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UMBANDA: AQUÉM E ALÉM DE ORTIZ

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Academic year: 2021

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Thais Alves Marinho**

Resumo: Renato Ortiz é sem dúvida um proeminente cientista social brasileiro, que não se

limitou, no entanto, a alçar voos apenas dentro dos limites da ciência de sua for-mação universitária. Em sua tese de doutorado, intitulada “A morte Branca do fei-ticeiro Negro” traz uma análise peculiar da Umbanda no Brasil e inaugura a pos-sibilidade de pensarmos esse movimento religioso, como uma religião tipicamente brasileira. Eu advogo, nesse artigo, que a abordagem de Ortiz e as análises da participação do negro na cultura brasileira, apresentadas nessa obra, trazem ele-mentos para pensarmos a Umbanda a partir da perspectiva dos Estudos Culturais e subsidiam as discussões posteriores dentro do escopo dos estudos pós-coloniais.

Palavras-chave: Renato Ortiz. Umbanda. Estudos Culturais. Pós-colonialismo.

Afro-brasileiro.

E

m 2019, Renato Ortiz completa 72 anos. Sua trajetória de pesquisa e suas publicações foram fundamentais para o estabelecimento do campo das ciências sociais no Brasil. Suas obras, descrevem, um quadro evolutivo das questões culturais, com foco nos caminhos da construção nacional e suas relações com uma cultura mundializada, disseminada pelos meios de comunicação em massa. Aborda, em sua trajetória, distintas temáticas desde o luxo, à identidade japonesa, ao carnaval, às religiões afro-brasileiras e a

UMBANDA: AQUÉM

E ALÉM DE ORTIZ*

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* Recebido em: 12.09.2019. Aprovado em: 15.11.2019.

** Pós-Doutora em Ciências Sociais (UNISINOS). Doutora em Sociologia (UnB). Pro-fessora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PUC Goiás). Coor-denadora do Programa de Pós-Graduação em História da PUC Goiás. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento-CMD (CNPQ/UnB). Líder do Grupo de Pesquisa Memória Social e Subjetividade (CNPQ/PUC Goiás). E-mail: thais_marinho@hotmail.com

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construção do sincretismo. Sua incursão intelectual se destaca a partir de sua tese de doutoramento, “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, defendida em 1975 na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, sob orientação de Roger Bastide, que será foco de nossa análise nesse artigo, que tem como intuito principal destacar as contribuições desse relevante autor para o campo de estudos sobre a Umbanda.

Renato Ortiz, no prefácio à segunda edição, publicada em 1991, pela editora brasilien-se, do livro “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, declara sua dificuldade em encontrar escritos sobre as manifestações culturais “(d)o mundo negro no Brasil”, também sobre “as religiões de origem afro” à época em que elaborou sua tese de doutorado (que deu origem ao livro) defendida em 1975.

Ao situar a religião umbandista no contexto da história brasileira, dialoga com diver-sas disciplinas, como a antropologia, a sociologia, a história, a política, a geo-grafia, a ciências da religião, e a economia; ao mesmo tempo que desconstrói e rompe com teorias e correntes clássicas delas, tais como o culturalismo, o marxismo, o estruturalismo, o funcionalismo, a história política, e a fenome-nologia das religiões. Aciona, portanto, uma dimensão transdisciplinar, já que não é possível identificar as barreiras entre tais disciplinas em suas análises. Rompe, assim com fronteiras tradicionalmente estabelecidas nos departamen-tos e universidades, que viria a ganhar tônica apenas a partir da década de 1980, com o advento dos Estudos Culturais.

Em outro texto de sua autoria, intitulado Estudos Culturais, de 2004, Ortiz salientava sua surpresa quando em 1995, ao assistir uma conferência organizada por Hermann Herlinghaus, descobriu ser um praticante dos Estudos Culturais. Em 1996, o reconhecimento de seus trabalhos dentro dessa perspectiva se conso-lida, quando é convidado a participar, ao lado de Stuart Hall, Nestor Canclini e Jesus Martin Barbero, de uma pesquisa organizada pela Universidade de Stanford, sobre os representantes mais proeminentes dos Estudos Culturais. No entanto, embora tal reconhecimento internacional já tenha ocorrido, e apesar de os

próprios brasileiros terem dificuldades em perspectiva-lo dentro desse rol de atuação, acredito que Renato Ortiz tenha iniciado sua trajetória nos Estudos Culturais já em “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”. E é justamente essa a proposta desse artigo, pontuar como essa importante obra, de 1975, de Renato Ortiz, inaugura um novo campo de estudos e perspectivas teóricas no Brasil que possibilitam pensar a Umbanda a partir dos Estudos Culturais; e possi-bilita, também, que os estudiosos posteriores dessa manifestação religiosa a perspectivem dentro da lógica dos estudos pós-coloniais, abrindo um campo de análises ainda não explorados pelos brasileiros.

