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SENNET, R. O-Declinio-Do-Homem-Publico.pdf

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\l•h11· l·\wdmia ltaulu111ç ( 193'.?). <le Chkar Schlc111mcr Índiec rr::mi~-.iH•: Adelina Hflrt( as M(//ia\.-(11:1;a1 Revisito: A11í!Ja/ ,'l4frli l?egi1w Co/0111'1i C/am Haldmti Pa11/o Céwr dr ,'l,f.,fr,

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1999

Todo> os direi los desta edição reservados ~l l:'l)ITOllA SCHW,\RC:Z !.TOA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72

04:;32-002 - São Paulo - sP Tdiofonc: (011) 866-0l:IOI

Fax: (01 lj 866-0814

.:-111ail: cdirora<iVc.:ompanhia<l:osletras.com.hr

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"Cada pessoa, mergulhada cm si mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espécie humana. Em suas transações com seus conci-dadãos, pode misturar-se a eles, sem no entanto vê-Jus; toca-os, mas não os sente; existe apenas em si mesma e para si mesma. E i;e. nestas condições, um certo sentido dt: família ainda permanecer em sua mente, já não lhe res-ta sentido de sociedade.''

(3)

ÍNDICE

Agradecimentos 11

Primeira parte O PROBLEMA PÚBLICO

1. O domínio público . . . 15

2. Papéis ... ·. . . 45

Segunda parte O MUNDO PÚBLICO DO ANTIGO REGIME 3. A platéia: um conjunto de estranhos . . . 67

4. Papéis públicos . . . 88

5.

O

público e o privado . . . 117

6. O homem como ator ... 138

T crceira parte O TUMULTO DA VIDA PÚBLICA NO SÊCULO XIX 7. O impacto do capitalismo industrial na vida pública . . . . . . . . 166

R. A personalidade em público . . . 190

9. Os homens públicos do século XIX . . . 243

(4)

'

Quarta parte

A SOCIEDADE INTIMISTA

11. O fim da cultura pública ... 317

12. O carisma se torna incivilizado . . . 329

13. /\ cnmunidade se torna incivilizada ... 358

14. O ator privado de sua arte.. . . 381

Conclusão: As tiranias da intimidade . . . 411

Notas ... 415 /\pêndice: "Eu acuso!" . . . 427

Indice remissivo . . . 437

AGRADECIMENTOS

Sou grato a Clifford Cun.on e a Murray Perahia por terem me ajudado a definir primeiro o propósito deste livro. No decorrer de sua elaboração, fui ajudado pelas conversas com Peter Brooks, Clifford Geertz. Richard Gilman, Caroline Rand Herron, Anne Hollander, Herbert Menzel, Orest Ranum, Carl Schorske, Richard Trexler e Lio· nel Trilling. Gostaria de agradecer a Ben Barber, Juan Corradi, Ma-rion Knox, Leo Marx e David Riesman pelos comentários feitos ao manuscrito. Tenho um débito especial para com David Herron, que me proporcionou o grande beneficio de sua leitura detalhada do texto.

A pesquisa para este livro foi feita com a assistência de Mareia Bystryn, de Bernard McGrane, Mark Salmon e de Christina Spellman. Especiais agradecimentos a Mareia Bystryn, por seu trabalho paciente e competente.

Finalmente, devo agradecer a Robert Gottlieb e a Angus Ca-meron pela orientação editorial. Bobbic Bristol orientou a produção do livro, e Jack Lynch ajudou-me a refinar a linguagem do texto.

Gostaria de agradecer também aos bibliotecários e curadores pela assistência recebida nas bibliotecas do lnstitute of Advanced Stu-dy, do Lincoln Center for the Performing Arls, do Metropolitan Mu-seum of New York, da Harvard University, da Bibliotheque Nationale, da Cambridge University e da New York University. O auxílio finan-ceiro para a pesquisa e a elaboração deste livro proveio da generosa assistência do lnstitute of Advanced Study, da John Simon Guggen· hcim Foundation e da Ford Foundation. O manuscrito foi datilo-grafado pela equipe do Center for Policy Research, e eu gostaria de agradecer-lhe por sua eficiência coletiva e por seu bom humor.

(5)

PRIMEIRA PARTE

O PROBLEMA PÚBLICO

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CAPÍTULOJ

O DOMÍNIO PÚBLICO

Os tempos modernos são freqüentemente comparados aos anos em que o Império Romano entrou em decadência. Assim como se su-põe que a podridão moral enfraqueceu o poder de Roma para governar o Ocidente, diz· se que enfraqueceu o poder do Ocidente para governar o globo. Por mais tola que seja essa idéia, ela contém um elemento de verdade. Há como que um paralelo entre a crise da sociedade romana após a morte de Augusto e a vida nos dias atuais, no que diz respeito ao equilíbrio entre vida pública e vida privada.

À medida que findava a Época de Augusto, os romanos passaram a tratar a vida pública como uma questão de obrigação formal. As cerimônias públicas, as necessidades militares do imperialismo, os l'Ontatos rituais com outros romanos fora do círculo familiar torna-ram-se deveres - deveres em que o romano participava com um espí-rito cada vez mais passivo, conformando-se às regras da res publica e investindo cada vez menos paixão em seus atos de conformidade. À medida que a vida pública do romano tornava-se exangue, ele buscou privadamente um novo foco para suas energias emocionais, um novo princípio de compromisso e de crença. Esse compromisso privado era místico, preocupado em fugir do mundo em geral e das formalidades da res publica como parte desse mundo, e vinculava-se a várias seitas do Oriente Próximo, entre as quais o Cristianismo passou a predo-minar. O Cristianismo deixa então de ser um compromisso espiritual praticado cm segredo para irromper no mundo, transformando-se, ele prúprio, em novo princípio de ordem pública.

Hoje, a vida pública também se tornou questão de obrigação for-mal. A maioria dos cidadãos aborda suas negociações com o Estado rnm um espírito de aqu.iescênda resignada, mas essa debilitação

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blica tem um alcance muito mais amplo do que as transações políticas. ' Boas maneiras e intercâmbios rituais com estranhos são considerados, na melhor das hipóteses, como formais e áridos e, na pior, como falsos. A própria pessoa estranha é uma figura ameaçadora, e muito poucos podem sentir um grande pra1.er nesse mundo de estranhos: a cidade cosmopolita. Uma res publica representa, em geral, aqueles vínculos de associação e de compromisso mútuo que existem entre pessoas que não estão unidas por laços de família ou de associação íntima: é o vín-culo de uma multidão, de um "povo", de uma sociedade organiza.da, mais do que vínculo de família ou de amizade. Como na época romana, a participação na res publica é hoje, na maioria das vezes, urna questão de estar de acordo; e os fóruns para essa vida pública, como a cidade, estão em estado de decadência.

A diferença entre o passado romano e o presente moderno reside na alternativa, no significado da privacidade .. O. romano privadamente buscava um outro princípio para contrapor ao público, um princípio baseado na transcendência religiosa do mundo. Privadamente bus~·-. camos não tanto um princípio, mas 11.(11ª reflexão, a saber, o que são 1 nossas psiques. ou o que ê autêntico

e

m

nossos sentim,entos. Temos tentado tornar o fato de estarmos em privacidade. a sós ou com a fa-~nília e amigos íntimos. um fim em si mesmo.

As idéias modernas a respeito da psicologia dessa vida privada são confusas. Poucas pessoas afirmariam atualmente que suas vidas psíquicas surgem por geração espontânea, independentes de condições sociais e de influências ambientais. Não obstante, a psique é tratada como se tivesse uma vida interior própria. Considera-se esta vida psí-quicit tão preciosa e tão delicada que fcnecerá se for exposta às duras realidades do mundo social e que só poderá florescer na medida em que for protegida e isolada. O eu de cada pessoa tornou-se o seu pró-prio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo. E precisamente porque estamos tão absortos em nós mesmos, é-nos extremamente di-fícil chegar a um princípio privado, dar qualquer explicação dara para nós mesmos ou para os outros daquilo que são as nossas personali -dades. A razão está em que. quanto mais privati7.ada é a psique, menos estimulada ela será e tanto 01ais nos será difícil sentir ou exprimir sen-timentos.

