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A legislação penal brasileira sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo

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Academic year: 2021

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Ela Wiecko V. de Castilho

A presente exposição objetiva apresentar os tipos penais existentes na legislação brasileira aplicáveis ao tráfico de pessoas e à imigração ilegal e verificar se abarcam de forma suficiente as condutas descritas nos Protocolos Adicionais à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Palermo, 2000): Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, e Protocolo sobre o Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, promulgados no Brasil, respectivamente, pelo Decreto n. 5.017 e 5.016, de 12.03.2004 .

O Código Penal brasileiro, de 1940, vem sofrendo sucessivas alterações, de tal monta que afetaram sua organicidade. Vale notar, ainda, que o número de infrações penais definidas em leis especiais supera as do Código Penal.

No Código Penal há três situações em que a saída de pessoas do território nacional, ou a entrada nele, estão tipificadas.

Primeira situação:

Promover ou facilitar a entrada de pessoas no território brasileiro ou a saída dele constitui, no art. 231, o crime de tráfico internacional de pessoas, se tiver como finalidade o exercício da prostituição. Este crime, até a Lei n. 11.106, de março de 2005, contemplava apenas a mulher como sujeito passivo. É uma infração inserida no Título dos Crimes contra os Costumes. Portanto, embora esteja presente a tutela da liberdade sexual e do pudor individual prevalece a tutela do pudor público. A pena cominada é privativa de liberdade, de 3 (três) a 8 (oito) anos. Se houver fim de lucro, aplica-se também multa.

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Segundo a doutrina “promover” abrange o dar causa, executar, tomar a iniciativa e “facilitar” abrange auxiliar, ajudar, tornar mais fácil. Os meios utilizados podem ser: fornecimento de dinheiro, papéis, passaporte, compra de roupas ou utensílios de viagens etc (Mirabete, 1999, p. 465). Na segunda conduta, a iniciativa da entrada ou da saída é de outrem ou do próprio sujeito passivo.

O exercício da prostituição não configura crime. Crime é explorar a prostituição alheia. Assim, se uma mulher brasileira quer exercer a prostituição em Portugal e conta com a ajuda de alguém para a compra da passagem, ela não pratica crime, mas quem lhe empresta o dinheiro, por exemplo, sabendo da finalidade, pratica o crime de tráfico.

O consentimento livre não exclui o crime. O consentimento forçado ou viciado, isto é, obtido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude, tem implicações para a pena que aumenta para 5 (cinco) a 12 (doze) anos, somando-se a pena correspondente à violência. Se resultar da violência, a título de culpa, lesão corporal de natureza grave a pena será de 8 (oito) a 12 (doze) anos, e, resultando, do fato a morte, de 12 (doze) a 20 (vinte) anos. Presume-se a violência se o sujeito passivo não é maior de 14 anos, é alienado ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância, ou não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

Se o sujeito passivo é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, marido, irmão, tutor ou curador ou pessoa a que esteja confiado para fins de educação, de tratamento ou de guarda, a pena privativa de liberdade é de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.

Segunda situação:

Há outra hipótese no Cód. Penal de saída de pessoas do território brasileiro configuradora de crime. Está prevista no art. 207 como crime contra a Organização do Trabalho, denominado Aliciamento para o Fim de Emigração, e consiste em “recrutar trabalhadores, mediante fraude”. É punido com a pena privativa de liberdade, de 1(um) a 3 (três) anos, passível de ser substituída por pena restritiva de direitos. Antes de 1993,

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o tipo penal só exigia a iniciativa do agente para atrair, seduzir ou angariar trabalhadores (no mínimo três, irrelevantes a qualificação ou habilidade técnica de cada um) para fim de emigração. Hoje, a lei exige “que haja fraude, ou seja, que o agente induza ou mantenha em erro os trabalhadores, com falsas informações, promessas etc,. convencendo-os a levá-los para território estrangeiro” (Mirabete, 2000, p. 1228).

Terceira situação:

Fruto de alteração legislativa de 1984, o art. 245 do Código Penal define como crime contra a assistência familiar, punível com pena privativa de liberdade de 1 (um) a 4 (quatro) anos, a entrega de filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia o agente saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo, para obter lucro, ou se o menor é enviado para o exterior.

