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Passagens : rito e drama na escola

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Academic year: 2021

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ROSE HELENA REYES

“PASSAGENS - RITO E DRAMA NA ESCOLA”

CAMPINAS

2014

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Resumo

A presente pesquisa consiste no relato de uma práxis pedagógica construída ao longo de 23 anos no âmbito do Ensino Fundamental, na Escola Casa Via Magia. É um relato da história de uma experiência de ritual de passagem com as crianças do quinto ano, último ano delas na nossa escola. Uma montagem de teatro que foi se tornando um drama ritual que busca favorecer as mudanças na vida dessas crianças nesse momento: crescer, mudar de nível escolar e de escola. Traz a memória dessa construção, uma reflexão sobre o tecer da metodologia e da cosmovisão desse trabalho de encenação, que inclui um diálogo entre os saberes, entre as artes e delas com as ciências, entre artistas educadores e as crianças, entre as crianças elas mesmas e de cada um consigo mesmo. Retoma certas referências do teatro contemporâneo e/ou experimental (Stanilavski, Artaud, Grotowski e Brook), da arte-educação de Read e da psicanálise (especialmente de Lacan e Freud, entre outros). Faz contato com a pesquisa antropológica de Lévi-Strauss, Van Gennep, Turner, DaMatta e outros, assim como contato com reflexões filosóficas, especialmente de Heidegger e dos estudiosos de sua obra. Em última instância trata-se de dar atenção aos encontros e despedidas de nossas vidas e do desvelamento do nosso ser, sempre ser-com. Um cuidado que a arte, a educação e a rede de afetos têm podido potencializar nessa experiência a ser compartilhada.

Palavras-chave: Educação, Arte-Educação, Teatro, Ritual, Rito de Passagem

Abstract

This research consists on the report of a pedagogical praxis built over 23 years within the framework of elementary teaching at Casa Via Magia Elementary School. It is a report of the history of a rite of passage experience with children of the fifth grade that are leaving the school. A theater production that became a ritual drama which aims to encourage changes in the lives of these children in this specific phase: growing, changing of school and educational level. It brings the memory of that construction, a

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reflection on the weaving of this methodology and the worldview of this staging work, which includes a dialogue between knowledges, arts, arts with sciences, between art educators and children, between the children themselves and each one with themselves. Reviewing certain references of contemporary and/or experimental theater (Stanilavski, Artaud, Grotowski and Brook), Read’s art-education and psychoanalysis (especially Lacan and Freud, among others). Getting in touch with the anthropological researches of Lévi-Strauss, Van Gennep, Turner, Da Matta and others, as well as contacts with philosophical thoughts, especially Heidegger’s and researchers on his work. Ultimately it is about giving attention to encounters and farewells of our lives and the unveiling of our being, always being-with. A well care that art, education and the network of affections have been able to enhance in this experience to be shared.

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Sumário

Sumário ... ix

Dedicatória ... xi

Agradecimentos ... xiii

Prólogo: Convite à Viagem da Passagem ... 1

1. O Barco ... 23

2. O timoneiro que vos fala ... 39

3. A bordo das experiências e suas memórias ... 47

4. O mar e as marés dos ritos ... 71

5. Os instrumentos de navegação... 87

6. A Viagem da Passagem ... 113

6.1 A indeterminação do mar aberto ... 123

6.2 Os saberes e histórias dessa passagem ... 146

6.3 Os rumos dessa navegação ... 168

6.4 As crianças tripulantes e seus papéis ... 186

6.5 As vozes das crianças e suas falas viajantes ... 203

6.6 As imagens dos dramas navegantes ... 215

6.7 Os materiais simbólicos dessa viagem ... 226

6.8 Os temas simbólicos do navegar ... 242

7. Desembarque... 262

Carta de despedida ... 274

REFERÊNCIAS ... 290

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Dedicatória A Ruy Cezar, com amor eterno

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xiii

Agradecimentos

À minha orientadora, Ana Angélica Albano, o seu posicionamento ético e seus direcionamentos estruturantes e amorosos.

À Roberta Santana o seu grande companheirismo e competência no acompanhamento da pesquisa e produção deste escrito.

À Regina Novaes as contribuições generosas e a abertura à reflexão sobre a experiência do drama ritual.

À Nadia Brito e Manhã Ortiz a leitura, sugestões e revisão sensível.

Aos meus filhos, Diogo, Martim e Vicente, o suporte afetivo em minhas desmedidas no processo desta construção.

A todas as crianças e adultos, com quem compartilhamos essas passagens e aprendizados existenciais essenciais.

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No início (1982), a Via Magia era um grupo de teatro experimental, sediado em São Paulo. Em 1984, nasceu a Casa e a escola, em Salvador, Bahia.

Até hoje, no centro da Casa Via Magia pulsa seu coração: o circo/teatro (imagem 1). Como todo o nosso sangue, natural e necessariamente, passa pelo nosso coração, todos que pertencem a esta comunidade, crianças e adultos, experimentam o Teatro de Pano em algum momento.

Os diversos projetos que cresceram nessa Via tiveram a mesma perspectiva. Eles foram orientados pelo princípio de ser-com, de entregar-se ao comprometimento inefável cada um consigo mesmo e com os nossos semelhantes, entendendo esse vínculo como pertencentes ao mesmo laço; igualmente à natureza, pela crença de que também ao mundo e todos seus habitantes permanecemos conectados, imersos um no outro, no movimento do tempo... Princípio que procura assumir, a um só tempo, a natureza e a cultura como o território do humano, território híbrido de desejo e linguagem, assim como de acaso e circunstancialidade para escolhas.

Desde o início, os diretores e os atores, ou os educadores juntamente com as crianças, buscam seguir sua própria experiência, ouvir seus próprios sonhos, referir-se a seu tempo/lugar no mundo – aquele que se ocupa concretamente. Buscamos nos orientar pela constelação do Cruzeiro do Sul, e a tudo que pode significar para nós, a cada momento, pertencer ao lado de baixo do Equador.

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Foi assim que fez sentido escrevermos os textos a serem encenados, costurarmos os cenários e figurinos de cada montagem do grupo, além de interpretarmos os personagens e suas histórias; plantarmos nossas folhas e fazermos nossas saladas, coletarmos o papel já utilizado na Casa, reciclá-lo e torná-lo suporte para desenhos, colagens e/ou pinturas (imagem 2). Dessa forma, fez sentido juntar, modificar e inventar um conjunto de propostas, de dinâmicas e materiais pedagógicos juntamente com as crianças. Nesse caminho fez sentido reunir-se em rede com produtores e artistas independentes, latino-americanos e brasileiros, ampliando o olhar para além do familiar, ao estranho/familiar.

E esse caminho foi daqueles sem volta. Tivemos que assumir os conflitos, assim como as alegrias dessas trajetórias exigentes e deliciosas de pesquisar e inventar, construir e reconstruir. Personagens, jogos de mesa, livros de ciências, leiras e hortas, poemas e cenas, falas e debates, encontros e espetáculos, representações e instituições...

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Fez sentido aos habitantes da Via Magia envolverem-se num fazer artesanal, de uma forma autoral e conjunta. Dedicar-se ao passo a passo de cada coisa, fosse um livro com crianças, fosse um espetáculo com atores (imagens 3), fosse um encontro entre artistas, públicos e produtores, entre um grupo de educadores ou de representantes culturais (imagens 4).

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Então, com o tempo, como em meses podem crescer galhos de árvores ou em eras surgir afluentes de rios, foram se fazendo trilhas e pontes. Não só com as famílias da escola ou com o público dos espetáculos, mas também com outros artistas, produtores culturais, artistas-educadores, educadores, também com o bairro em torno da Casa, de onde se formou o grupo de teatro jovem da Via Magia. E de repente nos vimos viajantes das estradas, asfaltadas ou de chão batido, para certas pequenas e especiais cidades do interior baiano.

