o
o
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
S
S
I
Ê
BOA SEMENTE, BONS FRUTOS?
PORTUGAL E OS PORTUGUESES NO
PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
INTRODUÇÃO
se assim uma primeira
ins-tância de valoração de
fun-do
negativo
sobre
os
portugueses.
Em
contra-posição,
tem-se
também
um dos campos - talvez o
mais profícuo e, com
cer-teza, o mais corrente - de
construção e de afirmação
de virtudes dos brasileiros
como sujeitos de alma
sa-gaz e de espírito
lúcido.
Saci-pererê
e Macunaíma,
um gestado no imaginário
popular e o outro na
men-te criadora
de Mário de
Andrade, podem ser
pen-sados
como personagens
que encarnam essa dimensão do, digamos,
caráter brasileiro.
Embates econômicos e políticos
trava-dos entre a Colônia e a Metrópole, desde o
primeiro século
da colonização
até o ato
formal do governo português de
reconheci-mento do Brasil como Estado-nação,
que
pontuam a historiografia brasileira de todos
os tempos, constituem-se
em vigorosa
fon-te inspiradora para a instituição de "algozes"
portugueses e de "mártires" brasileiros; para
a denegação
de uns e glorificação dos
ou-tros. Dirigentes metropolitanos
- reis,
rai-nhas, ministros
e seus representantes
no
Brasil colônia - governadores, contratadores,
agentes do fisco - figuram como
persona-gens de um enredo
marcado
pela tirania,
delação e rapinagem. Tiradentes,
condena-do
àmorte pelo Estado português
por seu
envolvimento, marginal segundo alguns
his-toriadores, no movimento de contestação
àM A R IA A U X IU A D O R A L E M E N H E *
RESUMO
A
s
500 anos do desco-
celebrações
dos
brimento
do Brasil
suscitam indagações
de diferentes
ordens:
te-mos, portugueses e
brasi-leiros,
razões
para
comemorar? Ou, o que
fes-tejamos? Quem são estes
sujeitos que a história
en-trelaçou em múltiplas e
in-tricadas
esferas
da vida?
Concepções sobre os
por-tugueses sob a ótica dos
brasileiros
são várias
e
emergem
em campos discursivos diversos.
Esta é a questão aqui tratada.
Desenvolvo
o tema refletindo
sobre
valorações contrapostas e extremadas, opção
que não envolve
uma tomada de posição
convergente com o pressuposto de que a
re-alidade é dicotômica. Tampouco,
circunstan-cialmente, com aquela que afirma a unidade
dos contrários. A opção meto do lógica está
ins-pirada nas proposições de Max W eber, isto é,
tomo concepções
"negativas" e "positivas",
elaboradas por brasileiros e relativas aos
por-tugueses, como "ideal típicas".
É
corrente
no Brasil a percepção
do
português como expressão refinada da alma
ingênua e do espírito obtuso. A
"veracida-de"
dessas
atribuições
é construída
e
replicada em um amplo e sempre renovado
repertório de piadas. Não é raro dentre nós
qualificarmos brasileiros aos quais se
asso-ciam aqueles atributos de "alma lusa".
Tem-o a rlig o te m c o m oTSRQPONMLKJIHGFEDCBAo b je tiv o d e s v e n d a r c o n c e p ç õ e s v a lo ra tiv a s c o n tra p o s ta s e
e x tre m a d a s s o b re o s p o rtu g u e s e s , e la b o ra d a s p o r b ra s ile iro s .Àg u is a d e in tro d u ç ã o a o te m a , s ã o a n a lis a d a s id é ia s re la tiv a s a o s p o rtu g u e s e s c o rre n te s n a e s fe ra d o s e n s o c o m u m . S e g u e -s e u m a le itu ra a n a lític a d a s o b ra s R e tra to d o B ra s il(1 9 2 8 ). d e P a u lo P ra d o e C a s a -G ra n d e& S e n z a la(1 9 3 3 ), d e G ilb e rto F re y re , a u to re s q u e s e s itu a m e m p o s iç õ e s o p o s ta s a c e rc a d o p ro c e s s o d e c o lo n iz a ç ã o d o B ra s il e d o s c o lo n iz a d o re s . A a u to ra b u s c a d e s v e n d a r o s p ro c e s s o s ló g ic o s e h is tó ric o s q u e fu n d a m e n ta m a s c o n c e p ç õ e s d e fu n d o n e g a tiv o d e P ra d o e p o s itiv o d e F re y re .
• D o u to ra e m s o c io lo g ia , p ro fe s s o ra d o D e p a rta m e n to d e C iê n c ia s S o c ia is e F ilo s o fia d a U n iv e rs id a d e F e d e ra l d o C e a rá .
ordem colonial, tem sido ao longo dos
tem-pos referente inesgotável para o
auto-reconhecimento dos brasileiros como
defensores intransigentes da liberdade e do
amor à pátria. Representado na iconografia
como uma réplica de Jesus Cristo (Carvalho,
1990:71), mártir e salvador, Tiradentes,
atu-aliza a cada celebração do 7 de Setembro, os
pecados de origem cometidos pelos
portu-gueses contra os brasileiros. Além de tirania
e rapinagem, uma rainha louca e um rei
co-varde e obtuso compõem os itens do legado
português. Ocorrendo a alguém pensar que
produzo aqui uma leitura anacrônica e
caricatural, recomendo um passar de olhos
no texto e nas imagens do filme Carlota
joaquina e que relembre a receptividade do
mesmo entre nós brasileiros.
Como derivação desses dois conjuntos de
percepções emerge a seguinte idéia: se
persis-timos como parte do bloco dos países pobres e
atrasados é porque somos herdeiros daquele
povo. O poderio americano oferece aos
brasi-leiros a certeza de que outro seria o lugar do
Brasil no concerto das nações, caso nossa ma-triz cultural e política tivesse sido forjada na e pela ilustrada e vanguardeira Inglaterra.
Que não fiquem desconfortados os
por-tugueses - e também os brasileiros que não
comungam com tais idéias - com o que
ex-ponho aqui. Se tais percepções de senso
co-mum são disseminadas entre nós, outras,
orientadas por valores positivos podem ser
identificadas.
Uma apresentação mais consistente das
percepções de fundo valorativo positivo
de-mandaria leituras mais acuradas da realidade
à qual se referem. Isto porque, ocultas em
sua própria condição de idéias não
hege-mônicas, pouco se dão a perceber quando
submetidas a observações impressionistas, tal
como venho praticando para a composição
das linhas iniciais deste texto.
Indícios da valorização positiva de
nos-sa matriz lusitana estão presentes no
univer-so sóciocultural de um segmento das classes
dominantes. Refiro-me em particular àquele
que, situado em distintas regiões do país,
26
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1firmou-se como estamento (no sentido
weberiano) superior, graças ao prestígio
con-ferido pela propriedade da terra combinado
com os grandes negócios da agricultura
ex-portadora. O processo de modernização da
economia - através da industrialização -
mi-nou as bases do prestígio desse segmento,
suscitou o retorno de componentes do
mes-mo a símbolos de status mais remotos,
rela-cionados tanto à herança nobiliárquica quanto
à de valores tradicionais associados à noção
de virtude (Bastos, 1979:2), incorporadas à
biografia de ancestrais portugueses.
Inscre-vem-se nesta condição as conhecidas
"famí-lias quatrocentonas" de São Paulo. Trabalhos
de construção de reconhecimento social de
mesma natureza são encontrados também no
Ceará. Em estudo que realizei sobre uma
fa-mília de proprietários e políticos cearenses
(Lemenhe, 1995: 56/64), constato uma
pro-fusão de genealogias, nas quais os
"funda-dores" das várias linhagens da família são
nobres e santos portugueses que viveram em
distintas época, anteriores e posteriores ao
descobrimento do Brasil.
Fragmentos ainda bastante vivos de
memória de uma geração - na qual me
in-cluo, que viveu como criança e adolescente
entre final dos anos quarenta e início dos
ses-senta, na região centro-sul do país, numa
ambiência familiar de classe média,
destituí-da de vínculos com grupos de imigrantes não
portugueses (italianos, espanhóis, alemães e
japoneses) - trazem também indícios de um
. reconhecimento positivo de suas origens
por-tuguesas, remontem estas ou não ao período
da formação do Brasil. Estão retidos na
lem-brança dessa geração, por exemplo, os
esfor-ços feitos pelos pais para se provarem
descendentes de "corajosos" portugueses, que
desbravaram o território da Colônia, caçando
índios e ouro. Bandeirantes assim celebrizados
- a exemplo de Fernão Dias Paes Leme
-podem figurar em imaginárias árvores
genealógicas como matriz de uma parentela.
