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2.

a

Edição

Revista

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1  A construção de uma teoria geral do afeto como elemento do Direito das Famílias

do matrimônio. Advirta-se, por oportuno: não se imagine, com isso,

que o impedimento matrimonial decorrente da proibição de incesto estaria sendo afrontando ou eliminado do sistema jurídico; apenas e tão somente, será superado no caso concreto, por meio da

derrotabili-dade (defeseability), para privilegiar as circunstâncias específicas de um

verdadeiro extreme case.

Secundus, também é possível projetar a derrotabilidade no campo

do direito real de habitação reconhecido ao cônjuge ou companheiro

so-brevivente (CC, art. 1.831).329 Cuida-se de regra normativa que

reconhe-ce a quem enviuvou o direito de continuar residindo no imóvel, de na-tureza residencial, que, durante a convivência, servia de lar para o casal, independentemente de ter direito meatório ou sucessório sobre o bem e independentemente do regime de bens. A finalidade da regra é dúplice: garantir uma qualidade de vida ao viúvo (ou viúva) e, ao mesmo tempo, impedir que o óbito de um dos conviventes sirva para afastar o outro da residência estabelecida pelo casal. A regra é visivelmente protecionista, portanto.330

Todavia, conquanto a regra se mostre válida, uma distorção práti-ca pode decorrer do reconhecimento do direito real de habitação. Basta imaginar uma pessoa que faleceu, deixando filhos menores de uma rela-ção antecedente, a quem prestava alimentos para a sobrevivência, e a viú-va (ex-cônjuge ou ex-companheira) e deixando, tão somente, um único imóvel – que havia adquirido anteriormente à relação afetiva e onde resi-dia com a consorte. Embora os filhos tenham o direito hereditário sobre o imóvel, adquirindo-o automaticamente pela regra sucessória (CC, art. 1.784), a viúva continuará nele residindo até que venha a falecer. A situa-ção pode ganhar contornos ainda mais dramáticos: imagine-se, agora,

329. Art. 1.831, Código Civil: “ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”

330. É uníssono o entendimento doutrinário: “é que a intenção manifesta do legislador – via direito real de habitação – não é punir ou suprimir direitos do cônjuge sobrevivente, mas sim, prote-ger os membros da família, assegurando-lhes o direito de habitação”, LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p.227.

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TEORIA GERAL DO AFETO Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa

que a viúva, inclusive, possui um imóvel, que tinha antes da relação, e que está alugado, uma vez que passou a residir no imóvel do falecido, quando se estabeleceu o relacionamento. Nessa hipótese, torna-se um drama próximo ao absurdo: a viúva, que possui um imóvel residencial próprio, alugado, permanecerá residindo no bem que servia de lar para o casal, enquanto os filhos (legítimos proprietários) ficam privados do exercício de seu direito, enquanto ela estiver viva, mesmo que constitua uma nova relação afetiva...

Trata-se, a toda evidência, de um extreme case. Não se trata de um caso comum, corriqueiro, mas, seguramente, factível. Para a solução dessa hipótese, a razoabilidade sinaliza para a derrotabilidade da regra

que estabelece o direito real de habitação, permitindo, então, uma solução

adequada e casuística.

Não significaria uma recusa peremptória e definitiva de reconhecer e aplicar a regra do direito real de habitação em favor de pessoas viúvas, em relação ao imóvel que serviu de lar para o casal. Trata-se, episódica e casuisticamente, de superar, derrotar, a norma-regra, garantindo o

impé-rio dos valores almejados pelo sistema (nessa hipótese, proteção integral e

prioridade absoluta da criança e do adolescente).

Tertius, também é possível prospectar a superabilidade das regras

em relação à irrevogabilidade da adoção, proclamada, coerentemente,

no Estatuto da Criança e do Adolescente.331 De fato, os efeitos

decor-rentes da decisão judicial que defere a adoção têm de ser irrevogáveis e

irretratáveis,332 evitando uma instabilidade familiar ou uma fraude

su-331. Art. 39, §1º, Estatuto da Criança e do Adolescente: “A adoção é medida excepcional e

irrevogá-vel, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança

ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei”.

