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Introdução. Anais eletrônicos - XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 1 ISSN

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NACIONALISMO, A QUESTÃO NACIONAL E O “CASO FINLANDÊS” DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX.

Felipe Augusto Tkac1 (Universidade Federal do Paraná – UFPR) Resumo: Os polissêmicos conceitos de nação e nacionalismo geram debates e pesquisas acerca da suas características, origem e função há muito tempo, desde de Ernest Renan no século XIX até os contemporâneos centros de pesquisa do nacionalismo nas principais universidades do mundo. Ao mesmo tempo, os mesmos conceitos acompanham sua existência no vocabulário político de muitos Estados e na maioria das populações sob esses Estados. São formas da linguagem que, pelo menos a mais de duzentos anos, constantemente se desenvolveram e se firmaram como o último limite – mas não único – de identidade compartilhada vinculada à um Estado, o chamado Estado-Nação. Desta forma, a intenção deste artigo é dupla, primeiro, dedicar algumas linhas a discutir teóricos que propuseram-se a pesquisar e pensar tais conceitos, como Ernest Gellner, Eric Hobsbawm, Benedict Anderson e Stuart Hall, também Giorgio Agamben em suas reflexões sobre aspectos que tocam as próprias bases dos discursos nacionalistas. Em segundo lugar, observar o caso do nacionalismo finlandês em sua formatação geral no século XIX, com foco no aspecto cultural.

Palavras-chave: Nações e nacionalismo; Identidade cultural; Nacionalismo finlandês;

Introdução

A vinculação de uma entidade política geograficamente determinada pela ação intencional de indivíduos decididos a ser e capazes de impor uma vontade (seja ela qual for) – com certo grau de legitimidade – sob este território e pessoas, o Estado, aliado a concepção de nação como indissociável do primeiro, fica evidente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França revolucionária de 1789, o artigo terceiro assim foi escrito

Art. 3º. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.

A partir de então, gradualmente, os Estados foram transformando-se (com maior ou menor facilidade2) em Estados-Nação. Estes que agora legitimavam-se pela designação do princípio de ação política sob certo território e pessoas através da defesa da existência de uma

“nação” como representante identitário de todos os indivíduos que dela pertenceriam. Como um dos propósitos a Carta das Nações Unidas de 1945 no Cap. I Art. 1 item 2 decidiu:

1 Estudante do Mestrado em História no Programa de Pós-Graduação em História – PPGHIS da Universidade Federal do Paraná – UFPR. E-mail: felipe.tkac@ufpr.br

2 Digo isso pois concordo com Hall (2015, p. 38) quando ele afirma que “As identidades nacionais não subordinam todas as formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. [...] devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade.”.

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2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;

E posteriormente a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em seu décimo quinto artigo exprime que:

1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Esses dois excertos de documentos publicados pelas Nações Unidas na década de 1940 trazem então, novamente, os conceitos mencionados, e mais uma vez aqui dados como o princípio de existência de comunidades autogovernadas, as “nações” e seu direito de “autodeterminação” e inviolabilidade de sua soberania. Sendo assim, essa forma de imaginação (ANDERSON, 2008, p.

32)de uma comunidade identitária que possui a prerrogativa de autogovernar-se em razão de seu caráter “nacional” (em um sentido hierárquico mesmo, sendo a “nação” superior as outras comunidades – também imaginadas – dentro desta, na perspectiva da exigência/imposição, da force majeure dos Estados (HOBSBAWM, 2013)) tornou-se e ainda é a forma predominante de existência das entidades políticas reconhecidas em um patamar de “horizontalidade” entre os Estados-Nação constituídos como tal. Desta forma, a intenção deste artigo é dupla, primeiro, dedicar algumas linhas a discutir teóricos3 que propuseram-se a pesquisar e pensar tais conceitos – mas não só a definição dos significados, e sim, muito mais as circunstâncias de criação e as formas de uso de tais concepções4. Em segundo lugar, observar o caso do nacionalismo finlandês em sua formatação geral no século XIX. Este artigo pretende-se como um primeiro ensaio de uma pesquisa muito mais ampla e profunda acerca do nacionalismo finlandês do começo do século XIX.