Marcas das referências positivas aos
portu-gueses encontram-se também nas singelas
vinho, bacalhau e castanha portugueses e no
raramente realizado, mas sempre renovado,
desejo de um dia visitar Portugal. Não é
im-provável que as reverências às matrizes
por-tuguesas tenham sido reforçadas ou aprendidas
no contato de brasileiros com migrantes de
várias nacionalidades, inclusive com
portugue-ses, que chegaram ao Brasil desde o final do
século XIX. Se italianos e espanhóis - e seus
descendentes - exibiam com orgulho
sobre-nomes com grafia e sotaque de sua terra, por
que não poderiam fazer o mesmo os muitos
Oliveira, Sousa, Abreu, Almeida, Leme?
Encontro na postura reverente com que
se tratou no Brasil a língua portuguesa, outro
veio para a constituição de reconhecimento
positivo de nossa ancestralidade lusitana.
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Éprovável que os rígidos controles
metropoli-tanos sobre o uso da palavra escrita estejam
na raiz da aludida reverência no manejo da
língua portuguesa. Mas, teria sido elemento
decisivo para tanto a convergência, em
Por-tugal e no Brasil, dos ideais da erudição
humanista com o bacharelismo que têm,
am-bos, a palavra escrita e falada como meio
es-sencial de realização. Nas faculdades de
Direito, nos conventos e seminários, nas
es-colas confessionais católicas de todo o país,
jovens foram formados para o mundo
profa-no e sagrado, orientados pela idéia da beleza
da língua portuguesa e da necessidade
impe-riosa de conhecê-Ia e apropriarem-se dela
plenamente. Se o movimento modernista no
Brasil rompeu com o academicismo, até
en-tão presente na escrita dos literatos
brasilei-ros (Veloso & Madeira, 1999), o fez
enaltecendo a língua portuguesa falada e
es-crita, como símbolo mais expressivo da
naci-onalidade brasileira.
Concepções valorativas extremas
so-bre os portugueses podem ser encontradas
em estudos especializados, produzidos por
intelectuais brasileiros. Na condição de
es-tudos que se orientam - ou pretendem se
orientar - pelos parâmetros da prática
cien-tífica, as idéias de valor tornam-se mais
trans-parentes aos olhares daqueles que se
interessam pela temática.
OS AUTORES E SUAS OBRAS
Em meio a um considerável elenco de
autores e obras adequados à análise
pretendi-da, elegi Paulo Prado e Gilberto Freyre,
res-pectivamente, em
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Retr a to d o Br a sil: en sa ioso b r e a tr isteza b r a sileir a e C a sa -G r a n d e
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
&Sen za la : fo r ma çã o d a fa mília b r a sileir a so b
o
r eg ime d a eco n o mia p a tr ia r ca l. Tal seleção
deve-se ao fato de que, tanto quanto sei,
nes-tas obras concepções extremadas sobre os
portugueses estão mais claramente postas. Há
uma razão complementar. Elaboradas com a
intenção de produzir conhecimento segundo
princípios da prática científica, há, em ambas
as obras, apropriações e reapropriações de
saberes de senso comum, que se situam em
posições valorativas polares. Por outro lado,
a reedição sucessiva das obras - de Gilberto
Freyre, sobretudo - ao longo de um largo
tempo permite supor que as interpretações
formalizadas pelos autores concorreram para
a cristalização de concepções extremadas
so-bre os portugueses, hoje entranhadas no
uni-verso cultural do brasileiro.
Paulo Prado e Gilberto Freyre trilharam
caminhos semelhantes em muitos aspectos.
Pertenceram à elite econômica e política
bra-sileira, do Centro-Sul e Nordeste,
respectiva-mente. Havendo ambos passado pela
experiência de viver e visitar diversos países,
puderam "ver o Brasil de fora". Apesar da
di-ferença de idade, partilharam, de certo modo,
um mesmo contexto histórico e intelectual
-década de 20 e 40 - conjuntura ao longo da
qual escreveram as obras aqui analisadas.
Paulo Prado é originário de família
paulistana que fez fortuna como proprietária
de fazendas de café, ferrovia, banco e de
empresa exportadora. Foi presidente desta
última por longos anos. Nunca ocupou
ne-nhum cargo nas estruturas de poder formal,
mas vários membros da família o fizeram,
desde o tempo do Império e entrando pela
República. O pai foi ministro, e prefeito da.
cidade de São Paulo em sucessivos mandatos
(Levi, 1977). Paulo Prado compartilhou com
membros de sua classe social e de seu tempo
o cultivo de uma educação humanista,
alimen-tada pela erudição e gosto pelas artes:
diplomou-se em Direito, falava várias línguas
e tocava piano. Conviveu com intelectuais
estrangeiros, como Eça de Queiroz e
brasilei-ros, como Capistrano de Abreu - que teria
lhe despertado o interesse pelos estudos
his-tóricos - e com Monteiro Lobato, com quem
dividiu a direção da
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Revista d o Br a sil.Seu envolvimento com os modernistas se
dá em dupla perspectiva: intelectual que
co-munga idéias e estilos defendidos pelo
movi-mento e homem rico que age como generoso
mecenas, financiando a publicação de livros,
edição de revistas e aquisição de obras de arte.
O autor da obra literária mais
expressi-va do modernismo, Mário de Andrade, dedica
M a cu n a íma a Paulo Prado, e Oswald de
Andrade faz o mesmo em M emó r ia s sen timen
-ta is d e J o ã o M ir a ma r . Seus escritos
consisti-ram sobretudo de artigos e crônicas publicados
em jornais, revistas e prefácios de livros, como
o de Oswald de Andrade aqui citado.
Publi-cou dois livros: P a u lística , coletânea de
arti-gos de jornal de cunho historiográfico, com
uma primeira edição em 1925 e uma
segun-da em 1934. Retrato do Brasil foi editado pela
primeira vez em 1928.
Livro de conteúdo reputado polêmico,
à época, despertou a "fúria dos ufanistas", na
medida em que teria traçado uma visão
nega-tiva do Brasil, em relação ao passado e ao
presente, e, pessimista quanto ao futuro. Por
outro lado, foi aclamado por intelectuais seus
contemporâneos, dentre eles Gilberto Freyre.
O livro foi reeditado oito vezes, duas em um
mesmo ano (1929) e a última em 1999.
Diferentemente de Paulo Prado,
Gilber-to Freyre tem uma história intelectual mais
rica e ao mesmo tempo mais conhecida.
Pernambucano de Recife, tem em sua
biogra-fia as marcas da pertença a uma família
"tra-dicional" do Nordeste: avós proprietários de
engenho de açúcar, portadores de
sobreno-mes múltiplos e reconhecidos como de
"anti-gas famílias" da região. Estudou inglês e
francês com professores particulares, e, latim
e português com o pai. A família tinha posses
28
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1em extensão suficiente para prover as
neces-sidades de um estudante universitário nos
Es-tados Unidos, de onde retorna, após cinco
anos, com o título de mestre. Esse tempo
marca não só o início da trajetória do escritor,
como também do intelectual-viajante que
per-corre vários estados da América do Norte,
países da Europa e, posteriormente, da África.
Freyre ocupou postos na política de seu
estado como chefe de gabinete do
governa-dor, que lhe valeu o exílio em Portugal (1930)
e de deputado federal (1946). Estas funções
seriam inexpressivas se comparadas com suas
atividades de escritor, conferencista e
articu-lista que, desenvolvidas em uma larga
exis-tência, resultaram em extensa bibliografia.
Casa-Grande&Senzala, que tomo aqui
como campo de observação, foi produzida ao
longo dos três primeiros anos da década de
30, quando o autor esteve, sucessivamente,
nos Estados Unidos, Rio de Janeiro e Recife,
pesquisando e escrevendo (Ribeiro, 1997: 79/
80). Segundo Darcy Ribeiro (1997:80), no Rio
de Janeiro, onde teve sua primeira edição
(1933), a obra "provoca surpresa e alcança
enorme repercussão. Os principais escritores
saúdam o autor, desconhecido até então, por
sua originalidade, profundidade, erudição,
ele-gância, etc. Um grupo de pernambucanos,
indignado com a linguagem obscena, a
pos-tura negrófila e as ofensas à Igreja e aos
jesuí-tas, propõe queimar CG&S em ato público"
Estudiosos do movimento modernista não
têm dúvidas quanto à filiação de Paulo Prado
ao mesmo. Tal certeza decorre tanto do
entu-siasmo e prodigalidade com que o
intelectual-empresário apoiou a divulgação das idéias e
das obras de vários dos componentes do
gru-po, quanto da capacidade revelada por ele para
expressar em Retr a to d o Br a sil princípios
bási-cos que nortearam o movimento. A esse
res-peito, é exemplar a afirmação superlativa de
Assis Barbosa (1900); " Retr a to d o Br a sil [oo.J
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
éli-vr o d e in sp ir a çã o b er r a n temen te mo d er n ista '.