332. A jurisprudência vem sendo firme nesse sentido: “adoção. Revogação. Impossibilidade. De acordo com o art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção é ato irrevogável, não podendo, depois de concretizada, ficar ao alvedrio daqueles que reconheceram espontanea-mente o filho. Motivos de arrependimento e ingratidão por parte do adotado não servem,

data venia, como fundamento ao presente pedido. Recurso improvido” (TJ/RJ, Ac. 11ªCâm.Cív.,

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1  A construção de uma teoria geral do afeto como elemento do Direito das Famílias

cessória.333 Há lógica: “por estar sendo formada uma família, por estar

sendo concebido um filho através da adoção, por ser este filho idênti-co a qualquer outro, já que filho, o legislador, disciplinou ser irrevo-gável a adoção. O filho biológico não pode ser devolvido, o vínculo de parentesco se mantém por toda a vida e até depois dela; não poderia ser diferente com relação à adoção... Rompido o vínculo de parentesco

com a criação de um vínculo novo, aquele não mais se restabelece”.334

Enfim, a adoção é para sempre – e não poderia ser diferente.335

Dúvi-da inexiste, assim, de que a regra Dúvi-da irrevogabiliDúvi-dade Dúvi-da adoção é váliDúvi-da. Além de compatível com o princípio explicitado pelo Texto Magno (no-tadamente com o seu art. 227 que assegura a proteção integral infantoju-venil), também se concilia, visivelmente, com os princípios norteadores do Texto Estatutário.

Vale, então, prospectar uma hipótese, fazendo alusão a um inte-ressante caso dirimido pela Corte de Justiça mineira – que autorizou o cancelamento de uma adoção, com o propósito de impedir uma re-lação incestuosa entre o adotado e a sua irmã, uma filho do adotan-te e, como consequência, a nulidade do casamento, do qual já tinha decorrido, inclusive, filhos. O caso chama a atenção: uma garota foi adotada, quando criança, pela prima de sua mãe biológica. A adotan-te já tinha dois filhos biológicos e a adotada continuou convivendo com a sua avó materna e se relacionando com os novos irmãos com um vínculo idêntico ao que já tinham anteriormente. Isto é, não se estabeleceu uma relação fraterna. Posteriormente, a adotada passou a conviver maritalmente com um deles, inclusive advindo filhos desse relacionamento afetivo – o que motivou o pedido de cancelamento da adoção, na medida em que o casal era composto por dois irmãos

333. Art. 49, Estatuto da Criança e do Adolescente: “a morte dos adotantes não restabelece o pátrio poder dos pais naturais”.

334. BORDALLO, Galdino Augusto Coelho, Adoção, op. cit., p.189.

335. Bem por isso, o art. 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece o desligamento dos vínculos biológicos como efeito da adoção: “a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.”

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TEORIA GERAL DO AFETO Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa

(adotivos), pais de um filho. O Pretório de Minas Gerais, excepcio-nando a regra da irrevogabilidade, deferiu o pedido de cancelamento da adoção, restabelecendo o vínculo biológico. Consta da fundamen-tação do acórdão:

Trata-se de realidade fática – singular, diferenciada e especia-líssima – cujo exame exige cautela e ponderação, porquanto envolve valores ético-constitucionais, impendendo exarar que ‘as disposições legais não esgotam todo o conteúdo da tutela da personalidade humana, surgindo aspectos que não encon-tram proteção nas normas legais existentes’, como ensina Sílvio Romero Beltrão... Poder-se-ia, simplesmente, negar provimen-to ao recurso, ao singelo argumenprovimen-to de que “a adoção é irrevo-gável”, aplicando-se a regra legal. Tem-se, de um lado, o texto letárgico e indiferente da lei, que estabelece a irrevogabilidade da adoção; de outro, prerrogativa fundamental, atinente à dig-nidade da pessoa humana, cuja peculiaridade e especificidade, do caso concreto, recomenda (ou melhor, exige) a análise sob inspiração hermenêutico-constitucional, com engenhosidade intelectual, social e jurídica, a fim de se alcançar o escopo mag-no da jurisdição: a pacificação social.

