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AS RELAÇÕES POLÍTICAS ENTRE O IMPÉRIO BIZANTINO E O REINO VISIGODO DE TOLEDO DURANTE O SÉCULO VI*

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AS RELAÇÕES POLÍTICAS ENTRE O IMPÉRIO

BIZANTINO E O REINO VISIGODO DE TOLEDO

DURANTE O SÉCULO VI*

* Recebido em: 27.03.2018. Aprovado em: 08.08.2018.

** Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de Estudos Mediterrâ-nicos (NEMED). E-mail: cmariavalente@yahoo.com.br

Resumo:

o objetivo desse artigo consiste em compreender as práticas políticas entre

o Império Bizantino e o Reino Visigodo de Toledo durante o século VI. A fonte

principal de análise utilizada foi a Historiae Gothorum, de Isidoro de Sevilha,

que juntamente com mais duas fontes do período contribuíram para esse artigo.

Tanto no documento principal, como nos outros, notamos a instabilidade política

entre o Império e o Reino Visigodo, concluindo que as relações entre ambos nunca

foram harmoniosas, devido a sempre presente ameaça de Constantinopla ao

ter-ritório visigodo; seja por conflitos bélicos em suas fronteiras mediterrâneas, ou

devido às ainda existentes possessões territoriais bizantinas em solo peninsular.

Palavras-chave: Império Bizantino. Constantinopla. Reino Visigodo. Toledo. Práticas

Políticas.

THE POLITICAL RELATIONS BETWEEN THE BYZANTINE EMPIRE AND THE VISIGOTH KINGDOM OF TOLEDO DURING THE SIXTH CENTURY.

Abstract: the purpose of this article is to understand the political practices between the

Byzantine Empire and the Visigothic Kingdom of Toledo during the sixth century. The main source of analysis used was the Historiae Gothorum, by Isidoro de Sevilha, which along with two other sources of the same period, contributed to this article. In both the main document and the other ones, we note the political instability between the Empire and the Visigothic Kingdom, concluding that the relations between the two have never been harmonious due to the ever present threat of Constantinople to the Visigothic territory; either because of warlike conflicts on its Mediterranean borders, or because of the remaining Byzantine’s territorial possessions on peninsular soil.

Keywords: Byzantine Empire. Constantinople. Visigothic Kingdom. Toledo. Political

Practices.

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O

recorte histórico desse trabalho situa-se no período entendido como Antiguidade Tardia, temporalmente compreendido entre os séculos III e VIII, portanto herdeiro de tradições romanas que se mesclaram com culturas bárbaras, uma época de transições e mobilidades humanas, culturais e políticas.

Os limites territoriais do Império Romano, conhecidos como limes, eram regiões fronteiriças onde conviviam povos de origem bárbara1 e cidadãos romanos. Região de trocas culturais e

econô-micas. Romanos e Bárbaros coexistiam no mesmo ambiente limítrofe. Nem sempre amistosas, essas relações fronteiriças eram exercícios diários de práticas diplomáticas.

Embora as práticas em relações exteriores fossem usadas, não era, no auge do poderio romano, algo usual, pois, Roma gozava de uma situação cômoda para utilizar contatos diplomáticos em seu benefício. O autor Bruno Zétola afirma que a prática diplomática passa a ter um peso maior quando aumentam as pressões das invasões fronteiriças por povos bárbaros por volta do século III.

No século VI, o Império Bizantino, também utilizava da diplomacia em suas relações externas, mas as crescentes campanhas de reconquista de antigos territórios, parece ter colocado os conflitos bélicos como protagonistas.

Bizantinos e Visigodos se enfrentaram diretamente em 548, durante a disputa pela posse da cida-de africana cida-de Septem, atual Ceuta. Mostraremos neste artigo que as relações entre Bizâncio e Toledo, durante o século VI, foram carregadas de tensões e desconfianças, essas principalmente de Toledo para com Bizâncio, pois, a presença bizantina no sul peninsular, além de geográfica, consistiu como propulsora e incentivadora de diversos episódios de instabilidade política dentro do Reino Visigodo de Toledo.

BIZANTINOS E VISIGODOS

Os protagonistas à frente dos Bizantinos e dos Visigodos foram, respectivamente, o

imperador Justiniano e o monarca Têudis.