Tratando-se de Gilberto Freyre, as
opi-niões são bastante díspares. Aqueles que o
vêem como porta-voz de um pensamento
para reconhecê-I o como parte de qualquer
movimento de vanguarda. Ainda que o
pró-prio Gilberto Freyre se apresentasse como
modernista (Araújo. 1994:21) -
auto-atribui-ção reconhecida pelo citado Assis Barbosa
como também por Veloso & Madeira 0999:
136/148) - outros o consideram como
mo-dernista
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" r ea lmen te sin g u la r , a n á r q u ico er ela tiva men te d ista n te d a s fo r mu la çõ es
va n g u a r d ista s tã o in flu en tes em Sã o P a u lo " (Merquior, apud Araújo, 1994:23).
Deixada à parte qualquer intenção de
classificação, penso ser pertinente afirmar que
ambos comungaram com um conjunto de
pers-pectivas hegemônicas no campo intelectual
brasileiro, aproximadamente, ao longo das
quatro primeiras décadas do século XX.
Ressalto, em primeiro lugar, que a
mo-tivação para se "descobrir" a realidade
brasi-leira em sua singularidade no presente é
acompanhada pelo pressuposto de que o
co-nhecimento do passado é recurso
metodológico essencial. Em segundo, o
es-forço em investigar este objeto singular de
acordo com procedimentos da racionalidade
científica, o que, nos casos em exame,
con-sistia em mobilizar amplo repertório de
ele-mentos da realidade sócio-histórica como
fundamento para a produção de verdades
con-sistentes. Por fim, pensar a prática investigativa
no campo das ciências sociais e da história
como possibilidade de engrandecimento
fu-turo da nação. Gilberto Freyre escreve no
Pre-fácio da
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
1a edição de Casa-grande & Senzala:" C r eio q u e n en h u m estu d a n te r u sso , d o s
ro-mâ n tico s d o sécu lo XIX, p r eo cu p o u -se ma is in ten sa men te p elo s d estin o s d a Rú ssia d oq u e eu p elo s d estin o s d o
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
B r a s il] . ..JE r a co mo tu d o d ep en d esse d e mim e d o s d e min h ag er a çã o ; d a n o ssa ma n eir a d e r eso lverq u es-tõ es secu la r es'.
Em outro contexto, convoca os moços
para a tarefa urgente de pesquisa e do estudo
sério pois " sem estes estu d o s e essa s so n d a g en s
n ã o p o d emo s co n sid er a r a p to s a u m esfo r ço
d e r eco n str u çã o so cia l q u e seja ma is d o q u e
u ma a ven tu r a d e sen timen ta lismo o u d e id ea
-lismo lig a d o à r evo lta em b r u to d o s exp lo r a d o s. Paulo Prado, por sua vez, escreve o
se-guinte: C o n fesso a min h a fr a q u eza p ela s co
i-sa s d o p a si-sa d o . Ta n to a d mir o Lég er co mo
R a fa e l. Se eu tivesse, p o r ém,
o
g ên io e a a r ted o p a d r e An tô n io Vieir a , em vez d a h istó r ia
d o p a ssa d o , escr ever ia co mo ele a História do
futuro [...l" (Prado, 1997:7). Em diálogo que
trava com o filho, por carta, argumenta que
seu livro revela " a â n sia p a tr ió tica d e q u em
q u er b em a o p a ís e a p o n ta er r o s e o s cr imes
d o s mer ca d o r es d o temp lo " (2 1 8 ).
Comungando com aqueles pressupostos
e concretizando-os de modo diverso, os dois
autores elaboram interpretações opostas sobre
a realidade brasileira e sua matriz portuguesa.
Explicito, a seguir, as formulações
de-senvolvidas nas duas obras, elucidando as
re-lações de causalidade nelas subjacentes e as
provas empíricas através das quais ambos os
autores organizam e fundamentam suas idéias.
OS PORTUGUESES SEGUNDO PAULO PRADO
Em Retr a to d o Br a sil o português é
apre-sentado através de um conjunto de traços que
configuram um sujeito marcado pela
nega-tividade. Ao longo de toda a obra e de forma
recorrente, refere-se Paulo Prado aos
portugue-ses nos seguintes termos: " a d ven tício s vio len
-to s e d esa b u sa d o s', " á d ven a s d e p a ssa g em" , " a ven tu r eir o miser á vel', " g en te r u d e'. Os vê
movidos por uma " o b sessã o [ou] â n sia d ia b ó
li-ca ', " d esejo so s d e g a n h a r fo r tu n a
o
ma is d e-p r essa e-p o ssível e-p a r a d esfr u ta r n o a lém ma r " .Compõem ainda o elenco dos enunciados
desqualificativos: o " d esa mo r à ter r a " , a " imo -r a lid a d e', a " a u sên cia d o p u d o -r ciu iliza d o r " ; é " la scivo b r u ta l " , " in d ivid u a lista e a n á r q u ico " , " á vid o d e g o zo e vid a livr e'; foram " a ven tu r ei-r o s e co n q u ista d o ei-r es', " b u r o cr a ta s p a r a sita s' e
" d issip a d o r es d a s r iq u eza s d a co lô n ia '.
De modo nem sempre preciso e
coe-rente, distingue Prado duas categorias de
por-tugueses: a de povoador, para se referir a
todos aqueles que, situados à margem dos
quadros da administração metropolitana,
vie-ram ao Brasil, nele estabelecendo-se ou não,
e, a categoria de colonizador, isto é, restrita
àqueles membros de todas as hierarquias da
burocracia do Estado português. Ainda que os
primeiros qualificativos definam mais
enfati-camente o "povoador' ("
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
a d ven tício s vio len to s e d esa b u sa d o s ':TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" á d u e n a s d e p a ssa g em " , " a ven-tu r eir o miser á vel" , " g en te r u d e') e as últimas
o "colonizador", ("b u r o cr a ta s p a r a sita s' e
" d issip a d o r es d a s r iq u eza s d a co lô n ia " ) as
de-mais são extensivas a ambas as categorias ("d
e-sa mo r à ter r a " , " imo r a lid a d e', " a u sên cia d o
p u d o r civiliza d o r , " la scivo b r u ta l" , " in d ivid u
-a list-a e -a n á r q u ico " , " á vid o d e g o zo e vid a livr e" )
Não encontraria um atento leitor de
Retr a to d o Br a sil, de forma subjacente aos
ar-gumentos aí construídos, alguma concessão
aos portugueses? Ou, em outros termos,
tran-sige o autor ao formular concepções
negati-vas sobre os portugueses?
Numa primeira aproximação, a pergunta
poderia ser respondida de modo afirmativo.
Como se constata, na relação de causalidade
histórica formulada para qualificar o "português
povoador" é explicitada a idéia de que as
ca-racterísticas deste sujeito são extensivas a ou-tros. Isto porque foram partilhadas pelo homem
europeu, nascido do Renascimento: um novo
homem para quem " a s a mb içõ es h u ma n a s d e
p o d er io , d e sa b er e d e g o zo " foram alargadas.
Sequiosos de gozar a liberdade e " a b a fa d o ' e
" p ea d o n u ma E u r o p a d e vid a estr eita ', a
procu-ra de outros mundos teria se imposto a esses
homens, de forma inexorável. " A er a d o s d esco
-b r imen to s f o i
o
r esu lta d o d esse mo vimen to d eli-b er a çã o " (p. 54). Segundo Prado, o Novo Mundo,
em particular o situado nos trópicos, emerge
como lugar real ou imaginário de " sa tisfa çã o
d o s a p etites d e h o men s a q u em já in co mo d a va e
r ep elia a o r g a n iza çã o d a so cied a d e eu r o p éia '
(65/66). Assim pensando, pode generalizar as
características dos tipos sociais que chegaram
ao Novo Mundo, independentemente dos
pon-tos de partida europeus.
