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O timoneiro que vos fala

No documento Passagens : rito e drama na escola (páginas 45-52)

“Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma." José Saramago

Se a memória representa precisamente o ponto de interseção entre o espírito e a matéria, conforme Bergson17, a história de uma navegação implica a história de um barco, implica seus navegantes, suas expedições, os mitos e ritos que fizeram parte delas, e mais ainda, a história do narrador da história, que retoma sonhos, devaneios, ações e produções anteriores, pelas lembranças que esse exercício de busca de verdade no não-esquecimento promove.

Esse projeto ritual de arte/educação desenvolvido comigo à frente, demandaria então uma espécie de narrativa autobiográfica que mapeasse meu olhar híbrido?

Imagem 15

Pareceu-me que chegou a hora de trazer um pouco da história do timoneiro dessa empreitada específica. O começo se vê na foto acima, em que estou no colo de meu irmão, ao lado de minha irmã, no quintal de nossa casa.

Mas, é só um começo. O que se segue, assim como todo relato de experiência de formação profissional (e mais ainda por ser esse timoneiro eu mesma), é uma ficção.

De qualquer sorte, não tenho a ilusão de fugir da incompletude, de poder costurar, unir com pesquisa, o que está além da intersecção da memória, ela mesma, acontecimento entre o espírito e a matéria.

Abrindo espaço à minha proto-história profissional, muito antes do barco da Via Magia, como começam os passos iniciantes que desembocariam em um múltiplo posicionamento profissional? Quando começa, na minha lembrança, a trajetória que desembocaria na função de timoneira dessas viagens dramáticas que queremos tratar?

Quando brincar de teatro era fundamental à minha existência. Desde muito cedo, nas encenações das brincadeiras de quintal e nas performances escolares.

Não posso situar exatamente quando minha irmã e eu começamos a bisbilhotar o guarda-roupa de nossa mãe para pegarmos suas anáguas de cetim (que se usava embaixo de saias e vestidos) para levar para a casa das amigas, para brincarmos de rainha, de mãe, de atrizes até.

Tenho a lembrança da aventura excitante que era arremessá-las da janela do quarto de nossos pais, do andar de cima do sobrado em que morávamos, e caminhar pela calçada, abraçada ao imenso bolo de tecidos feito das peças de roupa dobradas, até a casa de nossa amiga, no mesmo quarteirão da nossa casa.

Nos aniversários das crianças da vizinhança, também apresentávamos nossas cenas, o que já implicava ensaios, distribuições de papéis, público de crianças e adultos, embora utilizássemos apenas algumas cadeiras, um ou outro objeto como uma vassoura, coisas assim... Dessa forma, a cada ano íamos repetindo e/ou inventando nossos pequenos dramas, que já eram parcialmente escritos por mim e nos quais também atuava.

Na casa de Tia Palma havia um quintal imenso onde nós, um bando de primos de diferentes idades, podíamos ficar brincando juntos. Havia um pequeno pomar com pés de tangerina, laranja lima e pitanga que servia de cenário para epopeias de muitos de nossos heróis. Além disso, havia uma casa de três cômodos, maltratada e abandonada, vazia, onde podíamos compor um palco à nossa moda, longe dos adultos e de qualquer tipo de supervisão invasiva de nossas fantasias e representações.

Às vezes nos machucávamos e lembro-me de certa vez em que, pulando a janela dessa casinha do quintal, enfiei um prego no pé e fiquei alguns dias sem poder andar. No entanto, jamais nos arrependemos de nossas aventuras, nem nessas horas, pois nossas brincadeiras dramáticas eram nosso tesouro. Era ponto pacífico, verdade implícita e intocável.

Na casa de nossos avós, também dentro do terreno da casa de minha tia, havia também, numa certa época, uma sala pouco utilizada, igualmente vazia, que, coincidentemente, tinha apenas uma cortina separando dois espaços. Lembro-me de brincarmos muito ali. As duas partes da cortina de pano presas em argolas, por sua vez suspensas em cano afixado nas paredes laterais, nos sugeriam muitas possibilidades de jogo dramático.

