Stricto Sensu em Comunicação
Dissertação de Mestrado
TECNOLOGIAS SOCIAIS: PROCESSOS COMUNICATIVOS
EM AUTOPOIESE
Brasília - DF
2010
TECNOLOGIAS SOCIAIS: PROCESSOS COMUNICATIVOS EM AUTOPOIESE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em comunicação da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Comunicação.
Orientador: Prof. Dr. João José Azevedo Curvello
Ficha elaborada pela Biblioteca de Pós-Graduação da UCB
Ao meu marido, Paco, cujo incentivo foi vital para que eu começasse e concluísse este trabalho.
Aos meus queridos pais, Maria do Carmo e Jader, pelas oportunidades que favoreceram esse percurso; à minha irmã, Valéria; aos meus familiares e amigos.
Aos professores doutores da Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Católica de Brasília (UCB): João Curvello, pela valiosa orientação; Luiz Iasbeck; Liliane Machado; Roberval Marinho; Elen Geraldes; Márcia Flausino; Florence Dravet e Cosette Castro, por todas as contribuições. À Fátima Medeiros, bibliotecária supervisora da UCB, por sua disponibilidade e conhecimento. Aos meus colegas de curso, pelo incentivo recíproco.
Ao professor doutor Márcio Simeone Henriques, por seus comentários como integrante da banca examinadora deste trabalho.
A todos que dedicaram tempo e atenção ao preenchimento das questões do pré-teste e, posteriormente, ao questionário da pesquisa on-line.
Ao José Roberto, ao José Bill, e às Oliveiras, de Planaltina, que me receberam em sua cidade, em companhia de Delena Sastre Cantallops.
Ao Joe e à Clevane, por serem contra-hegemônicos ao promover a construção de capital social na nossa cidade e pelo belo exemplo de engenharia aplicada na Fazenda Malunga, orgulho dos que amam e respeitam a natureza no Planalto Central, bem como torcem pela perpetuação da agricultura orgânica, reduto de tecnologias sociais.
Aos meus companheiros de sala no MCT: Virgínia, Marcus, Lidiane, Rosa, Marcelo, Leo, Ana Cláudia, Simone, Flávia, Emily, Eliane, Elaine, Bárbara, Adélia, Liz, Bira, Didi, Dodô, Maria, Leilinay, Delena, Vanuza, Edinalva, Geane, Márcia e Fernando, pela boa companhia nesses tempos.
Aos colegas da Secretaria de C&T para Inclusão Social, da Coordenadoria Geral de Recursos Humanos e do universo maior do Ministério da Ciência e Tecnologia, instituição que me apoiou.
À Irma Passoni e equipe do ITS, pelo intercâmbio dos últimos anos.
A Jac Depczyk, pela generosidade ao permitir o uso de um de seus trabalhos como ilustração, encontrada junto à epígrafe desta dissertação.
Aos autores que constam nas referências bibliográficas desta dissertação, pelas respostas aos e-mails que lhes enviei: DeMoll; Douthwaite; Freitag; Kirkpatrick; Knopff; Léquin; Martins; Passoni, e Subramaniam. Aos quatro últimos agradeço também pelas indicações de leitura.
Ao CDS-UnB, pela oportunidade de participar do ―Ciclo Feenberg‖.
―A mente está nas relações‖. George Bateson
Arte: Jac Depczyk
SENA, Nathália Kneipp. Tecnologias sociais: processos comunicativos em autopoiese. 2010. 199 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2010.
A autora destaca a ideia de que a rede, ou o movimento, ou ainda o fórum de tecnologia social busca estabelecer-se via ―ação comunicativa‖. Esse conceito
pertence à visão humanista de Jürgen Habermas e é citado nesta dissertação como um facilitador do processo comunicativo gerado pela dinâmica do ―desenvolvimento local participativo‖. No entanto, tais iniciativas podem recair em contextos nos quais
a comunicação é improvável, pois outras ideias já se encontram em autopoiese. Isso ocorre sob a proteção de fronteiras semânticas e ideológicas apoiadas na diversidade de percepções dos diferentes sistemas. Tal abordagem reflete alguns aspectos da teoria sistêmico-funcional de Niklas Luhmann. Com o objetivo de conhecer os diversos significados atribuídos às tecnologias sociais, apresentam-se a leitura de uma parcela da literatura disponível sobre esse tema, os resultados de uma enquete realizada via Internet com a participação de 251 respondentes, além de três exemplos de empreendimentos de tecnologias sociais localizados em Brasília (DF). A pluralidade de opiniões sobre tecnologia social, nas várias situações em que esse termo é enunciado, surge como elemento enriquecedor e motivador de um debate dos mais antigos e, ao mesmo tempo, dos mais atuais sobre a multiplicidade de perspectivas e relações possíveis, em construção, entre ciência, tecnologia, poder, cidadania ativa, inclusão e transformação social. Tais conteúdos permitem que cada pessoa vislumbre as próprias expectativas de cenários futuros para as tecnologias sociais, com novo sentido que se atribui à comunicação: não só o de dar e receber informação, mas perceber o que acontece consigo mesmo em contato com novas ideias, posicionamentos e atitudes.
SENA, Nathália Kneipp. Tecnologías sociales: procesos de comunicación en autopoyesis. 2010. 199 p. Disertación (Máster) - Universidad Católica de Brasilia, Brasilia, Brasil, 2010.
La autora destaca la idea de que la red o el movimiento o aun el foro de tecnología social intenta establecerse por medio de la "acción comunicativa". Ese concepto pertenece a la visión humanista de Jürgen Habermas y se cita en esta disertación como un facilitador del proceso de comunicación generado por la dinámica del "desarrollo local participativo". Sin embargo, ese tipo de iniciativa puede llevar a contextos donde la comunicación es poco probable debido a otras ideas que ya están en autopoyesis. Eso ocurre bajo la protección de fronteras semánticas y ideológicas y de la diversidad de percepciones de sistemas diferentes. Ese enfoque se presenta en la teoría sistémica-funcional de Niklas Luhmann. Con el objetivo de conocer los varios significados atribuidos a las tecnologías sociales, se presentan el examen de una parte de la literatura disponible sobre ese tema, los resultados de una encuesta de opinión en línea con 251 participantes, así como observaciones sobre dos proyectos y una empresa que trabajan con tecnologías sociales en Brasilia (DF), Brasil. La pluralidad de puntos de vista acerca de la tecnología social en las diversas situaciones en que ese término aparece es un elemento enriquecedor y motivador para una discusión que es de las más antiguas y al mismo tiempo de las más recientes sobre la multiplicidad de perspectivas y las posibles relaciones en construcción entre ciencia, tecnología, poder, ciudadanía activa, inclusión y transformación social. Dichos contenidos permiten a la gente tejer sus propias expectativas acerca de los escenarios futuros para las tecnologías sociales con un nuevo propósito que se adjunta a la comunicación que no sólo tiene por objeto la transferencia de información, sino también para percibir lo que nos sucede cuando estamos en contacto con nuevas ideas, posiciones y actitudes.
SENA, Nathália Kneipp. Social technologies: communication processes in autopoiesis. 2010. 199 p. Dissertation (M.A.) – Catholic University of Brasilia, Brasilia, Brazil, 2010.
The author emphasizes the idea that social technology network, movement or forum seeks to establish itself through "communicative action" – a concept that is found in the Jürgen Habermas' humanistic view and is quoted in this dissertation as a facilitator for the communication process set in motion by the dynamic forces of "participatory local development‖. However, such initiatives may lead to contexts in which communication is unlikely because other ideas are already in autopoiesis and under the protection of semantic and ideological barriers often backed up with restrictions imposed by the diversity of perceptions from different systems. Such an approach is seen in the Niklas Luhmann's systemic-functional theory. The examination of part of the literature available on that subject, the results of an online survey conducted among 251 respondents, and notes on three social technology initiatives being developed in Brasilia (DF), Brazil are presented in the hope of portraying the various meanings associated with social technologies. The plurality of significations coming from the many contexts in which that term is enunciated is an enriching and motivating element for further discussion on the multiplicity of perspectives and possible relations currently under construction among science, technology, power, active citizenship, inclusion, and social transformation. Such contents enable people to catch a glimpse of their own expectations on future scenarios featuring social technologies with a new purpose being added up to the role of communication which not only aims to transfer information but also to see through what happens to us when exposed to new ideas, positions, and attitudes.