" C o r sá r io s, flib u s te ir o s , ca çu la s d a s a n tig a s
fa m ilia s n o b r es, jo g a d o r es a r r u in a d o s, p a d r es
30
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1r evo lta d o s o u r emisso s, L ..] va g a b u n d o s d o s
p o r to s d o M ed iter r â n eo , a n a r q u ista s, em
su ma , n a exp r essã o mo d er n a , e in su b misso s
à speia s so cia is - to d a a escu ma tu r va d a s
velh a s civiliza çõ es, f o i d eles
o
No vo M u n d o ,n esse a lvo r ecer . F r a n ceses L .
.J,
h o la n d eses [...]ca stelh a n o s
L .. ]
p o r tu g u esesL .. ]
ejla men g o s,L ..] to d o
o
co n tin en te se p o vo o u d esses a d-ven tício s vio len to s e d esa b u sa d o s "
(66).
Referindo-se especificamente aos
por-tugueses, assim escreve:
" lo g o n o s a n o s q u e se seg u ir a m a o d esco
-b r imen to se fixa r a m
BA
a v e n tu r e i r o s emfeito r ia s esp a r sa s p elo lito r a l. E r a m d e g r e
-d a -d o sq u e a b a n d o n a va m n a s co sta s a s p r
i-meir a s fr o ta s exp lo r a d a s, o u n á u fr a g o s, o u
g e n te m a i s o u s a d a d eser ta n d o d a s n a u s,
a tr a íd a p ela fa scin a çã o d a s a ven tu r a s. D
es-sa g en te, r a r o s e r a m d e o r i g e m s u p e r i o r
e p a s s a d o l i m p o - n a p r o p o r çã o d e u m
p o r d ez"
Cp. 67).
Nesta descrição, sugere o autor que o
português desqualificado nos termos acima é
apenas aquele que, marginal em seu próprio
meio social de origem, tendo aqui aportado
em período que antecede a ocupação
produ-tiva do território, teria se situado à margem
do processo de colonização. Uma leitura assim
construída permitiria vislumbrar um olhar
re1ativizado do autor sobre o colonizador do
Brasil. Tal não é o caso. Ao longo de todo o
texto, Prado desenvolve argumentos e se
empenha na apresentação de evidências
empíricas que resultam na generalização
daqueles atributos negativos, de forma
indistinta - com uma única restrição, feita aos
padres - para todo e qualquer português que
haja participado da ação colonizadora ao
lon-go de seus três primeiros séculos. Esta
gene-ralização se explícita tanto ao tomar "vícios"
e "paixões" como fundamentos de ações
con-cretas dos portugueses, quanto ao considerar
aquelas categorias sociais - d eg r ed a d o s,
deser tor es, n á u fr a g o s, a ven tu r eir o s " sem eir a
descaminhos vividos pela sociedade brasilei-ra em todas as esfebrasilei-ras da vida e em
diferen-tes contextos históricos.
Deste modo, os vários retratos do
Bra-sil, pintados por Paulo Prado em diferentes
momentos de nossa história, figuram como
campo empírico através dos quais o autor
in-tenta validar suas representações negativas
sobre os portugueses. São ilustrativas as
des-crições da vida brasileira relativas ao período
que antecede a independência - início do
século XIX:
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Tr ês séculos tinha m tr a zido
o
pa ís a essasi-tua çã o la mentá vel. A C olônia , a o inicia r -se
o
século de sua independência , er a um cor po
a mor fo, de mer a vida vegeta tiva , ma ntendo-se a pena s pelos la ços tênues da língua e do culto.
P opula çã o sem nome, exa usta pela
uer minose, pelo impa ludismo e pela sífilis, to-ca ndo dois ou tr ês quilômetr os qua dr a dos a ca da indivíduo, sem nenhum ou pouco a pe-go a o solo
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
n u t r id o r , pa ís pobr e sem o a uxílio huma no, ou a r r uina do pela explor a çã o a pres-sa da , tumultuá r ia e incompetente de sua s r
i-queza s miner a is; cultur a a gr ícola e pa stor il limita da ou a tr a sa da (...)b ip e r t r o f ia do pa tr
i-otismo indolente que se contenta em a
dmi-r a dmi-r a s beleza s na tur a is, 'a s ma is
extr a or diná r ia s do mundo', como se fossem
obr a s do homem; a o la do de um entusia smo
fá cil, denegr imento desa nima ndo e estér il [...
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
1indigência intelectua l e a r tística completa , em a tr a so secula r ,
BA
r e f l e x o d a d e c a d ê n c i a d a m ã e - p á tr i a ; t. ..J 0 6 0 /1 6 2 ) .Fragmentos do livro retratam o Brasil
no início do século XX:
F ixemos
o
olha r por um insta nte na r ea lida devisível, pa lpá vel e viva desse H oje (sic). f...J .
D a mos a o mundo
o
espetá culo de um povoha bita ndo um ter r itór io, que a lenda - ma is
que a ver da de - consider a imenso tor r ã o de inesgotá veis r iqueza s, e nã o sa bendo explor a r e a pr oveita r o seu quinhã o. D os a gr upa men-tos huma nos de media na impor tâ ncia , o
nos-s opa ís é ta lvez o ma is a tr a sa do. O Br a sil, de
fa to nã o pr ogr ide: vive e cr esce, como cr esce e vive uma cr ia nça doente, no lento
desenvolvi-mento de um cor po ma l or ga niza do
l. ..1
espa-lha m-se pelo nosso ter r itór io gr upos huma nos incer tos, humildes, sa lvo um ou outr o foco de expr essã o na tiuista , a ba fa dos e pa r a lisa dos em ger a l por uma na tur eza estontea dor a de pu-ja nça , ou ter r ivelmente impla cá vel. Aí vivem a
solta numa ter r a comum [ ,..1.
Na s popula ções cr esta da s do Nor deste r eina m
como na s época s pr imitiva s a s cr endices e
o
fa na tismo da s 'sa ntida des'X ...] P ela s costa s do ocea no e em ma ncha s de civiliza çã o ma ter i-a l [ ...l,
o
pr ogr esso é uma indústr ia que [ '..J
é explor a da , numa r á pida a bsor çã o, pelos ca -pita is estr a ngeir os eo spoucos gr upos finan-ceir os na ciona is que s ó cogita m - como é
na tur a l- dos pr ópr ios inter esses. [" .l. No r
es-to do pa ís o ca so se a gr a va : o s homens, de
inca pa zes, tor na r a m-se desonestos e pela
cumplicida de dos a pa nigua mentos eleitor a is,
a ceita r a m com pequena r elutâ ncia
o
consór-cio da s funções a dministr a tiva s com o s
inte-r esses meinte-r ca ntis. A finte-r a gilida de huma na fez
o
r esto, que é a ver gonha da na çã o. f. . .J Sobr e
este cor po a nêmico, a tr o fia d o , ba lofo,
tr ipudia m o spolíticos l. ..J É o gr a nde r eba
-nho que pa ssa , pa sta ndo, de que fa la va
Nietzsche.
Ao chega r mos a os dia s de hoje, é esse
o
gr an-de mila gr e 0 9 9 /2 0 5 ) .
Não seria pertinente reconhecer na
his-tória brasileira pelo menos algum saldo
posi-tivo, resultante da colonização portuguesa?
Sim, responderia Prado nos seguintes termos:
"a pr eser va çã o da unida de socia l e política do
va stíssimo ter r itór io" (96). Escreve que a
ad-ministração portuguesa logrou "conser va r a
coesã o da nova ter r a fa vor ecida pela língua
comum (nenhum dia leto per tur ba essa
uni-for mida de), pelo culto da mesma r eligiã o, pelo
ódio ina to e tr a diciona l a o ca stelba no" 096/
197). Mas, ao apresentar o que elege como
"fa tor es pr eponder a ntes" para explicar este
feito reitera suas concepções negativas sobre
o colonizador - "O
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
a tr a so ,hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o sp r ó p r io s vício s e d efeito s d a b u r o cr a cia cen tr a l p o r tu g u esa "(97) que com sua " p esa d a má q u in a " d e
for-ma " co n tín u a e min u cio sa [ n ivelo u ]
o
ter r en oco mo u m r o lo co mp r esso r " (98). A
nega-tividade é também reiterada numa outra
pers-pectiva. Considera que traços do caráter do
povo brasileiro em formação, instituídos
pe-los portugueses - " p r o fu n d o in d ifer en tismo ,
feito d e p r eg u iça física , d e fa q u ir ismo , d e su b -missã o r esig n a d a d a s co u sa s" (96), sintomas
de um povo incapaz de construir a noção de
pátria - concorreram também para a
preser-vação da unidade do território, na medida em
que impediram os colonos de se contrapor ao
rolo compressor da administração portuguesa
(96). Assim, definitivamente, em nenhuma
circunstância analítica, o olhar e a pena
condenatórios do autor descansam.