Fora do Código Penal temos outras situações:

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente definiu como crime, no art. 239, “promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro. A pena cominada é privativa de liberdade de 4 (quatro) a 6 (seis) anos, e multa. Pratica o crime qualquer pessoa que não o pai ou mãe da criança ou adolescente (que, por seu lado, podem incidir nos crimes do caput ou do §1º do art. 245 do Código Penal ou no art. 238 do Estatuto). Não se exige que a vítima fique exposta a perigo material ou moral. Basta que o ato destinado ao envio para o exterior não observe as formalidades legais, ou, ainda que estejam cumpridas, tenha o agente objetivo de lucro.

Há hipóteses não acobertadas pela norma, como, por exemplo, o envio da criança ou adolescente para o exterior em obediência a todas as formalidades legais, ou que não tenha como fito a obtenção de lucro. Igualmente a promoção ou facilitação da entrada da vítima no território nacional.

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Pela Lei n. 9.975, de 2000, foi inserida no Estatuto da Criança e do Adolescente a figura delitiva (art. 244-A) consistente em submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual. A pena prevista é a privativa de liberdade de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. Tratando-se de crime em que o resultado está descrito no tipo, possível interpretar que abrange a conduta de tráfico interno e internacional.

A Lei n. 9.434, de 1997, considera crimes comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano bem como promover, intermediar, facilitar ou auferir qualquer vantagem com a transação. A pena, num e noutro caso, é privativa de liberdade de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa (art. 15 e par. ún.). Recolher, transportar, guardar ou distribuir partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com a lei sujeitam o agente à pena privativa de liberdade de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa (art. 17)1.

Na Lei n. 6.815, de 1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, constitui crime, punível com pena privativa de liberdade de 1 (um) a 3 (três) anos, passível de ser substituída por pena restritiva de direitos e, se o infrator for estrangeiro, expulsão, “introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino ou irregular” (art. 125, XII). A declaração falsa em processo de transformação de visto, de registro, de alteração de assentamentos, de naturalização, ou para a obtenção de passaporte para estrangeiro, laissez-passer, ou, quando exigido, visto de saída, implica na pena privativa de liberdade de 1 (um) a 5 (cinco) anos e, se o infrator for estrangeiro, expulsão (art. 125, XIII).

No Código Penal encontramos como crime contra a fé pública , sob a rubrica de fraude de lei sobre estrangeiros, “atribuir a estrangeiro falsa qualidade para promover-lhe a entrada em território nacional”, com pena privativa de liberdade de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

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Recentemente, os integrantes de uma organização criminosa chefiada por um israelense foi condenada, com base nessa lei, pelo tráfico de pessoas para a África do Sul onde era feita a extração de órgãos (rim). A sentença foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

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Vejamos agora se os tipos penais apontados atendem aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo, uma vez que os Estados Partes assumiram a obrigação de criminalização, de forma a estabelecer como infrações penais os atos descritos nos Arts. 3 e 6 dos Protocolos referidos no início desta exposição, quando tenham sido praticados de forma dolosa, mesmo na forma tentada, ou na forma de participação, principalmente de cumplicidade e de organização.

Inicialmente cabe observar que os Protocolos se aplicam a condutas transnacionais e que sejam praticadas por grupos criminosos organizados. O tráfico internacional de pessoas para fins de prostituição (art. 231), o tráfico internacional de crianças e adolescentes (art. 239 do ECA), o aliciamento para fins de emigração (art. 207) e a introdução clandestina de estrangeiro (Lei n. 6.815), por definição são crimes transnacionais. Entretanto, podem se configurar independentemente da existência de um grupo criminoso. Por isso, se desejável a aplicação das regras dos Protocolos necessário demonstrar que o fato se insere nas atividades de uma organização criminosa.

No Brasil, o Cód. Penal prevê a figura delituosa autônoma de quadrilha ou bando, consistente na associação de mais de três pessoas, para o fim de cometer crimes (art. 288). A pena cominada é de 1 (um) a 3 (três) anos de pena privativa de liberdade, aplicada em dobro, se a quadrilha ou bando é armado. Não há, entretanto, nenhuma previsão específica para organizações criminosas de caráter transnacional.

