• Nenhum resultado encontrado

Signo frequente nos quintanares, a dinâmica da criança é o instrumento estético mais acessível de Mario Quintana para expor sua proposição acerca da memória. Em Quintana é possível se encontrar um vasto campo semântico ligado à criança, de modo que não há livro algum do poeta gaúcho sem que palavras como menino, infância, brincadeira, etc. Um dos termos desse campo semântico é Lili, uma personagem que é mais bem apresentada pelo próprio Quintana em um poema que leva o nome da menina:

Teu riso de vidro

desce as escadas às cambalhotas e nem se quebra,

Lili

meu fantasminha predileto, Não que tenhas morrido...

Quem entra num poema não morre nunca (e tu entraste em muitos...)

Muita gente até me pergunta quem és... De tão querida

és talvez a minha irmã mais velha

nos tempos em que eu nem havia nascido. És a Gabriela, a Liane, a Angelina... sei lá! És a Bruna em pequenina

E que eu desejaria acabar de criar.

Talvez sejas apenas a minha infância! E que importa, enfim, se não existes... Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina, pelos nossos encontros, por esse carinho de filha que eu não tive...

(QUINTANA, 2005, p. 490)

No décimo sexto verso uma palavra chave explica Lili, essa palavra é "talvez". Ao utilizar o termo talvez, o próprio poema ao confidencia sua inaptidão para definir Lili, acaba por definir a menina. Lili é o talvez, criança enquanto símbolo da transformação, única certeza da obra de Mario Quintana: "As únicas coisas eternas são as nuvens..." (QUINTANA, 2005, p. 166). Lili é simultaneamente tratada em uma relação de identidade e alteridade. A menina é o outro e é a voz lírica, representando o próprio poeta Quintana.

A voz lírica do poema de Lili se dirige à menina, mas monopoliza a conversa, tornando-a um solilóquio. O início de sua mensagem se preocupa em posicionar Lili em um plano imediatamente superior, a criança está acima, é do alto que ela lança suas gargalhadas ao plano inferior do adulto. O termo vidro, utilizado para caracterizar o riso da menina perde no poema as

propriedades quebradiças para significar apenas transparência. A dinâmica da criança é cristalina, não se turva por uma ótica que não a dela mesma.

Enquanto signo rico, Lili é retorno do passado ao presente. Lili é um fantasma, símbolo que permeia toda a literatura. O diminutivo "inha" em fantasminha atribui a noção não do horror impactante que se espera em um encontro com seres que deveriam estar mortos à menina, mas, pretende significar o tom carinhoso com o qual o poeta se dirige à criança. O diminutivo "inha" ainda pode significar as aparições sempre rápidas que faz a criança ao poeta, estetizadas, inclusive na extensão dos poemas onde Lili aparece: todos eles são sempre muito curtos. Lili é um fantasma, um atavismo, entra em latência e sai do passado rumo ao presente. A criança, por si mesma é um símbolo da memória, de acordo com Lili. Apesar de ser uma construção do poeta, Lili " não morre nunca" e vive "tanto".

Todavia, Lili não é o poeta em todos os momentos, porque se estivesse, não haveria a possibilidade de eles se encontrarem: " E obrigado, menina, pelos nossos encontros [...]". Lili se move até o presente e a memória do poeta se move até Lili, em algum lugar desse movimento eles se encontram. Jesus Cristo e o Menino Jesus são dois indivíduos diferentes e, ao mesmo tempo o mesmo indivíduo em duas fases, em dois tempos, que se interseccionam, como vimos em Boca da noite, como a luz e as trevas no crepúsculo, quando não é dia nem noite, mas ambos simultaneamente. Assim, o é encontro de Lili com o poeta, encontro em que Lili não é mais Lili e o poeta não é mais o poeta, mas ambos são simultaneamente uma intersecção. A memória atávica é um encontro.

Das várias especulações que faz a voz lírica sobre o grau de relação entre o poeta e a criança, se são irmãos, antigos amigos, uma filha que não foi possível, é fato, de acordo com o poema que Lili é uma menina, uma criança, a infância (talvez a infância do próprio poeta).