Cuida-se, a mais não poder, de uso da derrotabilidade das

normas--regras, superando-se, episódica e casuisticamente, a regra geral do

sis-tema (que continuará sendo – e não pode ser diferente – a irrevogabili-dade da adoção). Apenas excepcionou-se a regra em um caso justificável (extreme case) para o amplo respeito aos princípios fundamentais do ordenamento, em especial à dignidade humana. O precedente merece referência:

Adoção. Elementos e circunstâncias dos autos. Direito funda-mental à dignidade da pessoa humana. Cancelamento do ato. Possibilidade jurídica do pedido em abstrato, no caso concreto. Interpretação teleológica/sociológica. Princípios da proporcio-nalidade e razoabilidade. Teoria da concreção jurídica. Técnica da ponderação. Situação fático-social. Criança. Proteção inte-gral, com absoluta prioridade. Sentença anulada. Recurso pro-vido.

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1  A construção de uma teoria geral do afeto como elemento do Direito das Famílias

Tem-se conflito das realidades fático-social e jurídica, ocasio-nado pela escolha indevida do instituto da adoção, ao invés da tutela.

Não se olvida que a adoção é irrevogável, mas o caso sob exame revela-se singular e especialíssimo, cujas peculiaridades reco-mendam (ou melhor, exigem) sua análise sob a ótica dos direitos fundamentais, mediante interpretação teleológica (ou socioló-gica), com adstrição aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se azo, com ponderação, à concreção jurí-dica, máxime por envolver atributo da personalidade de criança advinda de relacionamento ‘aparentemente’ incestuoso, até por-que o infante tem proteção integral e prioritária, com absoluta prioridade, assegurada por lei ou por outros meios. (TJ/MG, Ap-Cív.1.0056.06.132269-1/001(1) – comarca de Barbacena, rel. Des. Nepomuceno Silva, j.6.12.07, DJMG 9.1.08, p.5)336

Infere-se, pois, que nenhuma norma-regra pode impedir eventuais exceções, em casos concretos, justificados. Assim, em casos raros, pon-tuais e especiais (extreme cases), será possível o cancelamento da adoção e o restabelecimento do poder familiar com a intenção de resguardar os interesses existenciais (jamais para fins patrimoniais) e a dignidade do próprio adotado.

Até porque, como já dizia Tito Lívio, desde priscas eras, “nenhuma

lei se adapta igualmente bem a todos”.337

336. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, igualmente, já possui um precedente, marcado pelo mesmo caráter de excepcionalidade: “Adoção. Revogação. Possibilidade em casos excep-cionais. Tal excepcionalidade configura-se bem no caso concreto, onde o vínculo legal jamais se concretizou no plano fático e afetivo entre adotante a adotada, uma vez que esta nunca deixou a convivência de seus pais sanguíneos. Adoção que nunca atingiu sua finalidade de inserção da menor como filha da adotante.” (TJ/RS, Ac. 7ª Câm. Cív., ApCív. 70003681699 – co-marca de Porto Alegre, rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 27.2.02).

337. Tito Lívio (59 a.C-17 d.C) nasceu em Pádua, Itália, e foi pesquisador e historiador latino. História de Roma integrou a sua grande obra Ab Urbe condita libri (Desde a fundação da cidade), com-posta por cento e quarenta e dois livros, dos quais apenas trinta e cinco conseguiram chegar até os nossos dias.