Figura 2 – Quatro contextos diferenciados em que os sentidos associados
às tecnologias sociais se apresentam distintos……… 27
Figura 3 – Livro Introdução à tecnologia, escrito em 1777, por Johann
Beckmann……… 31
Figura 4– Cartaz da empresa Social Technologies exposto na reunião da WFS em 2008 e banners publicitários de alguns de seus trabalhos de
prospecção….……….. 35
Figura 5 – Capa de um dos artigos de Subramaniam na revista itmagz.com… 37
Figura 6 – Passo a passo na elaboração social de um artefato em termos
construtivistas……… 54
Figura 7 – Modelos de bicicletas que competiram entre si até se chegar aos
tipos que prevaleceram……… 55
Figura 8 – Esboço de ―bola de neve‖, com os elementos cujos processos
comunicativos podem estar diretamente associados à disseminação de ideias e uma linguagem que contribuiu para o fortalecimento de uma rede de
tecnologias sociais no Brasil……….. 57
Figura 9 – Pesquisa realizada na base Scielo, em 2009, para encontrar
trabalhos que abordem a questão da(s) tecnologia(s) social(is)………... 62
Figura 10 –Conceitos de tecnologia social, diagramados de forma a ressaltar
os elementos que os constituem……….……… 63
Figura 11 –Resultados ―numéricos‖ da busca por ―tecnologia(s) social(is)‖ no
Google e Google Acadêmico, em 2009……… 64
Figura 12 – Algumas expressões selecionadas na dissertação de Brandão (2001), acrescidas de outras mais recentes, sobre a busca de sentido
valorativo das tecnologias……….. 66
Figura 13 – Foto da apresentação de Flávio Cruvinel Brandão na 2ª
Conferência Internacional de Tecnologia Social em 2009 ... 67
Figura 14 – Elementos que contribuem, na atualidade, para que um calçado
tenha alto teor de conhecimento agregado…………..……… 68
Figura 15 – Andrew Feenberg, professor da Escola de Tecnologia da
Comunicação Simon Fraser, do Canadá………..………... 72
Figura 17 – Inter-relacionamento estreito entre sociedade e tecnologia em um
processo de construção coletiva das relações com uma perspectiva holística….. 75
Figura 18 – Exemplos de redes de baixa e alta densidade….…………..…….. 76
Figura 19 – Conceito de tecnologia social, acrescido de princípios que lhe
dão sustentação……… 77
Figura 20 – Tipos de relações que vinculam as pessoas em rede……….. 78
Figura 21 – Conceito de Desenvolvimento Local Participativo (DLP), presente
nas ações que envolvem tecnologias sociais……….. 79
Figura 22 – Correntes do pensamento crítico e sistêmico sobre emancipação 81
Figura 23 – O casal Joe e Clevane Valle, visão aérea da Fazenda, embalagens com couve e alface higienizadas, alguns dos produtos
comercializados pela Malunga………..……….… 82
Figura 24 – PAIS em exibição na AgroBrasília 2009……...……….. 83
Figura 25 – Capa do livro organizado por Renato Dagnino……….. 85
Figura 26 – No Facebook, na seção dedicada às (boas) causas, há possibilidades de cooperar com campanhas estabelecidas em diversas redes
sociais………. 93
Figura 27 – Uma das páginas do blog de Dalton Martins revela como o
―poder‖ está sendo pensado em relação à atuação em rede, em interface
com um pensamento sistêmico………. 97
Figura 28 – Dados estatísticos sobre questões relacionadas à segurança
alimentar……… 99
Figura 29 – Divisão da sociedade no paradigma da intersubjetividade de
Habermas ……….. 104
Figura 30 – Entendimento do que é considerado sistema social para
Luhmann……… 111
Figura 31 – Frase de conversa ocorrida durante seminário em que C,T&I,
sob a ótica da inclusão social, estiveram em debate………. 113
Figura 32 ―Nuvem de palavras‖ com os principais significados associados
às tecnologias sociais………..………... 121
Figura 33 – Representação dos Executores do Sistema Nacional de Ciência,
Figura 35 – Minhocasa, um kit para gerenciar restos de comida, podas de
jardim e até papéis que podem virar alimento paraplantas……….. 127
Figura 36 – Poltrona feita com pneus reciclados………..……. 127
Figura 37 – Meios de comunicação entre os integrantes da rede de
tecnologias sociais……… 132
Figura 38 – Interface do Espaço Aberto de Conhecimento da RTS……… 133
Figura 39 – Imagens ilustrativas de redes centralizadas, descentralizadas e
distribuídas………. 134
Figura 40 – José Bill e José Roberto Melo Machado, do Projeto Quintais
Sustentáveis, em Planaltina, DF……… 138
Figura 41 – Egídia Gomes de Oliveira e as filhas Vanusa e Cleonice. À
direita, bijuterias e chaveiro feitos pelas Oliveiras……….. 140
Figura 42 – Foto do vídeo amador, feito pela autora, disponível no YouTube, com os flashes da oficina de agroecologia de abril de 2009 na Fazenda
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico I – Localização geográfica dos participantes da pesquisa………. 120
Gráfico II – Senioridade do grupo de atores que interage com o tema das TSs, se antes ou depois de 2003……….. 122
Gráfico III – Filiação partidária dos respondentes ………..……….. 123
Gráfico IV – Perfil dos participantes………..………. 125
Gráfico V –Sentidos associados às tecnologias sociais………. 128
Gráfico VI – Aceitação majoritária do conceito de tecnologia social………. 129
Gráfico VII – Relações mantidas entre os membros da rede de tecnologias sociais. ………. 131
Gráfico VIII – Percepção de uma rede distribuída de comunicação entre os participantes da pesquisa……….. 134
Gráfico IX – Percepção afirmativa de estar em comunicação com os participantes da rede……….. 135
Gráfico X – Valores predominam na visão de futuro sobre as tecnologias……. 136
Gráfico XI – Relevância das tecnologias sociais para temas selecionados no portfólio de atuação do MCT, especialmente da Secis……… 137
1 APRESENTAÇÃO……… 18
1.2 INTRODUÇÃO……… 19
1.2.1 Justificativa……….……… 20
1.2.2 Problema e hipóteses .…………..……….. 21
1.2.3 Objetivos ……….………..………. 22
1.2.3.1 Objetivo geral………... 22
1.2.3.2 Objetivos específicos………. 22
1.3 METODOLOGIA………. 22
1.3.1 Descrição do processo………... 22
1.3.1.1 Pesquisa qualitativa……… 23
1.3.1.2 Pesquisa quantitativa………. 28
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA………... 30
2.1 ―TECNOLOGIA‖ EM SEMIOSE………... 30
2.2 TECNOLOGIA COMO SINÔNIMO DE COMUNICAÇÃO E ESTUDO DA TÉCNICA……… 30
2.3 ORIGEM E USO DA EXPRESSÃO ―TECNOLOGIA SOCIAL‖ FORA DO BRASIL……….. 32
2.3.1 Contexto europeu………. 32
2.3.2 Estudos do futuro………. 35
2.3.3 Folk technology……… 37
2.3.4 Engenharia social……… 41
2.3.5 Outros sentidos………..………. 45
2.4.2 História social de um artefato, o exemplo construcionista da
bicicleta………. 53
2.4.3 Sociogramas e tecnogramas……… 56
2.5 ORIGEM E USO DA EXPRESSÃO ―TECNOLOGIA SOCIAL‖ NO BRASIL 57 2.5.1 CT&S – temática que se mantém e ganha força no transcorrer das últimas décadas………. 57
2.5.2 Referências sobre o tema……….. 61