De tão especial personagem e querida pelo poeta, como podemos observar em Lili, Lili ganha um livro só seu. Em 1983, Mario Quintana reúni alguns poemas destinados à infância chamado Lili inventa o mundo. O título sugestivo põe a criança enquanto criadora de todas as coisas. Nada existe antes da criança. É através da vontade e ação da criança que todas as coisas vêm a existir. A vivência do adulto lhe permite afirme que conhece o mundo. Sem vivência ainda, a criança precisa descobrir tudo por si mesma em uma jornada rumo a maturidade. A criança significará o mundo, o adulto já o significou. Para a criança tudo é novidade, para o adulto as coisas se tornaram regulares.

Em um plano não simbólico toda sociedade, a começar pela própria família, modifica-se com a entrada de um novo indivíduo. A entrada de cada nova criança será uma nova participação dos diálogos e das arenas, e, assim, o mundo se fará. A criança é responsável pela reconfiguração de

sua sociedade. Será ela a criadora de novas leis, que determinará novos valores, que governará, produzirá bens e, com algum grau de possibilidade, travará guerras. Em um plano simbólico, Lili é o princípio de uma sociedade, que se inventará pouco a pouco pela experimentação.

Podemos ler a figura de Lili enquanto equivalência da infância, estágio onde as regras da sociedade não foram assimiladas pelo sujeito, período da vida em que o sujeito é considerado humano, mas ainda não autorizado a participar da vida social. Não tendo voz ativa no grupo, permite-se a criança uma vida em torno de si mesma, permite-se à criança à criação do mundo à sua imagem e semelhança.

Localizando a criança no plano de evolução de criança-poeta-louco enquanto uma mesma espécie, o ancestral da criança é o mistério. Desprovida dos parâmetros social, de um elemento cultural ancestral e direto, a criança concebe o mundo à sua maneira, o mundo é o que criança vê, e assim ela o crê. O conhecimento da criança é sua única regra, a criança é soberana, como podemos ler em Princesa: Quando lhe perguntaram o nome, Lili espantou-se muito:/- ué! Mas todo mundo sabe..." (QUINTANA, 2005, p. 177). O jeito particular de ver o mundo de Lili é concebido como incompreensivelmente absurdo para o adulto, a criança é intimista e tem um código óptico só seu, que só faz sentido para si mesma, como o poema A última ilustra: "A última de Lili, que me apresso a anotar, para o meu Tratado de Liligrafia: - Não gosto de laranjas de umbigo porque são muito pretensiosas." (QUINTANA, 2005, p. 370).

Enquanto ser incluído, mas não participante da decisões da sociedade, fato que a criança também desconhece, Lili não discerne aquilo que faz parte da sociedade daquilo que não faz, não distingue a seriedade do risível, não compreende relações de poder, como podemos observar em O cachorro: "Do quarto próximo, chega a voz irritada da arrumadeira: - Meu Deus! a gente mal estende a cama e já vem esse cachorro deitar em cima! Salta daí pra fora! E Lili, muito formalizada: - Finoca! o cachorro tem nome!" (QUINTANA, 2005, p. 177). O poema fala da vida doméstica e da cômica confusão causada por causa de um canino. Na casa, onde quem manda são os patrões, há um rápido e leve impasse existente entre Lili e a empregada doméstica, justamente aí os poderes se equivalem, porque nenhuma das duas exerce o poder na casa, e, simultaneamente, enquanto a empregada merece o respeito inerente aos adultos, principalmente ao executarem seus ofícios, a criança merece o respeito devido pelo elo com os patrões. Acima de tudo, perdoa-se a criança pelo absurdo.

Indo mais profundamente em O cachorro, percebemos que é o adulto que separa o animal do humano, determinando o que ou quem faz parte da sociedade, Lili não gosta nada disso. A criança acolhe a animália, o não civilizado, o bicho enquanto parte do mundo, enquanto parte da

sociedade. O adulto nega ao animal os mesmos direitos (o cão não pode participar dos utensílios da cultura, da cama).

Lili também não percebe a união do alto e baixo que ela faz, formalizada, isto é, escandalizada e séria, ao emitir o nome o cômico nome do bicho "Finoca". Interessantemente, é nesse momento cômico de união de opostos (adulto-criança), (animal-humano), (cômico-sério), que todos os leitores, e possivelmente a empregada que é participante da cena, percebem um grave questionamento: o que determina um status inferior ao cão? O que diferencia um ser humano de um bicho? Por que os bichos não podem participar da cultura?

