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PAISAGEM E REPRESENTAÇÕES DO PANTANAL MATO-GROSSENSE

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Academic year: 2021

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AISAGEM E REPRESENTAÇÕES DO

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ANTANAL

M

ATO

-

GROSSENSE

ICLÉIA A. DE VARGAS1

Augustin Berque (1998) enfatiza que todas as ciências humanas e sociais têm a ver com o estudo da paisagem do ponto de vista cultural. Para a abordagem da Geografia Cultural, cada cultura imprime uma marca na base física. Essa marca revela uma cadeia de processos físicos, mentais e sociais, na qual a paisagem constitui papel fundamental de marca e matriz.

Por sua vez, Paul Claval (2003), ao tratar da abordagem da Geografia Cultural, assevera que para se entender também as atitudes dos indivíduos diante da natureza, o sentido que dão às suas vidas e os horizontes futuros que constroem, é preciso partir da idéia de que todas as realidades geográficas são apreendidas por meio de palavras e imagens. Claval enfatiza: as relações humanas sempre se apóiam em uma mediação cultural.

Considerar a paisagem um construto sócio-cultural possibilita a compreensão da complexidade da problemática ambiental. A “percepção ambiental” estabelece-se como um tema recorrente no estudo da paisagem, ultrapassando os métodos de “avaliação da paisagem” em seus atributos técnicos, visuais ou estéticos.

Assim, há necessidade de situar o nível perceptivo a partir do estudo do “espaço vivido”, através de abordagem que considere a paisagem “um depósito de história, um produto da prática entre indivíduos e da realidade material com a qual nos confrontamos” (HOLZER, 1999 p. 161).

Berque (2000), ao referir-se ao espaço vivido, apresenta a hipótese da paisagem como termo mediador entre o homem e o meio, a médiance, ou seja: a consideração de que a existência humana seja geográfica, não somente no sentido de ocupar um lugar físico no planeta, mas pela idéia de que o ser humano resulta da acoplagem do corpo animal a um meio técnico-simbólico, social e ecológico.

Claval (2001) aponta para a transtemporalidade das paisagens quando seus estudos falam dos homens que as modelam e que as habitam atualmente, e daqueles que lhes precederam; quando informam sobre as necessidades e os sonhos de hoje, e aqueles de um passado difícil de datar.

A paisagem revela as históricas relações entre a sociedade e a natureza, as sucessivas relações espaciais. Para Eric Dardel (1990[1952]) a paisagem não se restringe apenas a substrato ou meio, mas seus significados expandem-se, incorporando as relações existenciais entre o Ser Humano e a Terra.A paisagem reflete a inserção do homem no mundo, lugar de combate pela vida, manifestação do ser social.

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Geógrafa, Mestre em Educação pela UFMS e Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR. E-mail: icleiavargas@yahoo.com.br

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Assim, a paisagem sempre pressupõe a presença humana, mesmo onde ela toma a forma de ausência. Sob essa concepção, a paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente válida, ainda que refratária a toda redução puramente científica. Ela põe em causa a totalidade do ser humano e seus vínculos existenciais com a Terra, ou seja, a sua geograficidade original: a Terra como lugar, base e meio de sua realização. “Presença atrativa ou estranha, porém, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a carne e o sangue” (DARDEL, 1990[1952], p. 42).

O estudo da paisagem vai além de uma morfologia do ambiente ou de uma psicologia do olhar. A paisagem não reside no objeto, nem somente no sujeito, mas na interação complexa desses dois termos. É na complexidade desse cruzamento, na médiance, que se vincula o estudo da paisagem (BERQUE, 1998 e 2000).

O Pantanal como expressão paisagística

O Pantanal destaca-se no cenário mundial pela singularidade de suas paisagens: um mosaico de ecossistemas em dinâmica interação e rica biodiversidade. Atua como fator de equilíbrio ambiental para as águas da América do Sul. Suas paisagens resultam das formas de apropriação pelas sociedades humanas que historicamente ali se instalaram: formas que resistem ao tempo, mantendo antigos conceitos e tradições.

A pecuária extensiva de bovinos é a principal atividade econômica na região, implantada no século XVIII, quando da formação dos primeiros latifúndios no Pantanal. Esta atividade tem sido interpretada como determinante na manutenção da sóciodiversidade da região.

Sociedade e natureza no Pantanal revelam formas peculiares de uma concepção conservacionista. Desmembrada de Mato Grosso, em 1979 é instalada a nova unidade federativa: o Estado de Mato Grosso do Sul. Época que coincide com a projeção do ambientalismo no Brasil. O novo território, que abarca 70% da planície do Pantanal, precisava construir sua própria identidade para se colocar no cenário nacional.