2.5.2.1 Tecnologias apropriadas……… 66
2.5.2.2 O ―sequestro semântico da inovação‖……… 69
2.5.2.3 O debate sobre a teoria crítica com a participação de Feenberg ……. 71
2.5.2.3.1 Paradoxos da tecnologia……….. 74
3 TECNOLOGIAS SOCIAIS EM REDE: VISÃO SISTÊMICA ……… 76
3.1 OS SEMELHANTES INTERAGEM………. 77
3.2 EXCLUSÃO, INCLUSÃO E SUAS NUANÇAS………. 80
3.3 BUSCAR A EMANCIPAÇÃO DE QUEM E EM RELAÇÃO A QUÊ?... 81
3.4 A FAZENDA MALUNGA, REDUTO DE TECNOLOGIAS SOCIAIS, SOB A ÓTICA SISTÊMICA E DE REDE ……….. 82
4 TECNOLOGIAS SOCIAIS EM INTERFACE COM O PODER DAS ORGANIZAÇÕES EM REDE………. 87
4.1 O ÍMPETO DE DOMINAR A NATUREZA, A TÉCNICA, AS VERSÕES DA HISTÓRIA……….. 87
4.2 RELAÇÕES DE FORÇA E CANALIZAÇÃO DA POTÊNCIA………. 89
4.3 REDE DE PODERES……… 91
4.4 GOVERNANÇA: NEM TUDO QUE BRILHA É OURO……… 94
4.5 TECNOLOGIAS SOCIAIS E CONTRA-HEGEMONIA………. 96
5.1 HABERMAS, O CONVITE À PARTICIPAÇÃO E AS TECNOLOGIAS
SOCIAIS………. 104
5.2 LUHMANN, SEU UNIVERSO DE SISTEMAS COMUNICACIONAIS
AUTOPOIÉTICOS E AS TECNOLOGIAS SOCIAIS……….. 109
6 ANÁLISE DAS RESPOSTAS OBTIDAS COM O QUESTIONÁRIO E COM
A OBSERVAÇÃO DE INICIATIVAS………. 119
6.1 LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA… 120
6.2 VISUALIZAÇÃO DAS IDEIAS MAIS FREQUENTEMENTE ASSOCIADAS
ÀS TECNOLOGIAS SOCIAIS………. 121
6.3 SENIORIDADE DA REDE DE TECNOLOGIAS SOCIAIS……… 122
6.4 CONTRA-HEGEMONIA E POLITIZAÇÃO SEM FILIAÇÃO PARTIDÁRIA.. 123
6.5 PERFIL DOS RESPONDENTES DO QUESTIONÁRIO………. 125
6.6 OS SENTIDOS ASSOCIADOS ÀS TECNOLOGIAS SOCIAIS………. 128
6.7 POSICIONAMENTO EM RELAÇÃO AO CONCEITO DE TECNOLOGIA
SOCIAL……….. 129
6.8 ATORES EM RELAÇÃO COM OS PARTICIPANTES DA PESQUISA…… 131
6.9 MEIOS DE COMUNICAÇÃO ENTRE OS MEMBROS DA REDE………… 132
6.10 REDE DISTRIBUÍDA……….. 134
6.11 PROCESSO COMUNICATIVO………. 135
6.12 VALORES PREDOMINAM NO FUTURO DAS TECNOLOGIAS………… 136
6.13 O FUTURO DAS TSs: POSSÍVEIS CAMPOS DE DESTAQUE….……… 137
6.14 TRÊS INICIATIVAS QUE SE BENEFICIAM DE TSs NO DISTRITO
FEDERAL……… 138
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS………. 145
REFERÊNCIAS………. 152
ANEXO C –Roteiro de observação estruturada………. 194
1 APRESENTAÇÃO
O tema deste trabalho é a tecnologia social (TS) como processo comunicativo. Problematizamos esse tema ao supor que, embora as TSs surjam em
contextos que prezem pela ―ação comunicativa‖1 (HABERMAS, 1999), existe uma
improbabilidade de a comunicação ocorrer, pois cada ator resguarda suas fronteiras de sentido, buscando homofilia, ―princípio de que o contato entre pessoas com características similares ocorre em maior freqüência do que entre pessoas com
baixa similaridade‖ (MCPHEARSON, SMITH-LOVIN & COOK, 2001 apud ROSSONI; GRAEML, 2009, p. 230).
Pensamos que está em curso uma dinâmica de polissemia, atribuição de vários sentidos a um termo, inerente às TSs. Coexistência de complexa rede de significados, posicionamentos, processos cognitivos associados a essa expressão. Cada qual tem ideias preconcebidas, delimitadoras e mantenedoras de fronteiras de sentidos, que a um só tempo separam e aproximam grupos de atores, sistemas. Nosso intuito será o de procurar identificar quais sentidos são atribuídos às tecnologias sociais e quais ideias-chaves e lugares de fala os diferenciam.
Tecnologia social em sua ―definição mais comum‖, no dizer de Renato Dagnino (DAGNINO, 2010), equivale à ―tecnologia para a inclusão social‖. Embora
muitas pessoas desconheçam esse termo, ou prefiram não utilizá-lo devido à sua ambiguidade ou redundância (toda tecnologia surge em sociedades, logo, é social), quando se trata de associar ciência e tecnologia (C&T) à qualidade de vida das populações, há recorrência aos muitos sentidos que são atribuídos à tecnologia social. Seja aquele da premência de aproximar os problemas à capacidade e vontade de solucioná-los, seja ao se buscar um novo design ou engenharia social promotores de empoderamento dos excluídos, ou, tão-somente, trazer o vetor
―participação‖ e ―sustentabilidade‖ para os debates da C&T, com pensamento crítico, criatividade para imaginar alternativas e planejamento de ações viáveis.
1
A dissertação está dividida em sete capítulos. No primeiro, apresenta-se o porquê da escolha do tema e a forma como se estruturou o trabalho, quais técnicas e métodos optou-se por utilizar, bem como se expressa a primeira demarcação de sentidos, encontrados em dois livros sobre tecnologias sociais, apontados como referências essenciais aos que querem realizar pesquisas sobre TSs no Brasil. No segundo capítulo, é descrito o resultado da pesquisa bibliográfica com uma apreensão da diversidade de sentidos com que a palavra ―tecnologia‖ e a expressão
―tecnologia social‖ foram e continuam a ser utilizadas em diferentes países e contextos históricos, terminando com a abordagem sobre os entendimentos e a linguagem que os brasileiros têm construído em relação ao tema, elucidando também qual é o ideário que Andrew Feenberg2 apresentou em suas palestras, realizadas em Brasília. No terceiro capítulo, abordam-se as tecnologias sociais em rede com uma visão sistêmica ao se buscarem comunicação, participação, emancipação e inclusão social, com a menção ao exemplo da Fazenda Malunga, uma das iniciativas observadas. No quarto capítulo, analisam-se as tecnologias sociais em interface com o poder das organizações em rede. No quinto capítulo, discorre-se sobre as contribuições que Luhmann e Habermas podem oferecer à compreensão do processo comunicativo na construção de sentido para o que são tecnologias sociais. O sexto capítulo explicita o que se obteve como respostas ao questionário da pesquisa quantitativa, com o complemento da observação de outras duas iniciativas que envolvem tecnologias sociais em Brasília: os quintais sustentáveis e o artesanato que utiliza garrafas pet como matéria-prima, além da Fazenda Malunga, mencionada também no capítulo 3. As considerações finais correspondem ao sétimo capítulo.
1.2 INTRODUÇÃO
O tema da minha pesquisa no Mestrado em Comunicação é um substantivo adjetivado, tecnologia social3, com um enfoque ou mesmo significados que
2Andrew Feenberg é um filósofo canadense que tem atuado, a convite dos brasileiros, como
facilitador para a compreensão das correntes mundiais de filosofia, sociologia, história, política e gestão científica e tecnológica. Aborda-se o conteúdo de suas palestras no Brasil no capítulo 2, a partir do item 2.5.
3São ―técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a
aproximam esse termo da noção de processo comunicacional. Ambos (tecnologia social e processo comunicacional) estariam, hipoteticamente, indissociados.