Os Estudos Culturais não são facilmente definíveis. Há quem diga que politicamente a melhor forma de enquadramento desse projeto seja um “bloco histórico”, em detrimento de ser um bloco teórico, ou de ser o pano de chão para uma nova disciplina (JAMESON, 1993), outros dizem que é um movimento ou uma rede (JOHNSON, 1986). Beverley (1992) indica que os estudos culturais em parte surgem como consequência do impacto desconstrutivo da cultura de

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massa nas ciências humanas e propõe não meramente a dissolução e fusão das diversas áreas que a compõe, mas uma abordagem que Gayatri Spivak (1999) chamou de transdisciplinar (ao invés de inter), cujos modelos incluem novas formas de Marxismo, feminismo, estruturalismo, pós-estruturalismo e desconstrução.

Assim os estudos culturais refletem precisamente a incorporação pedagógica do mate-rialismo e radicalismo cultural1, que buscam revisar as formas do

conhecimen-to acadêmico dentro e em conhecimen-torno das humanidades demandadas pelo presente estágio do capitalismo. Na América Latina, esses estudos têm se debruçado especialmente em torno dos problemas de identidade e subjetividade, dester-ritorialização, múltiplas lógicas sociais, novos movimentos sociais, críticas à modernidade e à paradigmas ancorados em epistemologias positivistas, inter-faces com teoria literária avançada etc.

SUPERANDO O CULTURALISMO

Renato Ortiz, ao considerar a Umbanda, enquanto manifestação cultural, declara que lhe interessa perceber as mudanças culturais e as situações nas quais o contato das religiões de matriz africana estabelecem com o catolicismo e o Kardecis-mo, eliminando, como ponto de partida, a lógica essencialista de um ponto de origem para o contato, como defendia Arthur Ramos (1942).

A agenda de desconstrução dos estudos culturais prioriza justamente essa noção gue-tizada e exogue-tizada de cultura, e, por conseguinte, de religião. Isso porque a necessidade do estabelecimento de uma essência, ou seja, “uma qualidade constitutiva fundamental, básica” e absolutamente necessária, é problemáti-ca, porque estabelece “uma falsa continuidade atemporal, uma distinção ou delimitação no espaço ou uma unidade orgânica”, que posteriormente, poderá ser usada politicamente contra o próprio grupo (WERBNER, 1997, p. 228). Tal fato ocorreria mediante o quadro de mudanças que toda cultura e reli-gião passam e que é usado como indicativo do desvirtuamento da essência do grupo, denunciado por muitos culturalistas como formas menos verdadeiras, portanto, ilegítimas de religião. Spivak (1990) salienta que o essencialismo, a partir do que ela chama de tokenização, também se configura como uma estratégia de silenciamento, uma vez que a permissão de existência e de fala se dá mediante a capacidade de representação dessa essência, o que limita e silencia os discursos dos grupos subalternizados.

Assim, Ortiz (1991) se inscreve na agenda de preocupações dos estudos culturais, ao desconstruir o culturalismo, sendo que para ele, o fenômeno da “aculturação” deve, portanto, ser analisado como parte integrante da sociedade global. Essa crítica já estava presente nas obras de Nathan Wachtel em 1976, em que ele salientava os choques que os encontros culturais promoviam, e que, embora haja uma imposição de valores, nada recíprocos, por parte dos dominantes, é possível observar que a cultura dominada ao integrar elementos da cultu-ra dominante, submete esses elementos à sua própria forma de pensamento.

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Logo, qualquer análise sobre os processos de “aculturação” deve considerar a cultura enquanto um sistema complexo, regido por relações globais.

Desta forma, a crítica de Ortiz (1991), amparada nos estudos de Balandier (1970), se faz importante por que evita o equívoco da escola culturalista de tomar a cultura como um sistema autônomo (ORTIZ, 1991). Esse esforço de esboçar a desconstrução essencialista da cultura, contribui para a arquitetura episte-mológica crítica às concepções dominantes de modernidade, pauta primordial dos estudos pós-coloniais (COSTA, 2006).

A Umbanda, para Ortiz (1991), passa a ser analisada a partir de sua relação com um conjunto mais amplo, que é a sociedade global, nesse caso, a moderna so-ciedade brasileira. Interessa-lhe indagar como “os valores afro-brasileiros se transformam para compor uma nova religião: a Umbanda” (p. 14). Embora, o foco de Ortiz recaia sobre a sociedade urbano-industrial e de classes, e de seu papel nas mudanças culturais das religiões afro-brasileiras, a análise litúrgica da Umbanda, feita por ele, inaugura a possibilidade de se perceber como os sujeitos históricos participantes do movimento de construção da Umbanda adaptam e ressignificam seus saberes, de forma reflexiva, diante das novas demandas do mundo moderno, sem, no entanto, abrirem mão de um núcleo de valores e práticas, que lhes constituem identitariamente.