Nacionalismo e a questão da nação

Agamben (2017), no capítulo Para além dos direitos do homem no livro Meios sem fim5, traz à discussão um fator fundamental para a ideia de “identidade nacional”, seu caráter jurídico, a inscrição de uma vida como uma vida provida desse direito apenas se configurada como um cidadão de um Estado. Agamben (2017) explora a figura do refugiado, que vive em caráter provisório e que só pode ter sua condição de humano-cidadão resolvida se ou naturaliza-se ou

3 Na medida em que este tema é abordado por pesquisadores importantes do mundo anglófono e que tem maior alcance internacional nas redes de pesquisadores.

4 Gellner (2008) afirma que é muito melhor abordar os conceitos não através da busca de uma definição, mas sim investigando o que a cultura faz.

5 Originalmente publicada em 1996.

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repatria-se, o caráter normativo da condição humana sob a concepção de organização Estado- Nacional admite apenas, e apenas uma forma de identidade legitima, a nacional6, Agamben escreve que “Os direitos do homem representam, de fato, antes de tudo, a figura originária da inscrição da vida nua natural na ordem jurídico-política do Estado-nação.” (2017, p. 28). Isso porque, o autor argumenta, a destruição da soberania real – com a queda do Antigo Regime – foi substituída pela soberania nacional. Então, o princípio de natividade e o princípio de soberania

“[...] unem-se agora irrevogavelmente para constituir o fundamento do novo Estado-nação.”

(AGAMBEN, 2017, p. 29). Exatamente por esse princípio que o autor discute o caráter do refugiado, o ponto de tensão irresolvível para a noção de natividade e nacionalidade. Agamben então, partindo da estrutura política organizacional exposta, parte para a crítica7 de dois principais fundamentos que cercam os limites de tais organizações modernas na perspectiva das próprias organizações, o povo e língua. O autor acusa que a junção do que ele chama de “factum linquendi”

(AGAMBEN, 2017, p. 65, grifo do original) (o fato dos humanos falarem e se entenderem) e a capacidade destes mesmos humanos de organizar gramaticalmente essas formas gerou a criação da ideia de língua (em hierarquia com dialetos, gírias etc.), esta que foi – sob a cultura política nacional – alinhada à outra ideia absolutamente elusiva, povo8 (ou factum pluralitatis, a caraterística humana de organizar-se em grupos). Agamben escreve que “[...] da correspondência biunívoca que assim se instituiu, duas entidades culturais contingentes de contornos indefinidos se transformam em organismos quase naturais, dotados de características e de leis próprias e necessárias.” (AGAMBEN, 2017, p. 65). Isso, segundo o autor, em sua gênese influenciado pela ideologia romântica que foi responsável pela eleição dessas duas categorias como fundamento circunscritivo de uma unidade de pessoas9. Por essas razões, a “Equação nação = Estado = povo e, especialmente, povo soberano [...]” (HOBSBAWM, 2013, p. 32) tornou-se o “[...] suporte vazio da identidade estatal e unicamente como tal é reconhecido” (AGAMBEN, 2017, p. 66).

Gellner (2008) argumenta, nas primeiras linhas de sua obra mais importante sobre o tema,

6 Gellner (2008, p. 02) escreve que “It follows that a territorial political unit can only become ethnically homogeneous, in such cases [no caso do Estado-Nação], if either kills, or expels, or assimilates all non-nationals.”. Apesar de Gellner usar o termo etnicamente homogêneo, essa sentença aponta para o mesmo princípio discutido por Agamben, não pode haver uma categoria dentro do Estado-Nação que não seja resolvidamente (seja lá por qual maneira) encaixada na lógica “nacional” identitária de pertencimento.

7 Nos capítulos O que é um povo? e As línguas e os povos.

8 Em sua especial dualidade significante, de um lado uma unidade política de uma dada circunscrição, do outro, um grupo populacional excluído e necessitado (AGAMBEN, 2017).

9 Concepção que Anderson (2008) vai explicar como tendo origem na aliança entre o protestantismo, o capitalismo editorial e a difusão de vernáculos como instrumentos de centralização administrativas do século XVI estendendo-se ao século XVIII. Cf. Capítulo As origens da consciência nacional da obra Comunidades Imaginadas.