Em 507

2

, os visigodos são derrotados pelos francos na Batalha de Vouillé; chega ao fim

o Reino Visigodo de Tolosa. Os sobreviventes acabam expulsos pelo vencedor, o franco Clóvis

I, e cruzam os Pirineus em direção à Península Ibérica, onde havia algumas comunidades de

visigodos já estabelecidas.

Os primeiros anos do século VI foram de reafirmação e conquista territorial para os

visigodos na Hispânia; eles precisavam garantir seu estabelecimento na região. Esse período

mostra-se extremamente complexo e difícil, pois, os visigodos deveriam dar conta de anexar

novos territórios e impor seu poder sobre os poderes locais já estabelecidos. Os visigodos

de-veriam, então, mediante força ou negociação, submeter a sua administração grupos políticos

e sociais com administrações próprias e dispersas (MARTÍNEZ, 2007, p. 350). A própria

situ-ação, em que se encontravam os visigodos, não ajudava: eles eram “os outros”, os estrangeiros,

vistos como invasores e como heréticos pelo clero católico, já que eram arianos.

Havia também outra particularidade que prejudicava a autonomia e o fortalecimento

do Reino : desde a derrota em Vouillé, o trono visigodo ficou sob a tutela do rei ostrogodo

Teodorico, que atuou como regente de seu neto Amalarico

3

até sua maioridade. Na Hispânia,

com a corte já estabelecida, os visigodos escolheram como rei Gesaleico, considerado o

pri-meiro monarca visigodo da corte peninsular. Seu reinado foi de quatro anos e marcado por

instabilidades internas e avanços burgúndios na fronteira noroeste; Teodorico, aproveitando

essa instabilidade, sai em auxílio ao novo monarca e consegue frear os inimigos. Gesaleico

acaba sendo expulso da Hispânia por Ibbas, general de Teodorico. Foge repetidas vezes,

pe-dindo auxílio e apoio bélico primeiro aos vândalos e depois aos francos; ambos os reinos se

negam, possivelmente por medo do ostrogodo Teodorico; Gesaleico acaba capturado e morto

(THOMPSON, 2007, p. 20-1).

Percebemos que a ajuda de Teodorico é intencionadamente estratégica, pois, o

esta-belece como líder de fato do reino visigodo na Hispânia. E de fato, em alguns documentos

tardo-antigos, Teodorico é colocado como governante do reino, e até mesmo como monarca

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visigodo, como no Latérculo de los reyes visigodos, documento do século VII, que o coloca

como segundo rei visigodo, logo após o nome de Gesaleico (MARTÍNEZ, 2007, p. 338).

Teodorico ficou à frente do reino visigodo até morrer, em 526, ano que marca a autonomia visigoda frente aos ostrogodos.

Até aqui, o contato com o Império Bizantino parece ter se dado apenas através de refugiados do império, que fugiram para a Hispânia por motivos religiosos durante os reinados de Zénon e Anastácio. Período de muita turbulência religiosa no Império, e ambiente não muito favorável aos fiéis do cristianismo ortodoxo (GIRVÉS, 2002, p. 81); não foram, portanto, contatos políticos, de ordem militar ou diplomática.

A situação começa a mudar a partir do reinado de Têudis, que se inicia em 531; sua ascensão política deu-se em meio ao descrédito e revolta que dominaram os últimos dias do rei Amalarico, seu antecessor.

De origem militar e ostrogoda, Têudis foi um comandante militar que, sob as ordens de Teodo-rico I, o Ostrogodo, foi enviado à Hispânia para auxiliar no governo de AmalaTeodo-rico, já muito instável (THOMPSON, 2007, p. 26). Sobre esse período, escreve Isidoro de Sevilha:

En la era DXLIIII, en el año del emperador Justiniano, muerto Teoderico, su nieto Amalarico reinó durante cinco años. Este, habiendo sido vencido en combate por el rey de los francos Hil-deberto, huye aterrado y llega a Barcelona, y habiéndose ganado el odio de todos contra sí, murió en Narbona en el foro degollado por su ejército4.