Esse espaço, assim como o da frente da casinha do quintal, nos serviu para fazermos algumas apresentações para crianças da vizinhança, em que cobramos três palitos de fósforo. Não foram muitas, parece-me. A memória confunde-se às vezes...

Certa ocasião, começamos a buscar nos livros, especialmente numa coleção de contos de diversas origens culturais, material para nossas dramatizações. Foi marcante o conto de terror que se intitulava “A moça, a flor e o telefone”, de Drummond.

É interessante observar como esse movimento assemelha-se a esse projeto a que estamos nos referindo nesses escritos. Refiro-me ao ato de buscar contos, lendas e mitos e transformá-los em cena.

Utilizamos para a dramatização desse conto apenas um telefone velho, uma flor e a cortina da sala vazia. Era o bastante para instituir representações de medo, ironia e prazer. Parece-me hoje que iniciava aí o estilo de teatro que faria mais tarde, em sua forma minimalista, interessado em temas existenciais.

A escola oferecia algumas oportunidades e eu não as deixava escapar. Tenho lembranças do grupo escolar, do ginásio, do segundo grau, quando participei do grêmio estudantil e aproveitei para participar de dramatizações, saraus, jograis e o que mais de performático surgisse e pudesse incluir meu adolescer inquieto.

Vivenciava no palco, aquela sensação interna/externa de corpo/alma, de revelar- se e revelar um personagem, de colocar-me para ser vista, com aquele frio na barriga, que nunca mais desapareceu, mesmo depois de décadas de experiência como atriz, ao qual me referi, quando do diálogo com a criança, no início desse texto (Convite à viagem).

Na Universidade, juntou-se a militância política, o teatro e a educação. Lembro especialmente de um espetáculo sem palavras, uma criação coletiva com música e movimento, orientada por um maestro vindo de Brasília trazido pelo centro acadêmico, quando pudemos encenar o que pensávamos e sentíamos do momento histórico que estávamos vivendo.

Foi quando tive a oportunidade mais significativa de expressar-me sobre a morte de meu irmão, estudante da Politécnica, da USP, assassinado pela ditadura militar em 1972. “Morte vela, sentinela sou do corpo desse meu irmão, que já se foi”, cantava a voz de Milton Nascimento. O trágico da existência continuará presente nos temas dos espetáculos que viria atuar (imagem 16, foto de 1994).

Imagem 16

Aí começa minha trajetória profissional: fazendo e estudando teatro, como militância política em eventos culturais e também já como profissional; fazendo pedagogia e participando de grupos de estudo na universidade; dando aulas de arte para crianças. Começa tudo junto em 1972. Abaixo (imagens 17 e 18), fotos de 1974, como atriz e arte/educadora.

Imagem 18

Uma viagem única com mesmas metas, tarefas e lugares diversificados: escolas, parques, praças, jardins, teatros, sociedades de bairro... E seguem até hoje, em 2014. Como seguiram os estudos, fora e dentro da universidade. Em 1978 fiz parte do undergraduate program do Goddard College (USA), cujo trabalho final foi um espetáculo de teatro infantil que escrevi, dirigi e atuei. Em 2003 fiz mestrado na UFBA e em 2010 comecei o doutorado na UNICAMP, ambos refletindo sobre certos processos da práxis da Via Magia. Como disse acima, tudo variado e juntado numa coisa só.

As próximas pinceladas autobiográficas estarão desordenadas, soltas do tempo cronológico, refletindo os vários planos de minha prática profissional denominada por mim de “misturalista”. Surgirão ao longo desse escrito de forma mesclada.

De qualquer sorte, como timoneira desses processos rituais, vejo-me orientando- me por um mapa que passa por diversos territórios e fronteiras de áreas de conhecimento e de atuação... Mares muito familiares e sempre estranhos, além do que posso mirar...

No documento Passagens : rito e drama na escola (páginas 45-52)

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