E quem é o responsável para trazer esses questionamentos? A criança! É a criança que nos faz recorda que o homem é um animal também. "Finoca! o cachorro tem nome!" é um lembrete. Lili quer relembrar a empregada de que, apesar de bicho, o cachorro merece as mesmas regalias e reconhecimento social dos humanos, informação fresca na memória de Lili, que, guardiã da memória, decide relembrar a arrumadeira. O leitor de O cachorro, se imagina a reação da empregada doméstica, provavelmente a visualiza rindo e/ou em introspecção trazida pelo lembrete de Lili, atitude que, apesar de ser sem cabimento, movimenta os sentidos e a cognição.

A arrumação da cama remete ao ato de organizar a sociedade. Ofende-se Lili por essa organização não contemplar o animal. Para a arrumadeira, a ordem que segue o cão é diferente da humana, pensar diferente seria um contrassenso, ridículo. Para a menina, não. Nem Lili animaliza o homem, nem humaniza o cão. O que há é uma área de intersecção, onde o cão continua sendo cão, mas é convidado a participar da humanidade, recebendo um nome, apelido, que se harmoniza com o próprio da menina, ambos fazem parte do mesmo universo. Há uma licença à animalidade que também há no homem

Mais um encontro da memória da criança que recepciona e compreende o animal pode ser visto em Noturno:

O relógio costura, meticulosamente, quilômetros e quilômetros do silêncio noturno.

De vez em quando, os velhos armários estalam como ossos. Na ilha do pátio, o cachorro, ladrando.

(É a lua.)

E, à lembrança da lua, Lili arregala os olhos no escuro. (QUINTANA, 2005, p. 179)

O título do poema insinua a composição musical. Noturno é um tipo de composição que evoca a noite, uma obra inspirada em acontecimentos noturnos, ou uma obra concebida para ser

tocada à noite. Esse tipo de trabalho, muito comum no romantismo musical se caracteriza por aspectos que sugerem a meditação; são produções mais livres e soltas, despreocupas com a forma e mais interessadas na (re)criação da atmosfera noturna. Um noturno também estabelece relações com o Ofício Divino, também chamado de Liturgia das Horas, mais especificamente com a parte chamada Completas, divisão da prática de oração comum no credo católico apostólico romano. Noturno é uma das divisões de cântico ou recitação à noite. Essa é uma informação que muito nos interessa.

Interessa a nossa análise porque as Completas são orações e cânticos de marcação de completude da jornada produtiva do trabalho que é executado durante o dia, mas o título do poema está sendo utilizado ironicamente, inversamente, para marcar justamente o começo de uma jornada de 'trabalho' infantil, a imaginação: "E, à lembrança da lua, Lili arregala os olhos no escuro", há um trabalho criativo ainda a ser cumprido.

Bento de Núrsia (480 – 543) o responsável pela padronização da Liturgia das horas, na obra Regra (BENTO, 1875, p. 180), prescreve no capítulo XLII o silêncio absoluto e a quietude completa para o período, que se reservará à meditação ou ao sono. Se compararmos a prescrição de São Bento ao que acontece em Noturno, o que se percebe é uma tensão, pois o arregalar de olhos da menina, além de indicar movimentação mental, ameaça romper o silêncio.

Outra prescrição de São Bento que merece aqui ser mencionada é: "Que se reúna todos juntos em um lugar e que se diga completas." (BENTO, 1875, p. 182, tradução nossa)"38 . Transposto para a poesia de Quintana, a prescrição de São Bento, na proibição da fala, obriga o poeta a escrever. A linguagem continua ativa, mesmo no silêncio, para reunir vacas e hipogrifos, Jesus Cristo e o Menino Jesus, as luzes do dia e a escuridão da noite, a selvageria e a civilização, o animal e o homem, o interior e o exterior, o mundo individual e mundo social, como em Porta- giratória. Para Quintana, então, o poema é o lugar onde tudo deve ser reunido, e o poema não estará completo até que tudo lá se reúna.