A busca por parte do romano no período pós-augustiniano de seus deuses privados orientais achava-se, em sua mente, isolada do mundo público. Ele finalmente impôs tais deuses ao mundo público, subjugando a lei militar e o costume social a um princípio mais ele-vado, claramente diferente. Segundo o nosso código moderno de

signi-16

ficação privada. as relações entre experiência impessoal e íntima nãc.. possuem tal clareza. Vemos a sociedade mesma como "significativa" somente quando a convertemos num grande sistema psíquico. Po-dcm<is compreender que o trabalho de um político é o de elaborar ou executar a legislação, mas esse trabalho nfto nos interessa, até que per-cebamos o papel da p~rsonalidadc na luta política. Um lider político que busca o poder obtém "credibilidade" ou "legítimidade" pelo tipo de homem que é, não pelas açôcs ou programas que defende. A obses-são para com pessoas, em deirimcnto de relações sociais mais impes-soais, é como um filtro que descobre o nosso cutcndimcmo racional da sociedade; ~la torna obscura essa importância continuada da classe na sociedade industri4l ava.n~ada; leva-nos a crer que a comunidade é um ato de.auto·d~~v.endamento mútuo e a subestimar as rela~<><.:~ comutú-tárias de estrangeiros. Ironicamente, esta visão psicológü;a também inibe o desenvolvimento de forças búsicas da personalidade. tais como o respeito pela privacidade dos outros ou a compreensão de que, uma vCi!: que cada indivíduo é em certa medida uma câmara de horrores, as relações civilizadas entre os indivíduos sú podem ter continuidade na medida em que os desagradáveis segredos do desejo, da cobiça ou in-veja forem mantidos a sete chaves.

O advento da psicologia moderna e, cm especial, da psicanálise baseava-se na crença de que. ao entender os procedimentos internos desse eu sui generis, desprovido de idéias transcendentes de mal ou de pecado, as pessoas poderiam libertar-se desses horrores e tornar-se dis-poníveis para participarem, mais completa e racionalmente, de uma vida externa aos limites de seus próprios desejos. Multidões de pessoas estão agora preocupadas, mais do que nunca, apenas com as histórias de suas próprias vidas e com suas emoções particulares; esta preocu-pação tem demonstrado ser mais uma armadilha do que uma liber-tação.

Como essa imaginação psicológica da vida tem conseqüências so-ciais amplas, quero chamá-la por um nome que pode parecer inade· quado à primeira vista: esta imuginação é uma visão íntima da socie-dade. "Intimidade'' conota calor, confiança e expressão aberta de sen-timentos. Mas, precisamente porque acabamos por esperar tais bene-fícios psicológicos permeando a gama de nossas experiências e preci-samente porque muita vida social que tem uma significação não pode conceder tais recompensas psicológicas, o mundo exterior, o mundo impessoal, parece nos decepcionar, parece rançoso e vazio.

Num certo sentido, estou girando ao contrârio o argumento de David Riesman, em The Lonely Crowd (A Multidão Solitãria). Ries-man contrastava uma sociedade voltada para dentro, na qual os

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\

mens executavam ações e firmavam compromissos baseando-se em ob-jetivos e sentimentos que traóam dentro de si mesmos, a uma socie-dade voltada para o outro, onde tais paixões e compromissos dependem daquilo que as pessoas acham ser o sentimento de outrem. Riesman acrcclitava que a sociedade americana e, na esteira desta, a Europa Ocidental C!;\avam mudando da condição de voltada para dentro à con-cliçilo de voltada para outrem. A seqüência deveria ser invertida. As sociedades ocidentais estão mudando a partir de algo semelhante a um estado voltado para o outro para um tipo voltado para a interioridade ~ - com a ressalva de que, em meio à preocupação consigo mesmo.

ninguém pode dizer o que há dentro. Como resultado, originou-s?"j uma confusão entre vida pública e vida intima: as pessoas tratam em termos de sentimentos pe$SOai'i os assuntos p~blicos. ,q~e somcn~e P51~­ dcriam ser adequadamente tratados por meio de cod1gos de s1gmfi-cação impessoal.

Tal confusão pode parecer um problema especificamente ame ri-cano. O valor que a sociedade americana dá à experiência individual pareceria levar seus cidadãos a medirem toda a vida social em termos de sentimento pessoal. Contudo, o que se experimenta atualmente nf10 é o individualismo inflexível; ao invés disso, é ansiedade a respeito do sentimento individual. que os indivíduos atestam cm letras maiúsculas, em termos do funcionamento do mundo. A fonte desta ansiedade

re-i

side nas pr~fu.ndas mud~nças d~ ca~italismo e da crença religiosa. o \__que não se Imuta a fronteiras nacionais.

A ansiedade diante daquilo que se sente também poderia ser con-siderada como a difusão e a vulgari7.ação da "busca da personalidade" romântica. Tal busca não vem sendo desenvolvida dentro de um vácuo social; são as condiçf>es da vida cotidiana que têm impelido as pessoas a essa busca romântica de auto-reali7.ação. Além disso, está fora do âm-bito dos estudos literários sobre essa busca a avaliação do qunnto ela custa à socied<lde; e o custo é elevado.

A erosão da vida pública também exige um estudo especifico, separado das demais modalidades habituais da história social. Falar a respeito de expressão em pliblico leva naturalmente à pergunta: quais os tipos de expressão de que é capa1. o ser humano nas relações sociais?

I

Quando um homem fa1. um elogio a um estrafilto. por exemplo, age

ex-pressivamente do mesmo modo que u~ ator ··representando?

f

difícil falar de um vazio de expressão na vida pública sem alguma teoria sobre o que é expressão. Há, por exemplo, uma diferença entre a expressão apropriada às relações públicas e a expressão adequada às relações íntimas?

18

Tenho tentado criar uma teoria da expressão cm público por meio de um processo de interação entre história e teoria. As mudanças concretas do comportamento público, discurso, vestuário e crença são usadas neste livro como provas para a elaboração de uma teoria sobre o que seja a expressão na sociedade. Da mesma forma que a história sugere pistas para uma teoria, tentei tomar como pistas as concepções abstratas obtidas como novas questões a serem formuladas ao registro histórico.

Uma investigação dialética significa que o argumento só estará completo quando o livro chegar ao final. Não se pode expor imediata-mente a "teoria" e estendê-la, como um mapa, sobre o terreno histó-rico. Para obter ao menos alguma clareza no início, porém, gostaria de discutir neste capítulo as dimensões sociais e políticas do problema pú-blico, tal como vêm se desenyolvendo na sociedade moderna. e de apre-sentar, no capítulo seguinte, as dimensões de uma teoria <la expressão em público. Nas páginas subseqüentes deste livro. as questões histó-ricas e teóricas serão examinadas em várias direções.

O AMOR FORA DO DOMÍNIO PÚBLICO

O problema público da sociedade contemporânea é duplo: o compor -tamento e as soluçôes que são impessoais não suscitam muita pai-xão: o comportamento e as soluções começam a suscitar paixào quan-do as pessoas os tratam, falseadamente, como se fossem questões de personalidade. Mas, uma vez que este duplo problema público exis· te, ele cria um problema no interior da vida privada. O mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras; não se acha mais refreado por um mundo público onde as pessoas fazem um investimento alter-nativo e balanceado de si mesmas. A erosão de uma vida pública forte deforma, assim, as relações íntimas que prendem o interesse sincero das pessoas. Nas últimas quatro gerações, não ocorreu nenhum exemplo mais vívido de tal deformação do que na mais íntima das experiências pessoais, o amor físico.

Nas últimas quatro gerações, o amor físico vem sendo redefinido, passando dos termos do erotismo para os termos da sexualidade. O erotismo vitoriano envolvia relacionamentos sociais, enquanto a

se-xunlidadc envolve a identidade pe~soal. O erotismo significava que a expressão sexual transpirava. por meio de ações - de escolha. repres-são, interação. A sexualidade não é uma ação, mas um estado no qual o ato físico do amor decorre quase como uma conseqüência passiva,

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cnnH> um rcsnltado natural do sentimento de intimidade entre duas

pl':-.:ma~.