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Nations and Nationalism10, que o nacionalismo é um princípio político, este que é dividido entre sentimento nacionalista e movimento nacionalista, o primeiro sendo resultado da violação do princípio nacionalista (que pode ser variado, mas é geralmente sensível quando os líderes de uma “unidade nacional” pertencem à outra “nação” que àquela da maioria dos governados) e o segundo sendo a ação motivada pelo primeiro. Gellner resume que o

[...] nacionalismo é uma teoria de legitimação política, a qual exige que as fronteiras étnicas não atravessem as fronteiras políticas, e, em particular, que as fronteiras étnicas dentro de um certo estado [...] não devem separar os detentores do poder do resto”. (2008, p. 01, tradução nossa)11 Entretanto, Gellner adverte que a violação do princípio nacionalista não é resultado direto da presença de qualquer não-nacional nas classes governantes, o grau de “aceitação” da presença destes varia de caso a caso. O conceito de nacionalismo é para o autor indissociável – nas palavras dele, parasitário – ao de estado e nação. O primeiro sendo

[...] a especialização e a concentração da manutenção da ordem. O

“estado” é aquela instituição ou conjunto de instituições especialmente interessado com a aplicação da ordem (ou qualquer outra coisa que eles também possam estar preocupados). O estado existe onde agências especializadas na execução da ordem, tais como as forças policiais e as cortes, se separaram do resto da vida social. Eles são o estado.

(GELLNER, 2008, p. 04, tradução nossa, grifo do original)12

Esta definição de estado para Gellner é fundamental na medida em que apoia seu argumento da “violação do princípio nacionalista”, pois se ele considera como principal violação – para os nacionalistas – a incongruência das fronteiras étnicas com a política e os detentores de poder dessa entidade política sendo não-nacionais, o nacionalismo só pode surgir dentro de um estado dado com tal, “[...] também parece ser o caso de que o nacionalismo apenas emerge em um ambiente em que a existência do estado já é tida como garantida.”13. Mas é importante observar que se o nacionalismo é parasitário ao estado, o inverso não é verdade. No caso da nação, Gellner propõe duas percepções gerais necessariamente sincrônicas, uma cultural e a outra

10 Originalmente publicada em 1983.

11 Texto original: “[…] nationalism is a theory of political legitimacy, which requires that ethnic boundaries should not cut across political ones, and, in particular, that ethnic boundaries within a given state [...] should not separate the power-holders from the rest.” (GELLNER, 2008, p. 01).

12 Texto original: “[...] the state is the specialization and concentration of order maintenance. The

‘state’ is that institution or set of institutions specifically concerned with the enforcement of order (whatever else they may also be concerned with). The state exists where specialized order-enforcing agencies, such as police forces and courts, have separated out from the rest of social life. They are the state. (GELLNER, 2008, p. 04).

13 Texto original: “[...] it also seems to be the case that nationalism emerges only in the milieux in which the existence of the state is already very much taken for granted.” (GELLNER, 2008, p.04)

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voluntarista:

1 Dois homens são da mesma nação somente, e somente se, eles compartilham a mesma cultura, onde cultura por sua vez significa um sistema de ideias, sinais, associações e formas de se comportar e de se comunicar. (GELLNER, 2008, p. 06, tradução nossa)14

2 Dois homens são da mesma nação somente, e somente se, eles se reconhecem um ao outro como pertencente a mesma nação. Em outras palavras, nações fazem o homem [nations maketh man]; nações são artefatos das convicções, lealdades e solidariedade dos homens. Uma categoria qualquer de pessoas (digamos, ocupantes de determinado território, ou falantes de uma determinada língua por exemplo) tornam-se uma nação se e quando os membros dessa categoria decididamente reconhecerem certos direitos e deveres mútuos em virtude de sua adesão compartilhada. É seu reconhecimento mútuo como companheiros deste tipo que os transforma em uma nação, e não os outros atributos compartilhados, quaisquer que eles possam ser, que separa a categoria de não membros. (GELLNER, 2008, p. 07, tradução nossa, grifo do original)15

