Sira que descreve esta história, a arrogância de Adão é tamanha que ele tenta dominá-la a força e Lilith, possuída por ódio, profere o Tetragrama YHWH, o nome impronunciável de Deus, e foge do Paraíso, voando com as asas que adquire após seu feito. O tetragrama é uma palavra traduzida nos textos bíblicos como “Senhor Deus”, ou ainda em formatos mais claros, como YahWeh, Javé ou Jeová, e é tradicionalmente proibido de ser pronunciado pelos judeus, em voz alta ou para si mesmos. Na passagem bíblica Êxodo 20:7, é sobre esta palavra a que Deus se refere ao dizer “Não tomarás meu nome em vão”. Ainda em Êxodo, Deus explica que toda a Torá está contida em seu
Ao sair do Paraíso, Lilith vai refugiar-se no Mar Vermelho, e Deus manda três anjos buscá-la, jogando-lhe a maldição de matar cem de seus filhos diariamente caso não retornasse. Em retaliação, Lilith, além de não retornar, posiciona-se como um demônio empenhado em matar crianças humanas – aqui encontramos uma convergência com a mitologia suméria. Para evitar que os anjos a afogassem no Mar Vermelho, Lilith promete não interferir na vida de crianças que carregassem seus nomes: Sanvi, Sansanvi e Samangelaf. Então, na Idade Média, tornou-se costume entre os judeus, escreverem essas palavras nos quartos dos bebês recém-
nascidos, para evitar que Lilith pudesse lhes fazer mal.
Seu mito ainda sofreria mais uma alteração ao longo do tempo;; a compilação do Zohar, um tomo cabalista considerado sagrado, feita também no período medieval, trouxe uma continuação à sua história. Após renegar o Paraíso, Lilith torna-se parceira do personagem mitológico que seria a personificação do mal, o demônio Samael, também conhecido por Satanás, dando origem a uma enorme
prole demoníaca.
O conto de Lilith sempre me atraiu, pois é uma personagem forte, que não aceita sua submissão, mesmo ciente da punição que sofreria por isso. Apesar de carregar sentimentos ruins como ódio e vingança, sua rebeldia denota muitos
aspectos inerentes ao movimento feminista.
Ao introduzi-la no projeto Hellpets, quis evitar representar sua ira e, ao contrário, trabalhei sua aparência meiga, terna e simpática. A princípio, a ideia era que não apenas o público se identificasse com a personagem, mas que eu mesma me identificasse e, para isso, retirei aspectos que considero destoantes de minha própria personalidade, e evidenciei algumas características, tornando-a uma
espécie de alterego caricato e divertido.
Em Hellpets, ela é responsável por criar novos demônios, tendo vários roteiros com este enfoque, que faz referência ao conto mitológico. Porém, a forma como ela os cria não é citada, o que insinua que seja magicamente ou de forma
sobrenatural, desconhecida.
A representação de seu relacionamento com Lúcifer em Hellpets aponta para o exato inverso do que seu mito conta sobre Adão: não há desentendimentos sérios, existe respeito e igualdade entre eles. Quis representar uma mulher que
conseguiu se libertar de um homem machista e abusivo, mas que, sem perder a fé no amor conjugal, envolveu-se com um outro amante e, sendo ambos adeptos dos ideais feministas, são perfeitamente capazes de manter um romance e convívio harmonioso, equilibrado, afetuoso e por isso, próspero.
Neste aspecto, é possível considerar uma abordagem autobiográfica e desta forma, também satirizo neuroses, conflitos e infantilidades que possuo como características pessoais, como tensão pré-menstrual, depressão e vaidade. Qualquer bobagem do meu cotidiano e até alguns clichês femininos são facilmente
exagerados em Lilith para o desenvolvimento da piada.