J\s hases cio erotismo entre a burguesia do século XIX estavam q11asc que inteiramente escondidas no medo e, portanto, expressas afravés <ln íillro da repressão. Toda ação sexual era acompanhada pela som lira de um :-.cntimcnto de violaÇão - violação do corpo da mulher pelo homem. violação do códi§O social pelos dois amantes, violação de 11111 l'údigo moral mais profundo pelos homossexuais. Amplos seg· menfos da sociedade moderna têm se rebelado contra o medo e a re·

pressão, e isto é bom. Mas, devido ao modo pelo qual os ideais de inti-midade avivam a imaginação moderna, tem também havido reação contra a idéia de que o amor físico é uma ação onde as pessoas se

en-gajam, e que. como qualquer outra ação social, deveria ter regras, li· mitcs e ideali:lações necessárias para conferir-lhe um significado

espe-cífico. Ao invés disso. o sexo é uma revelação do eu. Uma nova escra-vidão veio, pois, substituir a antiga.

Imaginamos que a sexualidade delimita um amplo território para aquilo que somos e que sentimos. A sexualidade é um estado expres· sivo, ao invés de um ato expressivo, e é no entanto cntrópica. Tudo quanto experimentamos toca necessariamente a nossa sexualidade. mas a sexualidade t?. Nós a desvendamos. a descobrimos, chegamos a

um acordo com ela, mas não a dominamos. Isto seria manipulativo. instrumental, insensível - e também colocaria a sexualidade em pé de igualdade com as emoçi">es que tentamos moldar, ao invés de nos

sub-metermos a elas. Os vitorianos, que encaravam o sexo dessa maneira,

po<lium entâo falar em aprender com sua vida erótica, embora o apren

-dizado fosse tão dolorosamente difícil, devido aos filtros da repressão. Hoje cm dia não aprendemos "com" o sexo, porque isso colocaria a sexualidade fora do cu; cm contrapartida. vamos infinita e

frustran-tcmcntc à procura de nós mesmos através dos órgãos genitais.

Pensem, por exemplo, nas diferentes conotações da palavra "se

-dução"' no século XIX e do termo moderno "caso". Uma sedução era o

despertar de tamanho sentimento por parte de uma pessoa - nem sempre um homem - em uma outra que os códigos sociais eram com isso violados. Essa violação fazia com que todas as outras relações so-ciais ela pessoa fossem temporariamente questionadas; cônjuge, filhos, pais eram envolvidos tanto simbolicamente, através da culpa, quanto na prática. se a violação fosse descoberta. O termo moderno, "caso", recalca todos esses riscos porque reprime a idéia de que o amor físico é um ato social; trata-se agora de uma questão de afinidade emocional, que in esse situa-se fora <la teia de outras relações sociais na vida da pessoa. Atualmente pareceria ilógico a uma pessoa que está tendo um

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caso, seja dentro ou fora do casamento, tomá-lo como congenitamente ligado a relações parentais, de modo que, sempre que alguém

faz

amor com outra pessoa, o seu status como filho de outrem pudesse ser alte· rado. Isto, diríamos, pertence ao âmbito de casos individuais, de fa. tores da personalidade; não é uma questão social. Entre espíritos mais livres, o mesmo argumento seria empregado para um caso em relação a um casamento. A própria palavra "caso"' (affair). tão vazia, tão amor-fa, indica uma espécie de desvalorização da sexualidade, enquanto uma imagem que pode ser compartilhada socialmente através do

dis-curso. Ao nos rebelarmos contra a repressão sexual, rebelamo-nos con-tra a idéia de que a sexualidade tem urna dimensão social.

Por que tais esforços visando a liberdade sexual, tão bem-inten-cionados em espírito, precisariam terminar como enigmas insolúveis, quebra-cabeças mágicos do eu? Numa sociedade onde o sentimento íntimo é um padrão de realidade apropriado a diversas finalidades, a experiência se organiza em duas formas que conduzem a essa destru· lividade não premeditada. Nessa sociedade, as energias humanas bá-sicas do narcisismo são mobilizadas de modo a penetrarem sistemática e perversamente nas relações humanas. Nessa sociedade, o teste para se saber se as pessoas estão sendo autênticas e "direitas" umas com as outras é um padrão peculiar de troca mercantil em relações íntimas._.. _

O narcisismo, no sentido clínico, diverge da idéia popular do amor de alguém por sua própria beleza; num aspecto mais estrito e cumo um distúrbio de caráter, ~ ~. P,reocupação consigo mesmo que impede alguém de entender aquilo que é inerente ao domínio do eu

êda

autogratificação e aquilo que não lhe é inerente. Assim, o' narcisismo é uma obsessão com "aquilo que esta pessoa, este acontecimento. signi-ficam para mim'.'. Este questionamento sobre a relevância pessoal das outras pessoas e de atos exteriores é feita de m~do tão repetitivo que uma percepção clara dessas pessoas e desses acontecimentos em si mesmos fica obscurecida. Essa introjeção no eu, por estranho que pos-·~ª parecer, impede a satisfação das necessidades do eu; faz com que,

110 momento de se atingir um objetivo, ou de se ligar a outrem, a pessoa

~inta que "não é isto que eu queria". Assim, o narcisismo tem a dupla qualidade de ser uma voraz introjeção nas necessidades do eu e o blo· qucio de sua satisfação.

Os distúrbios narcisistas da personalidade são as fontes mais co-muns das formas de dificuldades psíquicas com as quais se defrontam 11~ terapeutas. Os sintomas histéricos que constituíam as quebcas pre-1himínantes da sociedade erótica e repressiva de Freud desapareceram •·m grande escala. Este distúrbio da personalidade surgiu porque um

(10)

\

/ , , . , "'"' ''' ,.,.,;cdadc encomja o <rcsdmento de "'"' componente• psíq11in>s e anula o senso de contato social significativo fora de seus

Ii-miks, íora dos limites do cu único, em público. Devemos ter cuidado

ao.1 cspccifü:ar o que é esse tipo de aflição, para não falsificarmos o meio 1k:11 t rn do q uai ele tomou forma social. Este distúrbio da personalidade 11;'\11 conduz inevitavelmente à psicose, nem as pessoas sob a sua

influ-0110.:ia vivem n tempo todo em um estado agudo de crise. O

distancia-llll:nlo para com os compromissos, a busca contínua de uma definição

interior do "quem sou cu", provoca dor, mas nenhum mal-estar

cata-dísmico. Em outras palavras, o narcisismo não cria as condições que

pndcriam promover sua própria destruição.

Na esfera da sexualidade. o narcisismo afasta o amor físico de qualquer compromisso, pessoal ou social. O simples fato de um com-promisso por parte de uma pessoa parece, para ele ou ela. limitar as oportunidades de experiências "suficientes" para saber quem ele ou ela

é e encontrar a pessoa "certa" para complementar 4uem ele ou ela é.

Todo relacionamento sexual sob a influência do narcisismo torna-se

menos satisfatório quanto maior for o tempo em que os parceiros

esti-verem juntos.

Uma relação primária entre o narcisismo e sexualidade pode ser

delineada em termos de imagens que as pessoas têm de seus próprios corpos. Um estudo muito interessante realizado em Paris ao longo de

vãrios anos mostrou que, à medida que as pessoas tendem a considerar seus corpos como definições cada vez mais completas de sua própria sexualidade, a "simbolização" do corpo fica cada vez nierios fãcil para

elas. Na medida em que a sexualidade se torna um estado absoluto

fixado na forma do corpo, as pessoas que são esses corpos têm uma

dificuldade crescente em imaginar formas fálicas em organismos

na-turais como as plantas ou em perceber um relacionamento entre o

mo-vimento corporal e a ação de um cilindro ou de um fole. O culto do

corpo como um estado sexual absoluto é narcisista porque torna a se-xualidade exclusivamente atributo da pessoa, um estado ao invés de uma atividade. e portanto essencialmente isolada da experiência sexual - que a pessoa pode ter ou não. O estudo conclui que o resultado do nar-~ cisismo é um decréscimo da imaginação "metafórica" do corpo. o que

1

1

é, vale dizer, um empobrecimento da atividade cognitiva criadora de

Vi símbolos

a partir de uma coisa física. Esta é uma das razões pelas quais, à medida que uma sociedade passa do erotismo à sexualidade, da crença em ações emocionais para a crença em estados emocionais, \ forças psicológicas destrutivas são traz.idas à baila . .Ê um sinal da

des-trutividade desencadeada quando uma sociedade nega até mesmo a

Eros uma dimensão pública.