Que peculiaridades desse colonizador
aventureiro e que circunstâncias são
responsá-veis por malefícios tão extensos? A resposta é
parcialmente anunciada nas linhas iniciais do
livro: " a a mb içã o d o o u r o e a sen su a lid a d e
li-vr e e in fr en e' (53). Ao reverter e traduzir tais
expressões nos termos " co b iça " e
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" lu x ú r ia '-ambos centrais em Retr a to d o Br a sil pois, não
só acompanham o raciocínio desenvolvido por
Paulo Prado na obra como um todo, como
no-meiam dois dos cinco capítulos da mesma
-vê-se postulada a idéia de que as ações dos
colonos portugueses foram orientadas não por
virtudes, mas por " vício s' ou " p a ixõ es'.
Leitores da obra em exame, ao
inter-pretar o pensamento desenvolvido por
Pra-do, lançaram dúvidas quanto à observância
do mesmo aos cânones da prática científica.
Oswald de Andrade, por exemplo, em
pequeno texto escrito logo após a primeira
edição de Retr a to d o Br a sil, a despeito de
re-conhecer méritos do autor e da obra, refere-se
ao " extr a o r d in a r ia men te g r a ve er r o a q u e se d eixa co n d u zir P a u lo P r a d o n a a d içã o d o s va lo r es d a s d u a s p r imeir a s p a r tes d o livr o : a Lu
-xú r ia e a C o b iça ' Segundo Andrade, o autor
'[r e p e te l to d a s a s mo n str u o sid a d es d e ju lg a men to
d o mu n d o o cid en ta l so b r e a Amér ica d esco b er
-ta . O p en sa men to missio n á r io , in teir a men te
32
R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1in va lid a d o p ela cr ítica co n temp o r â n ea , é
o
q u ep r esid e a essa s co n clu sõ es d e in ício L .J
Há
BA
m e s m o v i o l e n to s c h o q u e s e n tr e a v e r d a d e
d o c u m e n ta d a e o ju i z o e m i ti d o " ( 2 3 0 ) .
Retr a to d o Br a sil dá razão ao crítico em
duas dimensões. De uma parte, porque as
no-ções "luxúria" e "cobiça", centrais na
constru-ção explicativa aí apresentada, são carregadas
de sentidos inscritos no campo religioso
cris-tão. De outra, porque Prado intenta apresentar
como evidências empíricas de sua tese,
sobre-tudo, relatos de padres e de viajantes
euro-peus que descrevem e interpretam práticas
relativas a várias esferas da vida social,
orien-tado-se por valores morais de inspiração cristã
e valem-se de termos e expressões correntes
no campo religioso - pecado, libertinagem,
lascívia, falta de pudor, dentre outros - os quais
são representados pelo homem
contemporâ-neo como denota dores de rigidez moral.
Segundo entendo, as formulações de
Prado sobre as práticas do português
coloni-zador não devem ser interpretadas como
de-rivadas da máxima " U ltr a a eq u in o xia lem n o n
p e c c a r t ' - " a q u ém d a lin h a d o E q u a d o r n ã o
existe n en h u m p eca d o " - enunciado que
condensa a crença, corrente na Europa do
século XVII, de que no Novo Mundo
impera-va o desregramento e a permissividade.
(Holanda, 1971:33). É certo que uma
inter-pretação mais refinada das idéias de Paulo
Prado, expostas em Retr a to d o Br a sil,
deman-daria, tanto o conhecimento de outros de seus
escritos, quanto um conhecimento mais
apu-rado de sua trajetória intelectual e pessoal.
Com tais reservas, diria que estão subjacentes
à estrutura argumentativa do autor duas
pers-pectivas que se conjugam. Uma delas, de
na-tureza epistemológica, foi aqui apresentada
em página anterior: o passado é
tenta-tivamente eleito como campo de construção
de relações causais para o conhecimento do
presente. Nesta perspectiva, a despeito das
inúmeras imprecisões e assertivas infundadas,
a história emerge como método. A segunda
refere-se à visão de mundo - como conceitua
W eber - que preside as interpretações de
pe-los fundamentos da ética aristotélica.
Portan-to, postulados da ciência positiva se
conju-gam com uma determinada subjetivação.
Assim, não me parece pertinente reduzir o
pensamento do autor a uma visão moralista
retrógrada, que uma primeira leitura pode
suscitar. Busco, a seguir, explicitar de que
modo objetividade e subjetividade organizam
o pensamento do autor e fundamentam suas
concepções negativas sobre os portugueses,
como também sobre o Brasil e os brasileiros.
Precede esta análise uma breve referência às
formulações de Aristóteles sobre a virtude.
Virtude para este filósofo consiste em
disposição do espírito resultante de
delibera-ção voluntária. Em outros termos, postula
Aristóteles que virtuoso é todo aquele que,
ao agir, tem consciência de seu ato; que
es-colheu livremente tal ou qual maneira de agir
e que executa a ação com disposição de
es-pírito resoluta.
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É fundamental para que se possaqualificar uma ação como boa que não seja
necessário acrescentar-lhe nem retirar-lhe nada.
Vale dizer, a virtude se expressa como um
meio termo entre dois extremos possíveis. Em
síntese, a boa ação, para ser assim
considera-da, deve estar fundamentada na razão.
Acres-centa-se ainda que, para Aristóteles, o meio
termo varia com as circunstâncias que
medei-am a ação e apresenta-se somente à razão
madura - a mocidade é a idade dos extremos
(Aristóteles, 1987, passim).
Considera Prado que a dilatação das
fronteiras do Velho Mundo - processo no qual
é gestado o Brasil - é resultante do
Renascimento, contexto histórico que enseja
a emergência de modos de sentir e pensar
radicalmente diversos dos precedentes. A era
dos descobrimentos teria assinalado,
sobretu-do, a ruptura do homem europeu com os
prin-cípios e valores cristãos que até então os
constrangiam e o ressurgimento de antigas
idéias - greco-romanas - de
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" co n q u ista d elib er d a d e d o esp ír ito h u ma n o e o a la r g a men
-to I. ..) d a s a mb içõ es h u ma n a s d e p o d er io , d e
sa b er e d e g o zo " (54). Aos homens da época,
" o Ren a scimen to r evela r a o p r a zer d e viver '
(56). Uma das passagens através da qual o
autor melhor condensa o sentido que atribui
às rupturas ocorridas nesse contexto histórico
é a seguinte: o princípio da " O b e d iê n c ia ' foi
substituído pelo d a " Vo n ta d e in d ivid u a lista [..
.J
A E r a d o s d esco b r imen to s fo io
r esu lta d o d essemo vimen to d e lib er ta çã o " (54) . Um dos
mei-os de realização de vontades individuais - de
poderio e gozo - viria ser a procura e a
pos-se de metais e pedras preciosas, também
atri-buída ao Renascimento. Isto porque, aí
reacendem-se as " len d a s a in d a r o ma n a s, d a s
so n h a d a s ilh a s d o o u r o e d e p r a ta , mu d a n d o d e lu g a r co mo fo g u s-fa tu o s. [que) a tr a ía m
sem-p r e sem-p a r a ma is lo n g e' os povos marítimos,
ini-cialmente venezianos e genoveses e,
posteriormente, portugueses, espanhóis,
ho-landeses e ingleses, quando ouro e prata
co-meçam a escassear.
Com tais disposições de fundo a um só
tempo axiológico e mágico, o " g r a n d e mo
vi-men to mig r a tó r io " figura como o meio
pen-sado pelo europeu, português em particular,
de realização de sua individualidade, e o faz
de modo resoluto, com destemor e firmeza
de propósitos. Portanto, a procura de novos
caminhos marítimos e a descoberta dos
mes-mos é pensada por Prado como obra de " h
e-r ó is', de homens de
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" t ê m p e r a ' e " en ér g ico s'(37), qualidades que configuram a coragem
como virtude. Como compreender-se, então,
que o vício viria ocupar o lugar da virtude no
caráter do português colonizador e, por via
de conseqüência, no do brasileiro em
proces-so de formação?
Segundo Prado, Portugal " se en fr a q u
e-cer a p elo a la r g a men to d e seu ca mp o d e a çã o "
(35):
a derrota na Índia e na África e a uniãocom a Espanha abalaram o poderio e o
pres-tígio da nação que se tornara anárquica.