Quanto à criminalização de pessoas que não praticam diretamente as condutas incriminadas, mas colaboram intencionalmente para o sucesso das mesmas, ela é prevista no Cód. Penal brasileiro, ajustando-se, portanto, às diretivas internacionais.

As inadequações ocorrem na definição dos tipos penais, ou seja, nos verbos que constituem o núcleo, nos sujeitos passivos, no objeto jurídico e, ainda, na coerência entre as penas.

Aprofundemos a análise. De conformidade com o Protocolo Adicional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças:

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a) A expressão "tráfico de pessoas" significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;

b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a);

c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; d) O termo "criança" significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos (art. 3º).

Estas definições representam o resultado de uma evolução histórica iniciada em 1904 acerca do tratamento normativo internacional a ser dispensado ao tráfico de pessoas. As alterações que se processaram de 1904 a 2000 incidiram especialmente em três aspectos.

O primeiro diz respeito às pessoas objeto de proteção. As vítimas eram, inicialmente, as mulheres brancas, depois mulheres e crianças, e, finalmente, os seres humanos.

O segundo também se relaciona às vítimas. Até o Protocolo de 2000 elas eram tratadas quase como criminosas. O Protocolo procura garantir que sejam tratadas como pessoas que sofreram graves abusos. Explicita no art. 2 como um dos seus objetivos “proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos”. Para concretizá-lo, os Estados membros devem criar serviços de assistência e mecanismos de denúncia.

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O terceiro aspecto é concernente à finalidade do tráfico. Nas Convenções até 1950 dominava a preocupação de coibir o tráfico para fins de prostituição. Com a Convenção Interamericana sobre o Tráfico Internacional de Menores é introduzida uma nova preocupação, repetida no Protocolo para Prevenir, Reprimir e Sancionar o Tráfico de Pessoas. Trata-se de combater o tráfico de pessoas com propósitos ilícitos, neles compreendidos, entre outros, a prostituição, a exploração sexual (não mais restrita à prostituição) e a servidão. O Protocolo emprega a cláusula para fins de exploração, o que engloba qualquer forma de exploração da pessoa humana, seja ela sexual, do trabalho ou a remoção de órgãos, bem como quaisquer outras pois a enumeração é apenas ilustrativa.

Portanto, hoje, na perspectiva internacional não há limitação quanto aos sujeitos protegidos e na condenação de todas as formas de exploração. Cabe registrar, porém, uma diferença que se estabeleceu acerca do consentimento. Tratando de crianças e adolescentes, isto é, com idade inferior a 18 anos, o consentimento é irrelevante para a configuração do tráfico. Quando se tratar de homens adultos e mulheres adultas o consentimento exclui o tráfico. Só perde a relevância se obtido por meio de ameaça, coerção, fraude, abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade, bem como mediante a oferta de vantagens a quem tenha autoridade sobre outrem. Por conseguinte, para comprovar o tráfico de pessoas adultas, imprescindível comprovar o vício de consentimento.

Tendo em conta o Protocolo Adicional sobre Tráfico de Migrantes o artigo 3º estabelece, entre outras, as seguintes definições:

a) A expressão "tráfico de migrantes" significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um beneficio financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente;

b) A expressão "entrada ilegal" significa a passagem de fronteiras sem preencher os requisitos necessários para a entrada legal no Estado de acolhimento.

c) A expressão "documento de viagem ou de identidade fraudulento" significa qualquer documento de viagem ou de identificação: (i) Que

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tenha sido falsificado ou alterado de forma substancial por uma pessoa ou uma entidade que não esteja legalmente autorizada a fazer ou emitir documentos de viagem ou de identidade em nome de um Estado; ou (ii) Que tenha sido emitido ou obtido de forma irregular, através de falsas declarações, corrupção ou coação ou qualquer outro meio ilícito; ou (iii) Que seja utilizado por uma pessoa que não seja seu titular legítimo.

