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Fina. memória tempo presente

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Academic year: 2021

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Fina

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editor Matheus Lopes Quirino

editor-adjunto André Vieira editora de ficção Giovana Proença

colunistas Bruno Pernambuco, Gabriel Solti Zorzetto e Sibélia Zanon

com ilustrações de Ligia Zilbersztejn (contracapa) e Adão Iturrusgarai e foto de capa de Todd Mecklem e a colaboração de Affonso Duprat, que assina também o projeto gráfico

contatos – revistafina@gmail.com instagram – @revistafina revistafina.wordpress.com

Edição número 1. novembro de 2020. Fina foi fundada em 19 de outubro de 2020. Edição concluída em 29/10/2020 às 21:21 Fina é uma revista de literatura e cultura, editada por entusiastas, escritores e artistas. Sem fim lucrativos, a diretriz principal é propagar ideias e incentivar a cultura do livro.

Ligia Zilbersztejn

Adão Iturrusgarai

licença poética

Fina é uma revista prematura. Nem tanto pelo

conteúdo que aqui está, esse sim maduro, mas pela rapidez com que a redação se formou. Os anseios se concretizaram e a vontade de vir ao mundo acelerou o passo, podendo finalmente ser compartilhada com os leitores. Desta vez, complicada ainda mais pelo momento que vivemos. Uma crise excepcional, pelo Coronavírus, mas também por conta do salve-se quem puder em que se transformou o Brasil. Diariamente, cabeças são bombardeadas com incontáveis projéteis de mediocridade. A intenção cá é ir na contramão, organizando esta publicação nas seguintes seções: Gente fina, onde dão as caras pessoas e personas que têm algo a dizer, além de perfis e entrevistas sempre com alguém em foco.

Linha fina é o espaço dedicado a artigos sobre

temas culturais. Quinta história creditamos à ficção. Temos cá, como personagem da edição, o cartunista Adão Iturrusgarai, e os caminhos que percorreu. Na literatura, uma conversa com Ottessa Moshfegh, ficções de Sibélia Zanon, Giovana Proença e André Vieira. Além dos colunistas sempre atentos, prestando homenagens a Toni Morrison, Sylvia Plath a Buda e Zuza Homem de Mello. Evoé e boa leitura!

os editores

fina flor

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gente

Fina

e o Abaporu?

Matheus Lopes Quirino

Escuta-se um solo do Miles do fundo da sala, uma rola, ops, rolha estoura de uma garrafa chique de vinho. Risadas altas e recheadas de onomatopeias, peitos e narizes e pipis, pênis, pintos, pajubás, etc. E qualquer objeto fálico. Político raivoso, cão que ladra contra gato, que faz piada contra rato. E mais risada. Filosofia, alucinógenos, “Dr. Quanto tempo eu tenho?”: o de um churrasco! E diz Adão, “A vida não é mole nem dura, ela é al dente”. O leitor sagaz já sabe onde estamos. Este é o universo da tira de Adão Iturrusgarai.

Aos 55 anos, Adão goza de uma reputação tri bacana, como dizem em sua terra natal, a miúda Cachoeira do Sul (RS). Promessa daquela terra onde muito se planta e come arroz, ele nasceu “Com o cu virado para a lua”, lhe disse uma vizinha certa vez quando, aos 6 anos, o pequeno Adão debutou em um jornal. Talvez fosse a primeira caricatura de si mesmo, estampada no diário local por ganhar um aparelho de toca-discos laranja. Sua sorte veio talhada em um palito premiado de um picolé de coco da Kibon, comprado em um posto de gasolina perto de sua casa. Hoje, quase 50 anos depois do feito, Adão tem um espaço fixo no caderno Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, além de colaborar com várias publicações.

Entre o pinball do fliperama de Cachoeira do Sul, enlameados jogos de futebol e os quadrinhos de Tom & Jerry e A pantera cor de rosa – que, na verdade era preta e branca na televisão daquela época –, Adão teve uma infância analógica, rabiscando, brincando com a molecada da vizinhança e até arrumando briga por causa de figurinhas. Impensável comportamento para a geração condomínio de hoje. Ainda moço ele deixou sua terra natal para cursar Publicidade e Propaganda na PUC em Porto Alegre, no ano seguinte, começou o curso de artes plásticas na UFRGS; aos poucos, à época se ambientando na rotina cultural e cosmopolita de uma capital nos anos 1980, sua vida ia tomando o rumo certo e o sucesso, ao contrário de tantos alcoólicos anônimos, deu as caras pela primeira vez em um bar. Foi quando conheceu o escritor (e também cartunista) Luís Fernando Veríssimo. Através de um habitué do boteco universitário que frequentava, um esquisitão de capa conhecido como Alemão, não demorou para o jovem Adão ligar à casa do escritor com o coração na boca. E deu certo. Recebido por Veríssimo, ele conseguiu arrancar risos do mestre, que fez sua ponte com outro gigante das histórias em quadrinhos, o Angeli. Naquela época de ouro (os anos 1980), Veríssimo publicou em sua coluna no jornal Zero Hora uma tira de Adão Iturrusgarai. Era o retorno do jovem Adão às páginas de um diário, e lá ele está até hoje.

Há (quase) cinco décadas, o jovem Adão Iturrusgarai

aparecia pela primeira vez em um jornal

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“Em alguns momentos eu não tive dinheiro para comer, nem para pegar um ônibus. Hoje me sinto privilegiado como artista. Não sou rico, mas vivo bem. Tem que trabalhar bastante.”, diz o cartunista, durante nosso troca-troca de e-mails e telefonema. Adão é conhecido pelas tiras fanfarronas, escrachadas, que são recheadas de piadas infames e bastante humor negro. “Dá para fazer piada sobre tudo. Eu acho que o humor não deve ter limites. Mas o humor acaba evoluindo como evolui a sociedade. Algumas piadas ficam datadas, outras envelhecem mal e tem aquelas que perdem a graça”, diz ele. Ele fala de tudo, vale até futebol e religião, embora não seja um devoto das escrituras do primeiro Adão, cairia melhor um livrinho caliente, escrito por Xico Sá, conhecido como Catecismo de Devoções, Intimidades e Pornografias. Obra diminuta de magnânima putaria, que certamente se encontra em alguma gaveta de cabeceira da personagem Aline, uma das mais célebres de Adão. Fogosa e versátil, sua criação não partiu de costela alguma, Aline merece o título de mulher empoderada, feminista raiz, por quebrar tabus e dizer os maiores absurdos. Adão adora colocar suas personagens em situações besuntadas de nanquim libidinal, além, claro, de meter o pau na política e na sociedade. Sexo. “Sendo consentido, a partir daí vale tudo”, pondera o cartunista. E em seu universo tudo é consentido. Adão não está nem aí para o politicamente correto, ele acredita que o humor não deve ter limites, embora assuma que existem coisas que envelhecem mal. “Acho ruim quando é um movimento exagerado [sobre o politicamente correto]. Ricky Gervais disse: rir de algo horrível não transforma você em uma pessoa horrível. O humor é um espelho da sociedade. E a sociedade é bastante falha, preconceituosa e malvada.” (Quase) Tudo pela audiência. Conhecido pelas suas histórias de sacanagem nas tiras publicadas diariamente na Ilustrada, Adão tem hoje mais de 30 mil seguidores no Instagram. Para alguém que, como ele mesmo diz, faz parte de uma Era Analógica, a presença nas redes sociais tem rendido um novo (e jovem) público, além, é claro, de alguns pentelhos que lhe enchem o saco. Há algumas semanas, uma saga surgiu a partir de um in box chegado pela rede social, quando um representante dos herdeiros da pintora Tarsila do Amaral foi reivindicar os direitos sobre o quadro Abaporu, de 1928.