22

A forma mais comum pela qual o narcisismo se dá a conhecer à pessoa é através de um processo de inversão: se ao menos eu pudesse sentir mais, ou se eu pudesse realmente sentir, então eu poderia me

relacionar com os outros ou ter relações "reais" com eles. Mas, a cada

momento de contato, parece 4ue nunca sinto o bastante. O conteúdo

úbvío dessa inversão é a auto-acusação, mas enterrada debaixo dele se

acha a sensação de que o mundo está me decepcionando.

Uma segunda força destrutiva vem reforçar essa busca infrutífera

de uma identidade composta por materiais vindos de dentro. Essa força

pode ser descrita melhor através de um exemplo dela durante o

treina-mento de formação de entrevistadores de diagnóstico.

Nas primeiras sessões, os entrevistadores principiantes

freqüente-mente estão ansiosos para mostrarem que encaram seus sujeitos como

pessoas de verdade e não apenas como "fontes de dados". Os

entrevis-1adures querem lidar com seus sujeitos de igual para igual, fazendo

'.lc_s~obertas ~m conjunto. Esse desejo louvável resulta numa situação

1111c1al peculiar: toda vez que o sujeito revela algum detalhe ou

senti-mento de sua vida privada,. o entrevistador reage contrapondo um

de-talhe de sua própria vida. Tratar alguém como "pessoa'', nessa

si-tuação, torna-se uma troca mercantil de intimidades: eles lhes mos- '~

..-Iram uma carta, vocês

lhes

·mostram outra.

Os entrevistadores tendem a superar esse comércio de revelações mútuas quando começam a perceber que, ao se exporem, estão per-dendo a oportunidade de descobrir os sentimentos do sujeito. Esta nportunidadc surgirã se o entrevistador fizer perguntas, ou se

simples-mente ficar sentado em silêncio, aguardando que a outra pessoa

pros-siga. Após algum tempo, entrevistadores sensíveis começam a ficar pouco à vontade diante da idêia de que para tratar outra pessoa como

11111 igual, emocionalmente falando, é necessário manter com ela um

rdacionamento recíproco, reagindo a qualquer coisa que ela lhe mostre

fa:1.cndo-lhe alguma revelação em troca. E, neste ponto, os entrevista-dores encaminham-se de um ideal de intimidade baseado na troca co-111crcial para uma intimidade mais genuína. Aqui, os limites em torno do cu não isolam, mas de fato estimulam a comunicação com os ouiros.

Os entrevistadores recebem suas noções iniciais du intimidade

rnmo troca mercantil a partir de pressuposições que regem a sociedade

111ais ampla. Uma vez que as pessoas estão próximas uma das outras na 111(~dida cm que sabem a respeito umas das outras. então o

conhcci-11H~11to interpessoal torna-se uma questão de revelação recíproca.

<J11andu duas pessoasjã não têm revelações a fazer, e a troca comercial

1-lit:gou ao fim, 4uase sempre o relacionamento acaba. Esgota-se

por-que "não há mais nada a dizer'', cada um acaba aceitando o outro

23

(11)

"como um fato dado ... O tédio é a rnnscqüência lógica da intimidade nessa rda<;ào de troca. Esse esgotamento completa com perfeição a rnnvin,:;'10 nardsista ele que, sejam quais forem as recompensas que se

l'Skja rl'ccbcndo no momento, elas não são Hldo o que se poderia rc-l'1•!wr, ou, invcrsamcotc. que não se está efetivamente sentindo u sufi-cirntc parn que o relacionamento seja "real".

O narcisismo e a permuta de auto-revelações estruturam as con· diçiics nas quais a expressão de sentimentos cm circunstâncias íntimas se lorna destrutiva. Há uma busca interminável de auto-satisfação e, ao mesmo tempo, o eu não pode permitir que a gratificação ocorra. Pode· se vislumbrar até certo ponto o poder dessa linguagem do eu nas pa-lavras em código usadas atualmente para avaliar a "autenticidade" dos relacionamentos ou das outras pessoas. Falamos da possibilidade ou não de nos "relacionar" com os acontecimentos ou com outras pessoas e de saber se na própria relação as pessoas estão "abertas" umas para

com as outras. A primeira é uma palavra em código para medir o outro

/

1 cm termos de um espelho de preocupação consigo mesmo, e a segunda

, é um disfarce para medir a interação social em termos da permuta de

\_·confissões.

A família burguesa do século XIX tentou preservar uma certa distinção entre o senso da realidade privada e os lermos muito dife-rentes do mundo público exterior ao lar. O limiar entre ambos era con· fuso, freqüentemente violado, demarcado na esfera erótica pela mão impelida pelo medo, mas ao menos se fazia a tentativa de manter a separação e a complexidade dos diferentes domínios da realidade so-cial. Esquecemos muito facilmente uma qualidade que existia na vida

burguesa: sua dignidude essencial. Havia um esforço - doentio e vo·

tado ao malogro, é certo - para operar distinções entre os campos da

experiência e, desse modo, arrancar uma forma qualquer dessa socie-dade cm enorme desordem e desolação. Marx percebeu essa dignisocie-dade tanto quanto Weber; os primeiros romances de Thomas Mann são cele-brações dessa dignidade, na mesma medida em que são estudos da sua inevitável desintegração.

Se o envolvimento nas questões do eu tivesse ocorrido ao mesmo tempo em que as pessoas continuassem a levar vidas ativas com pessoas que nunca poderiam conhecer, na política e na burocracia de grande escala, poderíamos sensatamente concluir que as dimensões do pro-blema residem na importância crescente da psicologia na vida bur· guesa; esse problema psicológico poderia ser encarado como divorciado de questões sociológicas de participação e de ação em grupo. Mas na realidade houve uma troca. Aumentou a preocupação com as questões

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relativas ao cu, tmquanto a participação com estranhos para

finali-dades soci1!is diminuiu - ou essa participação perverteu-se com a

questão psicológica. Em grupos comunitários, por exemplo, as pessoas sentem que precisam chegar a se conhecer umas às outras enquanto pessoas, a fim de atuarem juntas; ficam então presas a processos imo-bilizantes para se revelarem umas às outras enquanto pessoas e vão gradualmente perdendo o desejo de atuarem juntas.

O desejo de revelar a própria personalidade no trato social e de avaliar a ação social cm termos daquilo que esta mostra das

personali-dades das outras pessoas pode ser rotulado de suas maneiras. Ê,

pri-meiramente, um desejo de se autenticar enquanto ator social por meio <lc suas qualidades pessoais. O que torna uma ação boa (isto é,

autên-tica) ê a personalidade daqueles que nela se engajam, e não a ação em

si mesma. Quando alguma pessoa é considerada autêntica, ou quando

a sociedade como um todo é descrita como criadora de problemas de

autenticidade humana, a linguagem revela um caminho onde a ação social está sendo desvalorizada nesse procedimento de se <lar mais peso aos assuntos psicológicos. Por uma questão de senso comum, sabemos que bons homens cometem más ações, mas esta linguagem de auten· ticidade faz com que seja difícil nos servirmos do senso comum.

O desejo de autenticar a si mesmo, suas motivações, seus senti-mentos é, cm segundo lugar, uma forma de puritanismo. Não obstante a liberação de nossa sexualidade, estamos dentro da órbita de auto-justificação, que definia o mundo do puritano. Isto acontece por uma

r~1zão específica: os sentimentos narcisistas não raro se concentram cm questões obsessivas; se sou bum o bastante, se sou adequado, e assim por diante. Quando urna sociedade mobiliza tais sentimentos, quando esvazia o caráter objetivo da ação e dilata a importância dos estados emocionais subjetivos dos agentes, estas questões de autojustificaçào, através de um "ato simbólico", vêm sistematicamente à tona. A troca que vem ocorrendo entre preocupação pública e preocupação privada, ao mobilizar estas questões obsessivas da legitimidade do eu, tornou a despertar os mais corrosivos elementos da ética protestante, em uma niltura que já deixou de ser religiosa mas que tampouco está

convcn-cícla de que a riqueza material é uma forma de capital moral.