Têudis subiu ao trono visigodo já com uma grande ameaça franca ao noroeste do reino. Conseguiu aplacar um pouco o avanço franco nos primeiros anos do seu reinado (THOMPSON, 2007, p. 26). Morreu degolado, dentro de seu palácio, traído por alguém de seu círculo social e político (HG, 1975, p. 245).

A política externa de Têudis ficou marcada pelo primeiro contato político direto com o Império Bizantino: a tentativa fracassada de tomada da cidade de Septem (Ceuta). O monarca, pressionado a enviar ajuda bélica para ostrogodos e vândalos, que estavam lutando contra o exército imperial de Justiniano, resistiu o quanto pôde a um enfrentamento com Constantinopla, mas acabou enfrentando os bizantinos em uma tentativa de manter uma guarnição que o protegesse de Justiniano, no outro lado do Estreito de Gibraltar.

Uma discussão que vale ser trazida aqui, é com relação a existência de um limes bizantino na Península Ibérica, hipótese levantada por Charles Diehl e seguida também por historiadores espanhóis como Garcia Moreno e Margarita Vallejo Girvés. Esses autores pensam, a fronteira entre as possessões bizantinas no sul da península, como delimitadas por um conjunto de estratégias de defesa e ataque, seguindo o contorno das partes fronteiriças, que poderiam caracterizar um limes.

Não há um consenso acerca disso dentro da historiografia especializada. O historiador Denys Pringle, discorda dizendo que não havia um contorno definido de estratégias fronteiriças de defesa e ataque por todo o contorno das possessões bizantinas, para ele o que existiam eram pontos estra-tégicos de defesa. Essa hipótese é aceita também pelos espanhóis Ripoll Lopez e Sebastián Ramallo.

Aqui não levantaremos uma hipótese que seja favorável à existência ou não de um limes. Pro-pusemos trazer essa discussão como forma ilustrativa de como a relação entre o Império e o Reino Visigodo apresenta campos que ainda precisam ser trabalhados para uma maior compreensão das relações políticas dentro do período tardo antigo peninsular.

JUSTINIANO E O RENOVATIO IMPERII

Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus Augustus, ou simplesmente Justiniano I, ascendeu ao trono

imperial bizantino em 527, após o falecimento do seu tio, o Imperador Justino I. A política governa-mental do novo imperador herdou de seu antecessor o objetivo de pacificar internamente o império.

Justiniano já era forjado nos meandros do império, pois, foi um dos principais conselheiros de seu tio Justino, que, já debilitado e com saúde frágil, nomeou-o co imperador em 526, o que facilitou enormemente a transição de um governo para o outro (DOVALE, 2015, p. 9).

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O novo imperador enfrentou distúrbios internos como a Revolta de Nika, em 532, e distúrbios externos na fronteira oriental, nas regiões balcânicas e com os persas. Embora o governo de Justinia-no envolva diversas diretrizes de grande importância Justinia-no âmbito religioso e do direito romaJustinia-no, neste artigo focaremos no seu objetivo de reconquistar os antigos limites territoriais do Império Romano, conhecido como renouatio imperii.

Os embates entre o Império Bizantino e o Reino Visigodo de Toledo iniciaram-se com a expansão bélica bizantina no norte da África, comandada por Belisário, general de Justiniano.

A campanha africana visava reestabelecer o domínio imperial no norte da África, ocupada pelos vândalos desde o século V. Nos embates que se seguiram, Belisário saiu vencedor e o exército bizan-tino avançou em direção à cidade de Septem (Ceuta), onde os visigodos mantinham uma guarnição. Segundo a narração de Isidoro de Sevilha, em sua Historiae Gothorum, a aproximação do exército imperial à cidade africana de Septem deu-se durante o reinado de Têudis (531-48). O bispo sevilhano explica que o exército visigodo tinha acabado de sair vitorioso de um embate com as tropas francas que tinham sitiado Zaragoza e saqueado praticamente a totalidade da província tarraconesa (HG, 1975, p. 241), quando os visigodos foram defender Septem, do outro lado do estreito de Gibraltar:

Después del éxito de tan feliz victoria los godos tuvieron una actuación con falta de previsión al otro lado del Estrecho. En efecto, habiéndolo atravesado para ir contra los soldados [bizantinos], que, después de rechazar a los godos, habían invadido la ciudad de Septem [Ceuta], cuando esta-ban al asalto de dicha fortaleza y en lo más fuerte del combate, depusieron las armas, al llegar el domingo, para no profanar el día sagrado con la guerra .Aprovechando, por tanto, los soldados [bizantinos] esta ocasión, se lanzaron en un repentino ataque contra el ejército asaltante, y, cer-cándolo por todas partes, causaron en él tal destrozo, que ni uno siquiera sobrevivió que escapara el desastre de la derrota (HG, 1975, p. 243)5.