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Abaporu. “O quadro parece um cartum e o personagem, um personagem de quadrinhos. Acho divertido fazer as paródias e os trocadilhos. Faço muito isso com outras referências.”, diz o cartunista. Suas releituras a partir do clássico da arte modernista renderam telas como o Abbaporu, em referência à banda dinamarquesa Abba, que nos anos 1970 e 1980 emplacou hits mundiais como “Mamma Mia” e “Dancing Queen”; mas também Abowieporu, em homenagem ao ídolo David Bowie, cujos talento musical e a androginia são sua marca registrada. Há também uma versão do quadro intitulada Rabaporu, inspirada nas capas da revista masculina Playboy, além claro das versões de personagens como Snoopy a Pluto – respectivamente Snooporu, Abbapopluto, entre outros tantos.

Engana-se quem acha que Adão, o primeiro homem a fazer releituras radicais do Abaporu, deu-se por vencido. “Cheguei a conversar com minha advogada e ficamos em prontidão. Mas releituras e paródias estão livres. Até agora não deu em nada”, diz ele, que segue criando, semanalmente, telas inspiradas não só em Tarsila, como no quadro A traição das imagens, o antológico cachimbo do pintor surrealista René Magritte que leva a frase Ceci n’est pas une pipe. No juridiquês, paródias e releituras de obras consagradas são permitidas. No entanto, a obra O Abaporu entra em domínio público em 2043, consumando 70 anos da morte de Tarsila. As obras da pintora possuem um mercado, suas gravuras são estampas de marcas internacionais e nacionais, como Havaianas, mas a história aí é outra.

Ilu straçõ es e fo to /ac erv o d o Ad ão

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Pipe, em francês pode significar tanto cachimbo quanto pênis. Objeto de desenho do cartunista, ele confessa: “Sempre fiz muita piada com pênis, cu, buceta, sexo em geral. Algumas fases são mais obsessivas. Sei lá, tenho essa fixação. Poderia ser por dinheiro, carros ou livros. O engraçado é que isso não transparece tanto nas minhas pinturas nem nos meus textos [do Correio Elegante, sua newsletter semanal]”. Nos finalmentes, além de ser um cronista da imagem e um dos mais importantes cartunistas da imprensa brasileira, entre as lições do Dr. Rock´n Roll Keith pop em tempos de Coronavírus, a escrita de sua newsletter semanal e muito trabalho, Adão revela-se um talento também nos haicais, respondendo a última pergunta (O que é a vida?) em versos de dar inveja a Guilherme de Almeida.

A vida é um sopro

um solo do Miles

ou um simples peido

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linha Fina

BrunoPernambuco

Só é possível ver filmes de Yasujiro Ozu naquela certeza dos dias, naquele detalhe ao olhar para as coisas, naquela sabedoria de que estar perdido é encontrar-se. As transcrições do tempo- da comédia familiar, à remissão curta do trauma, à história que interliga dramas da vida em família não só são sempre contadas com paciência, são narradas com a presença dessa vida que é, simultaneamente, tão presente quanto é tudo que existe – uma pedra, o vento, um templo, uma mesa de chá – e é a presença daquilo que se manifesta dentro de nós. Dos muitos que cada um é querendo falar ao mesmo tempo. Dessa decupagem lenta do sentimento que também acontece à nossa margem, sem ser percebida, e que diz mais, ou quase tanto, a respeito de nós quanto aquilo que somos. Em Tokyo-Ga Wim Wenders volta o olhar para profundamente dentro de si, mirando a maior referência, aquela lembrança doce, a joia rica, infindável nas suas lapidações. Essa arqueologia do cinema retorna ao momento em que ainda havia o nada, em que a observação lenta, a passagem parca dos momentos e a câmera mínima de Ozu encontravam o tempo de sua linguagem, no fenômeno histórico determinado, para construir essa revolução do olhar cinematográfico. A memória do “anjo Yasujiro”, assim laureado em Asas do Desejo, é certamente a de um artífice, de um inventor do cinema, de um mestre do chiste, que disfarça evidenciando tudo a seu nível mais direto, mais claro. Os filmes do mestre, e seus personagens, estão sempre no mesmo plano da realidade que nós, espectadores, mas para descobrir a seu respeito o documentarista precisa ao mesmo tempo negá-lo e entrar na saturação estonteante do anúncio de néon, na rapidez da imagem transitória.

A busca sentimental indefinidamente se abre em novos espelhos. Vão surgindo outras imagens de imagens. As cores berrantes e chamativas abrem-se sempre em novas. Essa lembrança é ter nas mãos a velha foto, empoeirada, e atentamente observá-la se tornando nova, digitalizada, novamente definida, como se um mapa da velha Tóquio servisse para ler as linhas da mão da cidade que tão violentamente mudou de destino. A imagem se dissolve na perda daquele centro que um dia lhe serviu de direção, de rumo – de endereço, quando a precisão de um lugar fazia sentido. A imagem cinematográfica, quanto mais potente em sua captura, mais detalhada e ampliada em todas as direções em relação à relíquia guardada pelo filme da velha 50mm, imóvel e sem distorções, mais confinada está. O estouro das cores berrantes, o impacto dos flashes e o contraste das luzes, explodindo cada uma em uma direção, atacam nossos sentidos. Se a investida também deixa as marcas do seu tempo peculiar da vida, como é o das luzes piscantes na máquina de fliperama, simultaneamente no plano, assim como na fotografia das grandes cidades, aquele personagem onde nos enxergamos vai se tornando uma nota cada vez mais minguada, e aqueles seus detalhes – do tom de voz, nas expressões, nas suas roupas, no gesto – que são o cinema de Ozu- ficam enclausurados nesse lado manco da memória, sem encontrar aquilo que só a forma do cinema pode dar para aprendermos a nosso respeito. Estar em Tóquio, e vê-la, é muito mais que a mera perseguição a um rei Midas, aquele que transforma tudo que toca em Ozu. Tokyo-Ga é uma obra que não foge à contradição e à aspereza do passado, mesmo em sua pergunta incessante, se ainda é possível ser nostálgico. Talvez o passado tenha de fato abandonado de forma tão súbita o presente que não seja possível nem mais lhe sentir saudades, ou talvez ele se mostre apenas nesses atravessamentos curtos, numa teimosia que se irrompe diante do fluxo, numa lembrança morta que tem de ser retraçada por quem ficou, ou numa contradição tão pacata, e de uma alegria tão simples, que traduz aquilo que se queria dizer melhor do que jamais se poderia imaginar. Assim o trabalho do diretor oscila por essas múltiplas posições, e pela tarefa ingrata de ser o olhar onipresente, que tem de inventar-se a si próprio, entre a escultura do tempo, a edição da imagem e em espantar-se simplesmente.

Onde? Plataforma Petra Belas Artes

Ima ge m: re p ro d u ção

Mais que a mera perseguição a um rei

Midas, aquele que transforma tudo que

toca em Ozu (foto). Tokyo-Ga é uma

obra que não foge à contradição e

aspereza do passado

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roda minguante

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Sibélia Zanon

Quando ela se sentou pela última vez, a panela de pressão já havia quase implodido a casa por uma dezena de vezes.

Depois disso, não se levantou mais. Pelo menos, não sozinha.

Já estava longe de casa fazia meses, mas a mente acostumada insistia em se perder na geografia.

- Hoje eu fiz meu café, depois lavei umas roupinhas e fui até a padaria ali da esquina comprar pão. - Dizia para os conhecidos e para os outros também.

O corpo esperava largado na cadeira. A mente não. Pouco afeita a esperas, percorria circuito tortuoso em busca da memória. Talvez, o mesmo circuito que galgava em direção ao esquecimento. Aquele esquecimento. O definitivo.

Mas um fio se irmanava àqueles cabelos brancos, grudando a cabeça ao corpo e sustentando a vida. Era fino e resistente, feito teia que assegura unidade ao ninho do beija-flor. Inquebrantável.

Por incontáveis dias, o curso da mente, ainda que errante, não se embrenhava em labirintos. Não havia centro a conquistar. A mente rodava, sim, em espirais por ciclos repetitivos, sem o S do Senna. Carecia de emoção para percorrer tal curva.