Semiose4 e autopoiese5 serão conceitos portadores de ―novas interlocuções‖
para o universo dos debates sobre tecnologias sociais. Acompanharão as análises dessa pesquisa. A isso deve-se a escolha do título ―tecnologias sociais em
autopoiese‖ e da ilustração, feita por Jac Depczyk, conjugada à epígrafe, alusão à multiplicidade de significados (significados que se separam de outros significados), processos cognitivos os mais diferenciados e a comunicação como processo básico de autopoiese (autoprodução) dos sentidos e, por conseguinte, dos sistemas sociais.
O conceito de autopoiese que se adota vem da obra de Niklas Luhmann, em que esse autor sugere que a sociedade está dividida em sistemas sociais e essa divisão significa que os grupos têm perspectivas distintas que não se refletem mutuamente. Já a palavra semiose está sendo utilizada como sinônimo de produção dinâmica de sentido, o que corresponde à essência do que encontramos na revisão bibliográfica.
Ao consultar a literatura sobre tecnologias sociais, vê-se que o conceito de TS não pode estar dissociado de uma teoria crítica, como aquela descrita por Andrew
Feenberg, ao sugerir nova visão de tecnologia como ―campo de luta social, uma
espécie de parlamento das coisas, onde concorrem as alternativas civilizatórias‖. (FEENBERG, 2010, p. 76).
1.2.1 Justificativa
Existe uma premência, em dimensão planetária, de se provocarem mudanças de atitudes e o desenvolvimento de novas relações interpessoais e com o meio; promover e perpetuar as chances de construir qualidade de vida para um número crescente de pessoas; tentar reduzir a velocidade galopante com que se destrói o meio ambiente e seus habitantes. As tecnologias, com quaisquer predicados que lhes sejam adicionados nos mais diversos contextos, mantêm um papel de interferência crescente nos sistemas sociais. Falar sobre tecnologias sociais é buscar um questionamento sobre como está ocorrendo a relação entre ciência e
4 Palavra utilizada como sinônimo de processo dinâmico de produção de sentido.
sociedade e sobre opções e escolhas tecnológicas em interface com as necessidades das populações e de sua cultura.
Nota-se que, por uma necessidade de resguardo de fronteiras entre os diversos atores que têm nas TSs um universo de interseção de suas ações e reflexões, o conceito é percebido e enunciado de maneiras diferenciadas, ora com predomínio do encanto, ora com o reviver do desencanto com os avanços tecnológicos. Ademais, a temática das tecnologias sociais ainda não é pervasiva e se mantém restrita a alguns círculos acadêmicos, da sociedade civil organizada, de instituições públicas e privadas, sem a possibilidade de espraiar todo seu potencial de promover debates e mudanças significativas para a realidade social brasileira e de outros países com perfil e culturas congêneres.
É desejável que os pesquisadores brasileiros de diferentes áreas façam uma leitura sobre esse tema e busquem promover o diálogo com seus textos e práticas, enriquecendo o debate. A cada dia, multiplicam-se as inter-relações e insights que as tecnologias sociais proporcionam. Podem ser estudadas sob o olhar da sociologia, comunicação, história, economia, psicologia social, biologia, agricultura, arquitetura, engenharia, informática, engenharia de alimentos e nutrição e muitas outras áreas. A sua proximidade com as soluções existentes para problemas do quotidiano das mais diversas comunidades em diferentes contextos de vida faz com que o tema esteja na pauta da academia, das associações e organizações não governamentais (ONGs), dos governos, e de todas as redes que estejam pensando em melhoria da qualidade de vida das pessoas. O texto que se inicia é uma dessas interlocuções, na área de Comunicação.
1.2.2 Problema e hipóteses
Conforme mencionado na apresentação, nosso problema de pesquisa consiste
A rede de tecnologia social6 tenta se estabelecer via ação comunicativa,
mas recai em contextos em que a comunicação é improvável devido ao resguardo de fronteiras semânticas e diversidade de percepções por parte dos diferentes atores que integram a rede.
A polissemia do termo ―tecnologia social‖ contribui para o desenvolvimento
das TSs porque amplia os campos de atuação.
O futuro das tecnologias sociais está indissociado de uma perspectiva construtivista de agendas locais para C,T&I, pois as TSs são contra-hegemônicas em relação a uma visão neutra, instrumental e determinista da tecnologia.
1.2.3 Objetivos
1.2.3.1 Objetivo geral
Conhecer o processo de construção de sentido relacionado às tecnologias sociais e quais ideias-chave o diferenciam.
1.2.3.2 Objetivos específicos
Estudar como se deu e continua a acontecer a construção do processo comunicativo sobre as tecnologias sociais.
Identificar os elementos de diferenciação e estabelecimento de sentido entre os sistemas sociais que coexistem no universo das tecnologias sociais.
Conhecer os principais debates da atualidade sobre esse tema, inseridos nos questionamentos entre as relações cogitadas entre ciência, tecnologia e sociedade.
1.3 METODOLOGIA
1.3.1 Descrição do processo
Nossa pesquisa foi quantitativa e qualitativa, embasada em uma análise documental, pesquisa de opinião feita por meio de um questionário, preenchido via
Internet, além da observação de três empreendimentos de tecnologia social no Distrito Federal: confecção de bijuterias e acessórios com a reciclagem de garrafas pets; quintais produtivos, ambos em Planaltina; e a Fazenda Malunga, todos localizados no Distrito Federal.
1.3.1.1 Pesquisa qualitativa
O primeiro passo na elaboração deste trabalho equivaleu à realização da revisão bibliográfica, realizada no Google, Google Acadêmico, Scientific Electronic Library On-Line (Scielo), Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade de São Paulo (USP), bases Cambridge e ScienceDirect.
O segundo passo correspondeu à leitura e seleção dos conteúdos para elaborar
uma descrição dos sentidos que estão sendo atribuídos à expressão ―tecnologia(s) social(is)‖, que foram os termos de busca. Visto a diversidade de sentido com que o termo é empregado fora do Brasil, essa análise compreenderá um capítulo específico, com uma espécie de trajetória de significados e, posteriormente, o detalhamento de como tecnologias sociais estão sendo percebidas e tratadas no Brasil, bem como o cenário mais amplo das discussões que envolvem ciência, tecnologia e sociedade (CT&S).
Escolhemos os livros Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento (REDE DE TECNOLOGIA SOCIAL, 2004) e Tecnologia social: ferramenta para construir outra sociedade, obra organizada por Renato Dagnino em 2009, para serem as fontes primeiras dessa análise sobre sentidos diferenciados que circulam
entre os atores, ―provedores‖ do desenho de uma rede semântica que evidenciará
Figura 1: Análise de conteúdo – responder às questões relativas a um contexto de textos. Fonte: KRIPPENDORFF, 2004, p. 83
Inicialmente, nesses dois livros consultados e em outras obras recuperadas na pesquisa bibliográfica, procurou-se realizar uma análise de conteúdo, em sua forma de estruturação mais básica, buscando uma orientação para o desenho da pesquisa, conforme ilustrado na figura 1.
Para Krippendorff (2004), os textos adquirem relevância (significados, conteúdos, qualidades simbólicas e interpretações) nos contextos em que são utilizados. Faz a ressalva de que um contexto sempre é a construção de alguém, espelhando o meio conceitual de produção de um texto, a situação na qual ele tem um papel a
desempenhar. ―O contexto especifica o universo em que os textos podem ser
relacionados às questões de pesquisa de quem faz a análise de conteúdo. Esse universo é sempre um entre muitos possíveis‖7 (KRIPPENDORFF, 2004, p. 33).
O caminho da análise de discurso nos conduziria a um questionamento sobre
―como esses textos significam‖ (ORLANDI, 2007, p. 17), o que para o princípio da pesquisa nos pareceu uma tarefa avançada em relação à etapa exploratória inicial deste trabalho. Buscou-se, portanto, identificar nos textos selecionados as unidades ou segmentos de textos que ajudassem a responder à pergunta da pesquisa formulada em consonância com nossa primeira hipótese: existe uma diferenciação de percepções entre os atores que interagem com o tema desta pesquisa, expressa
7 Tradução da autora. Texto no original:
―The context specifies the world in which texts can be related
em fronteiras semânticas por eles enunciadas? Usamos diagramas para evidenciar esses trechos. São as unidades de texto selecionadas que representam uma diferenciação de enunciados e percepções. A partir desses recortes, inferimos que a existência de tal diversidade está presente nos textos analisados, o que pode favorecer a improbabilidade da comunicação ocorrer, e foi a partir dessa inferência que construímos os passos subsequentes da pesquisa, prevendo maior abrangência na exploração de sentidos associados a essa expressão no capítulo correspondente à revisão bibliográfica.