Têudis foi o único rei germânico que tomou a iniciativa de atacar o Império de Justiniano sem provocação (GIRVÉS, 2002, p. 82).

Embora a Historiae Gothorum mostre o contato direto entre o Império Bizantino e o Reino Visigodo hispânico apenas em 548, as relações podem ter começado muito antes, logo que as tropas de Justiniano entraram nos territórios vândalos, entre 534 e 535, embora não tenhamos registros desses contatos (GIRVÉS, 2002, p. 83). Para fazer essa afirmação, Girvés se baseia na imagem formada de Têudis no exterior, segundo a interpretação que o historiador bizantino Procópio de Cesaréia faz da Península Ibérica. Ele, que foi o narrador das guerras justinianas, se referia à Hispânia como um local sob controle ostrogodo. Essa imagem se modifica na obra de Procópio somente quando ele passa a analisar as guerras contra vândalas e ostrogodas perpetradas por Justiniano e o papel que Têudis de-sempenhou nesse cenário, dando a entender que o rei visigodo não foi apenas um espectador estático aguardando a invasão do seu território (GIRVÉS, 2002, p. 84).

Para a autora, o monarca visigodo tinha vínculos importantes com outros reinos germânicos, sendo uma presença política efetiva no contexto histórico das conquistas de Justiniano: “Un rey

visi-godo en el que los reinos germânicos atacados por Justiniano veían su única tabla de salvación, tal vez porque era el único poder germânico y arriano aún no atacado por el Imperio” (GIRVÉS, 2002, p. 84).

Dentro da premissa de que Têudis era, além de monarca, um chefe militar experiente, ele es-perou o momento mais viável para uma ofensiva contra o avanço bizantino; não cedeu às pressões ostrogodas e vândalas por ajuda, não porque ignorasse a aproximação imperial; adiou o embate porque possivelmente analisou o momento certo para realizá-lo.

O fragmento da Historiae Gothorum, de Isidoro, nos mostra que na derrota em Septem, a des-peito da experiência de Têudis, o exército bizantino era mais astuto, pois, executou a contra ofensiva justamente no dia em que seria improvável uma retaliação: o dia santo de oração e descanso para os cristãos, o domingo. Não quiseram profanar o dia, e o inimigo se aproveitou dessa brecha. Por essa atitude, Justiniano será considerado herege pela Igreja Toledana (GIRVÉS, 2002, p. 89).

Após a derrota, não foram registradas mais investidas contra a guarnição bizantina de Septem. Não há registros de contato ente bizantinos e visigodos durante o breve reinado de Teudigiselo (548-549), sucessor de Têudis que, como este, acabou sendo assassinado.

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Agila assume o trono em 549, e é durante o seu governo que os bizantinos desembarcaram no sul da Hispânia. A vinda das tropas imperiais foi requerida por um nobre rebelde chamado Atana-gildo, que peticionou a Justiniano por ajuda para derrotar Agila, e acabar com o conflito entre ele e a comunidade de Córdoba, conflito esse que já tinha tomado grandes proporções, levando a duros combates, nos quais o rei perdeu seu filho e parte do tesouro real (THOMPSON, 2007, p. 30).

O que para Atanagildo começou como um apoio ao seu projeto de usurpação do trono trans-formou-se em um grande problema, pois, os bizantinos, ávidos por expandirem seu domínio, não cederam às pressões para deixarem a Hispânia após o fim do conflito, e apoderaram-se de toda a faixa mediterrânea da província da Bética, ou seja, de Cádiz até Valência. A justificativa de Constantinopla era que sua presença era legítima, já que o imperador Justiniano e o rei Atanagildo teriam firmado um acordo que garantiria a presença imperial na região (MARTÍNEZ, 2007, p. 52).