Essas ampliações trouxeram ocasiões preciosas para se encontrar parceiros, amigos, camaradas. Ocasiões raras quando caminhantes se encontram em seus caminhares e percorrem atalhos, deixando marcas, rastros, abrindo horizontes inusitados, muitas vezes sem se dar conta disso.

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Foi ficando mais vívida a percepção da vida natural e cultural da Bahia, do Brasil, assim como de distantes cantos e povos do mundo, agora mais aproximados de nós (imagens 5). Da mesma maneira como podemos nos surpreender ao escutarmos mais minuciosamente um jardim ou a melodia de uma música em sua diversidade de sons, formas, cores, tons, atmosferas, somos surpreendidos e sensibilizados pelo mundo e reencontramos referências e inquietudes esquecidas. Belezas no plural.

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Temos trinta e dois anos de existência e o projeto das Passagens, objeto de minha pesquisa de doutorado, tem vinte e três anos. Ele começou a acontecer quando o primeiro grupo de crianças, cuja maioria cresceu conosco desde um ano de idade, saiu da escola, aos dez anos, rumo a uma nova etapa escolar.

Muitas vezes pensei que gostaria de escrever sobre a experiência em arte-educação desse drama ritual. A presença de Ana Angélica Albano em minha banca de Mestrado reacendeu esse desejo. Depois, ao reler seu livro sobre Tuneu, em que essa autora trata a obra de arte como iniciação do artista, essa ideia tomou o formato de uma possível pesquisa autobiográfica. Mais tarde, ao nos encontrarmos por acaso, essa ideia corporificou-se de vez e encaminhei-me à Unicamp e à linha de pesquisa do Laborarte.

Nesse momento parecia-me que o que importaria seria aproximar-me dos significantes que as crianças construíram, ao dramatizarem uma diversidade de personagens, do quanto se entregaram verdadeiramente ao desafio subjetivante de nossa empreitada coletiva de despedida.

Como e até que ponto as crianças haviam incorporado essa experiência de arte-educação de montagem de um espetáculo de teatro como via para fechar um ciclo escolar em nossa escola e também de uma fase de vida?

De repente, estava de volta à universidade para construir uma narrativa sobre essa experiência dramática tão significante para mim! Então Ana Angélica, que havia se tornado minha orientadora, fez a pergunta que não podia calar: Se você já sabe o que aconteceu, por que precisa pesquisar? Qual é realmente sua pergunta?

Comecei a fazer as disciplinas do doutorado com essa pergunta pousada, como açúcar no fundo de um copo de suco. Aparentemente sem intervir no gosto de nada, ela ficou lá.

Aprendi a reconhecer algo bem significativo no primeiro ano de doutorado, especialmente na disciplina Arte, Psicologia e Educação conduzida por minha

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orientadora, que diz respeito a me direcionar mais ao como do que ao o quê, ou mesmo ao porquê, que, no melhor dos casos, conquista-se no final de uma pesquisa e é relativo, no meu caso, a situações específicas, o que significa não serem tão generalizáveis.

Para Quinet1 o “como” está relacionado ao significante (poderíamos dizer à

forma, à estesia?), ao desejo inconsciente; não ao dito, mas ao dizer, não ao enunciado, mas à enunciação, que não estão juntos. Na enunciação, quer dizer, na forma do dizer (seu ritmo, suas entonações, suas pausas, a ênfase ou elipse de uma ou outra palavra, o volume da voz...) é por onde desliza o desejo.

Foi então que mudei minha pergunta, colocando-me mais claramente interessada em rever e refletir, comparar e relacionar as vivências dos representados, no caso das crianças, e aquelas daqueles que as representam, no caso, eu mesma e os demais adultos. Comecei a explorar meus cadernos “de campo”, fazendo leituras cuidadosas de comentários escritos pelas crianças, dos registros de pais e profissionais (em fotos e filmes) das culminâncias/apresentações, de testemunhos atuais: meus, de adultos que participaram do projeto e especialmente de crianças, hoje já adultos. O foco passou a ser a maneira como as coisas aconteceram, as formas que foram tomando esse processo de performance e passagem.

A verdade é que chegamos num terceiro momento, pois a pergunta que orientou minha pesquisa desligou-se da missão de confirmar ou validar o sentido escolar da empreitada de um drama ritual através do relato minucioso da experiência de apropriação das crianças da proposta dos artistas-educadores, como no anteprojeto, nem tampouco permaneceu exclusivamente relacionada à maneira como essa se estruturou, à criação de sua metodologia, mas ampliou-se à experiência partilhada de sua construção, o que nos remete a terrenos ainda mais complexos e arriscados.

1 QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma. Jorge Zahar Editor: Rio de

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Ocorreu que a partir dessa percepção ampliada, os arquivos de memória foram sendo ativados e despertaram do esquecimento muitas lembranças de muitas situações/reflexões reveladoras dos processos de construção e interação desse drama ritual, que fui anotando, e algumas das fontes de pesquisa (fotos das apresentações, de ensaios, de outros momentos do processo, alguns depoimentos escritos...) de fato foram sendo percorridas e surpreendendo mais e mais...

De fato, consegui ver muito pouco dos registros em filme na ocasião em que foram produzidos. No final dos processos sempre estava absolutamente exausta, precisando retomar uma série de compromissos que haviam sido deixados para depois. Evidentemente isso não explica o fato de não tê-los visto até o desenrolar dessa pesquisa. Provavelmente esse fato se relaciona ao elemento autobiográfico inevitável de qualquer produção de conhecimento em que o sujeito se implique e assim diretamente. Especialmente nessa em que faço parte de forma dupla: como parte da experiência e como observadora dela e do seu envolvimento com múltiplos atores.

Como numa espécie de pesquisa etnográfica, foi imprescindível implicar-me duplamente, como “nativa” e “estrangeira” a uma só vez, buscando novos entendimentos sobre os processos comuns que vivenciamos tão intensamente. Mesmo considerando o suporte da articulação de referências que fez parte e, ainda faz, desse navegar, não se mostrou facilitada essa rota assim retomada, pelo contrário, resultou bastante desafiadora. Não seria propício trazer ideias de última hora, quer dizer, que já não tenham sido, de alguma forma, vislumbradas pela reflexão que acompanhou concretamente nossas navegações por mares teatrais.

Em outras palavras, foi fundamental levar em conta a ambivalência do meu lugar na direção do drama ritual e da pesquisa sobre ele. Da mesma maneira foi necessário manter as referências dos pensadores que sustentaram a cada ano, aos meus olhos e aos dos demais nativos, a possibilidade de realização desse projeto. Ainda que tenha podido, como estrangeira, a partir desses, chegar a outros autores.

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Há vários registros que não poderão receber atenção devida, que podem ser vistos como terrenos a continuar sendo percorridos, que apontam para transformações mútuas entre as crianças e os adultos envolvidos. Por isso fez sentido nomearmos essa pesquisa de Passagens. Dessa forma, pensamos estar contemplando o fundamento relacional misterioso, interminável em suas consequências impalpáveis e imaginárias, desse teatro ritual que implica uma despedida real e simbólica e consequentemente, um duplo reposicionamento existencial.

Recentemente encontrei na saída de uma sessão de cinema um casal de pais de uma criança, ex-aluna de nossa escola, hoje uma adolescente escolhendo o que estudar na universidade, que comentou comigo o fato de ela se perguntar se os colegas de nossa escola poderiam estar presentes quando ela se formasse naquilo que ainda sequer definira-se completamente em cursar. É como se manifestasse o desejo de convocá-los para outra passagem, que já vislumbrava como tal, bem adiante em sua vida escolar.