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CAPÍTULO 2

O afeto como estrutura normativa aplicativa

nas relações familiares patrimoniais

e nas questões sucessórias

Sumário: 2.1 A indenização por abandono afetivo compreendida em perspectiva ética (postulado da afetividade); 2.1.1 A incidên-cia dos instrumentos da responsabilidade civil nas relações familiares; 2.1.2 Ato ilíci-to e responsabilidade subjetiva nas relações de família; 2.1.3 Abandono afetivo versus violação do dever de cuidado: aplicação da norma a partir da estrutura do postulado da afetividade; 2.1.4 A competência para processar e julgar o pedido indenizatório e a prescrição ; 2.2 A separação de fato e a cessação dos efeitos patrimoniais do casa-mento e da união estável: interpretação das normas legais a partir da estrutura da afe-tividade; 2.2.1 A tutela jurídica da confian-ça aplicável nas relações de família à luz da afetividade; 2.2.2 A não comunhão dos bens adquiridos após a separação de fato como resultado de interpretação conforme o pos-tulado da afetividade; 2.2.3 A questão da aquisição de bens após a separação de fato com sub-rogação de patrimônio adquirido na constância da relação e o uso do método

distinguishing; 2.2.4 A relevância da defini-ção do momento da separadefini-ção de fato para a partilha de bens, a teoria da carga dinâmica da prova e o eventual cabimento de agravo de instrumento; 2.2.5 A exclusão sucessória interpretada à luz do postulado da afetivida-de; 2.3 A interpretação da obrigação alimen-tícia à luz do postulado da afetividade; 2.3.1 A obrigação alimentar no sistema jurídico brasileiro; 2.3.2. Postulado da afetividade como meio interpretativo para a estipulação da obrigação alimentar; 2.3.2.1 Alimentos voluntários; 2.3.2.2 Os alimentos em favor de enteados; 2.3.3 O afastamento da obri-gação alimentar compreendido à luz do postulado da afetividade; 2.3.3.1 A relativi-zação da reciprocidade alimentar; 2.3.3.2 A indignidade no direito aos alimentos; 2.3.3.3 A culpa pode apresentar consequências nos alimentos decorrentes das dissoluções afeti-vas? Uma proposta de interpretação à luz do postulado da afetividade; 2.3.3.4 Liberdade versus culpa: a responsabilidade pelas esco-lhas realizadas durante a vida.

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TEORIA GERAL DO AFETO Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa

“Porque eu sei que é amor, eu não peço nada em troca; Porque eu sei que é amor, eu não peço nenhuma prova; Mesmo que você não esteja aqui, o amor está aqui agora; Mesmo que você tenha que partir, o amor não há de ir embora; Eu sei que é pra sempre, en-quanto durar; Eu peço somente o que eu puder dar.” (Titãs, Porque eu sei que é amor, de Sérgio Britto e Paulo Miklos)1

PREÂMBULO AO CAPÍTULO 2

Esgrimida a teoria geral do afeto, inclusive com o enquadramento de sua correta posição topológica como postulado normativa aplicativo das normas (regras e princípios) do Direito das Famílias, é producente apresentar casos concretos referentes às relações patrimoniais familiares, para fins de compreensão prática dos argumentos teóricos estabelecidos.

Todas as hipóteses problematizadas serão interpretadas à luz das normas respectivas, com a estrutura da afetividade como pedra de toque hermenêutica e ilustradas com decisões das Cortes Superiores.

2.1. A INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO

COM-PREENDIDA EM PERSPECTIVA ÉTICA (POSTULADO

DA AFETIVIDADE)

2.1.1 A incidência dos instrumentos da responsabilidade civil nas relações familiares

Por conta da influência da tese do interpousal immunity (imunidade interfamiliar ou interconjugal), oriunda da tradição anglo-saxã, durante muito tempo prevaleceu a impossibilidade de reparação de danos

causa-dos entre pessoas de uma mesma família.2 A ideia tinha um background

1. Porque eu sei que é amor integra o 13º álbum de estúdio da banda de rock brasileira Titãs, intitulado Sacos Plásticos, lançado em 2009, tendo servido como trilha sonora de conhecida novela. Devido ao enorme sucesso, a música mereceu, inclusive, uma versão acústica, dez anos depois.