- Hoje eu fiz meu café, depois lavei umas roupinhas e fui até a padaria ali da esquina comprar pão. Em outros dias, para contrariar, a memória decidia desatar nós antigos da família e lamentava, em tons emprestados de um urutau, as tragédias que ninguém queria lembrar.

- Ele morreu, sabe? Tão menino. Ele saía com aquela moto tarde da noite. Tão perigoso. Um dia aconteceu. Um caminhão...

Uma lágrima se esgueirava pelos sulcos da face enquanto as mãos, em postura de reza, sabiam ser o esquecimento a benção suprema.

Ninguém escapava àquela cena. Quem quer que estivesse por perto tentava dissuadi-la de recomeçar a tortura. Logo preenchia o breve vazio com perguntas banais, cujas respostas ela não mais sabia.

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Ela falava qualquer coisa que aparecesse em sua cronologia torta. Às vezes, a Vera trabalhava na pizzaria, às vezes fazia arranjos florais, às vezes voltava a ser a filha pequena que brincava logo ali no quintal. Como se a porta do quarto fosse um túnel para o ontem.

- Você não está ouvindo? É a Verinha.

Mas havia também os dias melhores. Neles, ela cantava Roberto Carlos: - Ai, a rua escura, o vento frio

Esta saudade, este vazio Esta vontade de chorar Ai, tua distância tão amiga Esta ternura tão antiga E o desencanto de esperar.

Acontece que muito era exigido dos dias melhores. Constantemente eles duelavam com os dias de alergia que, avermelhados, cobriam barriga e braços. Disputavam ainda sua soberania com a cuidadora. Um segundo e... a moça conduzia a cadeira de rodas para uma curva errática, transformando um simples dedão do pé numa escultura pós-moderna.

Aí sim, ganhávamos, enfim, o S do Senna. Na última vez em que estive lá, ela perguntou: - Você é meu irmão?

- Não, mãe.

Foi quando ela começou a chorar.

- Não sei o porquê. Eu vivo esquecendo das coisas. Então, eu a abracei e ficamos ali. Até a memória passar.

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olhar sobre a

érda perda

sobre

a érda

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Giovana Proença

Os respingos de sangue escorrem pela parede, em contornos de arte abstrata, como anúncio do corpo tombado. A serenidade do semblante do morto indicava que não previra o golpe. Morreu sem saber que morreria, suspirou o último sopro de ar sem saber que era o derradeiro e piscou sem saber que não voltaria a abrir os olhos. Quem olhasse de perto veria uma melancolia própria, ainda maior do que a melancolia da morte. Um certo traço de identidade perpassado por uma tristeza longínqua, o sorriso delineado tímido que esconde a lágrima que se forma e equilibra na beira da pálpebra, relutando em deixar-se cair no abismo do rosto. Morreu sem saber que morreria, e morreu infeliz, lapidado no pesar.

As constatações cruzaram em centelha à primeira vista do detetive da cena do crime, acostumado pelos anos arrastados de serviço. Ajeitou os óculos no nariz, encarando-se no espelho, lâmina reveladora que se salpicara do sangue disperso pelo golpe. Fitou a si mesmo por trás das gotículas que o conferiam pintas rubras na face pálida. Encontrou uma caligrafia rascunhada no caderninho de capa de couro preta que repousava – agora em desuso eterno – pela mesa. “Você tem que olhar para o que perdeu para reconhecer que era pouco.” A inscrição em tinta vermelha o intrigou. Atentou-se à letra, pequena e firme, levemente inclinada para a direita. Traços de sensibilidade e certos presságios de melancolia no corte do t. Imaginou que para o morto tudo se movia. As paredes se estreitavam em toadas de suspense, enquanto a sala girava ao som do silêncio perpétuo. Era como observar o movimento urbano de um viaduto, nada que se reconheça na abrangência mundana da elevação. Não que ele pudesse ir para algum lugar, estava condenado a não se mover dele próprio. Não havia espaço mórbido mais claustrofóbico, entre as paredes e o espelho, prisioneiro entre a gaiola da habitação e sua própria imagem. Morreu em um instante perdido entre às três e às quatro, foi informado. Um exemplar de Crime e Castigo foi deixado no braço do sofá. Folheou as páginas sentindo o abandono dos parágrafos que nunca seriam lidos. O homem, estranho morto em riso fúnebre, soube do crime de Raskólnikov mas nunca conheceria seu castigo. As letras que se difundiam pelo volume de peso pareciam perder o sentido agora que o leitor deixara, em definitivo, a leitura.

O exame é cirúrgico. O identificador de chamada indica seis ligações da ex-mulher na última semana. De certo para falar do filho. Pedir mais atenção ao rapaz. Talvez se o pai pagasse uma boa faculdade, um curso respeitável, direito ou administração. Avisou que ia viajar. Duas semanas em Maceió com o novo namorado. Oportunidade para mostrar as duas lipoaspirações dos últimos anos. O botóx nos braços. Plástica nos cantos do rosto. Vivia com o namorado em uma casa térrea de telhado vermelho, antes de forro, mas uma reforma há uns dez anos, inspecionada de perto pelo ex-marido, deu uma laje digna para a construção. Poderia até transformar em um sobrado, sugeriu o arquiteto. A ideia entrou na cabeça da mulher, que insinuava que o antigo cônjuge devia custear a obra da casa em que o filho morava, afinal, sabia que ele reservava uma quantia na poupança, fruto da venda de um terreno de família.

Do próprio filho, nenhuma ligação. Souberam que Júnior sumia nas noites. Festas regadas a álcool e outras substâncias que fugiam à legalidade. Perdera a carteira provisória, conquistada ao atingir a maioridade, após apelos da mãe para que o pai bancasse as aulas na autoescola. Encontrou um comando da polícia na esquina do bar, o bafômetro revelou altos níveis etílicos, metade da garrafa de Johnny Walker. A vizinha da frente insistia em contar para quem quisesse ouvir, que quando se sentou para ver o movimento na rua terça-feira, o Júnior rondava a casa do pai, moletom cinza e olhos vermelhos injetados, até cumprimentou a senhora com um leve aceno ao constatar a curiosidade. Na gaveta da cômoda, móvel funcional que não ocupava muito espaço no quarto, acharam a escritura da venda do terreno de família. Única herança deixada pela mãe. Morte súbita, em uma manhã fria de agosto, a diarista entrou na casa e não ouviu a movimentação rotineira na cozinha. Morreu como um passarinho durante o sono. A serenidade que ostentava no sono eterno era oposta à guerra que teve início no próprio velório. Deixara um terreno, divisão irregular, que logo tornou-se campo de batalha entre os dois filhos, ambos reivindicavam para si a maior parte. O documento às mãos do detetive era o estandarte da vitória amarga. Os irmãos romperam contato após a disputa, finalizada com ameaças de ódio até a próxima encarnação.

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A cozinha rompe com a organização quase intocada do restante da casa. A pia revelava o abandono de dias. Aproximou-se das taças, uma marcada por batom, tom de rubro terroso. Gotas secas de púrpura ainda no cristalino. Desviou para as xícaras de café, o tracejar negro no fundo da porcelana branca. Por último, uma só caneca, o conteúdo ainda líquido indicava que era a mais recente. Chá de flores orientais. São sempre os rastros que falam o que se tenta ocultar. No dia depois do encontro se desconhece o retrato falado, a digital, as xícaras brancas em que se tomou o café. Prefere-se o chá, flores orientais e a melancolia da ausência em plena infusão.

O detetive ajeita os óculos no nariz. Deixou passar algo. Um rastro. Mínimo. Fecha os olhos. Um simples movimento das pálpebras. Desperta um novo olhar sobre a perda. O que deixou passar? Precisa olhar para o que perdeu para reconhecer que era pouco.