Soa-me ela ter aprendido a reconhecer a importância de demarcar as passagens também como herança do rito do quinto ano, o que me faz feliz. Foi nesse sentido que trabalhamos: para que possamos aprender a estar atentos e cuidadosos na busca incessante de nos apropriarmos de nós mesmos, de aprender arriscar mirar-se e fazer escolhas enquanto seres-no-mundo, o que se exercita, entre outras práxis reflexivas, marcando de forma ritual, certas passagens de nossas vidas. Certos momentos mágicos de concomitante fechamento de um e reabertura de outro tempo existencial.

Bem, essa narrativa faz parte de um processo de décadas de trabalho, deixará escapar ao vento muito do registro inacessível da experiência, mas que, mesmo assim, lacunar, é um prazer poder compartilhar.

Quando já escrevendo sobre este projeto, pensando como essa experiência tornara-se um drama ritual, veio-me a imagem de travessias marítimas. Muitos se têm utilizado de sua simbologia. Talvez, no meu caso, por conta de se tratar da mescla de

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precisão/imprecisão, entrega e conflito, território terrestre próprio e território marítimo estrangeiro. Não sei ao certo.

Estava ocupando-me em fotografar o mar naquele momento em que começava a escrever e as representações foram acontecendo e se somando. Da mesma maneira veio a lembrança de que a última montagem que trabalhei como atriz (pois a partir daí continuei me dedicando apenas à direção de espetáculos) intitulava-se Navegantes (imagem 6). Foi um trabalho de Teatro/Dança, em 1994, dirigido pela coreógrafa argentina Mariana Belotto, e a palavra Navegantes referia-se à nossa passional viagem existencial na Terra.

Imagem 6

Somente mais tarde, ao retomar um texto de Larossa2, deparei-me com o fato de

que a raiz indo-europeia de experiência (per) se relaciona, segundo ele, com a ideia de

2 LAROSSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira

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travessia. Em grego, há derivados dessa raiz que se relacionam com atravessar (peirô), passar através (peraô), entre outros vocábulos. Não apenas isso como também o fato de que a palavra experiência em alemão (erfahrung) contém o fahren de viajar e que no antigo alto alemão fara também deriva gefahr, quer dizer, perigo. Por isso, Larossa comenta que tanto nas línguas latinas quanto nas germânicas a palavra experiência contém a dimensão de travessia, além do que, nesta última se explicita a ideia de perigo implícita nela.

A imagem de travessia perigosa caberia a essa experiência dramática com as crianças antes mesmo dela se definir como processo ritual, pois desde os primórdios da Via Magia, quando éramos apenas um grupo de teatro experimental, vimos nos dedicando a um teatro que busca extrair as forças de velhos mitos, provocar transformações nos atores e no público. Nossos espetáculos infantis sempre assumiram trazer temas considerados distantes da realidade infantil, como o sexo e a morte, trazendo lendas e mitos que os evocam ou mesmo a representação de “mitos pessoais”. Chegamos a ter texto de espetáculo infantil cortado pela censura federal. Aconteceu quando criamos o espetáculo Estória do Ladrão, em 1986, no qual interpretávamos crianças (imagens 7). Uma parte do texto especialmente vetado pela censura havia sido coletado de jogo dramático espontâneo entre as crianças, na Hora Livre. Era assim: Criança 1– Sou um mendigo lenhado... Vou me matar...

Criança 2 – Cadê a faca?

Criança 1– Sobe a rampa!

Criança 2 – Que rampa?

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Imagens 7-a, 7-b

Em Estórias do Brasil (imagem 8), 1990, espetáculo também infantil, havia nudez, especialmente de duas atrizes, que representavam personagens de mulheres indígenas na lenda de Tainá, a estrela, coletada e reescrita por Rogério de Andrade.

Perdemos a oportunidade de ir ao Japão porque vestir os indígenas seria condição para nos apresentarmos lá. Não nos pareceu essa uma proposta de modificar um detalhe, mas a estrutura formal, orgânica ao público infantil, que costumava apreciar com bons olhos, a obra que trazia uma cultura nativa brasileira aproximada à natureza escrita na nudez. Elas pareciam olhar com encantamento similar ao que as conectam fortemente (de forma erótica menos conflitada do que os adultos) aos processos diversos da vida natural de seu entorno, seja ele qual for. Não nos pareceu que seria diferente com as crianças japonesas.

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Imagem 8

Ainda que incluindo riscos, viemos mirando, como artistas e também como educadores, um teatro de entrega à experiência sensível e instável da criação, por si mesmo teatro ritualístico e intempestivo.

Viemos nos colocando com a mesma atitude em ambas as situações, a dos espetáculos teatrais e também daqueles escolares que construímos com as crianças, aspirando recuperar, como aspirava Artaud, um teatro visceral, um gesto dramático aproximado à lava de um vulcão, que envolva atores e público em forças essenciais.

Convido, então, os leitores dessa narrativa a tomarem a metáfora da viagem para esse projeto e partirem conosco pelas várias expedições que constituíram e continuam constituindo essas empreitadas de arte e educação. Pretendo apresentá-los ao barco, ao timoneiro e, guardadas as devidas proporções, obviamente, às grandes navegações que nos levaram a mundos novos, como aquelas dos navegantes renascentistas europeus quando chegaram às nossas Américas. Poderíamos associar a surpresa dos “descobridores” diante da nudez dos indígenas com aquela do produtor

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japonês a que nos referimos anteriormente e, mais que isso, a que surpreende a nós mesmos, a cada apresentação final, quando nos vemos nus, tomados de emoções viscerais.

Em 2013, por exemplo, no momento em que íamos iniciar nossa apresentação, uma das crianças chegou-se a mim dizendo que lhe doía a barriga, que era dor de verdade mesmo. Pareceu-me estar surpreso com a própria dor, e também com quão envolvido estava com nossa performance. Disse-lhe que acreditava ser mesmo uma dor real o que sentia.

Esse menino havia sido bastante ambíguo durante todo o processo de construção do espetáculo, entregando-se e afastando-se de nossa elaboração coletiva consecutivamente. Resistia em especial quando os ensaios se estendiam um pouco mais. Argumentara, de forma agressiva, que não estava interessado no que estávamos fazendo, mas, no entanto, seguira escolhendo, somando e assumindo interpretar uma série de personagens e fazer a narração de várias cenas.

Trouxe-o para perto de mim em minha sala, enquanto terminava de organizar uns adereços de cena, ofereci-lhe água, procurando dar-lhe alguma continência. Disse-lhe que era assim mesmo, que a dor ia passar quando entrasse em cena, que eu também estava emocionada, que sempre ficara assim quando atuava, que os atores antes de entrar em cena costumam ficar com a impressão de que querem ir ao banheiro e, no geral, constatam em seguida que não é exatamente o caso. Depois a emoção que toma o corpo é canalizada para a ação dramática. Dito e feito.

O posicionamento dele mudou radicalmente quando entrou em cena. Enquanto narrador, já no avançado da apresentação, foi capaz de observar um erro na ordem das páginas do texto encadernado. Acenou-me de longe e quando me aproximei mostrou-me a correção que faria em seguida na ordem da leitura, o que evitou uma grande confusão para todos. De fato, conquistara um estado de concentração incrível em sua tarefa de estar em cena e/ou conduzir a cena (imagens 9, 10 e 11), esse pequeno grande menino.

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Imagem 9

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Imagem 11

De qualquer sorte, foi bom ter-lhe confessado o quão emocionada costumava ficar como atriz, o que também valia para minha posição de educadora/diretora dos espetáculos deles, especialmente naquele ano. Afinal, recém perdera meu companheiro de vida Ruy Cezar (a quem me refiro várias vezes ao longo desses escritos) e me encontrava bastante vulnerável aos sentimentos de nossa representação.

O fato é que, nesse rito dramático de passagem, mesmo que ocupando lugares distintos, poderíamos dizer que o suporte entre crianças e adultos é mútuo, pois todos ficam muito mobilizados subjetivamente. Mareados mesmo.