Declínio do império colonial , declínio
tam-bém da Metrópole:
co r r o mp id a p elo lixo e p ela d esmo r a liza çã o d o s co stu mes
r. .
.1, g o ver n o s d esp ó tico s e in -ca p a zes, s ó co n ser va r a m a a n tig a en er g ia p a r a su sten ta r a In q u isiçã o " (135). "O tr a b a lh o ser vil d o s escr a vo sd a Áfr ica su sten ta -va a a g r icu ltu r a , ma s a escr a vid ã o min a -vaoqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o r g a n ismo so cia l, co mo em to d a a p a r te existiu .TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r. .
.J.hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
O s in d ivíd u o s a o s p o u co sBA
p e r-d i a m a -d u r e z a -d a p r i m i ti v a tê m p e r a . A
Ín d ia já o s esg o ta r a co m seu s en ca n to s e
d esilu sõ es, d u r a esco la d e fer o cid a d e b r u -ta l, d e c o b i ç a v o r a z ,
de
l u x ú r i a h i r c i n a ,o n d e a m o c i d a d e p o r tu g u e s a se ia ed u -ca n d o n o s vício s e cr imes d a sed u çã o a siá
ti-ca
038/139, grifas meus).
Portanto, condições sócio-históricas
vi-vidas por Portugal, no período
que se segue
à
fase dos descobrimentos,
foram destituindo
os portugueses
daquelas disposições
essenci-ais do homem - homem adulto - concebidas
por Aristóteles: capacidade
de discernimento
e de autocontrole.
Enfim, da excelência
pe-culiar do homem - seu poder
de ajuizar as
coisas do mundo e, assim, ser capaz de
esco-lher o meio-termo entre dois extremos.
A vida nos trópicos brasileiros viria
am-pliar as predisposições do português povoado r
e colonizador para os excessos cometidos em
sua busca de gozo e poder, prazer e riqueza.
Assim escreve Prado:
À sed u çã o d a ter r a a lia va -se n o a ven tu r eir o
a afoiteza da adolescência.
P a r a h o men sq u e vin h a m d a E u r o p a p o licia d a ,
o
a r d o r d o s temp er a men to s, a a mo r a lid a d e d o s co s-tu mes, a a u sên cia d o p u d o r civiliza d o - e to d a a co n tín u a tu mescên cia vo lu p tu o sa d an a tu r eza vir g em - er a m u m co n viteà vid a
so lta e in fr en e em q u e tu d o er a p er mitid o . O in d íg en a , p o r seu tu r n o er a u m a n ima l
la scivo , viven d o sem n en h u m co n str a n g
i-men to n a sa tisfa çã o d e seu s d esejo sca r n a is.
r. .
.J Vo lta va -seà simp les lei d a n a tu r eza , eà fa n ta sia sexu a l d o s a ven tu r eir o s, mo ço s ea r d en tes, em p len a fo r ça , p r esta va -se
o
g en tio
(73/74 grifo meu).
A exuberância
da natureza, da qual
fa-zem parte os índios; a liberdade na solidão e
o
desregramento
dela
resultante,
são
apontados
como
causas
que,
em conjunto,
produziram
homens
incapazes
de agir com
discemimento,
autocontrole
e equilíbrio
me-34
R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1diano. A luxúria é um dos vícios que
coman-da os homens e o processo
de povoamento
do Brasil. O outro é a cobiça.
De passagem, isto é, apenas como
bre-ve menção, considera
Prado que a escassez
de ouro e prata faz com que a procura pelos
mesmos tenha assumido o
" a sp ecto d e imp eri-a lismo eco n ô mico e co mer cia r
(55).
Segun-do
meus
próprios
termos,
um
impulso
exacerbado
de natureza
materialista toma o
lugar da inspiração mágica. Ao tempo da
ocu-pação do Brasil, a
" a mb içã o d e s e n fr e a d a ',o
" in d ivid u a lismo in fr en e" , " a n á r q u ico p ela'u o la ti za çã o d o s in stin to s so cia is' "
(93)
tip ific a m a s a çõ es emp r een d id a s p elo s
p o vo a d o r es e co lo n iza d o r es em su a " o b sessã o
diabólica" em descobrir ouro. Considera
Pra-do que a
" feb r e d o o u r o "medrou em outras
partes do Novo Mundo e se extinguiu. Mas,
no Brasil reveste-se de particularidades: "[aqui)
a
o b sessã o fo i co n tín u a , esp a lh a d a p o r to d a sa s cla sses, co mo u ma lo u cu r a co letiva "
que
durou
dois séculos (115). Tanto maiores os
insucessos
dos povoadores
e colonizadores
em sua pugna pelo metal - contra o que a
natureza,
oferecendo
resistência
passiva,
es-condia o ouro na hostilidade do clima, da mata
e do deserto (115) - mais extremada
tomou-se a ânsia de encontrá-lo.
No processo de formação da sociedade
brasileira, a luxúria - e o desregramento
que
a alimenta - tem como resultado mais
sensí-velo
povoamento.
A cobiça - e toda a
bruta-lidade
praticada
contra
os índios
que
a
acompanha
- enseja o desbravamento
do
ter-ritório, considera Paulo Prado. Mas, se desta
forma podem ser considerados
como
funcio-nais - termos
meus - para
o processo
de
colonização,
por
haver
sido
ambos
cons-titutivos primários
do "caráter" ou
"psicolo-gia" do brasileiro,
nele imprimiu
de forma
irreparável
as marcas dos excessos
cometi-dos pelos portugueses
povoadores
e
coloni-zadores. Da luxúria e da cobiça resultam: o
"en fr a q u ecimen to d a en er g ia física " , " d a en er -g ia p s iq u ic a ' e a " a u sên cia o u d imin u içã o d aa tivid a d e men ta l"
que, em conjunto,
No Br a sil,
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o
véu d a tr isteza se esten d e p o rto d o
o
p a ís, em to d a s la titu d es, a p esa r d oes-p len d o r d a n a tu r eza , d esd e o ca b o clo , tã o
mestiça d o d e ín d io d a b a cia a ma zô n ica e d o s
ser tõ es ca lcin a d o s d o No r d este, a té a
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
im p a s s ib ilid a d e so tu r n a e a mu a d a d o p a u lista
e d o min eir o . (1 4 3 ).
A apatia, a submissão, o individualismo
são apresentados por Prado, a um só tempo,
como formas de manifestação (ou
conseqü-ência ?) da tristeza brasileira e como causas
dos males do Brasil. Herança lega da pelo
português. Portanto, má semente, maus
fru-tos. Sob esta ótica não teríamos razões para
celebrar 500 anos de descobrimento do Brasil.
OS PORTUGUESES SEGUNDO GILBERTO FREYRE
Nas linhas iniciais do prefácio de C a sa
-g r a n d e
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
& Sen za la , o autor apresenta ospri-meiros indícios de um profundo sentimento
de lusitanidade, que viria a ser expresso em
vários de seus escritos posteriores. Ali
repor-ta-se à sua condição de exilado político e
in-telectual, que o conduz a Portugal e aos Estados
Unidos. Com respeito ao segundo país
regis-tra apenas a surpresa de haver sido
convida-do para exercer a função de "visiting
professor" na Universidade de Stanford, mas,
quanto ao primeiro, suas expressões são um
misto de reverência e afetividade pelas
coi-sas, gentes e lugares portugueses:
D eixei co m sa u d a d e Lisb o a , o n d e d esta vez
p u d er a fa milia r iza r -me, em a lg u n s meses d e
la zer , co mo a Bib lio teca Na cio n a l, co m a s
co leçõ es d o M u seu E tn o lo g ic o , co m o s sa b o
-r es n o vo s d e vin h o -d a -p o -r to , d e b a ca lh a u , d e
d o ces d e fr eir a . ju n ta n d o -se a isto
o
g o sto d er ever Sin tr a e o s E sto r is e o d e a b r a ça r a
mi-g o s ilu str es (Freyre, 1996:XLV).
Mas, é na construção dos argumentos e
na elucidação dos mesmos, através de um
extenso trabalho de demonstração empírica,
que as imagens positivas do português
ga-nham qualidade e substância. Precede o
desvendamento dos sentidos da referida
positividade e da lógica que preside a
formu-lação dos mesmos explicitar: quem é este
português objeto de conhecimento e
enalteci-mento, da parte de Freyre, e em relação a
que outro "sujeito" a idéia da positividade
daquele povo é construída.