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linha Fino

Giovana Proença

Um retrato da poeta quando jovem. O trocadilho à titulação joyceana é a alcunha dos textos reunidos em Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos e outros textos em prosa, publicado pela Biblioteca Azul. A juventude referida não necessariamente abrange a idade de Sylvia Plath, eternizada pela morte aos trinta anos, 1963, uma vez que os escritos variam cerca de uma década nas datações. Trata-se, portanto, de uma consciência literária manifesta em seu desabrochar, peça-chave que a coletânea oferece aos leitores, testemunhas a postos para o vislumbre do amadurecer da mítica escritora norte-americana. Se na poesia e no romance A redoma de vidro – composto em linguagem poética, uma prosa que só pode ser definida como belíssima – Sylvia Plath alcançou a maturidade autoral que a consagrou como um dos maiores nomes da literatura do século XX, Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos tem uma posição peculiar dentro da produção essencialmente lírica de Plath. Longe do reducionismo dos “óbvios defeitos” apontados por Ted Hughs, poeta e marido da escritora, em sua introdução ao livro – Por que mesmo Hughs continua participando de projetos envolvendo Plath, com toda a problemática da relação? A pergunta ecoa aos familiarizados com a vida e a obra da poeta – os escritos renegados de Sylvia Plath revelam traços de sua produção prosaica. A beleza do conjunto é elevada na exposição crua de uma prosa “verde”. A maturação de Plath viria na lírica que a conferiu o status mítico. A autora teve como fundamento a missão de pintora da natureza-morta, esmiuçadora das pequenas coisas – talvez seja só por esses detalhes revelados, que apenas a vida comum propicia o conhecimento, que Ted Hughs ainda esteja presente em projetos editoriais da obra de Plath.

Os contos de Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos revelam a vocação literária como devoção de vida, Plath tinha como objetivo se consolidar na publicação de jornais e revistas, de modo que grande parte dos escritos foram anteriormente publicados em magazines. Multifacetado, o livro traz ainda textos diversos: diários que deliciosamente permitem a espiada furtiva na intimidade velada e ensaios que desvelam o gênio pensador de uma poeta-to-be. Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos torna real o mito de Sylvia Plath. A obra desconhecida de uma escritora enevoada de misticismo e permeada pelas abstrações líricas oferece aos entusiastas de seu trabalho a possibilidade do olhar mais concreto para a produção de uma das mais notórias vozes autorais do século XX. A aprendizagem do ofício literário escorre pelas páginas da coletânea, o lado B de Sylvia Plath – quase conseguimos ver a poeta em meditação em frente a máquina de escrever. Despretensiosos na intenção de Plath, os textos reunidos em Johnny Panic não visam o status da obra poética que a consagrou: são apenas as brechas da redoma de vidro de uma lenda.

Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos Sylvia Plath

Biblioteca Azul 2020

sonhos

fragmentados

Os contos de Johnny Panic e a Bíblia de

Sonhos revelam a vocação literária como

devoção de vida, Plath tinha como objetivo

se consolidar na publicação de jornais e

revistas

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pelas barbas

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André Vieira

— Alô, con quien você qué fála?

— Oi, estava pesquisando sobre o templo e gostaria de conhecê-lo melhor, precisa marcar horário pra visitação?

— Non! Pôde bir unas seix e meia que nosotros teremos prece e después una sesión de purificación, las oito.

— Ah, tá bom! Até amanhã então. — Bále, tchao, ‘migo.

Desligo e engancho o telefone na torre; mas a dúvida permanece: tinha ligado pra Buenos Aires ou pra São Paulo? A resposta viria na tarde seguinte, na rua Arthur de Azevedo, mil trezentos e sessenta. Toco a campainha que faz vibrar toda vizinhança: “Boa tarde, você é o Anji?”. Um homem de calças surradas de alpinista e camisa listrada azul da Legião Estrangeira me responde: “Não, sou Eduardo, também me voluntario aqui na Casa dos Céus”, arfa o atarracado benevolente, enquanto duas pizzas amarelas de aparência azeda se formam embaixo de seus braços de marinheiro e uma lânguida lágrima de suor escorre por sua testa. “Tá quente, né?”, repete como mantra o ajudante do templo, ao me redirecionar à sala da loja, onde o ar-condicionado, embora esbaforido, ainda funciona: “Tá quente”, repito o mantra três vez na minha cabeça pra ver se o calor deixa o corpo.

Os poucos fios na cabeça impedem que Eduardo seja chamado de calvo, carrecudo, ou bola laranja número sete. Embora o buraco de sinuca em seu ninho de mafagafos já esteja bem-formado, eram cuidadosamente alisados, adornados e quiçá abraçados aqueles últimos indícios de topete moicano pelas mãos calejadas do gens d’arme paulistano. Seu bigodinho jeitoso e sobrancelhas bem-cultivadas e

aparadas não mentiam: tratava-se ali de um monge tibetano com um pezinho no salão de beleza; mas quando que é Buda diz mesmo que não se pode ter cabelo? Acho que pulei essa parte na leitura dos livros sagrados.

O templo estremece de novo, mas agora o estrondo vem de dentro: “Maix, vocês non abriem la porta? Que cosa!! Protesta o portenho endiabrado, pronto para soltar seus dez mil anos de karma engasgados sobre nós. “Já vou atender”, responde de pronto Eduardo, deixando um rastro de suor por onde passa. Acho que todo esse calor hermano se deve porque ele ainda não aprendeu a palavra “ar-condicionado”, penso. “Y quién é você?”, me indaga bufante o monge careca-cabelo-ralo. “Nós conversamos ontem por telefone, vim conhecer o templo”, digo com as mãos e meu péssimo portunhol, enquanto

Eduardo retorna à sala com dois novos ingressantes à Casa dos Céus, “Vamos todos subir?”, retoma a palavra o monge com flores recém-floridas nas axilas, “subimos então”, digo ao escalar a escada de ferro que leva ao segundo andar do templo. “Será que tem ar-condicionado no topo da montanha?”, penso alto e um rastafari, vestindo a barba de Maomé me responde, “olha, se não tiver, todos nós vamos assar feito galinha frita”, esbanjei um riso sem graça e pensei: “será a Roda do Dharma também serve no churrasco de domingo?”

Chegando no segundo andar do templo, somos recebidos por um disco-jóquei japonês usando polo camisa azul e meias Wilson cor-de-rosa. De seus bolsos jeans desbotados e bolsões enormes em volta dos olhos, entendo que a prece será longa. “Tirem os sapatos e antes de se sentarem, levantem as mãos acima da cabeça, em forma de respeito”, nos explica o budista monge tenista, nos apontando para um altar com três imagens de douradas Buda, um grande retrato de Geshe Kelsang Gyatso, fundador da prática, e ao menos quinze potes, cuidadosamente espalhados na bancada contendo leite de iaque, mel

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tibetano, e a mais pura e cristalina água já tirada de um poço. Haveria harmonia na terra, serenidade nos céus e, quem sabe, até silêncio. Haveria. Não fosse aquela horrorosa parede azul bebê pintada atrás do altar. Precisava? Não tinha cor mais feia na loja não?

“O professor já vem”, anuncia o ensopado tenista tibetano, preparando seu saque para o próximo game. De súbito, um homem alto, com braços tomados pelas velhas escrituras e pelos rostos de

familiares desconhecidos irrompe na sala concentrando todos os olhares. Num gesto rápido, o homem vestido pelo luto das cores se ergue da pose de oração, e se senta na almofada em cima do estante de madeira que fica entre nós, nas cadeiras de ferro, e o altar de ouro. De seu pescoço, um dragão de jade nos invade o olhar, enquanto seu semblante sério, quase tenso, esmaece: “Boa noite a vocês.”.

Repetimos a saudação noturna e o professor engata: “Já perceberam que concentramos nossas vidas em algo exterior a nós? Buscamos abrigo em pessoas, coisas, relacionamentos que em teoria nos fariam bem, mas que no final nos mexem bem? É por isso que eu gostaria de começar essa aula com a meditação. Fechem os olhos e se ajeitem na cadeira”.