A troca entre uma maior absorção psíquica e uma menor parti-dpação social pode ser facilmente mal interpretada como um problema psicológico. Poder-se-ia dizer que as pessoas estão perdendo a "von-ladc" de atuarem socialmente, ou que estão perdendo o "desejo''. Fslas palavras, enquanto estados puramente psicológicos, induzem ao

nrn porque não explicam como toda uma sociedade poderia perder

(12)

~ua v1111lade ou mudar seus desejos, a um só tempo. lndu1.em ainda 111a is ao erro ao sugerirem uma solução terapêutica para tirar as pes-'i11as ilesse aulo-cnvolvimento - como se o ambiente que fez ruir sua v1111 fade social e transformou seus desejos pudesse repentinamente

n:1:chi:.r de hraços abertos individuos totalmente mudados.

KH'AÇO PÚBLICO MORTO

A visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio pú-blico é abandonado, por estar esva1.iado. No mais físico dos níveis, o ambiente incita a pensar no domínio público como desprovido de sen-tido. É o que acontece com a organização do espaço urbano. Arquitetos que projetam arranha-céus e outros edifícios de grande porte e alta densidade se vêem forçados a trabalhar com as idéias a respeito da vida pública, no seu estado atual, e de fato se incluem entre os poucos profissionais que por necessidade expressam e tornam esses códigos manifestos para outrem.

Um dos primeiros arranha-céus de puro estilo da Escola Inter-nacional, construídos após a Segunda Guerra Mundial, foi a Lever House de Gordon Bunshaft, na Park Avenue, em Nova York. O andar térreo da Lever House é uma praça ao ar livre, um pátio com uma torre que se ergue na face norte e, a um andar acima do térreo, uma estru· tura baixa em torno dos três lados restantes. Mas deve-se passar por debaixo dessa ferradura baixa para se penetrar da rua no pátio; o nível da rua é espaço morto. Não há diversidade de atividades no andar tér-reo: é apenas uma passagem para o interior. A forma desse arranha-céu Internacional está em desacordo com a sua função, pois uma praça pública em miniatura é formalmente declarada, mas a função destrói a nature1.a de uma praça pública, que é a de mesclar pessoas e di versi-ficar atividades.

Essa contradição fa7. parte de um conflito maior. A Escola Inter-nacional dedicava-se a uma nova idéia d~ visibilidade na construção de grandes edifícios. Paredes quase inteiramente de vidro, emolduradas por estreitos suportes de aço, fazem com que o interior e o exterior de um edifício se dissolvam, até o menor ponto de diferenciação; essa tec-nologia permite a realização daquilo que S. Giedion chama o ideal da parede permeável, o máximo em visibilidade. Mas essas paredes de-vem ser também barreiras herméticas. A Lever House foi precursora de um conceito de design no qual a parede, embora permeável, também isola as atividades desenroladas no interior do edifício da vida da rua.

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Nesse conceito de projeto, a estética da visibilidade e o isolamento so-cial se fundem.

O paradoxo do isolamento em meio à visibilidade nào é privativo de Nova York, tampouco os problemas específicos da criminalidade em Nova York constituem uma explicação suficiente da inércia do espaço público num projeto como esse. No Brunswick Centre, construído no

bairro de Bloomsbury, em Londres, e no complexo de escritórios de üéfcnse, em construção na extremidade oeste de Paris, o mesmo para-doxo se verifica e resulta na mesma área pública morta.

No Brunswick Centre, dois enormes complexos de apartamentos se erguem para fora de um grande espaço aberto de concreto; os edi-fícios de apartamentos vão diminuindo a cada andar, de tal modo que cada um deles parece uma cidade com jardiris suspensos localizados numa colina. Na sua maioria, as sacadas dos apartamentos do Bruns-wick Centre são envidraçadas; desse modo, o morador do apartamento dispõe de uma parede de estufa, que deixa passar muita lu1. e rompe a

harreira entre exterior e interior. Essa permeação entre a cidade e o espaço interno é curiosamente abstrata. Tem-se a agradável percepção do céu, mas os edifícios estão dispostos de maneira a não ter nenhu-ma relação com os edifícios de Bloomsbury ao seu redor, nem vista para eles. Na verdade, os fundos de um dos blocos de apartamentos, revestidos de concreto sólido, dão para, ou melhor, nem tomam conhe-ri mento de uma das mais belas praças de Londres. O edifkio está loca-li1.ado como se pudesse estar em qualquer parte, o que vale dizer que seus projetistas não tinham a sensação de estarem em nenhum local específico, muito menos em um meio urbano extraordinário.

A verdadeira lição do Brunswick Centre está contida no seu pátio central aberto. Existem ali algumas lojas e vastas áreas de espaço vazio.

J~ uma área de passagem, não de uso; sentar em um dos raros bancos de concreto do pátio, durante qualquer espaço de tempo, deixa-nos profundamente sem jeito, como se estivéssemos em exibição em um vasto hall de entrada vazio. O pátio ''público" do Centre está em ver· dade protegido contra as principais ruas contíguas a Bloomsbury por

1l11as imensas rampas ladeadas por cercas; o próprio pátio se ergue a alguns metros acima do nível da rua. Tudo foi feito. mais uma ve1., para isolar a área pública do Brunswick Centre de incursões acidentais vindas da rua, ou simplesmente das pessoas que passeiam, assim como a localização dos dois blocos de apartamentos isola com eficácia seus nwradores da rua, do pátio e da praça. A afirmação visual feita pelo dclalhamento da parede da estufa diz que interior e exterior da mora-dia não têm diferenciação; a declaração social feita pelo pátio, pela

(13)

loç;tlita\·im dD 1.·omplcxo e pelas rampas diz que uma imensa barreira \\'I '" rn o" i11 l\'rinr" do Brunswick Centre do "exterior".

A -;upn.:ssào do espaço público vivo contém uma idéia ainda mais 1wrvl·r-;a: a de fa:t,cr o espaço contingente às custas do movimento. No n·litrn da Dl-fcnse, tal como ocorre na Lever House e no Brunswick < ·(·11 l rr. 11 csp;11;0 público destina-se à passagem, não à permanência. Na ()~h:nsc. as área~ em redor da massa dos altos edifícios de escritô-1 i(ls que compõem o complexo contêm algumas lojas, mas a sua

verda-<kíra finalidade é a de servirem como passagem, do automóvel ou do (mibus, para os edifícios de escritórios. Há poucos sinais de que os encarregados do projeto da Défense atribuíssem àquele espaço qual

-quer valor intrínseco ou achassem que as pessoas vindas dos vários edifícios pudessem querem permanecer nele. O solo, segundo as pala

-vras de um dos encarregados do planejamento, é "o nexo de apoio ao fluxo de tráfego para o conjunto vertical". Traduzido, isto significa que o espaço público se tornou uma derivação do movimento.

A idéia do espaço póblico como derivação do movimento corres-ponde exatamente às relações entre espaço e movimento produzidos pelo automóvel particular. Não se usa o carro para ver a cidade; o auto-móvel não é um veículo para se fazer turismo - ou melhor, não é usado cumo tal, a não ser por motoristas adolescentes que saem para dar uma volta de carro sem permissão do dono. Em vez disso, o carro dá liber-dade de movimentos; pode-se viajar sem ser interrompido por paradas obrigatórias, como as do metrô, sem mudar a sua forma de movimento. de ônibus, metrô, via elevada ou a pé, ao ir do lugar A para o lugar B.

As ruas da cidade adquirem então uma função peculiar: permitir a movimentação; se elas constrangem demais a movimentação, por meio de semáforos. contramãos, etc., os motoristas se zangam ou ficam ner -vosos.

Atualmente, experimentamos uma facilidade de movimentação desconhecida de qualquer civilização urbana anterior à nossa, e no en -tanto a movimentação se tornou a atividade diária mais carregada de ansiedade. A ansiedade provém do fato de que consideramos a movi

-mentação sem restrições do indivíduo como um direito absoluto. O automóvel particular é o instrumento lógico para o exercício desse di

-reito, e o efeito que isso provoca no espaço público, especialmente no espaço da rua urbana, é que o espaço se torna sem sentido, até mesmo endoidecedor, a não ser que possa ser subordinado ao movimento livre. A tecnologia da movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um desejo de eliminar as coerções da geografia.

Assim, a concepção de design para uma Oéfense ou para l!-ma Lever House se aglutina com a tecnologia dos transporte~. Em ambas,

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uma vez que se tornou função da movimentação, o espaço público perde todo sentido próprio independente para experimentação.