Segundo Stuart Hall (2006), considerado um dos principais expoentes dos estudos culturais, uma das principais características da identidade (pós-moderna) é justamente seu caráter fragmentado e descentrado. Essa constatação, possi-bilita nos afastarmos de noções de pureza e de autenticidade ancestral, que inscreviam a Umbanda exclusivamente dentro do rol de religiões africanas (BASTIDE, 1971), comumente acionadas para falar dos povos em contextos diaspóricos; possibilita também, como faz Ortiz (1991) ao analisar a Umban-da, colocar o foco nas mesclas e práticas culturais de fronteira, que desestabi-lizam ordens pretensamente coesas, como a urbano-industrial brasileira. DESCONSTRUÇÃO DOS PARÂMETROS UNIVERSAIS DE RELIGIÃO

A análise de Ortiz (1991, p. 15) externaliza como “valores como a moral católica (noção de bem e mal), a racionalização, a escrita, se integram a um outro tipo de mo-ral e racionalidade, características estas dos cultos afro-brasileiros”. Como ele indica, o exercício de transmutação da Umbanda promove o reconhecimento social dessa nova religião pelo mercado religioso e se firma como um sistema religioso “novo”, tipicamente brasileiro. Por outro lado, ao realizar um estudo comparativo com o Candomblé, reconhece sua posição de rejeição ao mercado religioso ocidental, e sua busca em se firmar enquanto lembrete da “memória coletiva africana no solo brasileiro” (ORTIZ, 1991, p. 16). Tal tarefa é por ele realizada, sem, no entanto, evocar o essencialismo moderno de pureza africana, admitindo o ponto de vista estruturalista da bricolagem, por um lado, e por ou-tro, a operação de reconfiguração do campo discursivo que altera a importância das relações hierárquicas impostas pelos sistemas religiosos ocidentais.

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Tanto a abordagem da Umbanda como um sistema religioso tipicamente brasileiro, quanto à do Candomblé como um sistema religioso africano no Brasil, inau-guram a possibilidade de se pensar essas religiões fora dos parâmetros uni-versais absolutos que definem o que é religião. Do mesmo modo, percebe-se, a partir da análise de Ortiz (1991), que as religiões de matriz africana no Brasil são heterogêneas, não possuindo, portanto, uma consciência autêntica pré ou pós-diáspora, embora tenham ambas sido construídas nos marcos da “violência epistêmica” colonial, como salienta Spivak, fundamentadas no que Ortiz (1991) chama de religiões de importação (protestantismo, catolicismo e Kardecismo). Mesmo sem pretender, Ortiz se lança nessa análise, não como um representante dessa religião subalternizada que “ouve” sua voz conside-rada até então herética, mas como um intelectual que busca compreender os constrangimentos estruturais da sociedade moderna como cerceamento da re-sistência mediante a imposição de uma epistéme, que até então, lhe silenciara e lhe desqualificara.

Ademais, o exercício de desconstrução de Ortiz (1975), que o próprio Bastide (1973) iniciara ao indicar que a Umbanda passara de um sincretismo espontâneo para um refletido, contrapondo a si mesmo (BASTIDE, 1971) quando consi-derava a Umbanda uma religião negra, é ousado. Ao reinterpretar a história brasileira, busca reinserir, reinscrever o negro na modernidade, não como um mero colonizado, mas como sujeitos que, apesar dos “efeitos destrutivos que o tráfico e o sistema escravista imprimiram nos costumes africanos” (p. 21), conseguiram encarnar em solo brasileiro a memória coletiva negra, o culto de grande parte dos deuses africanos, práticas e costumes por meio de danças como o lundu, ou das embaixadas dos reis congos.

Embora essa argumentação pareça evocar novamente o essencialismo, como já indica-ra Lowe (1991), ao refletir sobre os indianos, é possível postular significantes específicos, como a negritude ou africanidade, com o propóstio de “inter-romper discursos que excluem” os negros “na qualidade de Outro, ao mesmo tempo revelando os deslizes e contradições internos” da “negritude/africani-dade”, de maneira a garantir que o significante “negritude/africanidade” seja reapropriado pelo próprio esforço de criticar seu uso. Essa é uma postura ex-tremamente condizente com a lógica de muitos teóricos pós-coloniais, como a própria Spivak (1996, p. 214), que indica que para se “evitar as armadilhas do determinismo histórico” ou da “imutabilidade estereotipada” é possível “usar o essencialismo de forma prudente e conscienciosa”, no que ela chama de “essencialismo estratégico”, “um uso estratégico do essencialismo positivista com um interesse político escrupulosamente manifesto”.

Em defesa de Arthur Ramos (1942), preciso mencionar que talvez sua visão do essen-cialismo da africanidade se inscreva também nessa categoria, mesmo que ele não tenha feito de forma intencional. Enquanto estudioso dos afro-brasileiros, num Brasil racista, onde há claramente uma disputa, a estratégia de exaltar uma essência negra e/ou africana nas manifestações afro-brasileiras serviram ao propósito de formar uma área de estudos afro-brasileiros para contrapor

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o esquecimento ou descuido da academia predominante em desconsiderar as contribuições das manifestações africanas e afro-brasileiras para a cultura nacional. Nesse aspecto, Ramos (1942) supera seu mentor, Nina Rodrigues (1932), ao refutar a tese das desigualdades raciais, bem como a tese da infe-rioridade e da degenerescência do mestiço brasileiro, e a consequentemente responsabilização desse grupo do atraso brasileiro, seu foco possibilita focar as diferenças e continuidades culturais. O caso é que Ortiz (1991), diferente de Ramos (1942), consegue desconstruir o essencialismo, ao mesmo tempo, que o reifica, como faz os pós-coloniais.