Aos poucos a melodia de veludo preenche a sala. Tomado pelo cântico onírico, escuto o sussurro surdo da língua do dragão: palavras em prata, silêncio em ouro; ressonância metálica. Mergulho numa lagoa escura. Tão fria, tão funda, tão viva que espinha arrepia. Subo à superfície e avisto o anel do céu. Me deito no incerto deserto encoberto por conchas brancas. Um guarda-sol tricolor surge perante meus olhos: sinto frio. Embora o ar-condicionado da sala permaneça quebrado.

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Em um intervalo de três dias, o mundo da música perdeu dois ícones de uma só vez. No dia 4 de outubro, Zuza Homem de Mello – o pesquisador musical mais importante da história do nosso país – faleceu aos 87 anos, pouco tempo depois de finalizar a aguardada biografia de João Gilberto. Dias depois, em 6 de outubro, a comunidade global do rock n’ roll entrou em estado de choque ao saber da morte do guitarrista Eddie Van Halen – uma das cinco principais referências da história do instrumento. José Eduardo Homem de Mello, em essência jornalista, começou assinando colunas sobre música para os jornais Folha da Noite e Folha da Manhã. Em 1957, foi estudar música na School of Jazz, em Tanglewood, nos Estados Unidos, onde pôde ter contato direto com mestres como Duke Ellington, Ray Brown e John Coltrane. Entre 1957 e 1958, estudou musicologia na Juilliard School of Music, de Nova York. De volta ao Brasil, em 1959, Zuza ingressou na TV Record, onde permaneceu por cerca de dez anos trabalhando como engenheiro de som nos programas de MPB e festivais, além de atuar como booker na contratação de astros internacionais. Entre 1977 e 1988, concentrou suas atividades no rádio e na imprensa, produzindo e apresentando programas e fazendo crítica de música popular no jornal O Estado de S. Paulo, além de outras publicações no Brasil e no exterior. Em 1997, Zuza coordenou a Enciclopédia da Música Brasileira. Alguns dos trabalhos referências de Zuza são A Era dos Festivais – Uma Parábola (2003) e também livros

como Eis Aqui os Bossa Nova (2008), Copacabana (2017) e A Canção no Tempo - 85 Anos de Músicas Brasileiras, com Jairo Severiano, em dois volumes. O autor ainda foi objeto de estudo no fantástico documentário Zuza Homem de Jazz (2018), concebido por Ercilia Lobo e dirigido por Janaína Dalri.

Internacional – Um dos melhores e mais

influentes guitarristas do mundo, o holandês Edward Lodewijk Van Halen se mudou com a família, ainda na infância, para Pasadena, na Califórnia, em 1962. Com o irmão Alex e o baixista Mark Stone, fundou a banda Van Halen, em 1972. Mas foi só em 1974, com a entrada de David Lee Roth nos vocais e a substituição de Stone por Michael Anthony, no baixo, que o grupo ganhou notoriedade mundial. Uma das inovações de Eddie vem deste período: a técnica do tapping, em que ele usava as duas mãos no braço da guitarra, que ficou famosa especialmente na canção “Eruption”, de 1978, tornando-se uma de suas marcas registradas. Neste mesmo ano, eles lançaram um de seus hits mais conhecidos, “Runnin’ With The Devil”. Após estourar nas paradas mundiais com os clássicos “Jump” e “Panama”, o grupo seguiu ativo e relevante mesmo após a entrada de Sammy Hagar nos vocais, em 1986, que gerou mais um punhado de hits como “Why Can’t This Be Love”, “Finish What Ya Started” e “Right Now”.

dupla

despedida

Gabriel Solti Zorzetto

O musicólogo Zuza Homem de Mello em

seu apartamento

Ima ge m: re p ro d u ção

genteFina

(20)

linha Fina

Laura Pilan

Sylvia Plath, em sua brilhante sensibilidade poética diante da arte e da vida, não falhou em explorar as singularidades da mente humana e, simultaneamente, expor temores que existem dentro de todos nós. Nenhum sujeito está protegido das incertezas do futuro ou do medo de ser paralisado pelas próprias escolhas. Em A redoma de vidro, o desequilíbrio de Esther Greenwood é descrito ao lado de episódios cômicos e representações afiadas do esnobe mundo da moda e de encontros com homens enfadonhos. A figura de Esther não é construída somente a partir do que ela é, mas, especialmente, por meio do contraste que ela estabelece quando comparada aos demais. A forma pela qual a protagonista se distingue em uma multidão é também o que a afasta das pessoas com quem convive, servindo como um perpétuo lembrete do seu deslocamento. Greenwood reconhece que o último de seus desejos é incorporar e participar da ordem social e essa consciência é assustadora. Contrariando as expectativas, desejar a libertação das amarras e das convenções é igualmente claustrofóbico. Não conhecer o próximo passo é uma nova espécie de prisão. A pressão de uma vida adulta repleta de conquistas não deveria ser um problema para Esther. Ela está na metrópole precisamente por seu sucesso. Nova York deveria representar uma interminável fonte de agitação e excitação, um prenúncio de um futuro de êxitos e oportunidades, mas não há nada de glorioso na experiência da protagonista. Na cidade, Greenwood conhece a insatisfação de buscar um caminho tradicional e a perturbação de não ter um rumo para seguir. A sorte e o triunfo não permanecem ao seu lado, uma vez que possui profundas incertezas sobre os próprios desejos. Não é possível colecionar vitórias quando não há o que almejar.

A falta de perspectivas assombra as páginas de d’A Redoma de Vidro. Ao fim do estágio na revista Ladie’s Day¸ um número variado de opções surge diante dos olhos de Esther. Infelizmente, nenhuma delas é agradável. A protagonista aguardava, especialmente, uma oportunidade para participar de um curso de verão ministrado por um escritor famoso, mas sua inscrição é rejeitada. Em Boston, todas as possibilidades são desanimadoras: a maternidade, representada pela figura de Dodo Conway, ou carreiras dentro do estereótipo de feminilidade – como a datilografia. Não é um segredo para Esther que a vontade de sua mãe é moldá-la ao ideal socialmente estabelecido para as mulheres de sua idade. Dentro do baú de expectativas para a vida adulta, espera-se que Esther encontre não só um emprego estável, mas também um marido. Buddy Willard, futuro médico e seu antigo namorado, aparece como uma de suas opções viáveis. Contudo, tolerar seu comportamento presunçoso não é simples e nem praticável: uma das únicas convicções sólidas da protagonista, é não ter pretensão de fazer parte da existência hipócrita que se materializa na figura do rapaz. Ela o enxerga como alguém que possui uma vida dupla e, ainda assim, se sente superior às outras pessoas. Para Esther, é inaceitável que uma mulher

precise apresentar comportamentos essencialmente puros e que seja permitido que homens tenham uma vida pura e outra não.

Longe da prisão de vidro,

existem inúmeras chances de

tentar e explorar incontáveis

caminhos. E, sem dúvidas, isso

é o bastante.

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O afastamento da realidade construída por subjetividades falsas e destinos insípidos é realizado por meio de fantasias. Cada uma de suas hipóteses está mais diante do espectro do possível: ler Finnegans Wake de James Joyce para escrever uma tese, aproveitar o último ano da faculdade, aprender a fazer cerâmica, talvez se mudar para a Alemanha e trabalhar como garçonete até se tornar bilíngue. Todavia, a oposição mais absoluta às convenções está na veemente – e quase desesperada – afirmação da própria identidade: “Eu sou eu sou eu sou”, pensa Esther, como em uma súplica. A narrativa sensível de Sylviaia Plath nos mostra que não há linearidade no processo de recuperação de um desequilíbrio mental – mesmo que exista acompanhamento psicológico.