Lili assume o papel de colecionadora do tudo. Sua memória é desencadeada pela natureza, pela luz da lua, pelo animal, pelo instinto. Os reservatórios de memória, "armários" onde os adultos guardam as coisas, mesmo que há muito parados, em latência, rompem o silêncio "de vez em quando", "como ossos" postos em movimento. Noturno também nos apresenta Lili enquanto infância, passado, que volta à noite para a voz lírica, como a infância social, que se alumbra com os fenômenos da natureza e está em sintonia com o animal; e retoma também a própria noite como símbolo da germinação (CIRLOT, 2001, p. 228).

Desprovida de um ancestral direto, a criança parte do mistério, do escuro, da noite social, por isso sua imaginação equivale à luz da lua. É graças ao luar refletido nas formas escuras que o olho consegue discernir, mesmo com dificuldade, algum contorno. Sem a luz da lua seria impossível qualquer visão noturna. É graças à sua imaginação que a criança consegue apreender alguma forma do mundo. O mistério e a imaginação são vestígios atávicos na criança que faz uso deles para decifrar o mundo em noite. Lili arregala os olhos em surpresa. A criança é dionisíaca, o adulto é apolíneo. O trabalho do adulto se processa durante as horas bem delimitadas do dia, a forma que o adulto vê é diurna, solar, com as linhas das formas plenamente definidas, sem necessidade de recorrer a imaginação, que é a luz da noite para a criança.

Dessa maneira, a imaginação infantil adquire um aspecto de sagrado, como aquele nas Completas. As Completas acontecem com orações, exames de consciência, leituras bíblicas e cânticos. Curiosamente, muitas passagens e cânticos sugeridos para as Completas envolvem versos onde a luz da noite é guia:

Luz terna, suave, no meio da noite, Leva-me mais longe...

Não tenho aqui morada permanente: Leva-me mais longe... [...]

(LITURGIA, 2010, p. 65) Se me envolve a noite escura

E caminho sobre abismos de amargura, Nada temo porque a Luz está comigo. (LITURGIA, 2010, p. 305)

De noite descia a escada misteriosa Junto da pedra onde Jacob dormia.

De noite celebravas a Páscoa com teu povo Enquanto nas trevas caíam os inimigos. (LITURGIA, 2010, p. 525)

Esplendor que vem de Deus, Luz da Luz, fonte de vida: Brilhai sobre a humanidade Nas trevas escurecida (LITURGIA, 2010, p. 1376)

Obviamente a Liturgia das horas trata a luz enquanto símbolo do deus cristão, salvador, mantenedor e guia da humanidade. Entretanto, se substituirmos o valor religioso pelo poético que desejamos aqui, luz por imaginação, essas passagens das Completas adquirem um valor exatamente correspondente àquele em Noturno. Inquieta, a criança deseja ir através de sua imaginação para

outro lugar, é graças a faculdade imaginativa da criança que seu medo de experimentação se desfaz, que Lili, assim como poeta entra em contanto com mensagens de outro plano (convém lembrar a narrativa da escada de Jacó, por onde transitavam anjos) angelical, que para Quintana são os pais dos legítimos poetas "[...] os Anjos do Senhor estuprando as mais belas filhas dos mortais/ Deles, nascem os poetas. [...]"(QUINTANA, 2005, p. 485). Nas passagens noturnas da Liturgia das horas há também referências à Páscoa, símbolo do renascimento, da recriação, bem como referências a uma condição da humanidade que está "Nas trevas escurecida" (LITURGIA, 2010, p. 1376). Em Noturno também é preciso observar que a memória da menina à noite não se projeta diretamente ao passado imediato, isto é, a memória de Lili não se projeta para o dia, mas se projeta em direção a outro passado mais antigo: à lembrança é de outra noite de luar. A memória de Lili é atávica.

De alguma forma o luar afeta com o cão, a criança deduz pelo latido. Ela está sintonizada com o orgânico, afinada com o agir do animal. Lili entende o animal, se o cão late é por causa da lua. É o animal, através de seu latido, que desencadeia, via os sentidos (audição) a ação de Lili, que desencadeia suas lembranças, tal qual o bolinho de Proust. O animal foi isolado da civilização, da casa, não está dentro dela. Isola-se o animal no pátio, uma ilha, mas Lili está em sintonia com o pátio, não com o relógio no interior da casa. Relógio esse que desaparece na sua função mecânica de costurar o nada, o silêncio. A reação da menina é externa, ela arregala os olhos; e interna também, porquanto que, surpreendendo-se, seu interior se agita ao lembrar de outras noites de luar. O luar que move os instintos do cão no pátio, à semelhança de Buck em O chamado da floresta, é prontamente reconhecido pela menina. Em Lili a luz da lua impinge uma marca de emoção por outros momentos de aventura e/ou mistério vivenciados. É pela imaginação que Lili dentro do quarto sabe haver lunática beleza do lado de fora.