Segundo Isidoro de Sevilha, o pedido de apoio a Justiniano por Atanagildo teria de fato ocorrido, e depois o próprio Atanagildo teria enfrentado os bizantinos diversas vezes, e até conseguido algumas conquistas, mas não seu principal objetivo: as expulsões definitivas dos bizantinos da província da Bética como interpretaram no fragmento abaixo de Historiae Gothorum,

El proprio Agila, vencido e entregado a la fuga, preso de lamentable miedo, se refugió en Mérida. Pasado algún tempo, Atanagildo, que ambicionaba el reino, le usurpó el poder, y con su valor militar aniquiló al ejército que Agila envió contra él en Sevilla. Viendo los godos que se destruían en mutua devastación, y más temerosos ya de que soldados [bizantinos] invadieran España con ocasión de una ayuda militar, asesinan a Agila en Mérida y se entregan al gobierno de Atanagildo (...) Este que de-seaba desde hacía tempo privar a Agila del reino, que ya había usurpado, había pedido al emperador Justiniano tropas en su ayuda, que después no pudo echar de sus fronteras, a pesar de sus intentos6. Interessante observar que, na continuação de seu relato do reinado de Atanagildo, Isidoro de Sevilha escreve assim acerca do contingente bizantino:

Contra estos soldados se han venido entablando choques hasta ahora: sufrieron antes destrozos en los frecuentes combates y ahora, tras de sufrir numerosos fracasos, han sido aniquilados, terminando su dominio7.

Isidoro de Sevilha escreveu a Historiae Gothorum de forma cronológica até o reinado de Suintila, o que localiza a escrita da obra provavelmente nas primeiras décadas do século VII. Do governo de Atanagildo, de 554, ano em que as tropas bizantinas se assentaram no sul peninsular, até 634/636, dá em torno de 80 anos. Durante esse período, os bizantinos conseguiram fixar uma província no sul, sendo acolhidos pela comunidade hispano-romana, que era católica e se identificava muito mais com Constantinopla do que com o Reino Visigodo, de fé ariana.

As relações entre o reino e o império, nesse período, assumiram diversas formas, embora os conflitos bélicos fossem inevitáveis, pois, eram forças políticas com interesses divergentes que aca-bavam por ter uma difícil convivência. Mas, não podemos descartar os contatos protagonizados por emissários, muitas vezes de causas não oficiais.

Quando Leovigildo assumiu o trono toledano, entre 571 e 572, os problemas do reino já eram bem conhecidos por ele, que em 568, havia sido associado ao trono por seu irmão, o então monarca Liuva I, com a intenção de assegurar a sua família a chefia do reino; naquele momento a situação era de total instabilidade política, com suevos ao norte e a sempre presente ameaça do Império Bizantino ao sul.

Leovigildo também associou seus dois filhos, Hermenegildo e Recaredo, ao trono, em 573. Me-dida que visava garantir a continuidade da família no poder e tentar conter as recorrentes usurpações sofridas pelos monarcas visigodos.

Hermenegildo foi enviado em 579 para as províncias do sul, de forte presença hispano-romana, para administrá-las. Com ele foi sua esposa Ingunda, neta de sua madrasta Gosvintha e filha de Bru-nilda, esposa do rei austrasiano Sisberto. Ingunda era católica e rapidamente se aproximou do bispo Leandro de Sevilha, ardoroso defensor da fé.

Ambos começaram a pressionar Hermenegildo para que se convertesse ao catolicismo; embora re-lutante no início, o príncipe acabou concordando em ser batizado por Leandro (THOMPSON, 2007, p. 84).

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Renegando o arianismo, Hermenegildo rompeu com o reino e aliou-se aos bizantinos contra Leovigildo, autoproclamando-se herdeiro e sucessor legítimo do pai.

A região sul da Hispânia, além de fazer divisa com a possessão bizantina, ainda era habitada por uma maioria de católicos hispano-romanos, que se sentiam mais próximos de Constantinopla do que de Toledo; a autoridade real, visigoda e ariana, não era facilmente aceita, fazendo dessa região um lugar altamente instável e propício a rebeliões.