Sobre a questão cultural, Gellner (2008) admite que é resultado da criação das sociedades industriais (Ele usa esse termo em oposição a sociedades agrárias) que implantaram gradativamente – muitas vezes impulsionadas pelos nacionalistas – sociedades padronizadas, literárias e baseadas na educação em massa de um sistema de comunicação (língua padrão). A tese do reconhecimento-aceitação para pertencimento é para Gellner importante, mas não única – é muito mais uma característica entre muitas outras – da “nação”, pois praticamente todas as formas de organização humana exigem maior ou menor grau de consentimento de “vontade própria”, mas ela tem sua importância. Pois ela existe em um espectro amplo que na outa extremidade comporta o medo, a coerção e a compulsão. Gellner (2008) fornece duas explicações para a escolha geral dessas definições de nação: a primeira, é que a nação só pode ser entendida – ou definida – na era do nacionalismo, pois ele obrigatoriamente a precede. A segunda, é que a era do nacionalismo foi – e é – sincrônica com uma condição social geral de padronização, homogeneização de uma alta cultura, que não é somente acessível para uma pequena elite, mas

14 Texto original: “1 Two men are of the same nation if and only if they share the same culture, where culture in turn means a system of ideas and signs and associations and ways of behaving and communicating.” (GELLNER, 2008, p. 06)

15 Texto original: “2 Two men are of the same nation if and only if they recognize each other as belonging to the same nation. In other words, nations maketh man; nations are the artefacts of men’s convictions and loyalties and solidarities. A mere category of persons (say, occupants of a given territory, or speakers of a given language, for example) becomes a nation if and when the members of the category firmly recognize certain mutual rights and duties in virtue of their shared membership of it.

It is their recognition of each other as fellows of this kind which turns them into a nation, and not the other shared attributes, whatever they might be, which separate the category from non-members.”

(GELLNER, 2008, p. 07)

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sim é implantada para toda uma população, a qual gera uma massa relativamente educada sob a mesma unidade cultural, “A fusão de vontade-própria, cultura e uma entidade política torna-se a norma, e uma que não é fácil ou frequentemente desafiada.” (GELLNER, 2008, p. 54, tradução nossa)16. Estas duas contingências discutidas anteriormente, o Estado e a nação, são fundamentalmente diferentes, mas a retórica nacionalista cria o mito de que uma foi destinado à outra, e que a impossibilidade de alcançar tal fim constitui uma tragédia.

Hobsbawm (2013) argumenta, em sua obra Nações e Nacionalismos desde 178017, que sua primeira objeção face a análise ao conceito de nação (ou nacionalidade) é qualquer tentativa de estabelecer uma definição cristalizada apriorística. Recomenda que para qualquer pesquisador sério o agnosticismo é a melhor postura inicial. Mas para pensar o nacionalismo, Hobsbawm (2013) escreve que se deve olha-lo por duas matrizes, a “nação concebida” e a “nação real”, a primeira sendo a comunidade elucubrada pelos nacionalismos e a segunda que pode ser

“reconhecida” a posteriori. Hobsbawm concorda com Gellner em relação ao nacionalismo ser um princípio político que pretende a congruência entre a unidade política e a “nacional”, mas insiste que a exigência de lealdade para o nacionalismo é sempre maior que outras formas de identificação grupal modernas. O autor também deixa muito claro seu alinhamento com Gellner na questão da nação com entidade moderna e fundamentalmente inventada, uma entidade social que apenas o é dentro de “[...] uma certa forma de Estado territorial moderno, o ‘Estado- Nação’.” (HOBSBAWM, 2013, p. 18). Por isso Hobsbawm considera que não é a nação que forma os Estados ou os nacionalismos, mas exatamente a união aposta. O autor, então, propõe analisar uma “nação” através de seus fenômenos associados, como as condições econômicas, políticas, administrativas, etc. (HOBSBAWM, 2013). E, Hobsbawm afirma que as nações são sempre formadas pelo alto, mas absolutamente dependentes das aspirações, esperanças e interesses das pessoas comuns. Neste ponto o autor faz uma crítica a Gellner por dar atenção à uma avaliação apenas pelo alto, e obliterar o povo-comum, que ao fim e ao cabo é por excelência o foco da propaganda, do “projeto nacional”, estes [povo-comum] que se tornarão, para os nacionalistas, o Volk.