Nesse primeiro recorte, conforme expresso na figura 2, a seguir, foram selecionadas unidades de texto que revelaram a prevalência de um sentido de
―simplicidade‖ e ―engenhosidade‖, em um contexto governamental; maior abrangência e um pensar sistêmico ficaram delimitados entre as ONGs; um texto
próximo da teoria crítica da tecnologia, contendo uma oposição entre ―tecnologias capitalistas ou convencionais (TCs)‖ e tecnologias sociais predomina na Academia; e as ideias de ―franquia‖, ―grande escala‖, ―empreendedorismo‖, ―responsabilidade social‖ sobressaem no discurso da Fundação Banco do Brasil, ator de destaque nesse ecossistema. O texto do ―coletivo‖, que amalgama esse todo, construído em
conjunto (em fóruns, movimentos e redes), é mais abrangente e inclui as palavras
―técnicas‖, ―processos‖ e ―metodologias‖, frisando o objetivo da ―inclusão e transformação social‖.
Figura 2: Quatro contextos diferenciados em que os sentidos associados às tecnologias sociais apresentam-se distintos (continua).
As diferenças nos enunciados serviram como orientação para a concepção do questionário de pesquisa, que foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade Católica de Brasília (UCB) em junho de 2010. Elaborou-se também um roteiro de observação para a visita realizada a três iniciativas nas vizinhanças de Brasília que usam tecnologias sociais (Anexo C).
1.3.1.2 Pesquisa quantitativa
Na parte quantitativa, fez-se uma pesquisa de opinião incidental ou instantânea, em que se administrou um questionário uma só vez para ―haver um instantâneo da população no que tange às características estudadas‖ (LAVILLE E DIONNE, 1999,
p. 149), uma fotografia de processo, tal e qual ele se deu nesse momento da história, no Brasil.
Entre as decisões tomadas para a seleção do grupo de participantes da pesquisa, houve uma escolha sobre qual seria o tipo de amostra que se deveria adotar, dado que os atores que formam a rede, movimento ou fórum de tecnologias sociais, em seu sentido amplo, estão dispersos em todo o território nacional, e até mesmo em outros países, o que exclui o uso de uma amostra probabilista que desse a todos os elementos dessa população a oportunidade conhecida e não nula de participar. Optou-se, portanto, por uma amostra típica, em que as pessoas foram convidadas a preencher um questionário que permaneceu abrigado no site SurveyMonkey entre 23 de julho e 8 de setembro de 2010.
Procurou-se focar um universo de respondentes que já estivessem em interação com o tema das tecnologias sociais. Dessa maneira, nossa população correspondeu a uma parcela de membros da Rede de Tecnologia Social (RTS), e-mails que obtivemos e copiamos a partir do site dessa instituição; o grupo de colaboradores da Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social (Secis) do Ministério da Ciência e Tecnologia, e dos alunos do curso ―A Teoria Crítica da Tecnologia, de
população correspondeu ao conjunto dos 687 e-mails enviados e que não apresentaram mensagem de rejeição do servidor. A amostra foi de 251 indivíduos que efetivamente acessaram o link e responderam, ao menos, à primeira questão, o que será detalhado no capítulo destinado à análise das respostas obtidas, e que também está retratado no Anexo B, com os dados brutos que incluem as perguntas e respostas da forma como foram formatadas pelo coletor do questionário no site SurveyMonkey. Com esse número de acessos, obteve-se o percentual de participação de 36%, o que corresponde a um nível de confiança de 95% e uma margem de erro de 4,93%8.
Escolhemos utilizar os recursos do site SurveyMonkey
(http://www.surveymonkey.com/), uma ferramenta profissional para a formulação de questionários de pesquisa on-line e tabulação das respostas obtidas, com a condição de que, para cada respondente, houvesse a correspondência de apenas um número de IP. Isso significa que não foi possível a múltiplos respondentes utilizar o mesmo computador para preencher o questionário on-line. Garantiu-se o anonimato a todos aqueles que participaram voluntariamente.
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 2.1 ―TECNOLOGIA‖ EM SEMIOSE
Na primeira etapa deste estudo − aquela equivalente à pesquisa bibliográfica −, é preciso mapear as trajetórias discursivas e de sentido que esse termo assume
em diferentes momentos, contextos e culturas. Tal exercício torna-se, naturalmente, um trabalho semiótico, em que as trajetórias discursivas identificadas nas referências bibliográficas consultadas são indicações para os próximos passos da investigação, como destaca o semioticista e professor da UCB Luiz Carlos Iasbeck:
Trabalhar semioticamente um objeto de pesquisa significa relacioná-lo com o maior e mais significativo número e natureza de possibilidades que ele comporta, buscando compreendê-lo em movimento, dinâmico e operante, ainda que tais relações possam, eventualmente, estabelecer paradoxos incontornáveis. (IASBECK, 2006, p. 203)
A seguir, procuraremos mapear a evolução de sentido da palavra ―tecnologia‖, até chegar à tecnologia adjetivada de social, que, como todo símbolo, é:
[...] uma coisa viva, num sentido muito estrito que não é apenas figura de retórica. O corpo de um símbolo transforma-se lentamente, mas seu significado cresce inevitavelmente, incorpora novos elementos e livra-se de elementos velhos. (PEIRCE, 1999, p. 40).
Nesta investigação, pertinente à revisão bibliográfica, busca-se abordar, portanto, um mapeamento dessa dinâmica de incorporar e livrar-se de alguns elementos. Para Peirce, a palavra ―significado‖diz respeito a ―denotar o interpretante
declarado de um símbolo‖. E a semiose seria o processo em que "todo signo interpreta outro signo" (ECO, 2004, p. 23). A ver alguns discursos sobre a palavra tecnologia.
2.2 TECNOLOGIA COMO SINÔNIMO DE COMUNICAÇÃO E ESTUDO DA TÉCNICA
Figura 3: Livro Introdução à tecnologia, escrito em 1777 por Johann Beckmann. Fonte: LAMARD; LÉQUIN, 2008
Desde os sofistas gregos até o século 17, a palavra tecnologia designava a
―técnica do discurso‖, a arte da oratória ―que permite triunfar sobre os adversários,
na ágora (praça central) das cidades gregas ou nas
salas de audiência dos tribunais‖. Signo indicativo de
que aquilo que era considerado nobre coincidia com o domínio da palavra, capacidade intelectual, em oposição aos trabalhos mundanos da produção.
No século 18, com o apogeu da mecanização inerente à Revolução Industrial, a palavra passa a designar, literalmente, o estudo da técnica9. Em 1770, graças a Johann Beckmann (1739 - 1811), professor de economia da Universidade de Göttingen, esse termo designa nova disciplina
universitária, criada na Alemanha: ―a tecnologia explica
completamente, metodicamente e distintamente todos os trabalhos com as suas consequências e suas razões de
ser‖, conforme define o próprio Beckmann. A figura 3 traz reprodução da capa do livro de Beckmann. Na França, um papel similar ao de Beckmann foi exercido por Louis-Sébastien Lenormand (1757 – 1837), que tentou enriquecer a educação técnica com um viés de popularização da tecnologia, no ―intuito de aperfeiçoar as operações tecnológicas e as ferramentas‖ (MERTENS, 2002). Credita-se a esse físico a invenção do paraquedas, por ele próprio testado. Em seu atestado de óbito
constava que seu ofício era o de ―professor de tecnologia‖.