Ainda que a traiçoeira redoma de vidro esteja suspensa e permita que o ar entre, há uma constante preocupação na possibilidade de que ela volte a aprisionar mais cedo ou mais tarde. O momento da crise é doloroso, a ruptura com a sociedade é brusca e o retorno é mais complexo do que parece. O que há de mais interessante no romance é que não existe a preocupação de construir um final em que todos os receios e incertezas de Esther tenham desaparecido. A realidade não opera a partir desses princípios e nem a prosa de Sylvia Plath. O que A

Redoma de Vidro nos apresenta é um talvez – entre as

possibilidades da protagonista, está a vida fora da redoma asfixiante. Longe da prisão de vidro, existem inúmeras chances de tentar e explorar incontáveis caminhos. E, sem dúvidas, isso é o bastante.

Ima ge m: re p ro d u ção

(22)

Matheus Lopes Quirino

Atravessamos a linha férrea a caminho da Luz. Na estação centenária de São Paulo, no começo do século passado, somos lançados a um mundo idílico, carinhosamente datado, que é apresentado por recortes guardados em uma caixa garbosa. Das propagandas dos Lenços Presidente à embalagem do remédio para sífilis, é possível reconstruir este pequeno mundo antigo a partir do itinerário de Sebastião até seu encontro com Lola. A autora, Luli Penna, que nasceu em meados da década de 1960, não viveu nesta São Paulo idílica, no entanto, seus trabalhos gráficos são marcados por excursões aos tempos passados, sobretudo nas revistas femininas e suplementos em jornais que ela integrou na primeira leva de ilustradoras deste gênero. Sem Dó é sua primeira novela gráfica e dá ao leitor uma amostra digna do trabalho da ilustradora. A história segue um fio narrativo aparentemente banal, mas que contado a partir de seu traço detalhista ganha outros contornos. É possível respirar o ar dessa São Paulo fabril, onde se sabia de tudo pelo rádio ou pelas edições matutinas, vespertinas e noturnas dos jornais. Lola recebe um punhado de revistas de seu patrão, que mira um olhar interessado nela. Esquiva, tanto ao gentil burguês quanto ao primo que está prometida, ela tromba por acaso em uma esquina de São Paulo com o recém-chegado Sebastião. Ela se entrega ao homem que a tirou do eixo casa-trabalho-filha-empregada. Promete aventuras nada sofisticadas que, a seus olhos, são deleites.

Lola está apaixonada, mas Sebastião tem questões pendentes. As armas do amor podem ser simples em confecção, mas no enlace, independente do campo de batalha e contexto, quem se abala é o coração. No livro, essa expectativa ganha forma através dos bilhetes de cinema, das fotografias, dos olhares de canto revelados por ínfimos recortes. A história não peca pela simplicidade, é ela um trunfo. Um fragmento. A reviravolta é inevitável e, mesmo sem tramas rocambolescas, espera-se um final feliz. Da inocência, do amor, do cortejo. Tudo cai por terra. O amor é o mesmo, é indiferente a contextos, sexos, classes sociais. Ele pega, esfrega, nega, mas não larga. São as letras de música que vão ambientando o leitor nas micro histórias da novela. Letras como Baby, celebrizada na voz de Gal Costa, a boletins jornalísticos escutados de um rádio antigo. Fotografias, pequenos objetos como fotos analógicas, bordados, recortes de jornais e revistas vão abrindo a história do desencontro do casal. A torcida pelos dois é inevitável, já que a protagonista se desvirtua do conforto do lar e do trabalho para se jogar aos braços do desconhecido. E é assim mesmo o amor. Ela guarda todos os fragmentos deste com esmero na caixa garbosa, embora, impetuosa, cisme em dar um basta. Enrola pais, patrões, mas o amor também demanda e às vezes se paga caro por ele.

Sem Dó Luli Penna Todavia 2017

linhaFina

pequeno mundo antigo

Ima ge m: L u li P en n a/S em Dó

Ambientada em uma São Paulo romântica, HQ amarra o leitor com

detalhes de um amor impossível

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Sara Beatriz Rodrigues

Para alguns, o ditado se prova verdadeiro: a beleza está nos olhos de quem vê. Para outros, a beleza consiste em ter olhos azuis. O romance O Olho Mais Azul, escrito pela vencedora do Nobel Toni Morrison conta a história de Pécola, uma menina negra retinta que era considerada feia pelas outras pessoas – e por si própria – e sonhava em ter olhos azuis para ser, mais do que bonita, amada e aceita. A maior parte da história é narrada por Cláudia, uma mulher negra que tenta recuperar o que ocorreu durante sua infância na primavera de 1941. O romance é construído através de recortes das histórias das personagens, com várias digressões ao longo do livro. Através desses flashbacks, Morrison conseguiu trazer a visão de que ninguém é só bom ou só mal, de modo que vilanizar alguns personagens por suas ações, no mínimo duvidosas, se torna extremamente difícil, uma vez que vislumbramos os abusos, exclusões, violências e sofrimentos que eles carregam. A infância de Pecola, Cláudia e sua irmã Frieda se passa na cidade de Nova York, onde as personagens e o leitor percebem nitidamente a diferença de tratamento que os professores e até suas próprias mães endereçam a meninas de pele escura e garotas loiras de olhos azuis ou até mesmo negras de pele mais clara. Cláudia menciona que não sente ódio pelas meninas de olhos azuis, mas sim pelo o que há por trás delas; o porquê dessas meninas recebem olhares mais afetuosos do que ela.

"A Coisa a temer era a Coisa que tornava bonita a ela e não a nós.", diz a protagonista. "Lançada dessa maneira, na convicção de que só um milagre poderia socorrê-la, ela jamais conheceria a própria beleza. Veria apenas o que havia para ver, os olhos das outras pessoas.", completa Morrison. Construída cheia de pequenos detalhes, ler a história é como ser transportado numa viagem no tempo. Sentimos alívio, medo, sofrimento e pequenas alegrias junto com os personagens. Percorremos a rua da Broadway e visitamos Kentucky e Geórgia do século XX. A trama dá voz a temas constantemente silenciados, porém necessários, principalmente nos dias de hoje, com ondas de protestos sobre a importância de vidas negras eclodindo ao redor do mundo. Todos deveriam ler O Olho Mais Azul, que além de tratar do racismo, ressignifica os motes como a autoestima de pessoas negras, feminismo negro, abuso infantil, entre outros que ainda refletem os dias atuais e são levantados pelo olhar minucioso de Toni Morrison.

O olho mais azul Toni Morrison

Companhia das Letras 2019

por trás dos olhos azuis

linhaFina

Além de tratar do

racismo, O olho mais

azul reflete os dias

atuais pelo olhar

minucioso da Nobel

Toni Morrison.

Ima ge m: re p ro d u ção

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crônica

terra da mentira

Matheus Lopes Quirino

No umbigo do Vale do Paraíba, interior de São Paulo, Taubaté poderia até ser a pedra no meio de algum caminho, mas na maioria dos casos não é. Ponto de descanso estratégico para quem sai de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro, a cidade comemora, neste ano, 380 anos de seu marco zero. Desbravada pelo bandeirante Jacques Felix, sob às ordens da Condessa de Vimieiro, séculos depois aclimataram-se aqui personagens antológicos da literatura infantil nacional, como o Visconde de Sabugosa, a Cuca, Narizinho, a boneca Emília e a lendária Tia Anastácia.

Ao falar nela, nos últimos anos a personagem mucama criada por Monteiro Lobato ganhou todos os holofotes possíveis. Amálgama de um debate acalorado não só na literatura, como na política e,

principalmente, na militância, a tia Anastácia foi trending topic do Twitter, seu nome foi parar na boca do povo, de gente que, se quer, lera uma história do Sítio do Pica Pau Amarelo. Neste século, em que discussões se desenrolam nas redes sociais, tia Anastácia virou alvo também de algozes dos algoze de Lobato. Foi xingada de comunista (contém ironia) e, como funcionária do Sítio do Pica Pau Amarelo, teve seus direitos discutidos. Ela era claramente escravizada pela dona Benta, a detentora de toda vilania que, como bode expiatório, recai sob a Cuca.