A rivalidade entre católicos e arianos, que perdurou por muito tempo na Península Ibérica, tinha também relação com uma questão de identidade. Os godos enxergavam no catolicismo uma fé ligada ao Império; em que pese eles terem assimilado costumes romanos, julgavam-se germânicos, o que de fato eram, por isso seu marco de identidade estava no arianismo. Desde a conversão dos godos pelo bispo ariano Úlfila, o arianismo permanecia uma característica de identidade desse povo bárbaro.

Não podemos, no entanto, caracterizar essa guerra como sendo religiosa, embora existisse esse elemento; ele foi explorado pela aristocracia que não era beneficiada de alguma forma pelo governo de Leovigildo, e insuflado pelos bizantinos, que não intencionavam deixar o território peninsular.

Outra questão foi a relação entre a rainha Gosvintha, madrasta de Hermenegildo, e sua neta Ingunda, esposa do príncipe rebelde. A tentativa de conversão forçada e a agressão física sofrida pela princesa austrasiana por parte de sua avó podem ter contribuído para o desenvolvimento de uma rede de intrigas que alimentaram o antagonismo entre pai e filho.

O historiador Santiago Castellanos ainda levanta a hipótese de uma conexão austrasiana: Gosvintha teria tramado para que Hermenegildo se rebelasse contra o pai e garantisse o poder para a linhagem de Atanagildo (CASTELLANOS, 2007, p. 111).

O príncipe rebelde procurou apoio de bizantinos, a aproximação entre a causa rebelde e o Im-pério, ocorreu através de um mensageiro de Hermenegildo, o bispo hispalense Leandro.

Ardoroso defensor da ortodoxia católica, Leandro de Sevilha era uma figura politicamente an-tagonista do rei Leovigildo por motivos óbvios. Ele aproveitou o contato que tinha dentro do Império Bizantino para reivindicar apoio à causa rebelde; este contato era o embaixador da Igreja de Roma, Gregório Anísio (futuro Papa Gregório I)8.

Enquanto a guerra entre Hermenegildo e o rei se desenrolava, Leandro partiu para Constan-tinopla em busca de apoio logístico para a rebelião. Esse apoio não chegou, pois Leovigildo soube da intenção de Leandro e acabou comprando a neutralidade bizantina com ouro.

Los esfuerzos de Leandro tuvieron poco éxito, pues los recursos de Bizancio eran en este momento demasiado exiguos por los compromisos de las diferentes fronteras como para que el emperador bizantino pudiera enviar refuerzos a la Bética, en el otro confín del mundo. El curso de los acontecimientos que siguieron indica que los bizantinos no se comprometieron más que a ayudar al príncipe en el campo de batalla, si la hubiere y si se solicitaba su ayuda (THOMPSON, 2007, p. 85).

O contexto político do período não era favorável para que os bizantinos oferecessem qualquer ajuda: eles estavam enfrentando diversos problemas em suas fronteiras, como, a partir de 568, a invasão dos Lombardos na parte Itálica do Império; e na parte oriental a coisa não estava melhor (GIRVÉS, 2002, p. 96). Essa contextualização é necessária para que se entenda o porquê do Império não ter apoiado belicamente Hermenegildo, já que seria uma grande oportunidade para aumentar sua influência na Península.

Leovigildo utilizou diversos meios de contato com outros reinos: diplomacia, matrimônio, acordos e uso de força bélica. Com o Império, sua estratégia foi evitar ao máximo o contato direto ou indireto com o exército imperial. Leovigildo impediu o aumento da força bizantina na fronteira sul, mas não conseguiu neutralizar a presença imperial dentro e nos arredores de seu reino.

Embora a guerra civil tenha sido entre godos, é impossível não desconfiar de agentes bizantinos fomentando desagravos e revoltas, ainda mais se pensarmos que a cidade de Mérida foi um dos núcleos revoltosos de apoio a Hermenegildo, e que contava com uma sede episcopal católica, antagonista do rei ariano e liderada por dois bispos nativos das regiões imperiais, os gregos Paulo e Fidel.

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CONCLUSÕES PARCIAIS

Os bizantinos continuaram em sua faixa ao sul até o ano de 625, quando Suíntila conseguiu expulsá-los da Península Ibérica, depois de mais de 70 anos de possessão.