Um século mais tarde, Karl Marx propõe a introdução do ensino da tecnologia nas escolas do povo. Nos Estados Unidos, entre 1829 (Jacob Bigelow – Elements of Technology) e 1861 (ano de criação do Massachusetts Institute of Technology –
MIT), a palavra passa a ser empregada no plural, sem se referir a uma disciplina e com o sentido de técnicas de ponta, em oposição a técnicas tradicionais, que
passaram a ser desacreditadas como ―rotineiras‖. Tal significado perdura até os nossos dias com o sentido que atribuímos às ―novas tecnologias‖. (LAMARD;
LÉQUIN, 2008, p. 7)
9Na Wikipédia (2010), em vez de l´étude de la technique aparece study of trades, o que pode indicar,
No século 20, ainda seguindo o fio da meada de Léquin, é tempo de ver renascer uma tecnologia que se coloca o objetivo da compreensão global da técnica e da sociedade, com Marcel Mauss, André Leroi-Gourhan, ao se deter em alguns nomes franceses, e extenso grupo de pesquisadores, nomeados nos trabalhos de Bijker, Kirkpatrick, Schroeder, Feenberg, Hess, entre muitos outros.
O desenvolvimento tecnológico em grande escala, no século 21, tornou-se o desafio da atualidade, ao se ter consciência de que a técnica está onipresente na sociedade, na vida dos homens e que nós vivemos no mundo do artificial, como bem o comprova um exemplo de proeza da biotecnologia no século passado, o da fabricação da maçã amarela (golden apple), segundo narrativa de Léquin sobre um testemunho dos anos 50:
Na Califórnia, percorria hectares repletos de macieiras.
― Eu fabrico maçãs, dizia meu companheiro, como outros fazem gomas de mascar. É necessário que o objeto seja vistoso e agrade aos olhos. Após uma enquete realizada pelos serviços do Dr. Gallup [...], faço a maçã amarela.
― E, pergunto, qual é o sabor das suas maçãs?
― Na realidade, têm um sabor-padrão. Os meus técnicos captaram os sabores de todas as maçãs do mundo [...], antes de realizarem uma operação de síntese.
― E qual é o cheiro?
― Nenhum. Nada. Impusemos que fosse assim. Isso nos permite jogar, a cada ano, no mercado mundial, 750 mil maçãs sem sabor, conveniente a todos os gostos, suprimindo, assim, a dificuldade de escolha e o cansaço nervoso que é inerente a esse processo de decisão.‖10 (LÉQUIN, 2009, p. 25)
2.3 ORIGEM E USO DA EXPRESSÃO ―TECNOLOGIA SOCIAL‖ FORA DO BRASIL
2.3.1 Contexto europeu
Na França, o termo ―tecnologia social‖ é cunhado por engenheiros, ao
conceber a sociologia como tecnologia social. Está relacionado a um profissional da Escola Politécnica, Jean Coutrot (1895 – 1941), interessado em desenvolver um
10 Tradução da autora
. Texto original: ― ─En Californie, je parcourais des hectares de pommiers. ─ Je fabrique de la pomme, disait mon compagnon, comme d´autres font de la gomme à mastiquer. Il faut d´abord que l‘objet plaise à l´oeil: après une enquête menée par les services du Dr Gallup […] je fais de la pomme jaune.
─ Et, dis-je, quelle est la saveur de vos pommes?
─ De même, j´ai une saveur standard. Mes techniciens ont capté les saveurs de toutes les pommes
du monde […] avant de réaliser une operation de synthèse.
─ Et qu´est ce que cela sentait?
─ Rien. Ce rien, nous l´avons imposé, il nous permet de jeter chaque année sur le marché mondial
750 000 pommes sans saveur allant à tous les gouts, supprimant l´embarras du choix de la fatigue
―humanismo econômico‖ por meio de um ―pensar coletivo‖. Coutrot destacou-se como fundador do Centro de Estudos dos Problemas Humanos, em 1937 (WIKIPEDIA, 2010), instituição pluridisciplinar que chegou a congregar 300 pesquisadores, entre os quais pôde contar com a colaboração de Alexis Carrel (prêmio Nobel em medicina); Aldous Huxley (membro do comitê executivo); Jean Stoetzel (pesquisas de opinião); Jean Merlet (habitação); Jean Sutter (nutrição); François Perroux (economia); Robert Gessain, Paul Vincent, Jean Bourgeois-Pichat (demografia), entre outros. Segundo Henry (2004), entre as opções defendidas por Coutrot encontra-se o posicionamento de ignorar as análises fundadas sobre os estudos dos fatos sociais (portanto, contrário à sociologia de Émile Durkheim, ao rechaçar a historicização e determinação social dos feitos), preferindo uma abordagem exclusivamente centrada na pessoa humana, com o que Coutrot
denomina ―um suplemento de alma‖:
[…] para reencontrar a ‗pessoa‘ sob a armadura esmagadora da técnica e da máquina, as ciências devem se dedicar, primeiramente, ao estudo do espírito e não mais àquele da matéria: ‗é preciso parar a técnica até que a ciência do homem tenha avançado em seu atraso‘11 (COUTROT apud HENRY, 2004, p. 54)
Ao estabelecer para cada problema uma lista de fatores que os determinavam
e tentar colocar cada indivíduo ―no lugar que lhe pertence‖, exercer controle, Coutrot
despontou como o tecnocrata que reduziu as ciências sociais a uma metodologia e encorajava mensurar tudo o que fosse mensurável. La mesure des différences entre les genres (A medida da diferença entre os gêneros) é um texto dessa época, selecionado por Henry como uma das relíquias incluídas em seu trabalho, e denota
as representações associadas ―ao lugar que pertencia‖ às mulheres naquele
contexto social, com discurso cuidadosamente tecido com uma retórica científica e multidisciplinar.
Ainda no contexto europeu, a expressão tecnologia social reaparece em título de um livro de Habermas e Luhmann (1971) – Teoria da sociedade ou tecnologia social — qual a contribuição da teoria sistêmica? –, menção encontrada em nota de rodapé em um texto de Freitag e Rouanet (1993). Posteriormente, reencontra-se
11Tradução da autora. Texto original:
―(...) pour retrouver la ‗personne‘ sous l‘armure écrasante de la technique et de la machine, les sciences doivent s‘attacher désormais à l‘étude de l‘esprit et non plus
menção a esse trabalho na Apresentação de João Pissarra (LUHMANN, 1992) e no Foreword de Eva Knodt (LUHMANN, 1995). Pissarra contextualiza a publicação do livro pelos autores, relembrando que ambos se tornaram amigos quando eram alunos de Talcott Parsons, em Harvard, e realizaram nessa obra o início de um dos mais célebres debates entre posicionamentos completamente opostos, Luhmann com explícita recusa em ver qualquer sentido na versão progressista do pensamento
europeu, ―uma crítica radical à tradição emancipatória herdeira do humanismo das Luzes, que ele considera totalmente desajustada à realidade complexa das
sociedades desenvolvidas‖ (LUHMANN, 1992, p. 7). Habermas, por sua vez, acusa Luhmann de ser ―tecnocrático e funcionalista e de menosprezar qualquer
possibilidade de crítica e política emancipatória‖ (KNODT, 1995, p. xiv). O livro deu
origem a uma série de publicações intitulada Theorie-Diskussion, com a colaboração de renomados cientistas sociais.
Eva Knodt menciona que o livro foi muito bem recebido, vendendo mais de 35 mil exemplares em poucos anos. A polaridade entre Frankfurt e Bielefeld foi enquadrada em termos políticos, como uma oposição entre a Nova Esquerda e o que era percebido como tendências neoconservadoras na Alemanha, o
―contrailuminismo‖ . Embora nos anos 1970 Luhmann tenha sido muito atacado pela esquerda, na metade dos anos 80 houve variações para o que Knodt denomina
―uma segunda fase‖, com as propostas de ―uma mudança de paradigma para a Sociologia‖, expressa com a publicação de Sistemas Sociais em 1984. Em sua
―terceira fase‖, Luhmann desperta interesse ainda maior com o ―discurso do
construtivismo radical‖, termo cunhado originalmente pelo psicólogo Ernst von
Glaserfeld.