2. Na literatura jurídica lusitana, Ângela Cristina da Silva Cerdeira apresenta uma profunda pes-quisa sobre o tema, ressaltando que “nenhum acto ilícito praticado por um dos cônjuges em

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2  O afeto como estrutura normativa aplicativa nas relações familiares patrimoniais

bíblico (Epístola de São Paulo aos Efésios 28:30-31) de que “os cônjuges são uma só carne” (unity os spouses). Com o passar dos tempos, am-pliou-se a sua compreensão para abranger as pessoas que compunham os núcleos familiares como um todo.

Atualmente, todavia, com a incidência dos valores constitucionais, é certa e incontroversa a possibilidade de reparação civil de danos de-correntes de práticas ilícitas (CC, arts. 186 e 187) entre os componentes de uma entidade familiar, estejam entrelaçados pela conjugalidade, pelo companheirismo, pela parentalidade, pela tutela, pela curatela ou pela tomada de decisão apoiada ou por qualquer outro laço.

Em razão disso, consequentemente, abre-se um fecundo espaço para a aplicação do sistema indenizatório nas relações familiares, em decorrência de eventuais atos ilícitos (= antijurídicos, contrários à nor-ma jurídica), como sói ocorrer em qualquer situação jurídica. É o que

deflui em casos de lesões corporais e ofensas à saúde,3 injúrias, calúnias

e difamações (violações da honra em geral),4 transmissões de doenças

venéreas,5 imputação indevida de paternidade sabidamente equivocada,6

dentre outras infinitas hipóteses.7

prejuízo do outro podia constituir fonte de responsabilidade” e, por conseguinte, impedia-se que “um cônjuge intentasse uma acção contra o outro”, CERDEIRA, Ângela Cristina da Silva. Da responsabilidade civil dos cônjuges entre si, op. cit., p. 19-20.

3. “Constitui dano moral a lesão a qualquer dos aspectos componentes da dignidade humana – dignidade esta que se encontra fundada em quatro substratos e, portanto, corporificada no conjunto dos princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidarieda-de. Circunstâncias que atinjam a pessoa e sua condição humana, que neguem essa sua qualida-de, serão automaticamente consideradas violadoras de sua personalidade e, se concretizadas, causadoras de dano a moral a ser reparado”, ROSA, Conrado Paulino da; CARVALHO, Dimas Messias de; FREITAS, Douglas Phillips. Dano moral e Direito das Famílias, op. cit., p. 83. 4. CARVALHO NETO, Inácio de. Responsabilidade civil no Direito de Família, op. cit., p. 335. 5. “A transmissão de doenças venéreas sempre foi causa das piores consequências e da maior

vergonha e dissabor”, OLTRAMARI, Vitor Ugo. O dano moral na ruptura da sociedade conjugal, op. cit., p. 119.

6. Nesse sentido, CARVALHO NETO, Inácio de. Responsabilidade civil no Direito de Família, op. cit., p. 530: “seria, v. g., o caso de a mãe, representando a criança, propor a ação de investigação de paternidade contra alguém que ela sabe não ser o pai da criança. Trata-se de hipótese de abuso do direito de ação”.

7. Já se prospecta, até mesmo, a possibilidade de indenização por danos morais decorrente do persistente e recorrente inadimplemento da obrigação alimentícia, por conta da afronta

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TEORIA GERAL DO AFETO Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa

Diante da farta possibilidade de práticas ilícitas em relações fami-liares, incidem os instrumentos da Responsabilidade Civil nas relações familiaristas, permitindo o manejo das categorias atinentes ao ressar-cimento (pretensões reparatórias de danos) e/ou à prevenção de danos (tutelas específicas para as obrigações de fazer e de não fazer).

Aliás, antes mesmo do advento do Código Civil de 2002, a jurispru-dência já reconhecia a aplicabilidade dos instrumentos da responsabili-dade civil nas relações familiares, admitindo, ilustrativamente, a possibi-lidade de indenização por danos morais entre cônjuges e companheiros,

por conta de danos ocasionados durante a relação afetiva.8

Chame-se a atenção, particularmente, para o fato de que a incidência dos instrumentos da Responsabilidade Civil no Direito das Famílias não viabiliza, tão somente, indenizações por prejuízos já experimentados, mas, por igual, a possibilidade de utilização dos mecanismos processuais de prevenção/eliminação de danos, através da cláusula geral (aberta) de

concessão de tutelas específicas, conforme o permissivo dos arts. 4979 e

49810 do Código de Processo Civil.