Até agora, empregamos o termo ''isolamento" em dois sentidos: cm primeiro lugar, significa que os habitantes ou os trabalhadores de uma estrutura urbana de alta densidade são inibidos ao sentirem

qual-quer relacionamento com o meio no qual está colocada essa estrutura. Em segundo lugar, significa· que, assim como alguém pode se isolar em um automóvel particular para ter liberdade de movimento, também dei.ica d1; acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade da própria locomoção. Existe ainda um terceiro sentido, um sentido um tanto mais brutal de isolamento social em locais públicos, um isolamento produzido direta-mente pela nossa visibilidade para os outros.

A idéia de uma parede permeável é aplicada por mui1os arqui-tetos, tanto dentro de seus prédios quanto do lado de fora. As barrei-ras visuais são destruídas pela supressão das paredes divisórias de escri-lúrios. de modo que andares inteiro~ se tornem um vasto espaço abcr-lo ou, ainda, que haja um conjunto de escritórios privativos locali-:t.adns no perímetro, com uma ampla ãrca interna aberta. Essa des-truição de paredes, adiantam os planejadores de escritórios, melhora o desempenho dos escritórios, pois, quando as pessoas se encontram du-rante todo o dia expostas visualmente umas às outras, é menos provável que haja lugar para conversinhas e mexericos e mais provável que

!5-uharn urna atitude reservada. Quando to<los estão se vigiando n1utua- ~ mente, diminui a sociabilidade, e o silêncio é a única forma de prole-

!

~

\';"lo. O projeto do escritório cm andar aberto leva ao extremo o para-

J

dnxo da visibilidade e do isolamento, um paradoxo que pode também~

\cr enunciado inversamente. J\s pessoas são tanto mais sociáveis quanto ~ mais tiverem entre elas barreiras tangíveis. assim como neces.'iitam de ' ~~ locai-. específicos. em público. cujo propósito único seja reuni-las. Em

nulros termos. diríamos: os seres humanos precisam manter uma certa distância da observação intima por parte do outro para poderem sen- / lir -;e saciáveis. Aumentem o contato íntimo e diminuirão. a sociabiii/ <bde. Esta é a lógica de um tipo de eficiência burocrática.

O espaço público morto é uma das razões, e a mais concreta ddas, pelas quais as pessoas procurarão um terreno íntimo que cm h'rritório alheio lhes é negado. O isolamento em meio à visibilidade p1"1hlil.'a e a exagerada ênfase nas transações psicológicas se comple-rnrnlam. Na medida em que alguém. por exemplo. sente que deve se pnilcgcr da vigilância dos outros no âmbito público, por meio de um i""larncuto silencioso, compensa isso expondo-se para aqueles com qtll'lll tiucr fazer contato. A relação complementar existe então, pois

(14)

-;;'10 duas n press\ies de uma única e geral transformação das relações

\11riais. À';i vc~.es, penso nessa situação complementar em termos das

11d1wa ras criada!> para o eu pelas boas maneiras e pelos rituais de po-Ji,k1 .. Essas 111its<.:aras deixaram de ter importância em situações

im-pn.~uais. 1111 parecem ser propriedade exclusiva dos esnobes; em rela

-l'ionamcntos mai~ íntimos. parecem impedir que se conheça outra pes -!\oa. F me pergunto ~e esse despre7.o pelas máscaras rituais da socia -bilidade não nm tornou, na realidade, culturalmente mais primitivos

do que a mais simples tribo de caçadores e catadorcs.

Um cio ligando a maneira pela qual as pessoas encaram as suas

relações sexuais e aquilo que experimentam na rua pode parecer arti-ficioso. E, mesmo que se concorde quanto à existência de tais conexões entre as modalidades da vida pública e da vida pessoal, poder-se-ia objetar, com razão, que elas têm raízes pouco profundas do ponto de vista histórico. Foi a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao se libertar das repressões sexuais.

E

nessa mesma geração que se operou a maior parte da destruição física do domínio público. A tese deste livro é a de que esses sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada ficaram ·por muito tempo incubados. São resultantes de uma mudança que

co-meçou com a queda do Antigo Regime e com a formação de uma nova cultura urbana, secular e capitalista.

AS MUDANÇAS NO DOMÍNIO PÚBLICO

A história das palavras "público" e '·privado" é uma chave para se compreender essa transformação básica em 1ermos de cultura oci

-dental. As primeira:; ocorrências da palavra "público" cm inglês iden

-tificam o "público" com o hem comum na sociedade. Em 1470, por exemplo, Malory Ialou do imperador Luclus '•( ... ) ditador ou procura -dor do bem p1iblico em Roma". Setenta anos mais tarde, havia-se acrescentado a() sentido de público aquilo que é manifesto e está aberto à observação geral. Hall escreveu na sua Chronicle (Crônica} de 1542: "Seu ressentimento não conseguia se refrear, mas protestava cm locais públicos e também em locais privados". Aqui, '·privado" foi empre-gado para significar privilegiados, um alto escalão do governo. Perto do século XVII a oposição entre "público" e "privado" era matizada de modo mais semelhante ao de seu uso atual. "Público" significava aberto à observação de qualquer pessoa, enquanto "privado" significava uma região protegida da vida, definida pela família e pelos amigos. Como Steele, num número da Tatler de 1709: "estes efeitos ( ... ) sobre as

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;1,·\1cs públicas e privadas dos homens''; e Butlcr, nos Sermuns (Ser-milcs) ( 1726): "todo homem deve ser considerado em dois níveis, o pri-1·;1clo e o público". ''Sair em público'' (Swift) é uma expressão baseada 11a sociedade concebida em termos de geografia. Em nossos dias, os

\t'.nlidos mais antigos não se perderam em inglês, mas este emprego do Sl'l'ulo XVIII estabelece os padrões modernos de referência.

Os significados atribuídos a te rmblic na França mostram algo -;cmelhante. No Renascimento, a palavra era utili7.ada com um sentido amplo, cm termos do bem comum e do corpo político; gradualmente. li-public foi se tornando também uma região especial da sociabilidade. Erich /\uerbach fez um estudo meticuloso dessa definição mais mo-derna de "o público", que surge primeiramente na frança cm meados do século XVII. quando estava ligado ao público-platéia das peças tea-trais. Esse público de teatro era designado, na época de Luís XIV, pela cxpressfto capciosa la cour et

tu

ville ("a cort1:;, ou o quintal, e a ci-dade''). Auerbach descobriu que de fato esse público teatral consistia <lc um grupo de pessoas de elite - uma descoberta óbvia em termos da vida da corte, mas não tão óbvia em termos da vida citadina. /,u w'/le de Paris do século XVII era um grupo muito reduzido cujas origens eram não-aristocráticas e mercantis, mas cujas maneiras tentavam apagar tal fato, não apenas por vergonha, mas a fim de facilitar o intercâmbio com a corte.

O sentido de quem era "o público" e de onde se estava quando se saía "cm público" ampliou-se no início do sé cu lo XV II J. tanto cm Paris quanto cm Londres. Os burgueses passaram a se preocupar menos em

encobrir suas origens sociais. uma vez que havia um número muito

maior de burgueses. As cidades onde moravam estavam se tornando

um mundo em que grupos muito diversos estavam entrando cm contato na sociedade. Na época em que a palavra ''público" já havia adquirido

seu significado moderno, portanto. ela significava não apenas uma re-gião da vida social localizada em separado do âmbito da familia e dos amigos íntimos, mas também que es<>e domínio público dos conheci -cidos e dos estranhos incluía uma diversidade relativamente grande de pessoas.

Há um termo logicamente associado a um público urbano di-verso: ·•cosmopolita". De acordo com o emprego francês registrado em

t

738, cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupada-mente em meio à diversidade, que está à vontade em situaçôt:s sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar. Esse mesmo sentido da palavra surgiu em inglês mais cedo do que cm fran-cês, embora não fosse muito usado até o século XVIII. Por causa dos novos hábitos de se estar em público, o cosmopolita tornou-se o homem

(15)

p.-.hlin> pn kitu. lJ111 antigo emprego cm inglês prenunciava o sentido

n111111111 d;1 palavra na sociedade burguesa do século XVIII. Em uma da~ /,·ffl'l's (Carias), Howell (1645) escreveu: "Entrei no mundo aos

l 111111.t~·m·'· 11111 puro cadete. um verdadeiro cosmopolita. nascido sem l\'11,1,, 1 ~·11da'>. ca\a ou cargo". Sem riqueza herdada nem obriga~·ào ll'lld.il herdada. o cosmopolita. l.eja qual for o !>eu gosto pela djversi

-d11dc 111u11da11a. necessariamente tem que abrir caminho dentro dela.