Anderson (2008) critica tanto a teoria marxista (Hobsbawm) e a liberal (Gellner) como

“[...] um derradeiro esforço ptolemaico de ‘salvar os fenômenos’.” (ANDERSON, 2008, p. 30). E propõe lermos os conceitos de nacionalismo e nação (ou como ele prefere chamar, de condição nacional [nation-ness]) como produtos culturais específicos, que possuem uma história, significados

16 Texto original: “The fusion of will, culture, and polity becomes the norm, and one not easily or frequently defied.” (GELLNER, 2008, p. 54).

17 Originalmente publicada em 1991.

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e transformações. Assim, Anderson (2008) recusa usar a ideia de nacionalismo ao lado de termos como liberalismo ou fascismo, e propõe trata-lo como trata-se parentesco ou religião, e através de um “espírito antropológico” define nação como uma comunidade imaginada

Ela é imaginada porque mesmo os membros das mais minúsculas das nações jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles. (ANDERSON, 2008, p.32)

E critica Gellner o acusando de confundir imaginação ou criação com contrafação e falsidade, implicando que existiriam comunidades “verdadeiras”. Anderson atribui à esta comunidade imaginada como limitada (pois nunca englobará todos os seres humanos em razão da própria constituição do nós em oposição ao outro), como soberana (porque as nações modernas surgiram no fim do reino dinástico divino, onde a soberania e a liberdade transfiguraram-se no Estado-Soberano “nacional”) e por fim como comunidade (pois por mais desigual e exploratória seja uma nação, o princípio fundamento é da horizontalidade entre os indivíduos) (ANDERSON, 2008).

Já para Hall (2015) a nação não é apenas uma entidade política, é uma forma particular de identidade cultural que existe na representação simbólica de uma ideia, assim como outras formas de identidade cultural, entretanto, a nação é fundamentalmente moderna e especialmente poderosa pois congrega uma identidade cultural (a ideia de nação) com uma instituição política anterior (o Estado). Hall argumenta ainda que a cultura nacional é um discurso proferido pelos proponentes desta “nação” e, um discurso, tem a função de criar um sentido, este sentido que pode ser transformado em referência para os indivíduos alvo deste discurso que podem assumi-lo como elemento identificador. Este sentido do discurso existe principalmente na história e na memória – no nível em que estas são assumidas como tal – dessa “nação”. Sendo assim, a “nação” existe – ou qualquer comunidade, como argumentaria Anderson (2008) – no plano da imaginação. Desta forma, Hall elenca cinco tópicos essenciais para compreender as “estratégias representacionais”

(HALL, 2015, p. 31) gerais da constituição dessa identidade cultural: 1) A narrativa da nação, que existe nas literaturas e histórias “nacionais” e que “[...] representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação.” (HALL, 2015, p. 31, grifo do original) Como escreveu Hall

Ela [a narrativa] dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. (HALL, 2015, p. 31)

2) as origens, continuidades, tradições e intemporalidade atribuídas à uma nação, elementos que

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fornecem uma “inquestionabilidade” existencial para essa comunidade (HALL, 2015)18; 3) A invenção das tradições19, ancorada na mesma prerrogativa da anterior, mas diretamente relacionada com a ação criadora de símbolos, signos e características que podem ser capazes de referenciar à uma “cultura nacional”; 4) O mito fundacional, localizado em um tempo imemorial, que “[...]

fornece uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede as rupturas da colonização20, pode ser construída.” (HALL, 2015, p. 33); 5) A ideia simbólica do povo ou “folk” puro e original, que circunscreve as fronteiras étnicas dos portadores – determinados pelo grupo que assume-se como tal – dessa “identidade nacional”. Para Hall o discurso da cultura nacional frequentemente existe em uma tensão temporal entre passado e futuro

Ele se equilibra entre a tentação por retornar as glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era

“grande”; são tentados a restaurar as identidades passadas. Esse constitui o elemento regressivo, anacrônico, da história da cultura nacional. Mas frequentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os “outros” que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para frente. (HALL, 2015, p.33)