A luz da lua disponível diretamente ao cachorro, que está no pátio, no lado externo, só chega a Lili via memória, Lili imagina a luz de outra data. No poema Memória encontramos exatamente a mesma proposição: "Em nossa vida ainda ardem aqueles velhos, aqueles antigos lampiões de esquina/ Cuja luz não é bem a deste mundo... / Porque, na poesia, o tempo não existe! Ou acontece tudo ao mesmo tempo..." (QUINTANA, 2005, p. 899). É pela faculdade criadora de imagens do passado, a imaginação, que o passado se faz presente enquanto vestígio. A dinâmica da memória, ocorrendo no presente mas se arremessando ao passado, encontra-se no meio do caminho com a experiência anterior, vestígio lunar, de Lili. É a imagem das luzes anteriores, latentes antes do cachorro agir, que chegam até a memória de Lili. A luz que brilha nos lampiões de esquina dentro do eu lírico em Memória é imagem anterior que atávica retorna. A imagem que sai do passado e chega até o presente é atavismo. A ação que sai do presente e se desloca para o passado é memória.

A memória atávica é a imaginação, capacidade de formação de novas imagens baseada em experiência anterior.

Dessa forma, a história das sociedades e todo caminho pregresso do homem é um espaço aberto onde (re) criamos. Lili é uma invenção do adulto, como podemos ver no poema Álbum para colorir:

Não, não foi por humor negro que pus no que leste acima o título de "Conto azul". Costumamos pintar sempre de azul tudo o que se passou nos nossos quinze anos - talvez por um instinto de compensação.

Mas a infância, ó poetas, não é mesmo azul? Quanto a mim, eu venho há muito desconfiando de que a infância é uma invenção do adulto. E o passado, uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre, ainda quando foi uma lástima... A memória vai tudo colorindo.

(QUINTANA, 2005, p. 278)

No poema acima, Mario Quintana fez uma deliberada escolha para descrever o passado: um álbum. Álbum tem etimologia latina, que significa alvo, branco. Os álbuns eram placas onde os romanos escreviam. Mas álbum hoje em dia também significa esse livros com páginas em branco onde depositamos nossas fotografias, esperando que elas nos sirva de recordação no futuro. Álbuns são também catálogos indicadores de imagens que faltam mas que devem ser preenchidas, como nos álbuns de figurinhas.

Assim, o passado é uma local onde se imprime imagens. Em Álbum para colorir, o passado é branco, e transferimos a imagem (o colorido indica multiplicidade de visões) que quisermos a ele. Ao abrirmos um álbum, as imagens lá depositadas se projetam do passado e chegam até o presente da abertura. Mas o álbum é aberto em diferentes momentos, em diferentes presentes, contaminados de novas visões mais recentemente adquiridas. Logo, a cada nova abertura do álbum, aquelas imagens saltam do passado e chegam ao contemporâneo ressignificadas pelo presente, que reanalisa, reinterpreta. É por isso que o passado é um lugar aberto para o poeta gaúcho, pois é o presente que o colore. Para Quintana a imaginação tem um papel decisivo na mnemônica.

Álbum para colorir, mais uma vez, discorre sobre a memória atávica. De um lado, a abertura do álbum é memória, do outro lado, as imagens de um passado remoto que chegam ao presente são atavismos. A memória atávica é esse momento exato de reacomodação de valores na relação passado-presente. Essa ação, dissolve o tempo cronológico, "Porque, na poesia, o tempo não existe! Ou acontece tudo ao mesmo tempo..." (QUINTANA, 2005, p. 899). Dessa maneira, todo

poema seria uma ação consciente de rememoração atávica, movimento de partida do presente em direção do passado que se quer também presente.

Não é apenas a imagem do que foi feito que retorna para o presente, mas, também a imagem do que deixou de ser feito. A imagem em negativo também se constitui atávica, como

Documentos relacionados