DO ESTRUTURALISMO AO PÓS-ESTRUTURALISMO: BRICOLAGEM, SINCRETISMO E HIBRIDAÇÃO

Embora Ortiz (1991) use categorias estruturalistas como a bricolagem e a ideia mesma de sincretismo, ele ousa ao lançar a ideia de que a Umbanda, foge ao escopo desses conceitos, falando que trata-se de uma síntese. Síntese essa que, no seio das transformações socioeconômicas do século XX, possibilitam a exis-tência de traços e comportamentos culturais denominados tradicionais, e que esse desenvolvimento, pretensamente moderno, não se dá de forma cumula-tiva, em que novas variáveis vão sendo adicionadas à estrutura anterior. Um movimento dialético, onde relações extremamente complexas se dão entre o moderno e o tradicional, que passam pela ruptura, pelo esquecimento e pela reinterpretação dos valores tradicionais. A transformação analisada por Ortiz (1991), da herança africana (tradicional) em elementos culturais afro-brasi-leiros, possibilita, então, pensarmos o negro não como sinônimo de atraso, do tradicional, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi construído discursivamente como moderno.

É nesse sentido que Ortiz (1991) aborda a questão da secularização no seio da Umban-da, e como esse processo se configura de forma intensa nas normas de conduta e na própria personalidade dos agentes sociais protagonistas nas reinterpreta-ções e rupturas dessa religião. Tal movimento, no seio da Umbanda se proces-sa dentro da própria lógica de racionalização do que ele denomina de mercado religioso, mas associando valores não seculares com novos valores modernos. Sobre esse ponto, Ortiz (1991, p. 231) demonstra como a Magia, na Umbanda se “disfarça sob a forma de um novo discurso, cultivado e pseudocientífico”, pela associação com o Kardecismo, e que embora haja um esforço de distin-guir a magia branca da magia negra, conserva-se o Exu-Batizado2, diante da

recusa ao Exu-Pagão. Assim,

a síntese umbandista integra, dentro de um sistema coerente e racional, duas tradições diferentes: a afro-brasileira e a espírita. Os Orixás, deuses individualizados no candomblé, são ordenados segundo seqüências espirituais (linhas) de acordo com a lei do carma. A Umbanda se distancia assim tanto do Kardecismo quanto das tradições afro-brasileiras,

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atestando a formação de um sistema religioso inteiramente novo. Este processo de química social, onde a partir de dois elementos anteriores se forma um novo composto, é conhecido na literatura antropológica culturalista como processo de fusão (ORTIZ, 1991, p. 113).

A referência disponível à época de compreensão desse fenômeno era a escola cul-turalista, que tomava a cultura como entidade autônoma, o que permitia a bricolagem. Ortiz (1991), no entanto, rejeitava drasticamente tal status de autonomiciade da cultura, por não situar o grupo dentro de uma perspectiva histórico-social determinada, sem compreender as representações, as ideias, como um produto de homens que se relacionam entre si dentro de um deter-minado modo de produção, ou seja, dentro de relações de poder específicas. Partindo de uma compreensão marxista, numa tentativa de superar o cultura-lismo, Ortiz (1991), ao falar em fusão, antecipava os contornos do conceito de hibridação, que estaria tão em voga nos estudos culturais, tanto da América Latina, a partir dos estudos de Néstor Canclini (1997), quanto europeus, com Robert Young (1995) e do Oriente com Homi Bhabha (1998).

Nesse diagnóstico já se encontra uma preocupação pós-estruturalista, que percebe o encontro cultural tanto como “fusão” quanto como uma articulação dialética, que demarca as formas pós-colonias de compreensão do sincretismo, a partir da lógica das cripto-religiões3. Assim, a Umbanda, nas palavras de Ortiz,

ope-ra tanto de forma orgânica (YOUNG, 1995), hegemonizando, criando novos espaços, estruturas e cenas, quanto, ao mesmo tempo, opera diasporizando, de forma intencional (YOUNG, 1995), intervindo como uma forma de subver-são, tradução e transformação.

VALORES: ENTRE O SINCRETISMO E AS CRIPTO-RELIGIÕES

Ortiz (1991) demonstra, assim, que as crenças são interpretadas segundo o código for-necido pela sociedade global. Mas, deixa implícito que a interpretação desse código global, e como ele se articula com as antigas crenças folks, depende dos arbítrios valorativos dos próprios sujeitos envolvidos com essa releitura. Assim, apesar de algumas leituras contemporâneas mais pós-coloniais, que preferem

obser-var a Umbanda em termos de cripto-religiões, em detrimento de sincrética, Ortiz (1991) busca identificar os valores que estruturam as relações entre catolicismo, kardecismo e sua matriz africana. Logo, o autor recorre às análises de estudiosos Kardecistas e de religiões de matriz africana, para compreender o movimento va-lorativo de mudança da nomenclatura organizacional da religião de cultos para linhas e depois para Lei. Enquanto, os cultos referiam-se à uma lógica geográfica das nações africanas, relacionada às divisões étnicas, o termo linha indica a ori-gem dos espíritos que descem, e posteriormente, passa a designar as sete linhas hierárquicas espirituais que compõe a Umbanda, que passa agora a ser designada como Lei da Umbanda. Ao mesmo tempo, Ortiz (1991) percebe que a hierarquia entre profano e sagrado, que delimita a superioridade ou inferioridade dos Orixás, segundo sua localização nas sete linhas, e a possibilidade de encarnação desses

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orixás pelos médiuns também se relacionava com a noção de estratificação social, assim, havia uma semelhança estrutural entre pirâmide social e espiritual.