A condição de valoração e projeção do Pantanal, nas últimas décadas do século XX, contribuiu para exacerbar o apelo ambientalista na construção da identidade sul-mato-grossense. Esta, além de ambiental, é também paisagística.

A saga dos coureiros2, a mineração, a moderna agricultura no planalto circundante, dentre outras atividades econômicas irregulares, projetadas pela mídia, mobilizaram a opinião pública, motivando a implementação de políticas públicas e criação de organismos ambientais.

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As ressignificações das representações tradicionais do Pantanal

A ocupação do Pantanal por habitantes não-índios teve início no século XVI, quando os europeus adentram a região através dos caminhos desenhados pelo rio Paraguai e seus afluentes. A imensa planície foi chamada de Laguna de los Xarayes ou Mar de Xarayes. As primeiras descrições sobre o Pantanal, registradas por conquistadores espanhóis, “introduziram a paisagem inundável da bacia alto-paraguaia no imaginário ocidental” (COSTA, 1999, p. 18).

Várias fases de representações permearam o imaginário dos povos que habitaram o Pantanal ou ali circularam. Dentre os europeus que primeiro acessaram a planície pantaneira, alguns buscavam o “Éden”: o Paraíso Terrestre – a paisagem vislumbrada no interior do Novo Mundo reforçava a idéia de proximidade com as regiões paradisíacas descritas no Gênesis. Outros, por sua vez, almejavam encontrar o “Eldorado”: lugar rico e mágico que poderia remediar todos os males, espirituais e materiais, da Europa.

Após as constatações de que o “Eldorado” estava além da planície e que o paraíso terrestre também não se encontrava ali, por muito tempo, o Pantanal passou a representar um imenso território, muitas vezes inóspito, capaz de abrigar apenas alguns destemidos aventureiros que ali se instalaram com seus rebanhos e estabeleceram a atividade criatória. Desde a primeira incursão de europeus e seus descendentes no Pantanal, o cruzamento de inúmeras etnias vêm se constituindo no que hoje se denomina gente pantaneira.

Para essa gente a natureza do Pantanal representa a única fonte de vida. De costumes simples, a gente pantaneira detém saberes tradicionais específicos que permitiram sua sobrevivência na planície, imprimindo-lhe marcas genuínas. Aos saberes pantaneiros e às formas de vida de sua gente é atribuída a sustentabilidade da região

(ROSSETO & BRASIL JR., 2002).

O universo de saberes da gente pantaneira é muito amplo. Banducci (1995) elucida muitas práticas do mundo vivido dos pantaneiros. Saberes construídos historicamente e empiricamente, através da “escuta” e do “olhar”, das sensações que desenvolveram convivendo com a paisagem inundável e mutante. Saberes ligados às variações climáticas da região, ao movimento das águas, às propriedades medicinais de produtos de origem vegetal ou animal, a prática da convivência com os animais, além de outros aspectos culturais relacionados às representações de mundo, incluindo os mitos, a religiosidade e as crenças no sobrenatural.

O Pantanal, enquanto paisagem plena de mitos revela uma imbricada trama, na qual, categorias múltiplas e diversas interagem para se traduzirem em diferentes adjetivos: “Paraíso” ou “Santuário Ecológico”. A imagem estereotipada do Pantanal, difundida amplamente na atualidade, contribui para a exacerbação do bucólico e para

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uma simplificação do real, desconsiderando a complexidade da relação sociedade-natureza no Pantanal.

As novas representações do Pantanal

Com a aceleração do processo de globalização, as representações simbólicas se concretizam no Pantanal, por exemplo, com o processo de patrimonialização3. O patrimônio territorial tem uma simbologia muito forte, concerne a uma chancela do imaginário, para a qual o Pantanal é santuário.

A atividade turística é também fomentada pela globalização e pelas representações derivadas da patrimonialização do Pantanal. Moretti (2000) acredita que o turismo pode ser nocivo ao meio socioambiental. Movido pela lógica do lucro, comercializa paisagens e culturas pantaneiras. Instaura-se, assim, uma mercantilização de símbolos, da idéia de natureza preservada e disponível ao usufruto. É o “marketing turístico” a serviço do resgate do “Paraíso Terrestre”.

A globalização também atrai novos elementos ao interior dos habitats dos pantaneiros. Um bom exemplo disso é o Parque Natural Regional do Pantanal (PNRP)4, implantado em 2002. Trata-se de uma experiência francesa que introduziu novos olhares e formas de gerir o território, incentivando atividades alternativas, como a produção do vitelo pantaneiro5, o artesanato local, o ecoturismo, a educação, o manejo da fauna silvestre.