Vê-se delimitado no capítulo III de
C a sa -G r a n d e & Sen za la uma categoria
cha-ve nas reflexões de Gilberto Freyre. É a de
colonizador, isto é, todo aquele indivíduo que,
originário de Portugal, aportou e fixou-se no
Brasil ao longo dos " Q u in h en to s e Seiscen
-to s" . À primeira vista, trata
-se
de umacate-goria social específica e historicamente
situada. Dela não fazem parte, por exemplo,
alguns indivíduos - mesmo que nascidos em
Portugal - como os que vieram à colônia a
partir do século XVIII e os que apenas
pas-saram - termo meu - pelo Brasil. Daquela
categoria também estão excluídos os
mem-bros da Companhia de Jesus, usualmente
nomeados de jesuítas ou padres jesuítas e,
nesta função, distintos da
categoria/persona-gem tomada pelo autor como referência
prin-cipal para a construção de uma interpretação
do Brasil.
Muitas são as designações e imagens
presentes na obra - sobretudo no I e III
capí-tulos - que qualificam positivamente o
colo-nizador: " cr ia d o r '; " fu n d a d o r '; " p o r ta d o r d e
en er g ia vita l'; de " co r a g em d e in icia tiva " ; " h o
-men s d e p o u co ca p ita l ma s d e mu ita co r a g em" ;
de " fir meza d e ca r á ter '; de " ca p a cid a d e d e
o r g a n iza çã o " ; que " d esemp en h o u ta r efa fo r
-mid á vel', " o b r a g r a n d io sa " .
Busco, a seguir, apontar o "sujeito"
to-mado, em primeira instância, como referente
para a elaboração das representações de
na-tureza positiva do povo português.
Nas primeiras páginas do capítulo III,
intitulado "O colonizador português:
antece-dentes e predisposições", Gilberto Freyre
con-testa análises desenvolvidas por escritores e
artistas europeus - ingleses especialmente
-relativas aos portugueses. Considera que
teri-am aqueles:
Tu d o er a a q u i d eseq u ilíb r io . G r a n d es
exces-so s e g r a n d es d eficiên cia s, a s d a n o va ter r a
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
[. ..) 0 5 ) .
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
O clima [ ' ..J
ir r eg u la r , p a lu str e,p er tu r b a d o r d o sistema d ig estivo ; clima n a
su a r ela çã o co mo
o
so lo d esfa vo r á veis a o h o-mem a g r íco la e p a r ticu la r men te a o eu r o p eu .
[ r ed u zid o ) osp o r tu g u eses a u m p o vo sem
g r a n d eza n en h u ma l..
.J
D imin u ilh es a imp o r-tâ n cia d a fu n çã o cr ia d o r a q u e n o s sécu lo s
XV e XVI a fir mo u -se n ã o s ó n a técn ica d a
n a veg a çã o , n a s g u er r a s d a Áfr ica e d a Ín d ia ,
n a o p u len ta liter a tu r a d e via g en s, n o eficien
-te imp er ia lismo co lo n iza d o r (9 2 ).
A despeito do tom afirmativo, o
reco-nhecimento daquelas qualidades superiores
fi-guram de modo marginal - insignificante, seria
o termo mais adequado - na complexa gama
de fatos históricos e articulações dos mesmos,
apresentados ao longo de seu texto. Não é a
superioridade no campo da técnica, nem da
literatura, da arte da guerra e da conquista que
oferecem os indícios das virtudes dos
portu-gueses. Tampouco
os empreendimentos
na
África e na Índia.
Éfundamentalmente a
socie-dade brasileira, olhada em retrospectiva, que
se constitui como matriz de sentido para a
cons-trução de representações positivas sobre o
"ca-ráter" do povo português.
Exponho, em primeiro lugar, em uma
perspectiva
descritiva,
as várias dimensões
através das quais a "energia
criadora" dos
portugueses se manifesta e ao mesmo tempo
se prova. Num segundo momento, busco
des-vendar
as relações
lógicas
e históricas
construídas pelo autor para validar uma das
teses centrais expostas
em
C a sa G r a n d eTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
&Sen za la : " fo r a m osp o r tu g u eses os ú n ico s ca
-p a zes d e fu n d a r a ma io r civiliza çã o mo d er n a
n o s tr ó p ico s' -
o Brasil (190).
A energia criadora dos portugueses se
manifesta na inigualável capacidade de
ven-cerem as condições adversas do meio natural
da colônia brasileira. Ao longo de quatro
pá-ginas (12 a 16), um texto adjetivado e
super-lativo situa o colonizador
em um ambiente
natural hostil
àvida humana, e à do europeu
em particular de modo particular.
op o r tu g u ês vin h a en co n tr a r n a Amér ica tr o
-p ica l u ma ter r a d e vid a a -p a r en temen te fá cil;
n a ver d a d e d ificílima p a r a q u em q u isesse
o r g a n iza r q u a lq u er fo r ma p er ma n en te o u
a d ia n ta d a d e eco n o mia e so cied a d e' ( 1 6 )
36
R E V IS T AD E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1Numa parte dos trópicos na qual
euro-peus - ingleses, franceses, holandeses - ao
pri-meiro contato
" su cu mb ir a m o u p er d er a m aen er g ia co lo n iza d o r a , a ten sã o mo r a l, a p r ó p r ia
sa ú d e física , fa lh a r a m [ '.
.J
osp o r tu g u eses tr iu n-fa r a m" .
A prova disto é o Brasil:
" d e fo r ma çã op o r tu g u esa é a p r imeir a so cied a d e mo d er n a
co n stitu íd a n o s tr ó p ico s co m ca r a cter ística s n a
-cio n a is e q u a lid a d es d e p er ma n ên cia ' ( 1 2 ) .
Em uma segunda dimensão, a idéia da
extraordinária coragem e energia criadora dos
portugueses pode ser percebida em uma
cer-ta construção
realizada
por Freyre, a qual
traduzida em meus próprios
termos, afirma
presteza e capacidade
do colonizador para
superar a si mesmo. Explico-me.
Especialmente nos capítulos I e I1I,o
por-tuguês é qualificado de
" p leb eu " ,alguém
dota-do de
" b u r g u esismo p r eco ce'(90)
e, ainda,
aquele que orienta sua conduta pelo
" id ea lsemita '.
Tais termos são noções centrais,
atra-vés das quais Freyre sintetiza a forma
dominan-te de produção de riqueza em Portugal,ao dominan-tempo
dos descobrimentos. Fatos históricos e
argumen-tos de autores consagrados - como os do
histo-riador português, Alexandre Herculano - são
recursos através dos quais Freyre fundamenta a
assertiva de que o enriquecimento através do
comércio, de origens remotas no reino, havia
consolidado uma
" p r eco ce a scen d ên cia b u r g ue-sa em P o r tu g a l'
(98).
Mais do que afirmar a
existência de uma burguesia na estrutura de
clas-ses em Portugal, Gilberto Freyre anuncia a
ge-neralização em Portugal de um espírito mercantil,
que envolvia a todos, desde o rei até o homem
comum, à exceção dos padres enclausurados
nos conventos, que se dedicavam a orações, é
certo, e também às práticas agrícolas.
isto, o processo de colonização instituiu uma ordem "aristocrática, patriarcal e escravocrata".
As particularidades de um meio natural
adver-so e as "condições morais e materiais da vida
e cultura de seus habitantes" (24) se, por um
lado, inviabilizaram a expansão do espírito
mercantil, por outro, ofereceram aos
portugue-ses o estímulo e as possibilidades para
supera-rem a si mesmos: criaram no Brasil uma ordem
econômica e sócio-política singular tanto em
relação ao seu modo de ser, quanto no que diz
respeito à sua própria ação desenvolvida fora
dos trópicos, no oriente. A idéia da
inventi-vidade lusitana formulada por Freyre é melhor
expressa em sua escrita:
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
As cir cunstâ ncia s a mer ica na s é que fizer a m
do povo coloniza dor de tendência s menos
r ur a is ou, pelo menos, como o sentido a gr á
-r io ma is pe-r ve-r tido pelo me-r ca ntilismo,
o
ma isr ur a l de todos: do povo que a Índia tr a nsfor -ma r a no -ma is pa r a sitá r io, o ma is cr ia dor "
(2 4 ) "E ssencia lmente plebeu, ele ter ia fa lha -do na esfer a a r istocr á tica em que teve de de-senvolver -se seu domínio colonia l no Br a sil.