Esse modelo de organização identitária cultural e seus instrumentos gerais de constituição de sentido são, na perspectiva de Hall (2015), também uma forma de poder cultural. Não apenas dentro da esfera de atuação da “nação” em relação às outras culturas que ela suprime, absorve ou oblitera no seu núcleo, mas também como modelo a ser adotado por outras culturas colonizadas – por Estados-Nação – empenhadas em mostrar-se como portadoras legitimas da autodeterminação, fazendo assim sua própria reformulação cultural-identitária focada na constituição de sua própria “comunidade nacional”, resultado do que o autor chama de hegemonia cultural das nações ocidentais modernas (HALL, 2015). Mas é claro que todo esse dispositivo discursivo para a constituição da unidade é uma invenção – uma máquina complexa,

18 Transmite a ideia de natural, da nação como fundamento irremediavelmente existente na “natureza das coisas” (HALL, 2015, p. 32). O que por vezes, ao meu ver, gera um erro por parte de alguns pesquisadores – movidos pela desatenção resultante já dá naturalização da ideia de “nação”, ou motivados por projeto – quando referem-se à movimentos nacionalistas ou “nacionais”, especialmente em sua gênese, como despertar nacional (mais comumente usados em língua inglesa como national awakening), o que cai invariavelmente na própria dialética nacionalista e reafirma esse ciclo de

“naturalização da nação”.

19 Em uma referência ao termo cunhado por Hobsbawm e Ranger na obra A invenção das tradições (1983).

20 Não que necessariamente todas as narrativas nacionais contemplem a colonização direta como parte de seu discurso, mas sempre haverá um elemento de subjugação (seja ela qual for) pelo outro/estrangeiro.

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engendrada e pretenciosa – mas que sempre será, independentemente do que afirmem os nacionalistas mais convictos, uma entidade composta por “híbridos culturais” (HALL, 2015, p. 36, grifo do original).

O “caso finlandês”

O “caso finlandês” é, junto com muitos outros, também um resultado da implantação dessa nova forma de identidade cultural, a nação. Apesar de sua organizada implementação por parte de intelectuais, políticos, e mais tarde por boa parte da população (desde o processo de russificação a partir de 1890 até as Guerras com a União Soviética e a Alemanha entre 1939- 1945), a formação da identidade nacional finlandesa é pouco conhecida e menos ainda estudada no Brasil.

A circunscrição Estatal de uma entidade política “finlandesa” só se tornou realidade em 1809, quando da criação – por parte do Império Russo – do Grão-Ducado da Finlândia (entidade autônoma, mas não independente) agora livre da centenária dominação sueca da região. Como discursou o Imperador Russo Alexander I na Dieta de Porvoo21 em 19 de julho de 1809:

Este povo [finlandês] corajoso e leal abençoará a Providência, a qual determinou o curso atual dos eventos. Estabelecido a partir deste momento entre o posto de nações, sob o governo de suas próprias leis, ele não lembrará nada da dominação passada, exceto para fomentar relações amistosas quando estas são restabelecidas pela paz. (Impresso originalmente em francês, com notas de rodapé no rascunho do texto do discurso, por K. Ordin, Pokorenie Finlyandii, vol. 2. (São Petersburgo 1889) pp. 407-8. apud KIRBY, 1975, p.16)22

A partir deste momento, tanto por incentivo russo, quanto por ação de uma elite intelectual influenciada pelo romantismo nacionalista, o Grão-Ducado da Finlândia deveria afastar-se da cultura “sueca” (esta que corrompia o princípio nacionalista (GELLNER, 2008) e, consequentemente, substituí-la por uma “finlandesa”. Essa tarefa deveria então definir a congruência (ou pelo menos a esperada congruência) entre estado, língua e povo, instituir o que é

“finlandês” e quem é um “finlandês”. O filósofo e político do Grão-Ducado (apesar de nascido em Estocolmo), Johan Vilhelm Snellman (1806-1881), escreveu em 1861 que

21 Recém instituído Parlamento do Grão-Ducado na cidade de Porvoo.

22 Texto original: This courageous and loyal people will bless Providence, which has determined the present course of events. Placed from this time on amongst the rank of nations, under the governance of its own laws, it will remember nothing of past domination except in order to foster friendly relations when these are re-established by peace. (Printed in the original French, with footnotes on the draft text of the speech, by K. Ordin, Pokorenie Finlyandii, vol. 2. (St Petersburg 1889) pp. 407-8. apud KIRBY, 1975, p.16).