Desse modo, Ortiz (1991) já antecipava a concepção de cultura do estruturalismo dia-lético de Louis Dumont (1980), estruturada em torno de valores hierárquicos, em que categorias culturais de menor valor são elaboradas ou racionalizadas para que não haja conflito com categorias de maior valor, sendo que essa com-preensão só pode se dar a partir da leitura de um contexto global, ou seja, uma sociedade de classes e racista.

Assim, as entidades mais comuns de serem recebidas pela maior parte dos médiuns seriam os Pretos Velhos, os espíritos dos antigos escravizados negros, e que ocupam o lugar mais baixo da hierarquia espiritual umbandista. A humildade seria o ingresso que habilita a entrada dessa entidade na Lei de Umbanda. Quando descem imprimem no corpo do neófito o peso dos anos, por isso, o médium que recebe essa entidade permanece sentado durante o transe, cur-vado em direção ao solo, fumando cachimbo. Indicam na voz rouca, familia-ridade, afeição e segurança. As entidades dos Cablocos imputam uma ima-gem diametralmente oposta, se manifestam de pé, reproduzindo a imaima-gem romântica dos indígenas como fortes e arrogantes, vestem calças e camisas brancas, e ocupava um lugar hierárquico superior na Lei de Umbanda. Na perspectiva de Ortiz (1991), tal hierarquia teria sido mimetizada da história brasileira escrita pelos historiadores. Foram eles que estabeleceram a ideia de superioridade do indígena sobre o negro, pela aptidão de se voltarem contra a escravização dos brancos.

Logo, o negro, nessa visão, apresenta uma capacidade de acomodação e compromis-so com o escravizador, pois, para se fazer reconhecer compromis-socialmente, aceita de forma passiva a “única imagem positiva que a sociedade lhe oferece: a hu-mildade” (p. 74). Essa malícia dos fracos permite aos negros compreender os maus tratos do senhor escravizador, e em contrapartida, “se vê recompensado pelo Senhor Deus” (p. 74). Os quilombolas não têm espaço na Umbanda, isso porque “como a memória coletiva umbandista coincide com os valores domi-nantes da sociedade brasileira, ela somente conserva os elementos que estão em harmonia com esta mesma sociedade” (p. 74). Além disso, Ortiz salienta que há uma simplificação da Umbanda em relação ao Candomblé, em função do anonimato da história das entidades, que possibilita a personalização do transe, que não atinge o grau de individualização do Kardecismo, ficando a meio caminho entre os cultos afro-brasileiros e o espiritismo. A Umbanda, enquanto modelo, reflete, portanto, a própria sociedade brasileira, hierarqui-zada, racionalihierarqui-zada, individualizada e moralizada (ORTIZ, 1991).

É nessa perspectiva que o conceito de sincretismo para a Umbanda se faz coerente, já que o próprio sincretismo está estruturado por valores, tanto que precisamos das rela-ções entre os elementos antigos (tradição africana) e os novos (cristianismo, kar-decismo e capitalismo) para perceber como o sincretismo é estruturado, ao invés de simplesmente assumir que os elementos ancestrais (matriz africana) são sem-pre mais fundamentais. Se tal sincretismo passa a ser ordenado a partir dos novos

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valores, mais do que os elementos ancestrais que continuam em voga (como a figura dos Pretos-Velhos), isso não indica necessariamente o desejo de manuten-ção da tradimanuten-ção e valores das religiões africanas (anscestrais), o que configuraria a Umbanda como uma religião de matriz africana, como indicara os primeiros estudiosos como Bastide, ou como uma cripto-religião (ROBBINS, 2011), como quer muitos pós-coloniais. Mas, poderia indicar, como afirma Ortiz (1991), que as ideias tradicionais que não conflitam com valores maiores do cristianismo, do kardecismo e da lógica capitalista racista e de classes, foram, de alguma forma, elaborados de uma maneira que não desafiem aqueles de maior valor.

