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Os instrumentos de navegação

No documento Passagens : rito e drama na escola (páginas 90-114)

”Se oriente, rapaz Pela constelação do Cruzeiro do Sul Se oriente, rapaz Pela constatação de que a aranha Vive do que tece Vê se não se esquece”

Durante a construção desse escrito, ficou claro que não poderíamos falar de viagens dramáticas de passagens sem descrever o barco que as acolhe e o timoneiro que as conduz, no caso eu. Agora, fez-se necessário trazer um pouco das orientações, dos mapas, da metodologia que pode acolher o projeto que queremos olhar mais de perto.

Essa última percepção trouxe consigo outra: a de que tais viagens dramáticas teriam outra conotação se acontecessem à parte na escola. Poderiam até acontecer, mas não teriam alcançado, como alcançaram, certos efeitos almejados por nós.

Desde o início, acreditávamos que a arte teria que ocupar um lugar central junto às demais áreas de conhecimento e não um lugar periférico. Geralmente, nos processos educativos, a arte está relacionada a acontecimentos muito pontuais ou até marginais ao cotidiano de aprender, ao seu currículo, à sua práxis. No nosso caso, a história era invertida.

O barco da Via Magia sequer tinha missão educativa formal no princípio. Sua via, logo em suas primeiras viagens, era a de uma escola de arte que, como relatei um pouco em minha dissertação de mestrado, tornou-se uma pré-escola e, somente depois, escola de ensino fundamental.

Não porque a educação pré-escolar nessa época (anos 80) se entendesse como algo aproximado a uma escola de artes ‒ mas porque, da maneira como concebíamos uma escola de artes, esta poderia desenvolver-se mais plenamente se contasse com uma frequência maior das crianças e não de uma ou duas vezes na semana.

O inesperado foi dar-se conta que esse trabalho intensificado de artes com as crianças, poderia, sim, colocar-se organicamente na direção de certas metas da educação pré-escolar comumente estabelecidas para essa faixa etária. Mais que isto,

poderia favorecer o desenvolvimento corporal da criança em diversos níveis37, assim

como os aprendizados sociais e da linguagem. Não apenas favorecê-los, mas torná-los vias subjetivantes, criativas, amplas em termos de práticas e saberes. Isso porque – nesta conjugação entre arte e educação – estaríamos trabalhando com artes visuais, dramáticas, corporais; com tempos de experimentação livre, pessoal e de busca singular, mesmo quando orientada; com tempos para contato com a natureza e de uma criança com outra, da mesma e de variada faixa etária da sua, em amplo viver-com.

Por ser essa sua origem, nessa escola, o trabalho plástico no geral e, em especial, o desenho, nunca teve lugar periférico, pelo contrário ocupou sempre lugar central. Lembro-me de respondermos a questionamentos de certos pais, preocupados se de fato uma escola de arte poderia ser vista como uma pré-escola. Falávamos com eles do quanto o desenhar poderia favorecer tanto a expressão da criança quanto sua motricidade fina.

Vale lembrar que esta era uma época em que a motricidade fina era demandada como principal missão da educação pré-escolar, vista como a que prepara para a alfabetização e associada a exercícios gráficos repetitivos. O desenho, para muitos, deveria cumprir uma função de letra, ser função do aprendizado da escrita e da leitura.

Imagem 36

37 O que também não era consenso entre especialistas de educação infantil brasileira da época, pois se

inaugurava em nosso país, um período de abordagem cognitivista que pretendia contrapor-se à experiência da Escola Nova. Descrevo um pouco desse processo em minha dissertação de mestrado.

Quando começamos o ensino fundamental, talvez também por conta de nossa origem, nos preocupamos com a permanência da prática do desenho, além do momento da aula de Artes. O desenho foi incluído na construção dos livros de ciências (imagem 37), nos deveres de matemática, na criação dos livros de ficção, nas aulas de práticas ambientais (imagem 36) e também como possibilidade de prática da Hora Livre, menor no ensino fundamental, mas ainda existente e bastante significativa para essa faixa etária.

Imagem 37

Sempre nos ocupamos em alimentar as crianças com materiais (tintas, papéis canetas, lápis diversos para propostas diversas), suportes ‒ de papel, papel cartão, papelão, de diferentes cores e/ou tamanhos (imagens 38), sem ou com interferência/proposta no suporte (imagens 39 e 40) como a do círculo de cor diferente ou vazado que vemos abaixo. Também oferecer combinações de materiais (imagem 41) para desenho e/ou colagem.