As relações entre bizantinos e visigodos foram predominantemente de antagonismo: seus con-tatos foram intermediados por terceiros, de forma indireta e em alguns casos de forma independente. A influência política e o legado cultural deixado pelo Império Bizantino no Reino Visigodo de Toledo ainda não foram totalmente explorados. Comunidades de refugiados que se estabeleceram no reino, advindas do Império, trouxeram consigo elementos que ficaram imbuídos na formação dos súditos reais por toda sua trajetória dentro da corte visigoda.

Podemos perceber que o reino visigodo muitas vezes pareceu se comportar como um súdito imperial, evitando ao máximo o confronto direto.

Concluímos que, durante o século VI, Bizâncio constituiu uma ameaça real à unificação do Reino de Toledo. A incapacidade do exército visigodo, frente ao poderio bélico bizantino em época de Justiniano e Belisário, fortaleceu a presença das possessões imperiais no sul Hispânico, pois, essas se mantiveram até as primeiras décadas do século VII.

Durante os anos em que bizantinos e visigodos coexistiram na Península Ibérica, os exércitos se enfrentaram apenas uma vez, no conflito de Septem. Nas demais ocasiões, as práticas políticas bizantinas consistiram em fazer-se presente e influente nas comunidades peninsulares católicas, de origem hispano romanas, que não se identificavam com os godos arianos.

Notas

1 Segundo Rosa Sanz Serrano, as bases para essa formulação já estavam criadas e definidas pelos gregos antigos e foram herdadas pelos romanos, forjadas em um discurso ideológico entre barbárie e civilização (SERRANO, 2009, p. 44).

2 Após o saque de Roma, os visigodos seguiram para leste e se estabeleceram no sul da Gália sob a liderança de Ataulfo, fundando na região, por volta do ano de 418, o Reino de Tolosa. Fortaleceram a sua monarquia com o rei Eurico. Passada a ameaça de Átila, no início do século V os visigodos enfrentam a ameaça do rei Clóvis e seus francos, que derrota os visigodos de Alarico II na Batalha de Vouillé, em 507.

3 Filho de Alarico II, rei visigodo de Tolosa, morto na Batalha de Vouillé.

4 Isid., Hist.Goth., 40. “Aera DLXIII, anno Iustiniani imperatoris, defuncto Theoderico, Amalaricus nepos eius v annis regnauit. Qui cum ab Hildeberto Francorum rege Narbonae proelio superatus fuisset, Barcinonam fugiens uenit omniumque contra se ódio concitato apud Narbonam in foro ab exercitu iugulatus interiit”. 5 Isid., Hist. Goth., 42: “Post tam felicis successum uictoriae trans fretum inconsulte Gothi gesserunt. Denique

dum aduersus milites,quie Septem oppidum pulsis Gothis inuaderant, oceani freta transissent eundemque castrum magna ui certaminis expugnarent, adveniente die domínico deposuerunt arma, ne diem sacrum proelio funestarent. Hac igitur ocasione reperta milites repentino incursu adgressum exercitum mari undique terraque conclusum adeo prostauerunt, ut ne unus quidem superesset, qui tantae cladis excidium praeteriret”. 6 Isid., Hist. Goth., 46.,47: “Ipse uictus ac miserabili metu fugatusEmeritam se recepit.Adversus quem inte-riecto aliquanto temporis spatio Athanagildus tyrannidem regnandi cupiditate arripiens, dum exercitum eius contra se Hispalim missum uirtute militari prostrassent, videntes Gothi próprio se euerti excídio et magis metuentes, ne Spaniam milites auxili ocasione inuaderent, Agilanem Emerita interficiunt et Athanagildi se regimini tradiderunt [...] Iste cum iam dudum sumpta tyrannide Agilanem regno priuare quaereret,militum sibi auxilia ab imperatore Iustiniano poprocerat, quos postea submouere a finibus regni molitus non potuit”. 7 Isid., Hist. Goth., 47: “Aduersus quos huc usque conflictum est: frequentibus antea proelis caesi, nunc uero

multis casibus fracti atque finiti”.

8 Gregório Anísio foi nomeado embaixador de Roma em Constantinopla pelo Papa Pelágio II, função que exerceu de 579 até 585.

Referências

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Referências

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