Uma das professoras de sala desse ano (2013) inesperadamente sentiu a necessidade de promover mais uma despedida do grupo um dia antes da performance final. Perguntamo-nos se não estaria sendo demasiada mobilização, mas ela deveria ter o direito de decisão sobre seu trabalho de sala com as crianças na Via Magia. E afinal,

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era a sua despedida deles. A despedida não é somente de quem vai, mas também de quem fica.

Quando começamos a perceber melhor o quanto o espetáculo de despedida das crianças era o caminho para inseri-las em outro caminho, em outra escola, portanto uma passagem, percebemos também o quanto nós, adultos, também precisávamos dela. Talvez especialmente eu mesma, pois em todos esses processos costumo ficar a rememorar a história de cada criança e seu processo e crescimento na escola, suas dificuldades, crises, superações, no que se referia ao estudo e/ou ao convívio; fico a lembrar das modificações de seus corpos, de suas vozes, de seus posicionamentos diante de situações inesperadas, percebo como certas crianças nos surpreenderam em algum momento...

Percebo o sentido essencial que têm em comum, para mim, todos os processos desses dramas rituais. Como se expressasse aí minha necessidade pessoal de elaboração da despedida das crianças daquele grupo e o teatro fosse minha praia, a via possível, régia ao coração e à criação.

Refiro-me sim ao sentido figurado de minha praia, daquele que se tem dado tanto em forma de gíria hoje em dia. Penso em um sentido carregado da ideia de lugar, espaço/tempo próprio de alguém em um todo/mundo.

O exercício de metaforização ‒ próprio das narrativas míticas que me proponho, ao rememorar a história dessas trajetórias de aprender enquanto navegação que implica uma tripulação desafiada a relacionar-se em rotas com desvios inesperados, sob a tensão da solidão de uma experiência de afastamento do continente, longe da segurança imaginária da Casa, sob o céu de dias e noites consecutivos que parecem esticar o tempo ‒ tem a intenção de buscar algo da relação significante entre uma experiência real, irredutível, e o simbolismo que a acompanha ao longo de tantos anos. Pois, como na linguagem dos sonhos, em suas metáforas, as narrativas míticas dão testemunho do impossível do esquecimento e da busca de significação do real.

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A linguagem do mito, ou o mito como linguagem, que tanto atraiu Freud, surgiu-me como uma escolha de uma linguagem que nos daria sim, o testemunho do des-velamento inalcançável, faltante ou polissêmico, das metáforas, mas também do possível da significação da experiência... Como nos confirma Azevedo3, o mito poderia

nos permitir encontrar a lógica de um lugar entre o universal e o particular e também, diria, entre uma estrutura imaginária e sua atualização simbólica.

Estaremos, neste escrito, atravessando processos reais de rituais dramáticos enquanto viagens fabulosas de nossa embarcação, de várias expedições dela em uma mesma aventura e despedida, cada uma em seu tempo. Revendo registros, relendo diários de bordo para encontrar as particularidades e diferenças, assim como repetições e similitudes entre elas, suas composições coletivas de temas e cenas acompanhadas de narrativas míticas explícitas ou subliminares.

De certa forma, tentamos surpreender o logos no mito e interpretá-lo, embora sem traduzi-lo em sua inesgotável reserva de sentido. O mito vivo, segundo Marques4,

não é exclusivo das sociedades arcaicas, mas estrutura presente em nossa vida, individual e social. A questão seria, portanto, reconhecê-lo ou não reconhecê-lo nas dinâmicas humanas interativas de hoje.

O mito opera através de representações cuja apreensão se dá pela vivência. Ele é vivo enquanto é vivenciado. E na excessiva proximidade da vivência, na confusão e indistinção do vivido, ele se esconde, se furta ao esclarecimento. Por isso, nós, ocidentais, intoxicados de racionalismos, somos capazes de perguntar: mito, o que é mito? Ainda existem mitos? Como o peixe dentro d’água perguntando: água, o que é água? Existe água?, comenta Marques.

Narrativa e experiência são dependentes entre si e o mito, enquanto narrativa, não nos é dado como texto fixo, não está ligado a formas literárias determinadas (pode

3 AZEVEDO, Ana Vicentini de. Mito e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

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ser verso, prosa em conto ou lenda, canção...) e pode ultrapassar as fronteiras linguísticas, afirma Burkert5.

Em vez de pensarmos no gênero textual ou nos assuntos ou conteúdos da narrativa mítica, provavelmente tão antiga quanto a linguagem da humanidade, deveríamos abordá-la por sua função, que também varia, mas sempre diz respeito a uma estrutura de sentido e a uma forma de tradição cultural. Representa mais um desafio do que uma solução no que se refere à explicação de sua relação com a realidade em que foi produzida. É com esse horizonte à frente, buscando os mitos como faróis em alto mar, que miramos essas expedições dramáticas.

Tomaremos aqui certas narrativas míticas que estiveram presentes na dramaturgia destes processos rituais de nossa escola, que vêm dando sentido e suporte a inquietudes essenciais relacionadas a essas viagens de passagem de suas tripulações de crianças e adultos.

Buscamos capturar, também mais amplamente, os mitos que compuseram essa espécie de tradição em nossa Casa, como narrativas que fizeram parte desses ritos dramáticos, do que colocou em cena a tensão entre significado e significante, concretude e abstração, matéria e espírito, memória e experiência.

Podemos entender que a relação entre ritual e mito também é algo que vem sendo discutido e é controverso. Mitos são narrativas majoritariamente ligadas a rituais? Há rituais sem mitos? Ou esses de alguma forma estão sempre explícitos ou implícitos nos processos rituais? Em que medida os mitos estão presentes em nossos rituais cotidianos, já que eles têm a realidade como alvo? No geral, originalmente, os mitos estiveram ligados a rituais e foram se desprendendo deles? Por certo, diria Burkert6, um

não é redutível ao outro.

5BURKERT, Walter. Mito e mitologia. Lisboa: Edições 70, 2001. 6 BURKERT, Walter. Mito e mitologia. Lisboa: Edições 70, 2001.

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O que nos importa aqui, contudo, é que, assim como o poeta lírico atribuía ao mito função paradigmática, como indica Marques7, elegendo e valorando algumas

atitudes humanas, na Via Magia, de uma forma particular, certas narrativas míticas bastante recorrentes, não somente nesse projeto, vêm marcando presença, aparecendo e reaparecendo, oferecendo-nos mapas para trajetórias intuitivas desses e de outros ritos, portos onde possamos atracar provisoriamente.

Nesse sentido, trago a expectativa de envolver os leitores dessa narrativa também de forma essencial, emotiva e imaginativa, aproximando-os do que tem sido essa experiência para todos nós que vimos participando e nos transformando com ela.

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1. O Barco

“‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares, Como roçam na vaga as andorinhas... Donde vem? onde vai? Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?”

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Que barco é esse, quem somos nós, os navegantes, como e por onde viemos navegando? Para narrar os ritos de passagem das quartas séries (hoje quintos anos) do ensino fundamental foi preciso localizá-los no tempo das demais travessias, nos espaços e entre lugares que cada grupo de tripulantes vem ocupando neles. Foi preciso, portanto, principalmente, ocupar-se da embarcação que as conduziu.

O barco, construído artesanalmente, com sua primeira tripulação de atores e educadores, adultos e crianças, compunham uma comunidade de arte e educação que valorizava a vida natural e a vida social. Desde o início, pratica-se horticultura, atividades ao ar livre, a produção cooperativa dos conhecimentos, a mescla de jogo, trabalho e estudo.