üc~'ª maneira. "público" veio a significar uma vida que se passa

ftlra da\ ida da família e dos amigos íntimos; na região pública. grupos ~ociais complexol> e díspares teriam que entrar cm contato inelu

lavel-mente. E o centro des!.a vida p(1blica era a capital.

Esl.a!. mudanças de linguagem estavam relacionadai. com condi-ções de comportamento e modos de crença na "cosmópolis" do sé-culo XVIII. À medida que as cidades cresciam e desenvolviam-se redes de sociabilidade independentes do controle real direto. aumentaram os locais onde estranhos podiam regularmente se encontrar. Foi a época da construção de enormes parques urbanos, das primeiras tentativas de se abrir ruas adequadas à finalidade prccípua de passeio de pedestres. como uma forma de lazer. Foi a época cm que cafés (cojfeehouses) e mais tarde bares (ca/es) e estalagens para paradas de diligê11cias torna

-ram-se centros sociais; época cm que'o tcalroe a ópera se abriram para um grande público graças à venda aberta de entradas. no lugar do an-tigo costume pelo qual patrocinadores aristocráticos distribuíam

luga-rc!>. A diiu<;ào das comodidades urbanas ultrapassou o pequeno círculo

d:1 cli1c e alcançou um espectro muito mais abrangente da sociedade, de modo que até mesmo as cl<1sses laboriosas começaram a adotar al-gu nc, hábitos de sociabilidade. como passeios em parques, antes terreno

exclusivo da elite. caminhando por seus jardins privativos ou ''prom o-\ Cndo" uma noite no teatro.

No campo das necessidades, como no campo do lazer, surgiram

padrões de interação social adequados ao intercâmbio entre estranhos

e que não dependiam de privilégios feudais fixos nem do controle monopolista estabelecido por favores régios. O mercado urbano do s6-culo XVIII era dikrenic de seus predecessores medievais ou do Renas -cimento: sendo internamente competitivo, aqueles que nele vendiam competiam para atrair a atenção de um grupo murável e amplamente dcseonl1ecido de compradores. Ã meruda que a economia de mercado se expandiu, e as modalidades de crédito. de contabilização e de inv es-timento tornaram-se mais racionalizadas. os negócios eram realizados cm escritório e lojas e numa base cada vez mais impessoal. Fica claro

que seria errôneo imaginar que a economia ou a sociabilidade dessas cidades em expansão tomaram de um só golpe o lugar das modalidades

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mais antigas de negócios ou de prazer. Melhor é dizer que modalidades

snbrevivcntes de obrigação pessoal se justapuseram a novas modalida

-des de interação, adequadas a uma vida levada entre estranhos, sob condições de uma expansão empresarial regulamentada de forma dife-rente_

Tampouco seria correto imaginar que o fato de forjar um vínculo social adequado a uma cidade em expansão e a uma classe burguesa

ampliada fosse indolor ou justo. Procurava-se ansiosamente criar mo -dalidades de discurso, e até mesmo de vestuário, que ordenassem a

nova situação urbana e que também demarcassem essa vida. separa

n-do-a do domínio da família e dos amigos. Nessa busca dos princípios da

ordem pública, freqüentemente recorriam a modalidades de discurso,

vestuário ou interação, adequados logicamente u uma época em via de desaparecimento, e lentavam forçar essas modalidades a terem ~ignifi­ cado dentro de condições novas e antipática!>. Nesse processo, muitas

iniqüidades próprias à sociedade do final da Idade Média, agora

trans-plantadas num terreno estranho, tornaram-se ainda mais dolorosas e opressivas. Não é necessário romantizar a vida pública do Antigo Re-gime para apreciá-la; a tentativa de criar uma ordem social em meio a condições sociais caóticas e confusas trouxe consigo ao mesmo tempo

as contradições do Antigo Regime. levando-as a um ponto de crise. e criou oportunidades positivas para a vida em grupo que ainda preci -savam ser entendidas.

Assim como no comportamento, também na crença os cidadãos

das capitais do século XVIII tentavam definir tanto o que era a vida pública quanto aquilo que ela não era. A linha divisória entre vida privada e vida pública constituía essencialmente um terreno onde as

exigências de civilidade - encarnadas pelo comportamento público,

cosmopolita - eram confrontadas com as exigências da nature1a -encarnadas pela família. Os cidadãos viam conflito entre essas

exigên-cias; e a complexidade dessa visi10 residia no fato de que se recusavam a preferir uma em detrimento da outra. mantendo ambas cm um estado

de equilíbrio. Comportar-se com estranhos de um modo emociona l-mente satisfatório, e no entanto permanecer à parte deles, era co

nsi-derado em meados do século XVIII como um meio através do qual o

animal humano transformava-se em ser social. As condiçê)es para a paternidade, ou maternidade, e para amizades profundas eram con si-deradas por sua vez como potencialidades humanas, ao invés de c

ria-ções humanas; enquanto o homem se fazia em público, realiza1•u sua natureza no domínio privado, sobretudo cm suas experiências dentro

da família. As tensões entre as exigências de civilidade e os direitos da

nature:ta, manifestadas na partilha entre vida pública e vida prirnda no

(16)

l'1°11I m ('osmopolita. não apenas se espalharam pela alta cultura da época l'ttnw t :1111h{·n1 a esferas mais mundanas. Essas tensões transpareciam

m1' n1:11111ai' snbrc a criação dos filhos, nos folhetos sobre obrigações , 11111rais t' ncnças de senso comum sobre os direitos do homem. Juntos,

':11

público e o privado criavam aquilo que hoje chamaríamos um

''üili

-: Vl'rso" de relações sociais.

/\. lutn pela ordem pública na cidade, no século XVIII, e a tensão (•ntrc as exigências da vida pública e da vida privada constituíam os elementos de uma cultura coerente, embora fossem, como o são, em

qualquer período, exceções, desvios, modalidades alternativas. Mas

realmente existiu um equilíbrio entre a geografia pública e privada no fluminismo, e contra isso toma grande relevo a mudança fundamental nas idéias de público e privado, que se seguiram às grandes revoluções

no final do século, e a ascensão de um capitalismo industrial nacional

em tempos mais modernos.

Três forças estavam em ação nessa mudança: em primeiro lugar, um duplo relacionamento que no século XIX o capitalismo industrial veio a ter com a vida pública nas grandes cidades; em segundo lugar, uma reformulação do secularismo, que começou no século XIX e que afetou a maneira como a.e; pessoas interpretavam o estranho e o desco-nhecido; e, em terceiro lugar, uma força, que se tornou uma fraqueza,

embutida na própria estrutura da vida pública no Antigo Regime. Essa

força significava que a vida pública não teve morte instantânea sob o peso da sublevação social e política do final do século XVIII. A geo-grafia pública se estendeu pelo século XIX adentro, aparentemente intacta, mas efetivamente transformando-se em seu interior. Essa h e-rança afetou as novas forças do capitalismo e do secularismo, na mes -ma medida em que tais forças atuavam sobre ela. Pode-se pensar na transformação da vida pública como tendo sido semelhante ao

co-lapso que atinge atletas que foram excepcionalmente fortes, de modo

que sobrevivem além da juventude com poderes aparentemente in-tactos, e subitamente manifestam a decadência que estivera dilapi-dando os seus corpos continuadamente, por dentro. Devido a essa

for-ma peculiar de sobrevivência, os sinais do "publicismo" (publicness)

do Antigo Regime não estão assim tão distantes da vida moderna, como a principio se poderia imaginar.

A dupla relação do capitalismo industrial com a cultura pública

urbana repousava, em primeiro lugar, nas pressões de privatização que

o capitalismo suscitou na sociedade burguesa do século XIX. Residia, em segundo lugar, na "mistificação" da vida material em público, es

-pecialmente em matéria de roupas, causada pela produção e distri

-buição em massa.