A obrigação de criminalização implica em definir como infração penal: o tráfico de migrantes e os seguintes atos quando praticados com o objetivo de possibilitar o tráfico ilícito de migrantes: (i) Elaboração de documento de viagem ou de identidade fraudulento; (ii) Obtenção, fornecimento ou posse tal documento; c) Viabilizar a permanência, no Estado em causa, de uma pessoa que não seja nacional ou residente permanente, sem preencher as condições necessárias para permanecer legalmente no Estado, recorrendo a qualquer meio ilegal.

O crime deve ser praticado intencionalmente e de forma a obter, direta ou indiretamente, um beneficio financeiro ou outro benefício material. Acrescente-se a obrigação de considerar como agravantes das infrações estabelecidas as circunstâncias que ponham em perigo ou ameacem pôr em perigo a vida e a segurança dos migrantes; bem como acarretem o tratamento desumano ou degradante deles, incluindo sua exploração.

Considerando o padrão normativo internacional, feita a comparação com os tipos penais existentes na legislação brasileira, pode-se afirmar que o Brasil criminaliza o tráfico internacional de pessoas para fins de prostituição assim como o tráfico internacional de crianças e adolescentes independentemente da finalidade. Não criminaliza o tráfico internacional de pessoas adultas para o fim de outras formas de exploração sexual, trabalhos ou serviços forçados, escravidão ou formas análogas à escravidão, servidão ou transplante de órgãos, muito embora criminalize trabalhos ou serviços forçados, formas análogas à escravidão e o comércio de tecidos, órgãos e partes do corpo humano.

Não criminaliza o tráfico de migrantes. As infrações penais relativas à imigração ilegal não contemplam o fim de lucro, nem o tratamento desumano ou degradante.

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A criminalização existente é díspar quanto ao bem jurídico tutelado. No tráfico internacional de pessoas para fins de prostituição é a moralidade pública (costumes), no recrutamento fraudulento de trabalhadores a organização do trabalho, no tráfico de crianças e adolescentes é a família (Cód. Penal) ou os direitos da criança e do adolescente (ECA), na introdução clandestina de estrangeiro (Lei n. 6.815) ou na fraude para promover a entrada no território nacional (Cód. Penal) é a fé pública ou a administração pública. .

Os verbos utilizados para descrever a conduta em cada hipótese de tráfico são diferentes, nem sempre abrangendo o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento e a recolha de pessoas. Entretanto, cabe lembrar que a criminalização dessas condutas é admissível a título de participação dolosa, consoante previsão na Parte Geral do Código Penal (art. 29).

As formas ilícitas de obter o consentimento de uma pessoa são criminalizadas autonomamente no Brasil quando se trata de constrangimento ilegal, ameaça (mal injusto e grave),seqüestro ou cárcere privado, estelionato, assédio sexual, abuso de autoridade, violência física. Pressão psicológica, corrupção no âmbito privado, abuso da situação de vulnerabilidade não estão contemplados.

A redução à condição análoga a de escravo, classificada como crime contra a liberdade pessoal, até a entrada em vigor da Lei n. 10.803, de 2003, abrangia a conduta de tráfico de pessoas. Todavia, na tentativa de dar maior efetividade à lei penal, foram explicitadas no texto as condutas que levam ao resultado (redução à condição análoga a de escravo) inadvertidamente deixou-se de mencionar a hipótese clássica de compra e venda.

A presunção de violência, prevista nos crimes contra os costumes, se a vítima não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência, de acordo com a doutrina diz respeito a “enfermidade, paralisia dos membros, idade avançada, excepcional esgotamento, sono mórbido, síncopes, desmaios, estado de embriaguez alcoólica,

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delírios, estado de embriaguez ou inconsciência decorrente de ingestão ou ministração de entorpecentes, soporíferos etc.” ( Jesus, 1996, p.133)

Não há um sistema de penas coerente. O tráfico de crianças e adolescentes, qualquer que seja a sua finalidade, tem a mesma pena. Os crimes relativos à imigração ilegal, com certa aplicabilidade no tráfico de migrantes, têm penas mais brandas.