A CRÍTICA PÓS-COLONIAL

A análise de Ortiz (1991) privilegiou a dimensão instrumental, que prioriza os efeitos políticos e identitários que ela gerava. Essa análise da dimensão circunstan-cial, no entanto, não é capaz de revelar as continuidades que verdadeiramente importam para o grupo (BIRMAN, 1997). A origem da Umbanda, conforme contada pelos umbandistas, reforçada pelas entidades da mesma, é desconsi-derada na análise de Ortiz (1991). Enquanto ele localiza o surgimento da Um-banda a partir da década de 1920/1930, no contexto da sociedade de classes e do empretecimento do kardecismo, o mito fundador disseminado entre os umbandistas reforçam a data de 15 de novembro de 1908, sendo Zélio Fer-nandino de Moraes o responsável por sua criação, conforme indica Giumbelli (2003). Ortiz (1991) menciona que em torno de 1930 o dirigente Zélio de Moraes recebe o Cabloco Sete Encruzilhadas com a incumbência de fundar sete centros, que foram instalados na cidade do Rio de Janeiro. Mas, não pro-blematiza os conflitos gerados a partir das diversas versões para essa origem. Oliveira (2008) problematiza, por exemplo, que embora esse mito de fundação, a par-tir da manifestação do Cabloco das Sete Encruzilhadas em Zélio de Mora-es, tenha marcado o rompimento entre aquilo que era compreendido como “baixo-espiritismo” com o que se convencionou chamar de “Espiritismo de Umbanda” na obra dos intelectuais da nova religião, também criou conflitos em função de que muitos cultos praticados atualmente sob a denominação de Umbanda se distinguem sobremaneira da proposta inicial de Zélio de Moraes, conforme salienta Oliveira (2008).

Por outro lado, Giumbelli (2013) salienta que a construção do mito da religião Umbanda centrado em Zélio, e na solicitação do Caboclo das Sete Encruzilhadas em sua manifestação, só apareceram no mundo acadêmico depois de 1970, por meio dos trabalhos de Diana Brown (1985) e de Renato Ortiz (1991). Os jornais oficiais da União Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB), instituição que substituiu a Federação Espírita de Umbanda, não atribui a Zélio de Moraes a fundação da Um-banda. Mesmo, nos artigos que tratam da origem e história da Umbanda, apenas “insinuam uma subordinação de Zélio ora à sua condição de médium (como tan-tos outros na Umbanda), ora à sua condição de intermediário de uma entidade es-piritual (que diga-se, não lhe devia exclusividade)” (GIUMBELLI, 2003, p. 194).

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Na esteira de Sahlins (1997), Birman (1997) alerta para o fato de que os interesses do grupo em eleger determinadas narrativas em detrimento de outras podem oferecer uma compreensão maior sobre as continuidades e descontinuidades, de onde é possível perceber a permeabilidade das ordens locais e globais ser considerado na análise, que oferece a possibilidade para que os grupos locais realizem uma apropriação instrumental e local que possibilita a permanência de culturas tradicionais. Nessa perspectiva, seria pobre considerar somente a hipótese de uma instrumentalização de um universo cultural fragmentado nas suas manifestações culturais e sem princípios, que passem pela intenção de defesa da “cultura tradicional”. Assim, o movimento de racionalização da Umbanda não indica necessariamente o desmantelamento de formas tradi-cionais de existência, pode, por outro lado, indicar o uso de instrumentos modernos e tradicionais, em defesa da tradição, como formas de resistência à homogeneização cultural do mundo. Conforme Sahlins (1997, p. 136), “a defesa da tradição implica alguma consciência, a consciência da tradição im-plica alguma invenção, a invenção da tradição imim-plica alguma tradição”. É desse modo que Birman (1982) interpreta que a posição do Preto-Velho, é na

reali-dade, construída a partir da oposição entre a “bondade e a generosidade dos humildes em oposição ao egoísmo daqueles que estão na posição de senhores e brancos”. Nessa perspectiva, os mais humildes são postos “como os mais fiéis depositários da ordem, da moral, da sabedoria e dos bons sentimentos que cimentam as relações entre os homens” (p. 27); seria esse o motivo dos Pretos-Velhos figurarem como entidades na Umbanda e também o motivo dos brancos não ocuparem um lugar nessa hierarquia.

Silva (2005) também salienta a existência de alguns dos rituais da Umbanda em práticas religiosas populares desde o fim do século XIX, especialmente entre os povos bantos. Ele exemplifica que na Cabula, “o chefe do culto era chamado de emban-da, possível origem do nome da religião que se formou pela ação desses líderes ou se confundiu com suas práticas” [... e] na Macumba o termo Umbanda desig-nava o chefe do culto e uma de suas linhas mais fortes” (SILVA, 2005, p. 106-7). Outros estudos buscam a partir de relatos dos próprios umbandistas compreender como a Umbanda historicamente tem desenvolvido estratégias de sobrevivência no campo religioso diante das evidentes manifestações de intolerância religiosa, observando que das estratégias de embranquecimento, já narradas por Ortiz (1991), os umbandistas da atualidade têm adotado estratégias de invisibili-zação adotadas pelos líderes e adeptos em relação à sua vinculação com a religião. Tal característica tem sido observada por Birman (1983), Ricardo (2007) e Floriano (2019).

Essas incursões intelectuais sobre a Umbanda se fazem possível no entanto, graças a análise de Ortiz (1991). Os estudos culturais e análises pós-coloniais reali-zam, na atualidade, uma escuta mais atenta ao que os próprios umbandistas têm a dizer sobre si mesmos e sobre as origens da religião.