Imagens 39-a, 39-b

Imagens 41-a, 41-b, 41-c

Da mesma forma, temos formulado variadas consignas. Entre outras, há a de ilustração de histórias lidas ou inventadas por eles (imagens 42 e 43).

Imagem 42

VOCÊ PODE PERGUNTAR AO MEU DONO SE VOCÊ PODE ME COMER? O LOBO DESCOBRIU QUE O CACHORRO QUERIA ENGANAR ELE.

O LOBO FICOU BRAVO COM O CACHORRO.

Há o registro de estudo científico, que é o caso dos desenhos abaixo.

Imagem 44

Imagem 45

Isso implica no educador planejar, preparar materiais e propor às crianças, a observação e a pesquisa pessoal, a expressão intuitiva ou mais claramente intencional de sensações, pensamentos e sentimentos, favorecendo a construção de um jeito particular, de um olhar aguçado delas para suas produções.

Arte visual e visão de mundo podem ir se construindo mutuamente, em variadas e sucessivas viagens. É o que temos visto, acompanhado e incentivado nesse trabalho com as crianças.

Não somente o desenho, como o trabalho tridimensional, com colagem e/ou misto desses, foi ganhando espaço. Na educação infantil, as coleções individuais das crianças, que fazem parte do trabalho com a matemática – construção do número – puderam culminar em colagens de material compartilhado (imagens 46).

Tudo precisou passar pela experiência dos adultos. O estudo do desenvolvimento do desenho foi tema de vários encontros de formação dos educadores da Casa, os livros de arte foram escolhidos como presentes para o dia do professor algumas vezes. Trazer obras de certos artistas também teve a intenção de alimentar os professores e assim potencializar sua fruição delas e, consequentemente, sua produção pessoal (imagens 47) e sua capacidade de propor trabalhos plásticos às crianças.

Imagem 48

Imagem 50

Imagem 51

Imagem 53 Imagem 54

Assim, aos poucos, em várias oportunidades e sem determinação tão consciente, foram se fortalecendo as relações entre as artes, como também entre a literatura e as artes visuais, bem como as parcerias entre a expressão visual e a do corpo. Por exemplo, a exploração coletiva de movimentos, cores, formas e volumes com tecidos (imagens 55 a 56). Várias dessas experiências, em Oficinas e Saraus, entre as crianças ou entre os adultos, estiveram relacionadas à anual Feira de Livros e aos Encontros de Atualização semestrais, que têm temas e metas diferentes a cada vez.

Imagens 56-a, 56-b, 56-c, 56-d

Vale destacar, ainda a presença da sétima arte. O cinema, fruto do avançado do século XX, tem sido uma via fantástica para se entrar em contato com narrativas imaginárias contemporâneas. E, também, para aproximar-se do modo de vida, estética e ética de diversas épocas, de narrativas em torno de situações sociais e naturais.

Temos visto muitos filmes com as crianças38, tanto na educação infantil como no

ensino fundamental, mesmo que eventualmente tenhamos que fazer adequações e cortes39. Com os menores, têm sido frequentes os filmes de ficção ou documentários;

com os maiores também, porém mais associados aos temas científicos de estudo.

Imagem 57

Por fim, é preciso sublinhar, a música tem estado presente na experimentação com voz e/ou instrumentos e na apreciação de variados ritmos e estilos (imagens 57 a 60). Não somente aqueles reservados às crianças, já que, mais do que qualquer outra arte, a música parece nos falar diretamente à alma, independentemente de faixa etária.

38 Formiguinhaz, de Eric Darnell e Tim Johnson; Kiriku e a feiticeira, de Michel Ocelot; Vida de inseto, de

John Lasseter e Andrew Stanton; Dinossauro, de Ralph Zondag e Eric Leighton; A noiva cadáver, de Tim Burton; A viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki; A dança dos vampiros, de Roman Polanski; Tempos modernos e O grande ditador, de Charles Chaplin; O guerreiro Genghis Khan, de Sergey Bodrov; A missão, de Rolland Jofé; Cruzada, de Ridley Scott; Carlota Joaquina, de Carla Camurati; Sonhos, de Akira Kurosawa; Xingu, de Cao Hamburger, Quilombo, de Cacá Diegues; Spartacus, de Stanley Kubrick; A Odisseia, de Andrei Konchalovski etc.

39 Alguns desses cortes não nos parecem criteriosos com relação às indicações da faixa etária a qual

eles se destinam. Vivemos uma sociedade muito cínica que quer esconder determinadas coisas das crianças e não se intimida que elas consumam a pior qualidade estética “água com açúcar” ou de violência pura e naturalizada, especialmente em cinema/vídeo.