Isso porque, seguindo a linha de orientação mais contemporâ-nea, não se pode represar o Direito dos Danos somente na ideia de

causada à dignidade do credor. Pioneiramente sobre o tema, vide ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família contemporâneo, op. cit., p. 449 e seguintes.

8. Nessa direção, o Superior Tribunal de Justiça já reconhecia, de há muito, que “o sistema jurídico brasileiro admite, na separação e no divórcio, a indenização por dano moral. Juridi-camente, portanto, tal pedido é possível: responde pela indenização o cônjuge responsá-vel exclusivo pela separação; caso em que, diante do comportamento injurioso do cônjuge varão, a Turma conheceu do Especial e deu provimento ao recurso, por ofensa ao art. 159 do Código Civil de 1916 (art. 186 do Código Civil de 2002), para admitir a obrigação de se ressarcirem danos morais” (STJ, Ac. 3ª T., REsp. 37.051/SP, rel. Min. Nílson Naves, j. 17.4.01, DJU 25.6.01).

9. Art. 497, Código de Processo Civil: “na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará provi-dências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.”

10. Art. 498, Código de Processo Civil: “na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação. Parágrafo único. Tratando-se de entrega de coisa determinada pelo gênero e pela quantidade, o autor individualizá-la-á na petição inicial, se lhe couber a escolha, ou, se a escolha couber ao réu, este a entregará individualizada, no prazo fixado pelo juiz.”

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2  O afeto como estrutura normativa aplicativa nas relações familiares patrimoniais

reparação/compensação do prejuízo ocasionado, mas, por igual, se impõe a adoção de providências para obstar a sua ocorrência. É a

cha-mada função precaucional da Responsabilidade Civil.11 Com isso, a

utilização das técnicas de tutela específica pode se mostrar adequada para precaver a ocorrência de danos, inclusive nas relações familiares. Exemplificativamente, pode ser lembrada a possibilidade de concessão pelo magistrado – de ofício ou a requerimento do interessado ou do Ministério Público, quando participar do processo (CPC, arts. 178 e 698) – das medidas de apoio tendentes à obtenção do resultado prático

equivalente nas relações familiares.

Dentre as (exemplificativas) medidas de tutela específica a fixação

de multa periódica, apelidada de astreintes, contemplada nos arts. 53612

e 53713 do Código Instrumental, pode se mostrar com particular eficácia

nas demandas de família. Cuida-se de uma tutela inibitória, com a pre-tensão de atuar impedindo a ocorrência da prática ilícita. Certamente, a depender do caso, a fixação de uma multa periódica pode exortar a parte ao cumprimento da providência que se pretende, servindo como um de-sestímulo ao descumprimento.

Um palco iluminado para a aplicação das astreintes nas lides de famí-lia é a regulamentação da convivência com filhos menores. Nos casos em que um dos pais termina impedindo, ou embaraçando, a concretização

11. A respeito, para aprofundamento, vide FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRA-GA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil, op. cit., p. 85: “Para enfrentar risco e ameaças iminentes, de forma a antecipar certa carga de segurança social, o Direito se acautela lançando mão dos princípios da prevenção e da precaução”.

12. Art. 536, Código de Processo Civil: “no cumprimento de sentença que reconheça a exigibili-dade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente. § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.”