Os Protocolos Adicionais da Convenção de Palermo relacionam o tráfico de pessoas ou de migrantes à ausência de consentimento da vítima maior de 18 anos. Na lei brasileira, porém, o consentimento não afeta o tráfico de pessoas para o fim de prostituição. É relevante na disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano e no recrutamento para emigração de trabalhadores. Tratando-se de recrutamento para trabalhos forçados, servidão ou formas análogas à escravidão o consentimento também é irrelevante.

Nada impede que o Brasil continue desconsiderando o consentimento válido de pessoa adulta no tráfico para o fim de prostituição. Os Estados que ratificaram a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Lake Success, 1949), enquanto não a denunciarem, continuam a ela vinculadas, pois não foi revogada. Houve pressão para eliminar do texto do Protocolo todas as referências às precedentes Convenções sobre Direitos Humanos e para revogar a Convenção de 1949. Mas, o texto final foi acordado com uma cláusula de salvaguarda (art. 14), segundo a qual nenhuma disposição do Protocolo sobre o Tráfico de Pessoas “prejudicará os direitos, obrigações e responsabilidades dos Estados e das pessoas por força do direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário e o direito internacional relativo aos direitos humanos e, especificamente, na medida em que sejam aplicáveis, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados e ao princípio do non refoulement.”

Para se por em sintonia com o Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, o Brasil necessita rever sua legislação penal de forma a definir um tipo básico para o tráfico de pessoas e os tipos derivados, conforme a finalidade da exploração, e não conforme os sujeitos passivos. Para tanto, necessária uma revisão da própria

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organização sistêmica do Código Penal vinculada a bens jurídicos. A solução já delineada de certa forma pelo Anteprojeto de Reforma da Parte Especial, de 19922, seria criar um capítulo dos crimes contra a dignidade da pessoa humana dentro do título referente aos crimes contra a pessoa humana incluindo, entre outros, o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas similares a esta, servidão e remoção de tecidos, órgãos e partes do corpo humano. Com efeito, o bem jurídico principal a ser tutelado é a dignidade da pessoa humana. A assistência familiar, a organização do trabalho, a moral pública são bens jurídicos secundários.

Destaca-se também a necessidade de passar do conceito restrito de prostituição para mais amplo de exploração sexual, e do conceito restrito de coação ou de ameaça para o conceito mais amplo de abuso de situação de vulnerabilidade da pessoa traficada (Leal, 2002, p.216).

Quanto ao tráfico de pessoas na migração há praticamente um vácuo. Os casos que têm sido levados ao Judiciário, na maior parte relativos à emigração de brasileiros, são classificados como incursos nos crimes de quadrilha e de falsificação de documentos.

Concluindo, na linha traçada no Relatório do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (2002, p. 127), vês-se que o tráfico fornece seres humanos para os mais diferentes propósitos. O Brasil ainda se preocupa pouco com o fato. Os países de destino se preocupam apenas com a exploração sexual e procuram fazer a distinção entre tráfico e imigração ilegal, dando às vítimas do primeiro algum tipo de atenção. Todavia, é preciso estabelecer a todas as pessoas em movimento garantias mínimas de emprego legal, de assistência e de retorno seguro aos países de origem.

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A proposta classificava como crimes contra a dignidade da pessoa humana, os crimes relativos ao estado de escravidão; os crimes em matéria de prostituição; os crimes contra a identidade genética; os crimes contra a dignidade da maternidade; os crimes de comércio do corpo humano de pessoa viva; os crimes contra a dignidade da pessoa morta; o crime de genocídio; os crimes contra a igualdade; e o crime de tortura.

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ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL. Tráfico internacional de

mulheres e crianças: aspectos regionais e nacionais. Relatório do Grupo Brasileiro. São

Paulo: Edições Paloma, 2002.

JESUS, Damásio e de. Direito penal: 3º volume – parte especial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

LEAL, Maria Lúcia e LEAL Maria de Fátima (Orgs.) Pesquisa sobre tráfico de

mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil.

Brasília: Cecria, 2002.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial – arts. 121 a 234 do CP. 15. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

__________. Manual de direito penal: parte especial – arts. 235 a 361. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1991.

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