A Cuca também tem lá seus méritos. Jacaroa, independente, temida pelos bichos da mata em que habita, a vilã da turma de Monteiro Lobato pode ser considerada uma feminista clássica. “Ela dá as ordens, ela é respeitada, a Cuca é o símbolo do empoderamento”, escutei em outros tempos, naqueles em que se podia sair por Taubaté e caminhar pelas ruas da cidade até o Sítio do Pica Pau Amarelo, por exemplo. E não é exagero. Taubaté é uma cidade de cidadãos ilustres, cujo dialeto próprio é não só rico lexicalmente como bonito de se ouvir.

Na boca do taubateano, nome que se dá ao munícipe que aqui nasceu, o peruzinho é carrinho de mão. Descobri isso da maneira mais politicamente incorreta possível. De ouvidos na vizinhança, no alto de meus onze anos, eis que um vizinho saiu gritando a outro no portão deste: “Gaúcho, me dá seu

peruzinho rapidinho?”. Não é gozação. Naquela época, recém chegado de São Paulo, tive dificuldades a entender essa e outras expressões populares, principalmente depois de ver a reação da companheira do gaúcho, que também era forasteira, ao pedido do nosso vizinho de esquina. Aqui, o pão francês se pronuncia pándesarr, cadela é cachórra, com acento circunflexo na letra o. Se você obtém sucesso em alguma trama, diz armô, se ganha dinheiro com isso, ganha crucru: geralmente a entonação vem acompanhada de muito entusiasmo.

Taubaté parece uma cidade de mentira, embora seja da mentira. E não é por conta das lendas urbanas que aqui, no passado, mexiam com a criançada, como o lobisomem ou a mula sem cabeça. A alcunha foi recebida de algum fórum da internet em 2012, quando uma figura de proporção agigantada ganhou expressão nacional pelo noticiário por sua história (e seu tamanho): era a grávida de Taubaté! Uma lenda contemporânea, dizem os criadores de conteúdo humorísticos de hoje, os memes. A grávida de Taubaté, em força de expressão, ultrapassou até a clássica personagem de Luís Fernando Veríssimo, a

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Na boca do taubateano, nome que se dá ao munícipe que aqui

nasceu, o peruzinho é carrinho de mão. Descobri isso da maneira mais

politicamente incorreta possível.

velhinha de Taubaté, outra paixão nacional da época em que os memes, que hoje abarrotam a internet, eram simplesmente piadas ou seriam assim chamados décadas depois.

A pedagoga Maria Verônica Aparecida César Santos é a verdadeira identidade da grávida de Taubaté. Em 2012, ela ocupou o centro da roda da rede Record, no programa Hoje em Dia, ao anunciar uma gravidez de quadrigêmeos. Gestação complicada e rara, garantiam os especialistas, mas, em seu caso, o fato que capturou olhares atentos do público foi a barriga. Uma obsessão nacional circundada no ventre daquela mulher, ela orbitava ao redor da fama com aquela barriga digna de globo, embora tenha sido a Record a responsável por seus cinco minutos de fama. À época, até a equipe do The Piauí Herald entrou na brincadeira, quando noticiaram que, além da farsa que fez o cozinheiro Edu Guedes chorar ao vivo, ela também escondia na barriga, sob os vestidos compridos, quatro pré-candidatos tucanos à prefeitura de São Paulo.

Mas a farsa acabou. Maria Verônica teve que devolver todo o enxoval à Record e acabou respondendo a um processo de estelionato pelo Ministério Público. Depois disso ela sumiu, pintou o cabelo de loiro, virou pastora e trabalhava em uma loja de bugigangas. Em Taubaté, nunca conheci ninguém que a conhecesse, tampouco a vi pelas ruas da cidade. Nos anos seguintes, minha segunda terra natal ficou marcada pela história bizarra não só no Brasil, mas também nos lugares que o brasileiro habita fora daqui. “De Taubaté”, então, virou sinônimo de mentira, falcatrua, sandice, falsidade, entre outros pejorativos.

Era meu primeiro ano na faculdade de jornalismo na PUC, quando fui levado por uns amigos a uma boate gay no bairro de Pinheiros. Ouvi pela primeira vez o termo “de Taubaté” na fila que virava a esquina do extinto Bar Secreto, na rua Álvaro Anes, enquanto esperava para entrar. Os ouvidos ficaram atentos à gíria que, durante a noite (e pelo resto da vida), escutaria da boca de jovens da minha idade à exaustão. “Ah, boy lixo o Fulano, convencido, todo marombado aquele ‘de Taubaté’”, captava de algum canto do lugar num breve momento de lucidez. Perguntei a uma amiga o que significava, e ali estava a minha cidade reduzida a um meme.

Cidadãos ilustres fazem parte do imaginário do taubateano raiz, como o ator Amácio Mazzaropi, que nasceu em São Paulo, mas foi nesta terra que ele deu vida a seu personagem mais icônico, o Jeca Tatu, uma sátira divertidíssima do caipira. Seus filmes levaram Taubaté aos televisores no século passado, trazendo à cidade um certo brio. Mazzaropi entrou para os anais da cultura popular do Brasil, sendo objeto de estudos, pesquisas e personagem de livros e tratados acadêmicos de primeira importância. Assim como Lobato e Mazzaropi, Hebe Camargo, a rainha da televisão, e Cid Moreira, ‘a voz de Deus’, são cidadãos ilustres dessas bandas. Em tempos de Coronavírus, a epidemia que, segundo um tweet, era grave (‘Não é de Taubaté!’, ipsis litteris), alertava um conterrâneo, deixou a cidade em alerta e tornou inviável o turismo literário infantil, que tem certo peso na cidade. Capital Nacional da Literatura Infantil, Taubaté, pela primeira vez fechou suas portas do Sítio do Pica Pau Amarelo, desde 1958, seu ano de fundação.

Dias tristes pairam o “país” Taubaté. Terra da mentira, o cidadão que aqui vive e que daqui nunca saiu, no começo da pandemia, desacreditado, agora só sai à rua mascarado. Aos poucos, a cidade que delegou mais de setenta por cento de seus votos ao capitão Jair Bolsonaro parece incrivelmente cair na real, percebendo a gravidade da mentira por este personagem folclórico que vem governando o país. De olhos tristes, o taubateano idoso, esse personagem icônico da velha guarda, confessa-se impotente, ao mesmo tempo em que se diz arrependido por não poder mais sorrir como um Jeca.

(26)

gente

Fina

nunca mais eu vou DORMIR

Talvez eu queira dormir por um ano e acordar em um

mundo no qual a Covid-19 foi erradicada, diz a autora de

Meu ano de descanso e relaxamento

Isabella Marzolla

O ano já está quase acabando – para o alívio de muitos – mas quase tudo circunscrito na vida foi posto à prova, inclusive nossa saúde mental. O livro de Ottessa Moshfegh, aclamado como um dos melhores romances americanos de 2019, acidentalmente descreve o que muitos sentem vontade de fazer em 2020: hibernar por um ano. É o caso da desiludida protagonista de Meu ano de

descanso e relaxamento, um drama com toques de

humor ácido que aborda as desventuras da saúde mental e o desejo de alienação em tempos de excesso de informação. Ambientado na virada do ano 2000, em um apartamento no Upper East Side, pouco antes do 11 de setembro, a protagonista – que também é a narradora – jovem, recém- formada na universidade de Columbia, trabalha em uma galeria enquanto tenta processar a morte de seus pais à base de tarjas pretas duvidosas – pílulas de Stilnox, lítio, Infermiterol, etc. – para se abster completamente da sociedade. Ela não lê jornais, fica em casa, se isola do mundo exterior. Ottessa Moshfegh nasceu em Boston em 1981, filha de mãe croata e pai judeu iraniano, foi finalista do Man Booker Prize e vencedora do PEN/Hemingway em 2016, com seu primeiro romance Eileen.

Romancista promissora, Morshfegh constrói sua protagonista como uma hipocondríaca imediatista. Tendo colhido boas críticas em publicações prestigiosas, a New Yorker, “Ottessa Moshfegh é sem dúvida a escritora americana mais interessante de nossos dias quando o assunto é estar vivo num momento em que viver é horrível.”