13. Art. 537, Código de Processo Civil: “a multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.”

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TEORIA GERAL DO AFETO Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa

do direito de convivência pelo outro, frustrando o convívio paterno-filial, pode ser arbitrada uma multa periódica para exortar a parte a respeitar a visitação pela outra. A jurisprudência superior orienta nesse diapasão, autorizando o uso da tutela inibitória para desestimular a frustração da convivência familiar:

A aplicação das astreintes em hipótese de descumprimento do regime de visitas por parte do genitor, detentor da guarda da criança, se mostra um instrumento eficiente, e, também, me-nos drástico para o bom desenvolvimento da personalidade da criança, que merece proteção integral e sem limitações. (STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp 1.481.531/SP, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 16.2.17, DJe 7.3.17)

Indo mais longe, à luz da percepção de que a tutela específica pode ser aplicada nas relações familiares com o escopo de impedir a prática de atos ilícitos, defendemos a possibilidade de idêntica solução (fixação das astreintes, como medida de tutela inibitória) para a hipótese

inver-sa, quando o genitor que deve exercer a convivência, imotivadamente,

deixa de realizá-la, deixando o filho sem o convívio, ao mesmo tempo

em que impõe ao outro despesas extraordinárias.14 Nesse caso, além do

cabimento da multa periódica, também é possível sustentar o eventual cabimento de perdas e danos, quando a ampliação da convivência com um dos genitores importar em acréscimo de despesas.

2.1.2. Ato ilícito e responsabilidade subjetiva nas relações de família

Não se pode afirmar, certamente, que as relações familiares caracte-rizariam uma atividade de risco para os seus componentes, até por conta de sua peculiar natureza.

14. No mesmo sentido, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias, op. cit., p. 142; ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família contemporâneo, op. cit., p. 372.

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2  O afeto como estrutura normativa aplicativa nas relações familiares patrimoniais

Por isso, a incidência dos instrumentos da Responsabilidade Civil nas relações familiares depende da caracterização de um ato ilícito (CC, arts. 186 e 187). É dizer: a adoção de medidas preventivas (tutelas es-pecíficas) e/ou reparatórias/compensatórias (o dever de reparar danos) depende, necessariamente, da ocorrência de uma ilicitude.

Nessa ordem de ideias, resulta inexorável afirmar que, nas relações

familiaristas, a responsabilidade civil é subjetiva,15 exigida a

comprova-ção da culpa do agente para a decorrência de efeitos.16 É o exemplo da

violência doméstica e familiar, causadora de lesões corporais, ofensas fí-sicas e psicológicas, impondo a reparação dos danos morais e materiais. Não poderia ser diferente. Admitir a responsabilização objetiva, inde-pendentemente de culpa do agente, nas relações afetivas seria entronizar um risco que lhe é estranho, estabelecendo um sobressalto na esponta-neidade dos relacionamentos familiares.

A comprovação da culpa pela conduta ilícita, ordinariamente, é ônus de prova da vítima, seguindo a regra geral da normatividade processual (CPC, art. 373). A depender do caso, entretanto, o juiz pode determinar uma distribuição diferenciada do ônus de prova, utilizando da teoria da carga dinâmica da prova.17

Verticalizando o estudo da culpa como elemento necessário à res-ponsabilidade civil no Direito das Famílias, não se pode olvidar que há precedente da Corte Superior de Justiça impondo o dever de ressarci-mento decorrente de dolo eventual, a partir de um paralelo com a legis-lação penal. Trata-se de um caso, do estado de Minas Gerais, em que um

15. Para aprofundamento sobre a necessidade de prova da culpa na responsabilidade civil fami-liar, veja-se ROSA, Conrado Paulino da; CARVALHO, Dimas Messias de; FREITAS, Douglas Phil-lips. Dano moral e Direito das Famílias, op. cit., p. 73 e seguintes.

16. A jurisprudência superior, por igual, reconhece que se trata de responsabilidade subjetiva, exigida a prova da culpa. Vide: STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp. 1.557.978/DF, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 3.11.15, DJe 17.11.15.

17. Pode o magistrado variar a carga relativa ao dever de provar conforme se mostre mais viável a uma das partes demonstrar determinados fatos, o que pode ser relevante nas pretensões indenizatórias familiaristas. Sobre o tema, veja-se GIORGIS, José Carlos Teixeira. A prova dinâ-mica no Direito de Família, op. cit., p. 25.