Na lembrança da origem destaca-se um pequeno grupo de navegantes capazes de debruçar-se no convés por um longo tempo, a mirar as vagas, os céus, os pássaros ou os peixes... Um grupo de pessoas que gostava de ser formiga, mas também cigarra, de fazer conjuntamente as diversas tarefas e de fazer tudo ficar bem bonito.

Na verdade, havíamos começado essa empreitada, eu e meu companheiro, Ruy Cezar Silva, como um projeto de vida. Inventamos uma Via, a qual nomeamos Magia, em 1982, para dar espaço ao sonho viageiro de um grupo de teatro experimental, como já disse inicialmente. Tínhamos atrás de nós uma década de trabalho em teatro, em arte/educação e em educação. Em embarcações distintas, navegáramos sem sequer saber da existência um do outro.

Talvez porque não fôssemos então marinheiros de primeira viagem, pudemos começar de novo, ter a paciência para nos deixarmos guiar pela concretude dos acontecimentos. Mesmo que orientados pela nossa vivência anterior, de alguma forma pelo que havíamos apreendido delas, estávamos, ambos, com disposição à abertura da experiência que iniciávamos com essa embarcação ainda precária, embora novinha em folha. Abertura tanto para correr à flor dos mares quanto ao quente arfar das virações marinhas...

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Nosso encontro resultara numa história de amor, numa história de raiz erótica, logo em um compartilhar dramático e logo, logo, em 1984, no compartilhar dos filhos que foram nascendo e da escola, que também nascera (imagem 12) e crescia. Abrimos as velas...

Imagem 12

O nome de Casa Via Magia causava menos estranhamento pela palavra Casa do que pelo nome Magia, associada que está essa palavra a uma forma de prática religiosa típica dos povos considerados primitivos ou selvagens. Até hoje, esse nome, tremulando na bandeira desse velho barco, causa certo desconforto em algumas situações, como em encontros institucionais, seja com a academia, seja com fundações ou órgãos governamentais.

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Faz sentido esse mal-estar porque realmente esse nome revela não somente um trabalho de educar apontando para a arte e sua lógica sensível, como também orientado para o exercício humano ancestral de contato direto com o mundo, vigente ainda em certas comunidades, geralmente pobres, mais rurais do que urbanas.

Mesmo que reducionista, esse olhar poderia até nos servir, pois sempre estivemos nessa rota de enlace mágico entre a vida agrária e a via dramática. Parece que o deus Dioniso, desde sempre, esteve presente em nosso barco, pois nos jogamos nesse exercício de entrega à dança dos acontecimentos e aos ciclos naturais da vida, à embriaguez de lançar-se e mergulhar no mistério do devir do cosmos.

Afinal, “quem sabe o rumo se é tão grande o espaço”8?

Nos diferentes e vários momentos em que fomos questionados sobre o nome magia que trazemos em nossa identidade, se nos demandaram uma definição sobre o motivo dessa escolha. Seria por conta de termos uma filosofia espiritualista de educação ou por sermos realmente ligados a algum tipo de religião ou esoterismo?

Lembro-me quando a palavra magia foi escolhida. Vivíamos em São Paulo e buscávamos um nome para nosso grupo de teatro experimental. Passamos também pela possibilidade de “Pé de pato, mangalô, três vezes”, que é uma fórmula de espantar a má sorte, o que nos remete ao contato lúdico atuante sobre o destino, sobre o azar. De certa forma, portanto, à magia.

Por alguma razão, naquele dia, sentados no chão, num dia de ensaio, ficamos com a expressão Via Magia. Como bem indica a situação, nos referíamos à magia da arte, especificamente do teatro, ao seu potencial de ação e transformação, a determinada forma de ver o teatro. Ainda que fosse necessário passar seis anos depois daquele instante, para que começássemos a compartilhar com entusiasmo as ideias de

8 ALVES, Castro. O Navio Negreiro. In: O navio negreiro e outros poemas. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2007.

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Artaud9 sobre o teatro, já pensávamos na relação entre a ação dramática e a ação da

magia.

Artaud irá nos tocar com sua proposta de “acordar e olhar as coisas como num sonho”, de criarmos um teatro que se serve de todas as linguagens e “encontra-se exatamente no ponto onde o espírito precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações”.

Logo no início do livro O teatro e seu duplo, ao qual nos dedicaríamos coletivamente quando voltamos a viver em Salvador, em 1984, Artaud demarca sua viagem dramática, afirmando que se falta uma magia constante em nossa vida é porque costumamos contemplar as formas sonhadas de nossos atos em vez de sermos impulsionados por elas. Fala-nos daquilo que os mexicanos denominam Manas, ou seja, das forças que dormem em todas as formas, que não podem surgir pela contemplação simples delas, mas por nossa identificação mágica com elas. Era nosso caso.

Em se falando de identificação mágica com o teatro, revela-se aí mais uma identificação: nossa com as crianças com quem convivemos e com a infância (de nossos tempos, evidentemente).

Sentimo-nos próximos ao modo como as crianças com quem trabalhamos dão sentido ao mundo em que vivem. Da mesma maneira como certos antropólogos, apontados por Cohn10, acreditamos que as crianças explicitam certos saberes que os

adultos também têm, mas não costumam expressar. Diríamos que podem deixar fluir e tomar forma suas representações. Como artistas adultos, estabelecem, sem dar-se conta, canais de comunicação direta com saberes inconscientes, o que podemos perceber em suas dramatizações desde a mais tenra idade.

9 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987. 10 COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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Não somente identificação nossa com elas, mas também delas conosco, a recíproca mostra-se verdadeira. Um bom exemplo dessa identificação de mão dupla aconteceu com o grupo do quinto ano de 2001, que escolheu o tema da magia para construir seu espetáculo (imagem 13). Foi algo inesperado e de certa forma instigante para os adultos envolvidos na produção, pois nos colocava a tarefa de olharmos a nós mesmos, a darmos ouvidos às perguntas sobre o nome Via Magia, o que até então não havíamos dado tanta importância, pelo menos aparentemente.

Imagem 13

Essa combinação de crianças não resultara num grupo fácil de conduzir, fora um daqueles mais polêmicos, diante do qual vacilamos e quase desistimos de concluir esse processo ritual. Muito embora não lhes faltasse talentos.

Foi juntamente com essas crianças, tão perto de nossa via de aprender e tão longe do processo ritual que lhes propúnhamos, com quem paramos para observar o quanto o tema da magia tem despertado mais e mais interesse no mundo atual. Mesmo

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que colocado como algo suspeito, e não como a relação direta que une o humano às perspectivas cósmicas que vivem nele, o que as pessoas, de um modo geral, parecem desconhecer, conforme revolta-se Artaud, remetendo-se ao teatro ocidental contemporâneo, acusando-o de reducionista e psicologista.

Além do mais, parece-me significativo o fato de que o epílogo do roteiro dessa montagem em volta do tema magia esteja registrado à mão em meu volume pessoal encadernado, e não exista digitalizado, o que denota uma conclusão tardia.

Observando melhor o roteiro, que traz a sequência das cenas desse espetáculo, seguido pelos textos das cenas, percebo também que não se efetivou o prólogo, anunciado nele: “O que é magia?”. A única hipótese possível agora é a de que o que se supunha ser introdutório só pôde acontecer como finalização, que o prólogo tornou-se epílogo. Por incrível que pareça a magia e sua concepção como tal, mostrava-se algo de difícil definição para nós, embora não fosse impossível encenar acontecimentos, literatura e dramaturgia ligados a ela.

Da mesma forma como esse grupo de crianças era identificado com a escola ao ponto de propor a magia como tema e, ao mesmo tempo, era polêmico na relação com os educadores da Casa, nós mesmos também nos mostramos ambíguos nessa produção, pois não pudemos tratar esse tema tão facilmente em narrativas mais conceituais.

Lembro-me agora do folder (imagem 14) que circulou por mais de uma década como elemento de comunicação ao público da proposta de nossa escola, cujo desenho é da autoria de uma menina de um quinto ano.