34

Os traumas do capitalismo do século XIX levaram aqueles qul'

detinham tais meios a se protegerem de todas as maneiras possíveb contra os choques de uma ordem econômica que nem vitoriosos nem vítimas entendiam. Gradualmente, a vontade de controlar e de moldar

a ordem pública foi se desgastando, e as pessoas passaram a enfatizar

mais o aspecto de se protegerem contra ela. A família constituiu-se num desses escudos. Durante o século XIX, a família vai se revelando cada vez menos o centro de uma região particular, não pública, e cada

vez mais como um refúgio idealizado, um mundo exclusivo, com um

valor moral mais elevado do que o domínio público. A família burguesa

tomou-se idealizada como a vida onde a ordem e a autoridade eram incontestadas, onde a segurança da existência material podia ser con·

comitante ao verdadeiro amor marital e as transaç<>cs entre membros

da família não suportariam inspeções externas. Na medida em que a família se tornou refúgio contra os terrores da sociedade, também se tornou gradativa.mente um parâmetro moral para se medir o domínio

público das cidades mais importantes. Usando as relações familiares

como padrão, as pessoas percebiam o domínio público não como um

conjunto limitado de relações sociais, como no Iluminismo, mas cons i-deravam antes a vida pública como moralmente inferior. A privacidade

e a estabilidade pareciam estar unidas na família; é em face dessa ordem

ideal que a legitimidade da ordem pública será posta em questão. O capitalismo industrial estava também, e diretamente, em ati-vidade na vida material do próprio domínio público. Por exemplo. a

produção em massa de roupas e o uso de padrões de produção em

massa para alfaiates ou costureiras significavam que diversos

seg-mentos do público cosmopolita começavam de um modo geral a adotar uma aparência semelhante e que as marcas públicas estavam per-dendo suas formas distintivas. Contudo, virtualmente, ninguém acre-ditava que com isso a sociedade estivesse ficando homogeneizada; a máquina significava que as diferenças sociais - diferenças impor-tantes, necessárias para se saber da própria sobrevivência, num meio de estranhos e em rápida expansão - tornavam-se ocultas, e o es-tranho, cada vez mais intratável, como um mistério. A produção de

uma ampla variedade de mercadorias pela máquina, vendidas pe~a

primeira vez numa instalação própria para o comércio de massa, a loja de departamentos, teve êxito junto ao público, não por intermédio dos

apelos à utilidade ou ao preço barato, mas ao capitalizar essa mist~fi­ cação. Mesmo quando se tornaram mais uniformes, as mercadonas físicas foram dotadas, ao serem apregoadas, de qualidades humanas,

de maneira a se tornarem mistérios tentadores que tinham de ser pos

-suídos para ser compreendidos. Marx chamou a isso de "o

fetichis-35

(17)

lllll d:is 1t1\·r~·:td\1rias". Ele foi apenas um dentre os muitos que se im -pn·-..~1011ar;1111 <.:1>m a confluência da produção cm massa, a h"mo -1~1·111·i1.a\·ap da aparên<.:ia e, mais ainda. com o fato de se revestir coisas 11tak1 Í;ti., ç,1111 atributos ou associações próprias à personalitladc ín

-11111;1.

/\ iu1craçi\o du capitalismo e da geografia pública ia em duas di

-n·~·n\'~: uma afastava-se do público, em direção à família; a outra pro -111ov1a uma nova confusão, envolvendo os materiais da aparência em

púhli<.:o, confusão essa que podia, contudo, ser transformada cm lucro.

1

1'.odcmus então ser tentados a concluir que o capitalismo industrial so

-zinho fe:.c com que o domínio público perdesse legítimidade e coerência. Mas essa conclusão seria inadmissível mesmo em seus próprios termos. Afinal, o que levou o público a acreditar que bens materiais tão uni

-formes poderiam ter associações psicológicas? Por que acreditar em urna coisa, como se ela fosse humana? O f.ato de que essa crença era lucrativa para alguns não explica por que ela deveria ser aceita pur uma multidão.

Essa questão envolve a segunda força que mudou a vida pública

herdada do Antigo Regime, uma mudança em termos da crença sobre

a vida terrena. Essa crença é a secularidade. Enquanto se pensar que o

secular se opõe de algum modo ao sagrado, a palavra se torna

unídi-mensional e fixa. Torna-se melhor usada como um conjunto de

ima-gens mentais e de simbolos que tornam compreensíveis as coisas e as

\ p_essoas. Acho que a diferença é a seguinte: a secularidade é a

con-v1cção, antes de morrermos, de que as coisas são como são, uma

con-vicção que cessará de ter importância por si mesma assim que mor

-rermos.

Os termos seculares mudaram drasticamente entre o século

XVIII e o XIX. "As coisas e as pessoas" eram algo de compreensível no

século XVIII. quando se lhes podia atribuir um lugar dentro da ordem

da natureza. Essa ordem da natureza não era algo tangível, físico. nem

a ordem estava sempre encapsulada pelas coisas terrenas. Uma planta

ou uma paixão ocupavam um lugar na ordem da natureza, mas não a

definiam em miniatura nem no .todo. A ordem da natureza era por

-tanto uma idéia da secularidade, como o transcendental. Não somente

essa idéia permeava os escritos dos cientistas e dos outros intelectuais,

como também atingia assuntos cotidianos como as atitudes relativas à

disciplina dos filhos ou à moralidade dos casos extrnconjugais.

O secularismo que surge no século XIX era de um tipo comple·

tamente oposto. Baseava-se cm um código do imanente, de preferência ao transcendente. Sensações imediatas, fatos imediatos, sentímcntos

imediatos já não tinham que se encaixar em um esquema preexistente

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para serem entendidos. O imanente, o instante, o fato eram realidade em si e por si mesmos. Os fatos são mais fiã veis do q uc o sistema - ou. melhor dizendo, a sucessão lógica dos fatos tornou-se sistema. A ordem da naturcz.a do século XVIII, na qual os fenômenos tinham um lugar. mas na qual a natureza transcendia os fenômenos, foi assím s1.1hvertida. hSSa nova medida daqui!" que poderia servir como matéria para crença regulou a psicologia, assim como regulou o estudo dos objetos físicos.

Por volta de 1870, parecia plausível estudar "uma emoção'' como algo contendo um significado independente, como se fosse possível des-cobrir todas as circunstâncias tangíveis nas quais a ''emoção'º surgiria e os sinais tangíveis por intermédio dos quais a "emrn,:ào" se tornaria manifesta. Não se poderia, portanto. excluir qualquer cin:unstância ou sinal, a priori, como irrelevante. Num mundo onde a imanência é o princípio do conhecimento secular, tudo tem importância, porque tudo poderia ter importância.

Essa reestruturação do código de conhecimento secular teve um efeito radical sobre a vida pública. Significava que as aparições em público, por mais mistificadoras que fossem, ainda tinham de ser le-vadas a sério, porque poderiam constituir pistas da pessoa oculta por trás da máscara. Qualquer aspecto visível da pessoa era de algum modo verdadeiro, porque tangível; de fato, se essa aparência era um místério, essa era uma razão a mais para que fosse levada a sério. Baseado em que motivos justificados poderia alguém, a priori, esquecê-Ia ou discri-minã-la? Quando uma sociedade se dedica ao princípio de que as coi-sas têm significações nelas próprias, faz. desse modo penetrar um pro-fundo elemento de dúvida sobre si mesma no seu aparato cognitivo, pois qualquer cxerdcio de discriminação poderá ser um equívoco. É

as.sim que surge uma das maiores e mais enriquecedoras contradições do século XIX: mesmo quando as pessoas queriam fugir, fechar-se num domínio privado, moralmente superior, temiam que classificar arbitrariamente sua experiência em, digamos, dimensões públicas e privadas poderia ser uma cegueira auto-inflingida.

Fantasiar que objetos físicos tinham dimensões psicológicas tor· nou-se lógico dentro dessa nova ordem secular. Quando a crença era governada pelo princípio da imanência, ruíram as distinções entre o sujeito que apreende e o apreendido, o interior e o exterior, o sujeito e o objeto. Se tudo tem potencialmente importância, como posso estabe-lecer um limite entre aquilo que se relaciona com as minhas necessi-dades pessoais e aquilo que é impessoal, não relacionado com o campo imediato de minha experiência? Tudo pode importar, nada pode im-portar, mas como posso saber? Não devo, portanto, fazer nenhuma disHnçào entre categorias de objetos e de sensaçf>CS, porque ao

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