Sem tradução para uma língua que possamos ler, a curiosidade e a busca de entendimento sobre o que estava em discussão nesse livro – se os autores deram alguma continuidade ao debate do grupo de Coutrot, se atribuem a esse autor o uso dessa expressão ou se seria um sinônimo, outra forma de se referir ao conceito de
[…] é muito fácil ―criticar‖ globalmente a Systemtheorie como uma ―tecnologia social‖ (Sozialtechnologie) ao serviço do Mal, que, na perspectiva da moral da escola de Frankfurt, tem por nome ‗razão instrumental‘ [...] (SANTOS, 2005, p. 134).
Santos faz a defesa de Luhmann contra as acusações de que seu trabalho refletiria
as metáforas do ―instrumental‖ e da ―tecnologia do social‖ como herança da visão
mecanicista do mundo, na linha do tecnicismo de Helmut Schelski, sociólogo alemão que foi orientador de Luhmann nos anos 1960.
2.3.2 Estudos do futuro
Quem se dedica a pensar o futuro usa a expressão ―tecnologia social‖ em
diversos contextos e com diferentes significados. Em 2008, por exemplo, no encontro da World Future Society (WFS) em Washington (DC)12, um grande cartaz no hall de entrada para as palestras chamava a atenção (figura 4) por apresentar a expressão ―Social Technologies‖, como título.
Os futuristas (ALIGICA e HERRITT, 2009) empregam o termo como sinônimo de instituição, procedimento ou metodologia, ao relembrarem os trabalhos do alemão Olaf Helmer, que escreveu o livro Social Technology (WIKIPEDIA, 2010), em 1966, juntamente com Bernice Brown e Theodore Gordon13, em consultoria para a
12 Um relato sobre esse encontro da WFS está disponível em:
http://www.scribd.com/doc/17295117/World-Future-Society-2008?secret_password=155xqksw69kac8sor4lo 13
Palestrante no encontro da WFS em 2008, quando apresentou o relatório ―2008, State of the Future‖, enquanto integrante da equipe do Projeto do Milênio, informações disponíveis em: <http://www.millennium-project.org/millennium/sof2008.html> . Acesso em 10 jun. 2010.
Figura 4 – Cartaz da empresa Social Technologies, exposto na reunião da WFS em 2008 e banners publicitários de alguns de seus trabalhos de prospecção.
Rand Corporation. A esses autores atribui-se a concepção do Método Delphi14. No
caso do cartaz, a Social Technologies é uma empresa de pesquisa e consultoria, especializada na integração dos portfólios de foresight, estratégia e inovação. Tem escritórios em Washington DC; Londres, Tel Aviv e Xangai e investiga temas como os que aparecem na figura 4: ―o futuro dos homens americanos‖, ―o futuro da felicidade‖, entre outros.
Não somos os primeiros a fazer a descoberta dessa inter-relação. Quando o Instituto de Tecnologia Social, por intermédio de Martina Rillo Otero – então responsável pelo subprojeto Mapeamento Nacional de Tecnologias Sociais produzidas e/ou utilizadas pelas ONGs –, narrou como procedeu em sua pesquisa
bibliográfica, reveladora de ―21 organizações e 26 textos‖ (INSTITUTO DE
TECNOLOGIA SOCIAL, 2004, p. 125), houve menção ao artigo de um dos mais célebres pensadores desse grupo, Joseph Coates15. Eis um trecho que descreve o entendimento desse autor sobre tecnologias sociais naquela época:
Há uma forte resistência por parte de servidores públicos, membros do Congresso dos Estados Unidos, empresas e até no círculo acadêmico em reconhecer e assentir que muito do que ocorre na sociedade, por meio da criação e do desenvolvimento institucionais, das inovações nas práticas institucionais e mecanismos para criar, gerir, financiar e manipular instituições são tecnologias sociais.16 (COATES, 2001, p. 2)
Deve-se aos futuristas a inclusão de social technologies na Wikipédia. O verbete foi inserido com a menção de que o primeiro uso dessa expressão se encontra no trabalho de Olaf Helmer, em 1966, e entre os significados consta: ―No uso corrente, tecnologia é tecnologia com propósito social, mas originalmente queria dizer a aplicação das ciências sociais com vários propósitos, especialmente a seleção e uso de especialistas para a tomada de decisão‖. (WIKIPEDIA, 2010).
14 Um grupo da Universidade Federal do Paraná publicou uma cartilha sobre o que é esse método: OLIVEIRA, Joelma de Souza Passos et al. Introdução ao Método Delphi. Curitiba: Mundo Material, 2008. 16 p. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/13927856/Introducao-ao-Metodo-Delphi>. Acesso em: 02 mar. 2010.
15 http://josephcoates.com/
16 Tradução da autora. Texto original
: ―There has been a consistent resistance on the part of public
officials, the U.S. Congress, business, and even academics to recognizing and acknowledging that much of what occurs in society by way of institutional practices, and mechanisms for creating,
2.3.3 Folk technology
A partir de janeiro de 2008,
Venkata Subramaniam começou a escrever uma coluna mensal sob a rubrica Folk Technology na revista indiana itmagz.com, sentindo-se inspirado, enquanto gerente de informações e análise da IBM em Nova Deli, em escrever sobre esse tema para uma audiência maior, além da academia. Manifesta seu interesse em analisar as
tecnologias que estão ―causando um
impacto na vida das pessoas‖, como
parece ser o caso dos jovens da figura 5.
No Brasil, folk technology seria sinônimo de tecnologia social.
Nesse caso da Índia, em particular, existe proximidade especialmente com o portfólio brasileiro da Inclusão Digital. Com certa diferença nas abordagens entre brasileiros do movimento de tecnologia social e aquelas que vemos em testemunhos de indianos que não têm os mesmos questionamentos do movimento brasileiro em relação ao sistema capitalista, o que será explicitado quando se abordarem as TSs no Brasil.
Subramaniam aponta a Revolução Verde como momento de virada para o seu país e, embora aposte na Revolução das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), ressalta que os efeitos só se fazem sentir no topo da pirâmide e conclui:
Precisamos lançar as bases para as tecnologias do amanhã que aumentarão o nosso Produto Interno Bruto (PIB), da mesma forma que a Revolução Verde fez há décadas. Precisamos de tecnologistas e empreendedores que possam pensar de maneira suficientemente inovadora para disseminar incubadoras que possam mudar esse jogo.17‖ (SUBRAMANIAM, 2008, p. 35)
17Tradução da autora. Texto o
riginal: ―We need to lay the foundation for tomorrow‘s technologies that
will take our gross domestic product (GDP) up just the way the green revolution did many decades ago. We need technologists and entrepreneurs who can think innovatively enough to spawn game-changing start-ups in India‖.
A revista inglesa The Economist, em sua edição de janeiro de 2010 (WORTH, 2010), antecipou a divulgação dos resultados da pesquisa feita por Aparajita Goyal18, do Banco Mundial, sobre as vantagens de um sistema de informação
on-line com acesso direto para os produtores rurais de Madhya Pradesh, estado da Índia Central. Nessa localidade, os agricultores vendem sua produção de soja para terceiros, em sessões públicas regulamentadas pelo governo, o que se chama mandis, sistema elaborado com o intuito de proteger os produtores de intermediários inescrupulosos. Os intermediários, por sua vez, vendem a soja para companhias processadoras de alimentos. Em consequência de terem acesso à informação privilegiada sobre as variações do preço desses produtos nas diferentes regiões, os atravessadores negociavam preço bem aquém do valor de mercado com os agricultores.
Uma das empresas processadoras de alimentos, ITC Limited, decidiu instalar em outubro de 2000 uma rede de quiosques com acesso à Internet, denominados e-choupal (e-choupal em híndi quer dizer ―local de encontro na vila‖). No final de 2004,
havia 1.704 quiosques, que informavam os preços mínimos e máximos para a venda da soja em 60 mandis, valores atualizados diariamente, com a disponibilidade de outras informações de interesse para esses agricultores que passaram a poder realizar a venda de seus produtos diretamente às empresas interessadas. Goyal demonstra que os quiosques foram pagos com o que a empresa economizou em intermediações, e os agricultores obtiveram preços mais vantajosos que os praticados anteriormente.