Todavia, a paisagem cultural do Pantanal, ao envolver os aspectos objetivos e subjetivos do mundo vivido, imprime marcas entre a racionalidade e a afetividade, engendrando, assim, complexos sistemas simbólicos que se apresentam um tanto refratários às novas experiências. Atividades que carecem de autênticas ligações com a cultura local, dificilmente se adaptam à lógica pantaneira, não alcançam as especificidades do lugar, os interesses das comunidades. A forma de ver e sentir o lugar dos “estrangeiros” não corresponde ao ver e sentir dos pantaneiros.

Assim a gente pantaneira, emergindo como protagonista na configuração da paisagem do Pantanal, contribui para a contestação da imagem bucólica, da representação de “natureza intocada”.6

O território pantaneiro é a base das relações sócioambientais, espaço onde se materializam as práticas sociais em meio às peculiaridades – ser humano, terra, água, fluxos cheia-vazante-seca. Ressignificado, o território de pertencimento configura-se na

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O Pantanal Mato-Grossense recebeu inúmeros títulos de patrimonialização: Patrimônio Natural da União (Constituição Federal), Sítio do Patrimônio Mundial Natural e Reserva da Biosfera Mundial (títulos concedidos pela UNESCO). Esse processo promove a chancela do Pantanal como espaço destinado à preservação, o que incita a fruição de suas paisagens.

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Sobre o Parque Natural Regional do Pantanal (PNRP) e os re-direcionamentos político e sócio-econômico que atingem a região, decorrentes de pressões internas e externas fomentadas pelo apelo sócio-ambiental de suas paisagens, ver VARGAS (2006).

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Vitelo Pantaneiro: uma proposta de produto com identidade pantaneira, novo modelo de produção de carne bovina “orgânica”, que alia técnicas inovadoras de criação, de abate e de comercialização.

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territorialidade: a concretização do processo de produção espacial em um lugar cuja especificidade se dá através do vínculo estabelecido pela relação complexa entre seus atores e o meio natural. A paisagem, por sua vez, representa a síntese das relações travadas entre natureza e sociedade, de sentido eminentemente simbólico, plural e aberto, no Pantanal e alhures. É evidente que a paisagem do Pantanal não constitui apenas uma representação do paraíso simbolizado pelas campanhas de marketing. Ela é real, concreta, como um verdadeiro caleidoscópio que refunde real-imaginário, cultura-natureza, propriedade-trabalho, inundações-secas-inundações, etc., e estabelece regras que precisam ser observadas por qualquer proposta de uso e apropriação. Ou seja, qualquer ressignificação tem que conciliar-se ao caleidoscópio pantaneiro.

REFERÊNCIAS

BANDUCCI JÚNIOR, A. Sociedade e natureza no pensamento pantaneiro: representação de mundo e o sobrenatural entre os peões das fazendas de gado na “Nhecolândia”(Corumbá-MS). São Paulo, 1995. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo. 200p.

BERQUE, A. Écoumène: introduction à l’étude des milieux humains. Paris: Éditions Belin, 2000.

___________. Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: Rosendahl, Z. & Corrêa, R. L. C. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. (p. 84-91).

CLAVAL, P. A contribuição francesa ao desenvolvimento da abordagem cultural na geografia. In: Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 (p. 147-166).

_________. A geografia cultural. 2. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.

COSTA, M. DE F. A história de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade : Kosmos, 1999.

DARDEL, E. L’homme et l aterre: nature de la réalité géographique. Paris : Editions du CTHS, 1990 [1 ed. Francesa : Paris :PUF, 1952].

DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.

HOLZER, W. Paisagem, imaginário, identidade: alternativas para o estudo geográfico. In: Rosendahl, Z. & Corrêa, R. L. (org) Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. (pp. 149-168).

MORETTI. E. C. Pantanal, paraíso visível e real oculto: o espaço local e o global. São Paulo: Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista. Rio Claro, 2000.

ROSSETO, O. C. & BRASIL JR., A. C. P. A dimensão dos aspectos culturais na construção das paisagens sustentáveis das áreas alagadiças: Pantanal do Pe. Inácio – Jauru, Cáceres – MT. Comunicação apresentada no I Encontro da ANPPAS. Indaiatuba, SP, novembro de 2002.

VARGAS, I. A. DE Território, identidade, paisagem e governança no Pantanal Mato-grossense: um caleidoscópio da sustentabilidade complexa. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006.

VARGAS, I. A. DE & HEEMANN, A. Sentir o paraíso no Pantanal: reflexões sobre percepção e valoração ambientais. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente: Diálogo de saberes e percepção ambiental. Curitiba, PR: Editora da UFPR, n. 7, 2003. (p. 135-148).

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