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Imagem 14

Por mim, tudo se mostra relacionado de forma instigante. A criança pertencer ao grupo do quinto ano, a arte infantil de um componente desse grupo tornar-se ícone fundante da escola, significante do elo entre nós e as crianças ‒ também entre nós, as crianças e a natureza ‒, enfim arte e natureza como elo entre nós todos, crianças e adultos, o mundo e o cosmos. Ou seja, a magia como via. Mais que tudo, vejo nessas aparentes coincidências, as crianças e nossa produção de conhecimento junto a elas, contribuindo para a busca comum de um posicionamento simbólico existencial, irredutível às explicações de ordem consciente.

De qualquer modo, não por acaso os antropólogos passaram mais de um século discutindo o que é magia, o que é religião e o que é ciência. O curso da vida comum pode parecer simples de se explicar à primeira vista, mas na verdade não é. Os diversos especialistas se ocuparem durante tanto tempo do discernimento entre esses

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saberes historicamente construídos, inclusive se atormentarem com isso, como nos relata Peirano11, pode ilustrar como essa diferenciação vem sendo custosa.

Demorou, para que se considerasse a magia como expressão peculiar, não referida a um tipo de capacidade mental inferior, apenas resultado de uma época em que o ser humano vivia um estágio social considerado elementar, primitivo, infantil.

O fato de se considerar que há um pensamento na magia, uma espécie de racionalidade, de produção de sentido, já é fruto de uma nova visão, para a qual a pesquisa de antropólogos e sociólogos do século XX, de diversas posições teóricas, contribuiu diretamente.

No avançado do século XX, está Levi Strauss12, para quem o pensamento

selvagem não tem função exclusivamente prática e está relacionado às inquietudes humanas que promovem as distintas formas de produção de conhecimento. “Essa ânsia de conhecimento objetivo constitui um dos aspectos mais negligenciados do pensamento daqueles que chamamos 'primitivos'”.

Na sequência, Strauss continua: “Quando cometemos o erro de ver o selvagem como exclusivamente governado por suas necessidades orgânicas ou econômicas, não percebemos que ele nos dirige a mesma censura e que, para ele, seu próprio desejo de conhecimento parece mais equilibrado que o nosso”.

Continuamos vivendo sob visão similar, guardadas as devidas diferenças, com relação à criança que, quando ouvida, pode também expressar suas críticas à aparente objetividade do mundo adulto. É muito explícita, de um modo geral, a ideia de que a maneira infantil de compreender o mundo, extremamente colada ao fazer, à imaginação, ao devaneio e à brincadeira, tem sentido despretensioso, de necessidade lúdica prática e não visa construção de conhecimento e desejo de saber de si.

11 PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

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Se pensarmos assim, o pensamento mágico infantil, na medida do passar do tempo, em seu progressivo desenvolvimento, seria algo que se deixaria para trás. Um modo de entendimento irracional que só teria valor como passagem para algo melhor, racional, algo a ser superado inevitavelmente.

Não é o que pensamos com relação ao pensamento mágico infantil. Tampouco é o que pensava Strauss13 com relação ao dos povos considerados primitivos. Diz-nos

ele que:

o pensamento mágico não é uma estreia, um começo, um esboço, a parte de um todo ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto, desse outro sistema que constitui a ciência, salvo a analogia formal que os aproxima e que faz do primeiro uma espécie de expressão metafórica do segundo. Portanto, em vez de opor magia e ciência, seria melhor colocá-las em paralelo, como dois modos de pensamento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (...) mas não devido à espécie de operações mentais que ambas supõem e que diferem menos na natureza que na função dos tipos de fenômeno aos quais são aplicadas.

Cohn14 considera as contribuições recentes da antropologia para a compreensão

do pensamento das crianças resultantes de novas formulações de vários de seus conceitos, entre eles os de cultura e de ação social. Nessa perspectiva, o que conforma uma cultura é uma lógica particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais para dar sentido às suas experiências, a cada momento.

Então, embora compartilhando plenamente a mesma cultura, os significados elaborados pelas crianças são qualitativamente diferentes dos adultos. Os pequenos dão um sentido próprio ao mundo que os rodeia, têm papel ativo na constituição de laços e relações sociais, na elaboração de uma identidade para si e para as outras pessoas de seu entorno. As crianças não pensam menos do que os adultos, pensam de outra forma e possuem seus conhecimentos próprios e apropriados à sua experiência e memória.

13LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 28. 14 COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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Contudo, acredita-se que, assim como na história dos grupos humanos, também em cada pessoa particular, o pensamento mágico, mesmo já tendo o status de pensamento, seria passageiro e suporia uma evolução para o pensamento lógico, sinal de progresso, melhoria, aperfeiçoamento cultural. Esse olhar permanece muito presente no senso comum, mas também em certas psicologias e em diversas pedagogias.

Ao contrário disso, acreditamos no eterno retorno da infância, ou melhor, do esquecido e/ou recalcado da infância, na interminável busca de prazer e atualização de fantasias, no desejo inconsciente marcado pelo mito de um Outro, em desejo de saber inaugurado pelo desejo de saber de si, no Eros do pensamento.

O pensamento mágico e a magia podem sim nos remeter a manifestações arcaicas e antigas e, portanto, ao tempo tão criativo do poema de tradição oral, sem registro escrito (ou sem acesso amplo da maioria das pessoas ao registro escrito), mas podem nos levar também à significação colada ao real indecifrável de todos os tempos, ao imaginário atemporal, a ritos e mitos não presentes apenas na antiguidade, mas próprios da condição humana, que atravessam a história de povos e culturas. Da mesma maneira como nossa infância permanece conosco de forma latente ou manifesta, sendo atualizada outra e outra vez em nossa história de vida.

Nada disso é bem visto numa certa visão científica a que a educação está submetida desde a emergência do que chamamos modernidade. De alguma maneira, portanto, a arte tem mais liberdade para ser o que é, embora continue sem lugar de destaque ou respeito na educação, nem mesmo das crianças menores. Talvez por isso, diferentemente da escola, nomearmos nosso grupo de teatro de Via Magia pareceu mais adequado.

Mas a escola e o teatro cresceram juntos. Em pleno mar... A escola herdou o nome do teatro, mas independente da cronologia dos fatos, a escola alimentou o grupo de teatro e vice-versa. Na verdade, um beneficiou o outro.

Como disse no início, fazer parte dessa tripulação tem implicado o compromisso de escolher viver-com. Não é gratuito o nome que inicialmente se lia à proa desse

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barco: Casa Via Magia - Espaço de Convivência. Demarcava-se desde o início o caminho de aprender a buscar o singular do ser no viver-com, de compreender-se como ser-no-mundo.

Um olhar que pretende focar a vida amplamente, a humana e tudo mais além. Portanto, caminho trançado de convivência entre adultos e crianças, entre crianças, entre adultos, entre cada um e si mesmo; entre todos nós e diversas áreas de conhecimento; entre todos os navegantes dessa embarcação e a imensidão do mar; entre nosso mundo e a nave Terra; entre todos nós e o cosmos...

O que não quer dizer harmonia e pertencimento pacífico. Mas, mutação do espaço navegante assim como de cada um de seus tripulantes ligados por uma mesma rede de relações, com suas inter-relações, seus contrastes e diferenças.

Contudo, inicialmente tudo parecia ser o resultado de uma paixão, da força unificadora e criativa de Eros. Então, esse barco juntava-se ao mundo paradoxalmente separando-se dele. Atracava pouco tempo em terra firme, estava quase sempre em alto mar.