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“Nós já não somos mais suecos; não podemos nos tornar russos:

devemos ser finlandeses; e ainda mais: o sueco é a língua dos suecos, russo dos russos; não deveriam os finlandeses ter o direito de possuir sua língua, e felizmente eles possuem tal. Mesmo a percepção de que esta unidade nacional da língua é uma condição necessária para a sobrevivência da Finlândia é evidente”. (SNELLMAN, 1861, p. 146 apud FEWSTER, 2006, p. 116, tradução nossa).23

A afirmação de Snellman é característica muito clara dessa concepção discutida acima do imbricamento de povo e língua, além da própria sobrevivência dessa comunidade identitária cultural residir neste fato, como Agamben, Gellner e Hall argumentaram. A “Finlândia” teria – e não só ela – como única saída criar sua identidade sob um Estado-nação. A criação da representação simbólica (HALL, 2015) da “nação finlandesa” deveria ser, então, feita primordialmente pela criação de uma cultura vernacular e literária, compatível com as outras culturas “nacionais” europeias. Apesar de o finlandês como língua ter sua forma gramatical estabelecida já no século XVI24, ela não possuía um caráter literário de “alta cultura”, o que para os românticos era fundamental. A busca então pelo “finlandês original”, “adormecido” em sua

“autoconsciência” identitária deveria passar pelo – na perspectiva dos intelectuais nacionalistas – povo comum, pelo camponês (Volk, ou na sua versão finlandesa, Suomen Kansa) “portador” da Finnishness. E nas primeiras décadas do Grão-Ducado da Finlândia o grande responsável por isso foi Elias Lönnrot (1802-1884) com a publicação da obra Kalevala em 1835 e uma segunda versão em 1849. Financiado pela Sociedade de Literatura Finlandesa25 que “[...] foi fundada em 1831 com a tarefa específica de publicar e financiar a ininterrupta coleta de tradição oral do campesinato, além de um desejo mais idealista de promover a literatura em língua finlandesa [...].”

(FEWSTER, 2006, p. 96, tradução nossa).26 O Kalevala foi escrito/compilado para ser o épico

“nacional”, especialmente porque as histórias “nacionais” dos outros Estados-nação europeus baseavam-se na intemporalidade e origem mítica de épicos como Niebelungenlied, os poemas homéricos, Edda ou os Poemas de Ossian, etc. E na visão de Lönnrot o lugar por excelência onde ele poderia arquitetar tal obra era visitando e coletando a tradição oral de camponeses iletrados da

23 Texto original: “We are no longer Swedes; we cannot become Russians: we must be Finns; and further: Swedish is the language of the Swedes, Russian of the Russians; should not the Finns have a right to own their language, and luckily they do own a such. Even the insight, that this national unity of the language is a necessary condition for the survival of Finland, stands clear by that.” (SNELLMAN, 1861, p. 146 apud FEWSTER, 2006, p. 116).

24 Através da reforma protestante pelas mãos do clérigo Mikael Agricola (1510 – 1557).

25 Fin. Suomalaisen Kirjallisuuden Seura.

26 Texto original: “[…] was founded in 1831 with the specific task to publish and finance the continued gathering of oral traditions of the peasantry, besides a more idealistic wish to promote literature in the Finnish language […]”. (FEWSTER, 2006, p. 96).

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região da Carélia. Ele mesmo deixou claro quando escreveu no prefácio do Kanteletar27

O solo que os nutre [os camponeses] é a mente e o pensamento, as sementes das quais brotam todas as formas de disposição. Mas como a mente, os pensamentos e as disposições estão em todos os tempos e em todas as pessoas como um só, desta forma os poemas que nascem deles não são a propriedade especial de um ou dois, mas comuns à nação como um todo. (LÖNNROT [1840] apud HONKO, 1990, p. 213, tradução nossa)28

Pentikäinen escreve que “Além de fornecer às pessoas importantes conhecimentos práticos e espirituais [pela sua profissão de médico], Lönnrot também considerou necessário iluminá-los [pessoas comuns] sobre o seu próprio passado. Esta foi a sua principal justificativa para a publicação do Kalevala.” (PENTIKÄINEN, 1999, p. 74, tradução nossa)29. Para Fewster (2006) a significância do Kalevala foi fundamental para o nacionalismo finlandês em desenvolvimento, “a influência de Elias Lönnrot sobre o fomento de um medievalismo latente na Finlândia e a criação de um radiante pedaço do patrimônio nacional não deve ser subestimada.”