Esse exemplo de folk19 technology remete-nos a um questionamento sobre o
Simple Inexpensive Mobile Computer (Simputer)20, o computador popular indiano,
comentário que surgiu em um fórum de discussão sobre esse artefato e foi citado por Mark Warschauer:
Por que um ‗trabalhador rural pobre e analfabeto‘, no meio do mato, precisa de um computador? Só porque você pode produzir esse computador barato, em massa e para as massas, não significa, necessariamente, que qualquer
18“
Direct Access to Farmers, and Rural Market Performance in Central India‖, por Aparajita Goyal. http://www.aeaweb.org/forthcoming/output/accepted_APP.php. Acesso em: 29 jan. 2010.
19 Folk
como adjetivo tem entre os significados possíveis ―aquela originada entre as pessoas comuns‖, nesse caso, em vez de originada seria tecnologia disseminada, ou tecnologia social ―reaplicada‖, como preferem os brasileiros.
20 Computador simples, barato, móve
um das massas precise de um ou, até mesmo, queira ter um.21 (WARSCHAUER, 2003, p. 68)
As respostas de indianos apontaram o exemplo dos e-choupals (segundo Subramaniam, beneficiam 4 milhões de agricultores indianos), com o fato de que na Índia 68 mil mulheres se tornaram ―telefonistas‖ (operators) de celulares em suas vilas (o uso do aparato não é individual e sim comunitário, com intermediação, interação entre as pessoas dessas localidades), e a diversidade relacionada à
abrangência familiar, ―o computador pode ser útil a qualquer parente ou membro da
rede do agricultor ‗analfabeto e pobre‘‖, respondeu um participante do fórum. As
interações com a tecnologia têm desfechos imprevisíveis, e ao contar com as interações bem-sucedidas, os defensores do leapfrogging22 advogam a aceleração
ou saltos nos estágios de desenvolvimento, no caso das telecomunicações, o uso de tecnologias disruptivas sem fio (wireless) em países que não têm o mesmo tipo de infraestrutura que o bloco dos desenvolvidos.
A provocação do comentário envolvendo alfabetização ―para o meio
eletrônico‖ e educação remete ao litteracy divide (alfabetização como divisor), correlacionada ao digital divide (divisão digital), e o que está em jogo não é só a habilidade de:
[…] decodificar ou codificar texto, mas também a atividade social de exercitar controle; como outras formas de alfabetização, subentende-se não só a habilidade de ler a palavra mas ler o mundo e, em certo sentido, escrever e reescrever o mundo23 (FREIRE e MACEDO, 1987 apud WARSCHAUER, 2003, p. 118)
A alfabetização tecnológica é outro divisor de águas que pode separar os residentes dos países em desenvolvimento dos países desenvolvidos, quando está em questão outro siginificado atribuído a folk technology, como ocorre em uma iniciativa da AS22024, junto a grupo de artistas de uma ONG de Providence, capital
21 Esse comentário, mencionado por Warschauer, foi encontrado em um fórum cujos arquivos estão disponíveis em: http://slashdot.org/articles/01/05/02/1822219.shtml. Tradução da autora. Texto original: ―Why does the ‗poor illiterate farmer‘ out in the fields need a computer? Just because you can mass-produce an inexpensive computer for the masses, doesn´t necessarily mean that everyone in the masses actually needs one. Or wants one for that matter.‖
22 A palavra foi introduzida por Schumpeter, inicialmente associada à teoria do desenvolvimento, com um significado de ―criatividade destrutiva‖ (WIKIPEDIA, 2010).
23 Tradução da autora. Texto original:
―[…] decoding and encoding text but also the social activity of exercising control. Like other forms of literacy, it entails not only reading the word but also reading the
world and, in a sense, writing and rewriting the world‖.
do menor estado americano, Rhode Island. Para essa coletividade, folk technology é sinônimo de:
[…] libertar os meios de produção de processos industriais que reforçam as desigualdades sociais e são desnecessários, bem como divulgar a ideia da folk technology como uma alternativa para a tecnologia feita para o consumo de massa pelas grandes corporações25 (MARCELO, 2008, p. 1) Em 2008, essa ONG pegou empréstimo de US$1,6 milhão com a Prefeitura de Rhode Island, em um projeto que irá lhe custar US$12 milhões, para ampliar o espaço do laboratório que pertence à comunidade. Trabalha com tecnologia de design e fabricação. O parceiro nessa empreitada é o Massachusetts Institute of Technology (MIT), de quem a ONG comprou as tecnologias de design e fabricação para permitir o acesso a qualquer um que queira experimentar os softwares e hardwares de robustez industrial: ―para sair de uma ideia, gerar um modelo no
computador e construir rapidamente um protótipo‖.
A ideia original é do Fab Lab26 do Center for Bits and Atoms (CBA) do MIT, e busca fazer com que o cidadão comum (ordinary people) não só aprenda sobre ciência e engenharia, mas também seja capaz de desenhar máquinas e fazer mensurações relevantes para melhorar a sua própria qualidade de vida. Surgiu de uma disciplina intitulada How to make (almost) anything [como fazer (quase) qualquer coisa].
Outros projetos que estão sendo desenvolvidos pelo Fab Labs incluem turbinas movidas a energia solar e eólica, computadores para rede sem disco duro, instrumentação analítica para a agricultra e saúde, entre muitos. A perspectiva é a de inverter o processo de invenção e inovação e possibilitar, a quem se interessar, que esta seja feita de baixo pra cima (bottom up), como explica Neil Gershenfeld do CBA, ao apresentar o Fab Lab da Noruega (vídeo disponível on-line27).
Um terceiro sentido associado à folk technology é aquele em que o adjetivo folk denota ancestralidade no uso e conhecimento de tecnologias cujas origens
25 Tradução da autora. Texto original:
―The AS220 Labs, according to its Web site, is ‗interested in
freeing the means of fabrication from wasteful, inequitable industrial processes and promulgating the
idea of ‗folk technology‘ as an alternative to corporate consumer technology.‖
podem ser até mesmo desconhecidas e estão em harmonia com o meio ambiente, sendo passadas de geração em geração, como é o caso do barco okibani na ilha Okinawa, no Japão. Nesse exemplo, Hidenobu (2006) conceitua folk technology
como ―uma tecnologia tradicional que é bem-sucedida em certa área ao fazer uso de ferramentas do dia a dia. Seu uso foi aprovado na natureza, na cultura e pela sociedade de determinada região, o que corresponde aos três fatores ambientais que permitem comprovar que se trata de folk technology‖, descreve em seu resumo.
2.3.4 Engenharia social
Um texto que reaparece nas buscas em diferentes bases é o de Rainer Knopff (1989), alemão-canadense, professor de ciência política na Universidade de Calgary, notório por seus estudos sobre a influência das decisões judiciais na formulação das políticas públicas canadenses, integrante da Escola de Calgary.
Nos capítulos 7 e 8 de seu livro Direitos humanos e tecnologia social: a guerra contra a discriminação, Knopff trata a questão da ação afirmativa como tecnologia social:
A tecnologia social construtivista tenta fazer com que a sociedade se conforme com os objetivos preconcebidos racionalmente. Para atingir a meta dos resultados de igualdade, a nova guerra contra a discriminação faz uso tanto da estratégia conformista quanto da acomodação; tenta mudar os grupos que estão em desvantagem para adequarem-se à sociedade, e também mudar a sociedade para agradar a esses grupos.28 (KNOPFF, 1989, p. 142)
Para o autor, a guerra contra a discriminação promoveria a igualdade social às custas do menosprezo à liberdade individual ou privada. ―Tanto a ação
afirmativa quanto a proibição da discriminação sistemática são recursos da
tecnologia social construtivista e correspondem aos interesses da ‗democracia guardiã‘‖29 (p. 142) (conceito que ele opõe ao de democracia liberal).
28 Tradução da autora. Texto original: ―Constructivist social technology attempts to make society
conform to rationally pre-conceived goals. To achieve the goal of equal results, the new war on discrimination makes use of both conformist and accommodationist strategies; it attempts either to
change disadvantaged groups to suit society or to change society to suit the groups‖.
29 In any case, both affirmative action and the prohibition of systemic discrimination are devices of