Nossa embarcação era uma unidade móvel, mas bastante isolada, de certa forma fechada. Velas ao vento, os timoneiros transportavam fantasias antigas à frente das empreitadas coletivas. A ilusão do amor, velando a falta, como diria Lacan15, pode

muitas vezes produzir uma sensação saborosa de completude, de autossuficiência, de oásis livre da aridez dos terrenos humanos.

O sentimento de intensa camaradagem e igualitarismo próprio da communitas santificada, como diria Turner16, que vivenciávamos aí, transgredia as normas que

governam as relações estruturadas e eram acompanhadas por uma sensação de poderio sem precedentes.

15 LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. 16 TURNER, Victor W. O. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Editora

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Em nossas viagens compartilhadas, todavia juvenis, estivemos jogados na intensidade de uma experiência a uma só vez conjunta e solitária, deliciosamente envolvente, bastante inconsciente de nosso destino de nau errante.

Nas aventuras intercontinentais iniciantes da escola, não se separavam adultos e crianças. Nem cotidiano e ritual. Tampouco qualquer parte da existência. As distâncias eram grandes, as noites escuras, mas a intimidade e o cultivo de momentos mágicos de troca, à luz do sol ou das estrelas, reuniam todos os navegantes numa espécie de canto coral.

Despojados de roupagens reguladoras como os uniformes escolares ou figurinos espetaculares de certo tipo de teatro, desde então, estamos na maior parte do tempo descalços, seja trabalhando com as crianças, seja trabalhando entre adultos, seja ensaiando, seja em apresentações. Tenho muito presente em mim a memória corporal da pele do pé em contato com o chão acompanhada de uma sensação de soltura sem precedentes como uma experiência emblemática do acolhedor de nosso navegar.

Essa atitude de entrega ao convívio com as pessoas e com a natureza, pressupondo uma igualdade existencial, continua gerando afastamento, de certa forma, marginalidade com relação ao mundo. Contudo, vivida tão plenamente, vem nos trazendo as condições propícias para gerar mitos, rituais, obras de arte...

Da vigência desses momentos oníricos de antiestrutura, surgem momentos tempestuosos, estruturantes. Não poderia ser diferente, nos confirmaria Turner. Dessa forma, entre marés mansas, marés cheias e ressacas, muitas viagens tem tido partidas, percursos e chegadas verdadeiramente afetuosos, sinceros e significativos, mas também árduos e tumultuados.

Estabelecer-se-ia em nossa embarcação, após suas viagens originárias, um navegar instável, entre o ir e vir das ondas do mar, evidentemente entre a realidade e o sonho, entre o compartilhamento e a submissão, o que é próprio da condição humana e, portanto, de qualquer projeto comum entre nós.

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Seja qual for o itinerário de nosso barco, avistamos desde acima, pela luneta, a linha do horizonte e a incerteza do futuro, a imensidão do mar onde estamos imersos, o firmamento inalcançável...

Do lado dos marinheiros, o que se vem vivenciando a bordo desse barco tem sido um constante e instável movimento, balanço, o que às vezes resulta em enjoo e vômito. Ressentimo-nos da mudança infindável, sentimos falta da terra firme e nos percebemos por demais desafiados, conforme temos que ocupar diferentes lugares, revendo nossas funções, a cada nova viagem.

Além das crianças que entram e passam por várias etapas na escola; além do elenco do grupo de teatro que se expande e encolhe a cada montagem, há os passeios entre os diversos papéis. Então, professores se tornam coordenadores ‒ eventualmente exercem as duas funções ‒, coordenadores mudam de área de conhecimento ‒ eventualmente coordenam duas delas ‒, coordenadores se tornam supervisores, atores ora atuam ora são diretores dos espetáculos ‒ eventualmente ocupam também as duas funções... Sem contar que, com o tempo, pais se tornaram professores, alunos se tornaram professores, alunos se tornaram pais... Dediquei-me a relatar um pouco desse histórico em minha dissertação de mestrado.

Quero contar certas partes dessa história, das trajetórias de passagem das crianças que, a cada ano, estão desembarcando definitivamente de nosso barco. Atravessamos com elas os mares, parando de volta, a cada vez, a cada final de viagem, ao porto de nossa Casa.

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2. O timoneiro que vos fala

“Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma." José Saramago

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Se a memória representa precisamente o ponto de interseção entre o espírito e a matéria, conforme Bergson17, a história de uma navegação implica a história de um barco, implica seus navegantes, suas expedições, os mitos e ritos que fizeram parte delas, e mais ainda, a história do narrador da história, que retoma sonhos, devaneios, ações e produções anteriores, pelas lembranças que esse exercício de busca de verdade no não-esquecimento promove.

Esse projeto ritual de arte/educação desenvolvido comigo à frente, demandaria então uma espécie de narrativa autobiográfica que mapeasse meu olhar híbrido?

Imagem 15

Pareceu-me que chegou a hora de trazer um pouco da história do timoneiro dessa empreitada específica. O começo se vê na foto acima, em que estou no colo de meu irmão, ao lado de minha irmã, no quintal de nossa casa.

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Mas, é só um começo. O que se segue, assim como todo relato de experiência de formação profissional (e mais ainda por ser esse timoneiro eu mesma), é uma ficção.

De qualquer sorte, não tenho a ilusão de fugir da incompletude, de poder costurar, unir com pesquisa, o que está além da intersecção da memória, ela mesma, acontecimento entre o espírito e a matéria.

Abrindo espaço à minha proto-história profissional, muito antes do barco da Via Magia, como começam os passos iniciantes que desembocariam em um múltiplo posicionamento profissional? Quando começa, na minha lembrança, a trajetória que desembocaria na função de timoneira dessas viagens dramáticas que queremos tratar?

Quando brincar de teatro era fundamental à minha existência. Desde muito cedo, nas encenações das brincadeiras de quintal e nas performances escolares.

Não posso situar exatamente quando minha irmã e eu começamos a bisbilhotar o guarda-roupa de nossa mãe para pegarmos suas anáguas de cetim (que se usava embaixo de saias e vestidos) para levar para a casa das amigas, para brincarmos de rainha, de mãe, de atrizes até.

Tenho a lembrança da aventura excitante que era arremessá-las da janela do quarto de nossos pais, do andar de cima do sobrado em que morávamos, e caminhar pela calçada, abraçada ao imenso bolo de tecidos feito das peças de roupa dobradas, até a casa de nossa amiga, no mesmo quarteirão da nossa casa.

Nos aniversários das crianças da vizinhança, também apresentávamos nossas cenas, o que já implicava ensaios, distribuições de papéis, público de crianças e adultos, embora utilizássemos apenas algumas cadeiras, um ou outro objeto como uma vassoura, coisas assim... Dessa forma, a cada ano íamos repetindo e/ou inventando nossos pequenos dramas, que já eram parcialmente escritos por mim e nos quais também atuava.

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Na casa de Tia Palma havia um quintal imenso onde nós, um bando de primos de diferentes idades, podíamos ficar brincando juntos. Havia um pequeno pomar com pés de tangerina, laranja lima e pitanga que servia de cenário para epopeias de muitos de nossos heróis. Além disso, havia uma casa de três cômodos, maltratada e abandonada, vazia, onde podíamos compor um palco à nossa moda, longe dos adultos e de qualquer tipo de supervisão invasiva de nossas fantasias e representações.

Às vezes nos machucávamos e lembro-me de certa vez em que, pulando a janela dessa casinha do quintal, enfiei um prego no pé e fiquei alguns dias sem poder andar. No entanto, jamais nos arrependemos de nossas aventuras, nem nessas horas, pois nossas brincadeiras dramáticas eram nosso tesouro. Era ponto pacífico, verdade implícita e intocável.

Na casa de nossos avós, também dentro do terreno da casa de minha tia, havia também, numa certa época, uma sala pouco utilizada, igualmente vazia, que, coincidentemente, tinha apenas uma cortina separando dois espaços. Lembro-me de brincarmos muito ali. As duas partes da cortina de pano presas em argolas, por sua vez suspensas em cano afixado nas paredes laterais, nos sugeriam muitas possibilidades de jogo dramático.