Em Meu ano de descanso e relaxamento, a protagonista escolhe hibernar durante os anos 2000 à base de remédios tarja preta para se descolar completamente da realidade. Agora a humanidade vive uma pandemia em que a principal medida mundial foi a quarentena. Quais relações podemos estabelecer entre a narrativa do livro e o presente?

A conexão para mim é que talvez eu queira ir dormir por um ano e acordar em um mundo no qual a Covid-19 foi erradicada, eu suponho. Mas no romance, a protagonista não está tentando escapar de uma praga, ou uma situação política perigosa, ou qualquer coisa sobre seu mundo que é externo a ela. Ela só quer desligar sua mente para se curar da perda de seus pais e a violência de sua própria psiquê.

entrevista com

Ottessa Moshfegh

Ima ge m: Mar ce lo Cip is /T o d avia

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Dentre muitas críticas e sátiras sociais presentes no romance, você percorre uma busca insaciável pela felicidade?

A busca por felicidade é sempre insaciável porque é constante. Ninguém “atinge felicidade” e permanece lá. A indústria de autoajuda evita a ideia de tempo, em geral quando se trata de alcançar algum tipo de paz ou alegria ou o que quer que seja. O único estado permanente do ser é quando ele está morto. Mas gente morta não gasta dinheiro.

A personagem principal se informa o menos possível sobre o “mundo exterior”, apenas lendo manchetes de jornais quando compra seu café diário. A alienação, especialmente hoje, pode ser uma fonte de alegria?

Sim, claro. Algumas pessoas gostam de pular de aviões. Outras pessoas gostam de se estrangular com gravatas. Uma coisa simples como a alienação pode dar a uma pessoa um sentimento de alegria, se ela está sendo alienada de algo que a torna infeliz. Eu, pessoalmente, não encontro alegria em ler as manchetes dos jornais hoje em dia, nem em beber café. Gosto de abrir uma lata de água com gás e vestir uma roupa limpa. Se você vivesse em uma sociedade de monstros, a alienação seria uma coisa boa. Ou se você tem uma necessidade desesperada por privacidade…

Com tudo o que está acontecendo no mundo, e no seu país em especial, onde as eleições presidenciais estão próximas, é possível não ser ansioso? Como você acha que está a saúde mental dos americanos?

Muitas pessoas ficaram totalmente loucas. Eu tenho visto muita gritaria nas ruas. Eu moro em um subúrbio silencioso de Los Angeles, e vi comportamentos extremamente bizarros no meu bairro. Brigas e gritaria sobre coisas absurdas. Então, eu penso que muitas pessoas estão assustadas e na defensiva, gritando sobre isso e ficando com raiva. Outras pessoas, talvez pessoas mais sábias, estão se voltando para dentro e trabalhando em sua força mental, paciência e saúde em casa, sem gritar com os vizinhos. Então, eu diria que nossa saúde mental coletiva é uma mistura, mas que em geral somos loucos.

Podemos dizer que o universo de seus livros é niilista e os personagens são amorais?

Você pode dizer isso se quiser, mas chamar os meus livros de niilistas é um pouco preguiçoso. Qual o sentido de ler o livro então, se é niilista? Você pode ter apenas um pensamento sobre o niilismo ao invés de ler o livro. Aqui está um substituto para um livro niilista: “Nada existe”. Então eu não diria que meus livros são niilistas. Acho que eles podem desiludir o leitor de certas fantasias sobre o que é a realidade para os personagens. Quanto aos personagens, não acho que sejam amorais. Acho que meus personagens simplesmente questionam – e são honestos em questionar – as regras sociais pseudo-religiosas que deveriam definir o que significa ser uma “boa pessoa”. Quem fez essas definições? Eu aceito todas essas perguntas com senso de humor.

A protagonista acorda de seu ano de descanso e relaxamento pouco antes do 11 de setembro de 2001. Isso é uma alusão à sociedade? Estávamos “dormindo” antes da explosão?

Para aqueles de nós para quem o 11 de setembro foi um alerta, sim. Eu fui certamente sacudida do cerco de minha própria vida para uma consciência mais atual da mortalidade, pelos eventos daquele dia na cidade de Nova York. Assistir à morte de pessoas a alguns quilômetros de distância na televisão ao vivo definitivamente levam você a uma nova consciência, se é que você nunca viu antes.Dito isso, acho que há um número infinito de estados entre “dormindo” e “acordado”. Não tenho certeza se quero estar 100% acordada. Pode ser muito doloroso.

A protagonista do romance, na maioria das vezes, é fria e um tanto cruel. Você sente que a maioria das pessoas hoje em dia é assim?

Não mesmo. A maioria das pessoas que eu conheço são gentis.É raro encontrar alguém que seja realmente cruel. Normalmente esse aspecto está escondido sob uma espessa camada de outras coisas, e você tem que cavar para encontrar a crueldade.

Do final da década de 1990 até os dias atuais, os Estados Unidos estão

enfrentando uma epidemia de opioides. “Meu ano de descanso e relaxamento” acontece no início dos anos 2000 e conta com a Dr.Tuttle, uma psiquiatra

excêntrica e negligente, que prescreve remédios pesados para a protagonista

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O que mudou da mulher de Nova York dos anos 2000 para a de agora?

Deixei Nova York em 2009, então não posso falar com autoridade sobre isso. Mas acho que, no início dos anos 2000, as mulheres jovens tinham um tipo de resistência que funcionava de forma semelhante à irreverência. Acho que as mulheres podem ser um pouco mais sofisticadas hoje em dia em termos de força.

Do final da década de 1990 até hoje, os Estados Unidos estão enfrentando uma epidemia de opioides. Meu ano de

descanso e relaxamento acontece no

início dos anos 2000 e conta com a Dra. Tuttle, uma psiquiatra excêntrica e negligente, que prescreve remédios pesados para a protagonista dormir. Por que você acha que os Estados Unidos sofrem tanto com isso?

A epidemia de opioides foi causada por estratégia corporativa. A Purdue Pharma orquestrou isso como um genocídio com fins lucrativos. Simples. Os Estados Unidos sofrem muito com isso porque os opioides eram prescritos em excesso, porque os médicos eram encorajados a prescrevê-los, e eles causam dependência.

Os americanos não são especialmente vulneráveis a eles porque somos pessoas especialmente viciantes ou porque não temos convicção ou algo assim. Este não é um fenômeno cultural. É tudo sobre o dinheiro.

É raro encontrar

alguém que seja

realmente cruel.

Normalmente esse

aspecto está escondido

sob uma espessa

camada de outras

coisas, e você tem que

cavar para encontrar a

crueldade.

O romance se passa em uma Nova York dos anos 2000/2001 e na história os personagens expressam sentimentos de vazio e solidão. Com o avanço da internet e das redes sociais, você acha que as pessoas se sentem mais vazias e sozinhas?

Não uso redes sociais, então realmente não posso falar sobre isso, nem gostaria de generalizar sobre todas as pessoas. Mas sim, acho que quanto mais estamos na internet, menos nos envolvemos com nossa realidade física. Nós não nos conectamos mais com as pessoas de uma forma natural. Isso pode fazer você se sentir vazio e sozinho. Prefiro ver alguém ficar louco e deprimido por perder seu chapéu favorito do que por uma questão nas redes sociais. Não tem nenhum romance sobre isso...

Meu ano de descanso e relaxamento Ottessa Morshfegh

Todavia 2019

A escritora Ottessa Moshfegh em 2015

Ima ge m: re p ro d u ção

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Curadoria – André Vieira

Conversa com folhas

Antigas estórias:

Infância duma criança

Habitar memória.

Ângelo dos Santos

Montes Verdes

Passagem do acaso

Auspício acusa feitiço:

Paisagem do ocaso.

André Vieira

Maçãs do Pecado

Fruta farinhenta;

Gemida numa mordida:

Vulva ciumenta.

Isabel Figueró Cruz

haicais

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