Lages (2013), por exemplo, entende que a imagem do Preto-Velho na Umbanda pode ser ampliada e adquire outros significados, ao interpretar a fala de uma

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mé-dium, chefa de terreiro, sobre o Preto-Velho, Lages (2013) indica a exaltação “do passado cosmopolita e glorioso do Preto-Velho que incorpora”, indicado como médico homeopata de Roma à época de Nero. A bondade e cuidado com as pessoas adviria da profissão e não meramente da posição de escravi-zado passivo, no contexto colonial brasileiro. Além disso, a mesma entidade teria encarnado, posteriormente, como um filho do Rei no Congo na África, sendo, portanto, de linhagem nobre africana, e, na sequência posteriormente escravizado no Brasil, onde sofrera uma morte violenta em função dos maus tratos dos senhores. O sotaque do Preto-Velho, outrora atribuído à ignorância dos escravizados, agora é justificado pelo seu estatuto de estrangeiro africano e mesmo romano.

É importante frisar, no entanto, que esse depoimento fora colhido em um contexto distinto daquele analisado por Ortiz, e que, embora os preconceitos e dis-criminações contra a Umbanda não tenham cessado, o interesse do grupo na atualidade não é se firmar enquanto religião, estatuto que já fora alcançado, como narrado pelo próprio Ortiz (1991) e descrito pela Constituição Federal Brasileira, mas o de dirimir as falsas impressões sobre seus rituais e liturgias. Tal estratégia pode ter orientado a fala da médium entrevistada por Lages (2013) e que não estaria presente à época em que Ortiz realizou sua pesquisa. Logo, embora abordagens pós-coloniais venham discordar de alguns elemen-tos pontuados por Ortiz, não tenho a pretensão de cometer anacronismos e exigir da análise do autor algo que, paradigmaticamente, não era posto naque-le contexto histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise de Ortiz (1991) possibilita que pensemos sobre o papel dos negros no pró-prio processo de construção das categorias e instituições modernas, como a secularização. No caso do Brasil, a Umbanda, como identificada por Ortiz, se desenvolve e se consolida num contexto urbano-industrial, contrariando as previsões e expectativas eurocentradas de que a secularização, própria às sociedades complexas (urbanas e industrializadas), decretariam o enfraqueci-mento, quiçá, extinção das crenças e práticas religiosas. O próprio autor con-clui que não há um unidirecionamento para esse processo, que é dependente das condições históricas (e culturais) das sociedades onde se processa.

Para tal empreitada, Ortiz (1991) se lança, portanto, num diálogo transdisciplinar onde as fronteiras são ponto de partida para uma análise entre os saberes até, en-tão, seccionados. Na análise de Ortiz (1991) sobre a Umbanda fica claro que não há hierarquia de importância entre temas como Estado, modernização, industrialização, religião e cultura popular. Uma vez que sua análise parte justamente da religião como manifestação popular da cultura para pensarmos as dinâmicas da industrialização e modernização brasileiras. Assim, o uni-verso da cultura é percebido como uma “encruzilhada de intenções diversas” que se constitui como um espaço que alude para a combinação de práticas,

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valores e simbolizações distintas que apontam para a luta política. Logo, o deslocamento da identidade nacional para as identidades particulares, como a dos umbandistas, aponta para a própria debilitação do processo de globaliza-ção, que abre prerrogativas para que os pós-estruturalistas e pós-colonialistas possam construir suas análises.

Nesse pano de fundo, urbano-industrial, apresentado por Ortiz (1991), é possível descortinar o contexto no qual os discursos sobre a Umbanda é produzido, possibilitando uma incursão sobre o “regime de verdade” (FOUCAULT, 2009), ou “regimes de representação” (HALL, 1996), que orienta os pro-cessos de significação e subjetivação dos Umbandistas, de forma prática e eficaz. Esses regimes de representações sobre as religiões de matriz africa-na expressam uma fronteira cultural, que é definidora de sentidos entre um nós (cristãos) e um eles (afrodescendentes). O que é produzido e reproduzi-do nessa relação é o outro como inferior, que é estigmatizareproduzi-do, caricaturareproduzi-do, estereotipado numa síntese que reflete o que o “nós” não é e não quer ser. Esse regime de representações é alimentado, confirmado e atualizado por meio das próprias imagens e conhecimentos que (re)cria, sobre o nós e sobre o outro.

A abertura e plasticidade desses regimes mostram-se favoráveis à incorporação de no-vos elementos à rede de significados, como a própria disposição da sociedade brasileira, a partir da luta do movimento e dos intelectuais negros, em reconhe-cer e proteger o direito das religiões de matrizes africanas, garantidos consti-tucionalmente após a redemocratização. Mas, como indicam os pós-coloniais e pós-estruturalistas, mantém um núcleo original de sentidos inalterado, fun-dado na distinção hierárquica entre o nós (superiores) e o outro (inferior), o que explica o atual contexto de intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas e a perpetuação de um ethos fundado na invisibilização por parte dos Umbandistas.