Em sendo menos restrita na adequação à faixa etária a que se destina, a música pode marcar presença de forma mais ampla.

Aqui nos serve lembrar a imagem do encantador de serpentes. A música parece ter o dom de envolver magicamente todo o nosso ser e dos demais seres da Terra...

As canções podem compor a atmosfera da Hora Livre ou de uma produção plástica ou fazer parte de uma atividade orientada pela professora de música ou de sala. Tem sido oferecida sozinha ou acompanhada ou somada a outras artes, como dança ou teatro.

Aos poucos, e cada vez mais, em especial com os mais velhos, a música juntou- se de forma cuidadosa às ciências. Abaixo seguem exemplos de capas de Roberta Santana, responsável pelos materiais audiovisuais da escola, seguidos pelas faixas de músicas que compõem os CDs, preparados para cada bloco de conteúdo de ciências sociais e ciências naturais, a serem escolhidos pelas crianças e pela coordenação, a cada unidade de estudo.

Imagem 63

Recentemente avançamos na compreensão do sentido “informativo” de produções visuais assim como de letras de músicas. Temos experimentado a possibilidade dos adultos fazerem uma leitura do entendimento da percepção das crianças de certos temas e situações de estudo.

Explicando melhor: já compreendíamos que quando uma criança pode escrever pouco e desenhar muito, poderia participar da construção dos livros didáticos de ciências através de suas ilustrações. Há alguns anos, começamos a perceber algo mais, ou seja, como o desenho pode nos aproximar da visão da criança (num plano sensível e “conceitual”) de determinado assunto ou tema de estudo.

Por isso, bastante impulsionados também pelas crianças com necessidades especiais, sentimos necessidade de incluir o desenho também em nossas avaliações diagnósticas ou em nossas provas de ciências (ver Anexo B). Era como se tivéssemos chegado a um lugar em que constatáramos que com a arte do desenho (como uma espécie de linguagem ou metalinguagem) poderíamos, sim, tocar determinadas percepções que as crianças têm do mundo.

Assim, aconteceu conosco uma expansão das artes dentro das atividades com crianças e adultos da Casa e, junto a isso, fomos estabelecendo diálogos entre elas e as ciências.

Em nenhum momento pudemos acreditar que estávamos em um ponto de chegada. Avançamos muito nessa jornada, mas ultrapassar as barreiras entre as disciplinas é tarefa hercúlea, já iniciada por muitos pensadores e profissionais do século XXI. Mas tem valido a pena reafirmar uma atitude epistemológica que reúne campos de conhecimento isolados. Este re-posicionamento implica entregar-se ao diálogo entre diferentes perspectivas, já bastante especializadas e que, muitas vezes, estão sob o crivo utilitário e mercadológico.

Não será simples experimentar e levar à plenitude a essência do pensar, se isso exige nos libertarmos da interpretação técnica do pensamento, como nos desafia Heidegger40.

Por fim, é importante falar do teatro. Capaz de abarcar experiências relacionais de diversas ordens e também diversas áreas do conhecimento, o teatro foi escolhido como a principal área da pesquisa que aqui desenvolvemos. Contudo, com esta escolha, não estou querendo dizer que a vemos como única capaz de abarcar tais dimensões. Na verdade, é preciso reconhecer que o teatro sempre foi a via régia do exercício de criatividade, compartilhamento e expressão desse barco.

Sem dúvida, foi uma escolha associada a uma história, especialmente a de seus timoneiros. Esta era a via que se poderia mais fluentemente navegar (e/ou correr o risco de naufragar).

Nesta história contam biografias pessoais. A professora de sala, Marisa Baruch, com quem começamos, os diretores da escola, sendo eu mesma um deles, eram atores e também diretores teatrais, além de educadores. Mais do que outras, a via do drama mostrava-se mais favorável para lidar com as mudanças que se mirava no tombadilho do barco e com o imponderável delas.

Assim, e não por acaso, a arte do teatro foi eleita para o ritual de fechamento de uma etapa da vida escolar. No decorrer dos anos, esta via demonstrou ser uma rota

navegável e aglutinadora. Para “fazer-se” foi englobando as demais expressões artísticas (as artes plásticas, a música, a dança e, até mesmo, o cinema) bem como as ciências, fornecedoras de repertórios e conteúdos.

Por esta via, sob a ótica do drama, as artes e as ciências – nem sempre facilmente ou bem acomodadas entre si – se juntam no ritual de passagem que encerra a vida das crianças na Via Magia.

No documento Passagens : rito e drama na escola (páginas 90-114)

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