Nã o fa lhou, a ntes fundou a ma ior civiliza
-çã o moder na nos tr ópicos (90).
a análise dos lugares ocupados pela
Igreja Católica e pelo clero no processo
colo-nizador distingo mais uma instância através
da qual o autor de C a sa -G r a nde
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
& Senza laelabora as qualidades superiores dos
portu-gueses. Considera ele uma marcada presença
da Igreja Católica na formação portuguesa; de
origem antiga, que remonta ao tempo da
in-vasão romana na península ibérica,
esta beleceu-se em P or tuga l uma nobr eza epis-copa l com gestos de quem a bençoa ou pa cifi-ca , ma s na ver da de de quem ma nda e domina .
D omínio efetivo, a tr a vés da a utor ida de
confer ida a os bispos de decidir em em ca usa s civis [..
,J.
Oa lto cler o nã os ó se tor nou detentor de extr a or diná r io pr estígio místico, mor a l e a téjur ídico sobr e popula ções dota da s
r. .
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
.J de ex-tr ema sensitivida de r eligiosa [ '..lcomo de gr an-de pon-der intelectua l e político (206/207).
Reconhece ainda que, em Portugal, a fé
religiosa e o exclusivismo católico a um só
tempo contribuíram, de forma positiva, para
suprir a debilidade dos nexos políticos e
coi-bir a emergência de uma "consciência de raça"
(95). Se, na formação brasileira, estas duas
funções persistem, para o autor, o poder
tem-poral da Igreja Católica é subjugado pelo
co-lonizador. A capela do/no engenho é
emblemática deste processo:
[. . .la igr eja que a ge na for ma çã o br a sileir a , a r -ticula ndo-a , nã o é a ca tedr a l com seu bispo a
que se vã o queixa r o s desenga na dos da justiça
secula r ; nem a igr eja isola da e só, ou de mostei-r o ou a ba dia , onde vã o a coita mostei-r cmostei-r iminosos e pr over -se de pã o e r estos de comida s mendigos
e desa mpa r a dos.É a ca pela de engenho (9 5 ).
De modo implícito, a capela do/no
en-genho evoca também a subversão, feita pelos
colonizadores, de padrões morais propalados
pelo clero católico. Em várias passagens da
obra vemos Gilberto Freyre referir-se às
con-dutas privadas dos capelães com os mesmos
termos com os quais adjetiva os colonizadores
proprietários. As expressões "pa dr es a ma
n-ceb a d o s', " p r o cr ia d o r es', " feemeir o s
e
" filh o sdep a d r e ' - comumente colocadas por ele nas
falas de sujeitos indeterminados (por
exem-plo, "tr a dições ma liciosa s a tr ibuem a os a
nti-gos ca pelã es de engenho a funçã o útil, embor a
na da ser â fica , de p r o c r ia d o r e s ' (95) -
me-nos que formas estratégicas formuladas por
Freyre para manifestar seu tão pouco
dissi-mulado anti-clericalismo, são expressivas da
idéia da capitulação dos padres aos padrões
de moralidade dos colonizadores.
Crítico irônico e contundente dos
jesuí-tas - sobretudo porque exerceram ação
des-truidora das culturas e comunidades indígenas
mais intensa do que a praticada pelos
colo-nos (09/111) - atribui Gilberto Freyre a eles
o mérito de haverem contribuído para a
cons-tituição da unidade política e, em certa
medi-da, para a homogeneidade cultural num vasto
território como o do Brasil. Mas não é sem
expressões de regozijo que anuncia a derrota
c o r a jo s a i n i c i a ti v a p a r ti c u l a r '
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(244, grifosmeus). Se a decisão de povoar as extensas
terras e torná-Ias produtivas, através da
ex-ploração agrícola e do emprego do trabalho
escravo, foi consagrada pelo poder real,
do projeto teocrático trazido ao Brasil pelos
membros da ordem. Assim escreve:
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E m o p o siçã o a o s in ter esses d a so cied a d e co
-lo n ia l, q u er ia m
hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o sp a d r es fu n d a r u ma sa n tar ep ú b lica d e 'in d io s d o mestica d o s p a r a jesus'
co mo o s d o P a r a g u a i; ser á fico s ca b o clo s q u e
s ó o b ed ecessem a o s min istr o s d o Sen h o r es ó
tr a b a lh a ssem n a s su a s h o r ta s e r o ça d o s.
Ne-n h u ma in d ivid u a lid a d e n em a u to n o mia p
es-so a l o u d e fa mília [ '.
.J
P ela p r esen ça d e u mtã o fo r te elemen to p o n d er a d o r co mo a fa
mí-lia r u r a l, o u a n tes la tifu n d iá r ia ,
TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
é q u e aco-lo n iza çã o p o r tu g u esa d o Br a sil to mo u d esd e
ced o r u mo e a sp ecto s so cia is tã o d iver so s d a
teo cr á tica , id ea liza d a p elo s jesu íta s - e ma is
ta r d e p o r eles r ea liza d a s n o P a r a g u a i - d a
esp a n h o la e d a fr a n cesa (2 3 ).
Note-se que, na construção explicativa
do autor, a derrota de uma forma de
organiza-ção sócio-política que se anunciava
incompa-tível com o desenvolvimento dos ideais da
modernidade - individualidade e autonomia
dos sujeitos - teria sido conseqüência não da
ação avassaladora do Estado português contra
o poder da Campanhia de Jesus - fato
históri-co sequer mencionado por Freyre - mas sim,
das características essenciais assumidas pela
organização social edificada no Brasil como
fruto da inventidade dos portugueses. Isto é,
no que diz respeito ao processo de produção
de riqueza, uma economia rural de base
lati-fundiária e escravocrata: no que se refere ao
sistema de domínio, um poder aristocrático e
patriarcal. Explicitada nas palavras de
Gilber-to Freyre, transcritas anteriormente, a
institui-ção familiar - vale dizer a dos proprietários
-suplantou o poder da Igreja Católica.
Essa perspectiva, que prenuncia a
prevalência da família na estruturação da vida
brasileira, remete à elucidação de uma última
expressão da capacidade criativa e da
ener-gia vital dos portugueses.
Neste caso, o argumento central é
ela-borado em torno da certeza de que a formação do Brasil "foi o b r a n ã o d o E sta d o co lo n iza
-d o r , semp r e su mítico em P o r tu g a l, ma s d a
38
R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS v .3 1 N .2 2 0 0 1Tu d o d eixo u se, p o r ém, à in icia tiva p a r ticu
-la r . O sg a sto s d e in sta la çã o . O s en ca r g o s d e
d efesa milita r d a co lô n ia . M a s ta mb ém o s
p r ivilég io s d e ma n d o e ju r isd içã o so b r e a s ter
r a s en o r mes. D a exten sã o d ela s fezse u m ch a
-ma r iz, d esp er ta n d o -se n o s h o m e n s d e
p o u c o c a p i ta l , m a s d e
coragem,
o
in stin tod e p o sse; e a cr escen ta n d o -se a o d o mín io so
b r e ter r a s tã o va sta s, d ir eito s d e sen h o r es feu
-d a is so b r e g en te q u e fo sse a í mo u r eja r . A
a titu d e d a C o r o a vê-se cla r a men te q u a l f o i:
p o vo a r sem ô n u s o s er mo s d a Amér ica .
D e s b r a u á - lo s d o ma to g r o sso , d e fe n d ê - to s d o
co r sá r io e d o selva g em, tr a n sfo r mâ -lo s em
zo n a d e p r o d u çã o , co r r en d o a s d esp esa s p o r
co n ta d o s p a r ticu la r es q u e se a tr evessem a
d esvir g in a r ter r a tã o á sp er a(244, grifas meus).
Afirmar o papel exclusivo da iniciativa
privada nas origens da formação brasileira é
mais do que considerar a ausência do Estado
no empreendimento colonial. Trata-se, ao
mesmo tempo, de enfatizar a importância da
família como instituição estruturante da vida
brasileira em suas origens e de se contrapor
às concepções correntes, à época, que
repre-sentavam o português sujeito primordial do
processo colonizador como "tarados,
crimino-sos e semiloucos" (9), termos de Azevedo
Amaral, objeto de crítica explícita do autor.
a formulação de Freyre, ao contrário, o
pro-cesso de constituição do Brasil foi presidido
por homens dotados de " co r a g em d e in icia
ti-va " , " f ir m e z a d e â n imo " e " ca p a cid a d e d e o r
-g a n iza çã o " (244) e, sobretudo, por homens
" co smo p o lita s e p lá stico s' (4).
Como que antecipando uma pergunta
de fundo contestatório - do tipo, "de que
Olimpo emergiu este homem virtuoso, um
quase-herói, superior em sua singularidade"
-responderia Freyre: " Nã o se tr a ta d e n en h u