Assim, o trabalho de Ortiz (1991) lança possibilidades para que os estudos posteriores so-bre a Umbanda reflitam soso-bre a noção de entre-lugar, soso-bre o lugar fronteiriço da cultura, sobre as fricções étnicas, sobre a importância de uma lógica de alteridade e sobre uma perspectiva ecumênica para os processos sociorreligiosos, bem como as possibilidades de inserção religiosa nos processos de globalização contra-hege-mônicos que passam a ocorrer como crítica à lógica e ao poder imperial.

Ortiz (1991), nessa importante obra, possibilita a compreensão de que as expressões re-ligiosas são polissêmicas, e, no caso da Umbanda, se constrói nas fronteiras das diferentes realidades. E, como já salientara Bhabha (1998), é na fronteira o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente. Por isso, ultrapassar as narrativas de subjetividades originárias e inicias e focalizar os processos de transformação e construção da Umbanda, que são produzidos na articulação das diferenças culturais, tornam a análise de Ortiz (1991), teoricamente, inovadora e politicamente crucial. Essas fronteiras que fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação e possibilitam o posicionamento de colaboração ou contestação sobre a sociedade.

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Assim, a análise de Ortiz (1991) possibilita visualizar que a posição de fronteira dos Umbandistas permite maior visibilidade das estruturas de poder e de saber, e, por isso, maior reflexividade. A grande questão é que esse processo desencadeia também uma infinidade de experiências e formas de conheci-mento que depõem contra os poderes e os saberes universais, o que anuncia um campo vasto de investigações sobre as distintas formas de subjetivação dos Umbandistas ainda não explorados pela academia. O caráter velado e as estratégias de invisibilização que a Umbanda tem adotado nas últimas décadas para lidar com o contexto de perseguição e intolerância religio-sa, perpetrada especialmente por determinados segmentos neopentecostais, não contribui para que essa religião figure como objeto de estudo da aca-demia. Talvez, a legitimação do mercado religioso, mesmo que dentro do escopo de um falso reconhecimento, para usar a terminologia de Charles Taylor (1998), tenha lhe retirado o caráter marginal, de onde era possível visualizar melhor as estruturas de poder, por um lado. Mas, por outro lado, o falso reconhecimento tenha restringido a sua real potencialidade de atuar como religião de fronteira.

O estatuto de uma religião sincrética, mais do que híbrida e longe de uma cripto-reli-gião, impossibilita a atuação de contestação na atualidade, priorizando a ne-gociação que se estrutura nas estratégias de inivisibilização como identificado por Floriano (2019), Birman (1983) e Ricardo (2008). Essa invisibilização da Umbanda, enquanto cultura subalterna, é para Boaventura de Souza Santos (2008) uma preocupação, ao propor a sociologia das ausências. Enquanto o foco tanto de preservação quanto de perseguição está no Candomblé e em suas distintas variações, a Umbanda segue como uma realidade que não existe no Brasil, talvez pela sua incapacidade de falar a partir de sua essência (brasi-leira/afro-brasileira), e pela ausência de espaço para se posicionar como uma religião universal/nacional dentro do espectro ocidental.

UMBANDA: RENATO ORTIZ’S CONTRIBUTIONS TO CULTURAL AND POSTCOLONIAL STUDIES

Abstract: Renato Ortiz is undoubtedly a prominent Brazilian social scientist, who has not

limited himself, however, to raising flights only within the limits of the science of his university education. In his doctoral thesis entitled “The White Death of the Black Sorcerer” brings a peculiar analysis of Umbanda in Brazil and inaugurates the possibility of thinking of this religious movement, as a typically Brazilian religion. I argue in this article that Ortiz’s approach and the analyzes of black participation in Brazilian culture presented in this work bring elements to think of Umbanda from the perspective of Cultural Studies and subsidize further discussions within the sco-pe of post-colonial studies.

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Notas

1 Os estudos culturais estariam associados aos movimentos de reformulação que culminou na Nova Esquerda, por um lado, e por outro, a partir das contribuições dos movimentos dos anos de 1960-70 que se mantinham a distância de concepções e organizações convencionais, que ficaram conhecidos por seu “radicalismo cultural”, como os hippies e diggers, entre outros exemplos. Assim, o radicalismo cultural é marcado por uma lógica contracultura, às vezes visto como despolitizado, mas que antecipa a emergência das visões pós-modernas que vieram a ocupar um importante espaço na agenda política e intelectual das últimas décadas do século XX. Sobre esse assunto ver Stephens (1998).

2 Na Umbanda, de forma simplificada, Exu-batizado é aquele que conhece o Bem e o Mal, enquanto, o Exu-pagão não sabe fazer a distinção entre o Bem e o Mal.

3 As cripto-religiões são indicadas como sendo os grupos em situações interculturais que ex-postos à uma imposição de valores religiosos recusam-se a abandonar as tradições religiosas de seus antepassados, e criam estratégias de manifestação de suas religiões camuflando seus aspectos em público. A fé original é, então, professada em segredo, enquanto perante a sociedade é manifestado bom comportamento e devoção cristã.

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