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TEORIA GERAL DO AFETO Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa

cônjuge transmitiu doença venérea para o outro. Apesar da ausência de prova efetiva de que o réu tinha conhecimento de ser portador do vírus, o Colegiado impôs a obrigação reparatória considerando que, conquan-to não tivesse ciência, a parte assumiu o risco de produzir o resultado pela falta de cuidado no uso de substâncias entorpecentes:

(...) 4. Assim, considera-se comportamento de risco a plurali-dade de parceiros sexuais e a utilização, em grupo, de drogas psicotrópicas injetáveis, e encontram-se em situação de risco as pessoas que receberam transfusão de sangue ou doações de leite, órgãos e tecidos humanos. Essas pessoas integram os de-nominados ‘grupos de risco’ em razão de seu comportamento facilitar a sua contaminação.

5. Na hipótese dos autos, há responsabilidade civil do reque-rido, seja por ter ele confirmado ser o transmissor (já tinha ciência de sua condição), seja por ter assumido o risco com o seu comportamento, estando patente a violação a direito da personalidade da autora (lesão de sua honra, de sua intimida-de e, sobretudo, intimida-de sua integridaintimida-de moral e física), a ensejar reparação pelos danos morais sofridos. (STJ, Ac. unân. 4ª T., REsp. 1.760.943/MG, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 19.3.19, DJe 6.5.19)

Chama a atenção no aresto, particularmente, a correta utilização da afetividade que permeia as relações familiares como estrutura para a interpretação e aplicação das normas (regras e princípios) aplicáveis ao caso. A da parte inicial da ementa evidencia esta estruturação inter-pretativa lastreada no afeto. Consigna o culto Ministro Relator: “a famí-lia deve cumprir papel funcionalizado, servindo como ambiente propício

para a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como

alicerce fundamental para o alcance da felicidade. No entanto, muitas vezes este mesmo núcleo vem sendo justamente o espaço para surgimen-to de intensas angústias e tristezas dos entes que o compõem, cabendo ao aplicador do direito a tarefa de reconhecer a ocorrência de eventual ilícito e o correspondente dever de indenizar”.

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2  O afeto como estrutura normativa aplicativa nas relações familiares patrimoniais

Dúvida inexiste de que se realizou uma interpretação pela ética da

alteridade aqui proposta como conteúdo do postulado da afetividade,

que serve como estrutura para a interpretação e aplicação das normas familiaristas.

Ainda abordando a necessária demonstração da culpa do agente para a responsabilização civil nas relações de família, é importante afastar a pretensão de imputação do dever de indenizar a terceiros, restringin-do-se aos componentes de uma família. Isso porque não se pode exigir de terceiros o atendimento de deveres inerentes a uma relação da qual não faz parte. É o exemplo dos deveres de fidelidade, lealdade, respeito e colaboração (CC, arts. 1.566 e 1.724), impostos aos cônjuges e aos com-panheiros, mas não oponíveis a terceiros. Com isso, frustra-se a tentativa de imputar o ressarcimento por danos morais ao amante ou à amante, uma vez que as obrigações familiares operam efeitos intra partes, sem qualquer oponibilidade a terceiros. Eventual obrigação de reparar danos em casos tais deve ser imputada ao cônjuge ou companheiro, e não a terceiros. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já cimentou o enten-dimento de que o terceiro-cúmplice não tem dever de indenizar a vítima de adultério:

O dever de fidelidade recíproca dos cônjuges é atributo bá-sico do casamento e não se estende ao cúmplice de traição a quem não pode ser imputado o fracasso da sociedade con-jugal por falta de previsão legal. (STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp. 922.462/SP, rel. Min. Ricardo Vilas Bôas Cueva, j. 4.4.13, DJe 13.5.13)

2.1.3. Abandono afetivo versus violação do dever de cuidado: aplicação da norma a partir da estrutura do postulado da afetividade

Talvez uma das mais acesas e intensas polêmicas já presenciadas, em todos os tempos, no Direito das Famílias diz respeito à (im)possibilidade de indenização por abandono afetivo.

Referências

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