Esse espaço, assim como o da frente da casinha do quintal, nos serviu para fazermos algumas apresentações para crianças da vizinhança, em que cobramos três palitos de fósforo. Não foram muitas, parece-me. A memória confunde-se às vezes...

Certa ocasião, começamos a buscar nos livros, especialmente numa coleção de contos de diversas origens culturais, material para nossas dramatizações. Foi marcante o conto de terror que se intitulava “A moça, a flor e o telefone”, de Drummond.

É interessante observar como esse movimento assemelha-se a esse projeto a que estamos nos referindo nesses escritos. Refiro-me ao ato de buscar contos, lendas e mitos e transformá-los em cena.

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Utilizamos para a dramatização desse conto apenas um telefone velho, uma flor e a cortina da sala vazia. Era o bastante para instituir representações de medo, ironia e prazer. Parece-me hoje que iniciava aí o estilo de teatro que faria mais tarde, em sua forma minimalista, interessado em temas existenciais.

A escola oferecia algumas oportunidades e eu não as deixava escapar. Tenho lembranças do grupo escolar, do ginásio, do segundo grau, quando participei do grêmio estudantil e aproveitei para participar de dramatizações, saraus, jograis e o que mais de performático surgisse e pudesse incluir meu adolescer inquieto.

Vivenciava no palco, aquela sensação interna/externa de corpo/alma, de revelar-se e revelar um personagem, de colocar-me para revelar-ser vista, com aquele frio na barriga, que nunca mais desapareceu, mesmo depois de décadas de experiência como atriz, ao qual me referi, quando do diálogo com a criança, no início desse texto (Convite à viagem).

Na Universidade, juntou-se a militância política, o teatro e a educação. Lembro especialmente de um espetáculo sem palavras, uma criação coletiva com música e movimento, orientada por um maestro vindo de Brasília trazido pelo centro acadêmico, quando pudemos encenar o que pensávamos e sentíamos do momento histórico que estávamos vivendo.

Foi quando tive a oportunidade mais significativa de expressar-me sobre a morte de meu irmão, estudante da Politécnica, da USP, assassinado pela ditadura militar em 1972. “Morte vela, sentinela sou do corpo desse meu irmão, que já se foi”, cantava a voz de Milton Nascimento. O trágico da existência continuará presente nos temas dos espetáculos que viria atuar (imagem 16, foto de 1994).

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Imagem 16

Aí começa minha trajetória profissional: fazendo e estudando teatro, como militância política em eventos culturais e também já como profissional; fazendo pedagogia e participando de grupos de estudo na universidade; dando aulas de arte para crianças. Começa tudo junto em 1972. Abaixo (imagens 17 e 18), fotos de 1974, como atriz e arte/educadora.

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Imagem 18

Uma viagem única com mesmas metas, tarefas e lugares diversificados: escolas, parques, praças, jardins, teatros, sociedades de bairro... E seguem até hoje, em 2014. Como seguiram os estudos, fora e dentro da universidade. Em 1978 fiz parte do undergraduate program do Goddard College (USA), cujo trabalho final foi um espetáculo de teatro infantil que escrevi, dirigi e atuei. Em 2003 fiz mestrado na UFBA e em 2010 comecei o doutorado na UNICAMP, ambos refletindo sobre certos processos da práxis da Via Magia. Como disse acima, tudo variado e juntado numa coisa só.

As próximas pinceladas autobiográficas estarão desordenadas, soltas do tempo cronológico, refletindo os vários planos de minha prática profissional denominada por mim de “misturalista”. Surgirão ao longo desse escrito de forma mesclada.

De qualquer sorte, como timoneira desses processos rituais, vejo-me orientando-me por um mapa que passa por diversos territórios e fronteiras de áreas de conhecimento e de atuação... Mares muito familiares e sempre estranhos, além do que posso mirar...

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3. A bordo das experiências e suas memórias

“Não sou eu quem me navega Quem me navega é o mar É ele quem me carrega Como se fosse levar Meu velho um dia falou Com seu jeito de avisar - Olha, o mar não tem cabelos Que a gente possa agarrar...”

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Nos diversos rituais da Casa, não somente os de passagem, mas também os de iniciação, pertencimento e despedida, pudemos encontrar uma dupla que nos parece central dessa nossa mitologia doméstica: a experiência e a memória.

Buscamos e encontramos narrativas míticas nas entrelinhas, nas enunciações e nos enunciados de crianças e adultos, em celebrações, em caminhos de aprendizado, em encontros entre adultos... Então, para além das mitologias registradas em diferentes culturas e dos estudos que as transformam em objetos, aqui estaremos buscando compreender nossas narrativas míticas em torno da experiência e da memória.

Por nós, experiência é algo que implica corpo, convívio e linguagem. Um corpo presente em sua concretude, mas nunca desligado do mundo, nem colocado fora do tempo. Experiência que implica um corpo em relação, inquieto e conflitado, indagador e aprendente, imerso num imaginário peculiar e num simbólico compartilhado, habitado por desejo e vinculado a seus semelhantes num convívio histórico estruturante, carnal e linguageiro, um corpo sobre a terra e sob o céu, finito no infinito.

Para Heidegger18, a experiência implica uma articulação, seja com uma coisa,

um ser humano, um deus. Refere-se ao que nos acontece, ao que atravessamos, ao que vem ao nosso encontro, pelo que nos deixamos tocar. E uma experiência dessa dimensão com a linguagem (com a qual nos propomos a nos ocupar incessantemente com nossas crianças) haveria de lograr, em algum momento, nos tocar na articulação mais íntima de nossa presença no mundo.

Larossa19 diferencia experiência do que seria informação e opinião,

considerando que o sujeito atual, ultrainformado, superestimulado, sem tempo e

18 HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:

Editora Universitária São Francisco, 2003.

19 LAROSSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira

de Educação. Rio de Janeiro, nº 19, pg. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002. Disponível em <http://www.anped.org.br/rbe/numeros_rbe/revbrased19.htm>. Acessado em 19 de outubro de 2010.

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pressionado pelo excesso de trabalho, ilude-se com a possibilidade de conformar o mundo segundo seu saber, seu poder e sua vontade.

Sempre ativos, hiperativos na verdade, não podemos parar e por isso nada nos acontece, a experiência termina por ser rara, conclui Larossa. Para que algo nos aconteça seria necessário um gesto de interrupção. Para então, podermos pensar, falar, escutar, sentir, suspender o juízo, o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza.

Em nossa embarcação, vimos fazendo um esforço imenso e contínuo nessa direção, pois a meta de ser sujeito da própria experiência veio implicando em deixá-la apoderar-se de nós. E percebemos justamente isso: como o fascinante no sujeito da experiência é a maneira como se expõe, se põe à prova atravessando mares nunca dantes navegados, aproveitando a ocasião, aceitando a contingência ameaçadora e a angústia decorrente dela, tomando-a como oportunidade para tornar-se si mesmo.

Pensar a experiência dessa forma em educação vem implicando, como propõe Galeffi20, focar no aprendizado da atitude aprendente de silenciar o acúmulo de

representações de sentido e fazer um retorno radical sobre nós mesmos.

Junto à referência da experiência própria, veio então, a referência à nossa história e memória. Aprendemos admitir nossa história particular no campo do tempo e espaço comum do mundo, num exercício de articulação, conjunto e separado, de dar sentido ao sem sentido.

Ainda que o sentido se faça e refaça, ele faz parte de uma busca essencial que não termina nunca, que encarna o presente, se projeta ao futuro e se alimenta no passado. Experiência e memória para nós implicam em uma trilogia inseparável, móvel e temporal, de corpo, convívio e linguagem.

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