(FEWSTER, 2006, p.95, tradução nossa).30 Considerações finais

O Kalevala não foi o único repositório de identificação, inspirações e ações de nacionalistas finlandeses, mas ele carrega em si os principais referenciais simbólicos, uma narrativa, uma história, todas estas, criadas pelos proponentes da “nação” para definir os contornos culturais, os limites, entre o “nós” e “eles”. Feito “por cima”, e aqui concordo plenamente com Hobsbawm, mas absolutamente dependente da cultura “de baixo”, esta que talvez, e muito provavelmente, não tinha nenhuma ambição nacionalistas ou “projeto nacional”.

Mas tornaram-se “nacionais”, e ainda tornam-se, pelo princípio natio. São atribuídos a estes corpos humanos, sua origem, sua cultura, seus direitos e obrigações, o “nascimento se torna imediatamente nação.” (AGAMBEN, 2017, p. 29). A “questão finlandesa”, o nacionalismo finlandês de começo do século XIX enfrentou a missão de constituir sua comunidade imaginada,

27 Uma segunda coletânea de poemas publicados por ele em 1840.

28 Texto original: “The soil that nurtures them is the mind and thought, the seeds from which they spring all manner of dispositions. But since the mind, thoughts and dispositions are at all times and in all people as one, then the poems that are born of them are not the special property of one or two but common to the nation as a whole” (LÖNNROT [1840] apud HONKO, 1990, p. 213).

29 Texto original: “Along with providing people with important practical and spiritual knowledge, Lönnrot also considered it necessary to enlighten them about their own past. This was his primary justification for publishing the Kalevala.” (PENTIKÄINEN, 1999, p. 74).

30 Texto original: “the influence of Elias Lönnrot on the fueling of a latent Finnish medievalism and the creation of a sparkling piece of national heritage should not be underestimated” (FEWSTER, 2006, p.95).

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baseou-se nos princípios românticos, definiu seu povo, sua língua, seu território. Exigiu o reconhecimento horizontal de sua entidade “nacional”. Implementou esforços e recursos para padronizar a administração central, bem como padronizar a cultura em um dado território e pessoas onde foi suficientemente capaz e deliberadamente limitado (nos limites, também deliberados, das outras “nações”). Entretanto, e não poderia ser de outra forma, esse território

“nacional” é o que Hall (2015) chamou de hibrido cultural.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Assembleia Geral da ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 217 (III) A. Paris, 1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 02 de maio de 2018.

CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU, 1945. Disponível em:

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Declaração de direitos do homem e do cidadão - 1789. Universidade de São Paulo. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. 1978. Disponível em:

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FEWSTER, Derek. Visions of a Past Glory: Nationalism and the Construction of Early Finnish History. Studia Fennica Historica 11. 2nd Edition. Finnish Literature Society. Tammer-Payno Oy:

Tampere, 2006.

GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. 2. ed. Ithaca: Cornell University Press, 2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro.

HOBSBAWM, Eric. Nações Nacionalismo desde 1780: Programa, mito e realidade. 6. ed.

Tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

HONKO, Lauri. The Kalevala: The Processual View. In: HONKO, Lauri (Org.). Religion, Myth and Folklore in the World’s Epics: The Kalevala and its Predecessors. Berlin; New York: Mouton de Gruyter, 1990.

KIRBY, D. G.. Finland and Russia 1808-1920 From Autonomy to Independence: A Selection of Documents. London And Basingstoke: The Macmillan Press Ltd., 1975.

PENTIKÄINEN, Jouha Y. Kalevala Mythology. Translated and Edited by Ritva Poom.

Revised Edition. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1999.

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