Durante seu processo de criação, retornei à temática da causa animal e recordei-me do personagem que havia considerado no início do projeto para ser o receptor das almas no inferno, Cérbero, o cão de três cabeças. Apesar de não estar mais trabalhando com a mitologia grega, fiz questão de mantê-lo na série, porém, transformado em um cãozinho de pequeno porte e de orelhas caídas, para que fosse o bichinho de estimação de Lilith.
A pretensão era utilizar os dois personagens para satirizar o comportamento das pessoas que tratam seus animais como bebês, vestindo-os com roupas humanas, vestidos e gravatas, e andam com eles em carrinhos, levando-os em shoppings, praças e até em estabelecimentos restritos como mercados e museus. No entanto, este tema foi deixado de lado, e Cérbero ganhou pouco destaque na série (figura 27). Ele permanece nas principais ilustrações e poderá ser resgatado
futuramente para novos roteiros.
Certa vez, enquanto trabalhava no desenvolvimento da série, fui questionada por um amigo sobre qual personagem representava a mim mesma, e sem considerar profundamente a questão, respondi de forma superficial que todos os personagens apresentam aspectos da minha própria personalidade. Apesar dessa afirmação ser verdadeira, ao tomar maior distanciamento de minha criação, notei que a personagem Lilith é a que mais inseri característica pessoais. Ela tornou-se uma caricatura expressiva e cômica de meu comportamento e visão de mundo
Figura 27: Narrativa com o personagem Cérbero.
Fonte: a autora (2012).
Figura 28: Narrativa sobre rodeios.
Fonte: a autora (2013).
3.3 LÚCIFER
No mito de Lilith, o demônio que a desposa após deixar o Paraíso chama-se Samael, é um ser maléfico que representa o inimigo de Deus criador, Satanás ou Diabo. Nas tradições judaicas, este é o ser que, disfarçado de serpente, tentou Eva
no Paraíso e copulou com ela, sendo o progenitor de Caim.
Na cultura cristã, a história deste personagem vai ao encontro do mito de Lúcifer, o anjo preferido de Deus e o mais belo, cujo nome significa “estrela da manhã”, que por sua rebeldia opõe-se ao criador e torna-se um anjo caído, um
desertor. Neste momento, ele passa a ser Satanás.
Segundo Salma Ferraz, em seu artigo “O bruxo do Cosme Velho decretou a morte do diabo”, Satanás tem algumas aparições na Bíblia, como no antigo testamento, no Livro de Jó, e no novo testamento, na tentação de Jesus em Mateus IV, porém, é apenas no Apocalipse que aparece conexão entre ele e o anjo rebelde, Lúcifer:
Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos;; todavia, não prevaleceram;; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e com ele, os seus anjos (APOCALIPSE 12:7-9).
Adiante, ela cita críticos dos contos bíblicos que buscaram uma origem e uma relação entre as imagens demoníacas que aparecem, além de um fundamento, função ou objetividade de sua existência.
Em História geral do Diabo, Messadié afirma que o mito do Diabo é espinhoso. Gênesis é original por apresentar a serpente como prefiguração de Satanás, o Diabo não existe no Antigo Testamento, neste o Bem e o Mal advém exclusivamente da vontade de Deus. Para este crítico, no Novo Testamento, Satanás perde o status de membro do conselho celestial que tinha no livro de Jó e passa a ser o adversário de Jesus, portanto, é a partir do Novo Testamento que Satanás se divorcia de Deus. Ainda defende a ideia de que, no Antigo Testamento, Deus e o Diabo tinham relações extremamente secretas e que foi a partir da grande crise do Judaísmo - com o nascimento de Jesus e a fundação da religião cristã na charneira das duas Eras - que o Diabo se definiu como inimigo confesso e eterno de Deus. Messadié formula a pergunta que não quer calar: ―Existe um ou muitos Satanás? (2001 p. 309). Respondemos à pergunta: muitos. E é por isso que Lúcifer, Satanás, o Diabo se apresenta como magnífico personagem para a Literatura, Pintura e Música, além de ser, é obvio, muito importante para a Teologia, quase tanto quanto Deus (FERRAZ, 2010, p.10).