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Percebamos que o eco do poema em O poema (QUINTANA, 2005, p. 202) não extingue os perfis; estes, apesar de serem deslocados42, continuam a existir. As linhas formadoras de perfis não são anuladas, são demovidas por elastecimento, fundição, diluição. Da mesma forma, o ser atávico é um ser novo, do presente, mas que carrega vestígios de insistente passado. A memória em Mario Quintana comunga com a porta-giratória, com a vaca e o hipogrifo, com o puzzle. Essa é a noção de verdade com a qual devemos abordar os quintanares: memória enquanto fonte infinita, multifacetada e persistente, da qual brota a realidade.

No poema Realidade temos que a vida/realidade se estabelece além do factual: "O fato é um aspecto secundário da realidade". (QUINTANA, 2005, p.838).

Ao tecer a proposição em volta de duas palavras chave: fato e realidade, Mario Quintana evoca imediatamente as palavras opostas: ficção e irrealidade. Para Realidade, o fato se empalidece frente do fictício: mais forte é a vida enquanto invenção, criação.

A vida só recorre aos fatos em segunda necessidade. Ao afirmar que "O fato é um aspecto secundário", Realidade questiona também quando é que o fato deixa de ser aspecto secundário para ser um aspecto primário. Pensamos que uma resposta a esse questionamento possa vir do seguinte poema: "Ante o Herói, num sorriso o teu pasmo transforma:/ Ele que faça História, e a desfaça, à vontade... /Pobre bárbaro, entregue à mais grosseira forma /Da múltipla e infinita realidade!" (QUINTANA, 2005, p. 225, LXXXI. Da ação).

Ao compararmos Realidade a LXXXI. Da ação, percebemos que o fato faz parte da realidade, mas é a testemunha "mais grosseira" dela, porque sendo a vida possibilidade de recriação, o fato fixa-se no exterior, distanciando-se e enfraquecendo o eixo da interioridade do indivíduo. O Herói, frente à possibilidade de recriação, recusa essa possibilidade só para si, preocupa-se em levá- la para o externo. A História, de acordo com LXXXI. Da ação, também é ficção, inventada; podendo ser criada e recriada, feita e desfeita.

Para Mario Quintana (QUINTANA, 2005, p. 241), não é perceptível a diferença entre história, estória e História; os fatos podem ser fictícios. Temos então que o fato é só um tipo de ficção que recorre à exterioridade, ao invés de permanecer no interior do sujeito. A verdade interna é maior do que a verdade da ação. Para os quintanares, sentir vem antes do agir. Sentir também é sinônimo de experimentar.

42"1 tirar ou sair das juntas, desconjuntar (-se), desarticular-se 2 mudar (algo) tirando do lugar [...] 3 fazer a transferência de (uma ou mais pessoas); transferir, remover 3.1 remover de posto, função ou posição (uma ou mais pessoas); transferir 4 mover-se (de um ponto para outro) [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 999).

Para Quintana a realidade parte da possibilidade de criação e nos indica a memória como um agente da experiência interna. Enquanto a memória permanecer interiorizada, ela será mais orgânica, mais refinada que a memória que alcançou as fronteiras do externo. Vejamos em Criatividade uma confirmação do que dizemos:

Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida - esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade. (QUINTANA, 2005, p.785, Criatividade)

Vemos em Criatividade a gradação de três classes: a) o relato, que é posição intermediária entre o indivíduo e a realidade – não verdadeira; criação acabada, por isso preterida; b) a memória, agente criativo que continuamente reinventa um referencial, por isso protegida; c) a poesia, que se pretende criadora sem ponto referencial, por isso preferida. Quanto mais interna, íntima, subjetiva, for a abertura para a possibilidade de mutação, mais verdadeira será a realidade: "Só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!" (QUINTANA, 2005, p. 593, O deixador). A experiência quanto mais for afastada do indivíduo e de sua força interna criativa menos real será. A memória enquanto fonte recria a vida/realidade/verdade espontaneamente, naturalmente; não é produzida; não é forçada, não se artificializa. A memória fica mais próxima do animalesco, não da civilização. Em Da saudosa distância, podemos perceber que através da memória o ser acessa nitidamente a diferença entre a vida/realidade/verdade e o não-vivo/irreal/falso:

Agora Maria acaba de me telefonar do Rio. Não era a voz dela. Havia algo de mecânico, de metálico, de inumano naquela voz, como se fora a voz de uma maria- robô. Faltava-lhe esse calor humano que só a presença animal de uma pessoa nos pode transmitir... e que faz com que qualquer mentira tenha tanta verdade! (QUINTANA, 2005, p.335, Da saudosa distância)

Compete-nos lembrar de que a mentira não é vista como danosa pelos quintanares; muito pelo contrário, ela é pró-vida/realidade/verdade, porque a mentira pode ser criação, possibilidade de acontecimento interior: "A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer." (QUINTANA, 2005, p.178, Mentira). Nos Quintanares, o termo mentira não é o mesmo que inverdade. Em Mario Quintana, mentira é sinônimo de ficção: "Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma/ carta.../ Antes escrever os Lusíadas!/ Com uma carta pode acontecer/ Que qualquer mentira venha a ser verdade...[...]" (QUINTANA, 2005, p.458, Carta desesperada).

A mentira não planeja suplantar a vida/realidade/verdade, ela planeja participar, interagir. O que Da saudosa distância nos apresenta com a figura de "maria-robô" é diferente da mentira, é um elemento que não deseja participar da vida/realidade/verdade, mas que deseja suplantá-la.

Maria-robô não apresenta arestas nem possibilidade de novidade advinda da espontaneidade. Maria-robô se projeta, pretende atingir a perfeição. Seus ganhos em civilização custam a perda do animalesco. Maria-robô é símbolo do falso. Desequilibra-se o humano em Maria-robô, porque o humano exige o sentir, "Faltava-lhe esse calor [...] que faz com que qualquer mentira tenha tanta verdade!" (QUINTANA, 2005, p. 785, Criatividade).

O referencial interno do indivíduo é estético, baseado no sentir e é esse referencial que delimitará sempre a esfera da vida/realidade verdade. O referencial estético dá salvo conduto para a mentira, desde que esta proporcione uma experiência legítima ao indivíduo: "E, sentados à sombra de uns olmeiros, trocaríamos falsas confidencias... cheias de sentimentos verdadeiros!" (QUINTANA, 2005, p. 609).

O que o referencial estético não salvaguarda são as exterioridades que não atingem o âmago do indivíduo, que não interagem com ele, que com ele nada intercambiam o que: "[...] só a presença animal de uma pessoa nos pode transmitir...[...]" (QUINTANA, 2005, p. 785, Criatividade, grifo nosso).

A vida/realidade/verdade advinda da memória engendra-se no dinamismo e no instinto do sentir, por isso recusa a apreensão definitiva e a mecanicidade. "Tudo pode sair muito mais bonito nas fotografias, mas sai muito mais verdadeiro nas pinturas." (QUINTANA, 2005, p. 320, A estranha verdade).

O atributo 'estranha' de A estranha verdade indica que apesar de desejarmos uma verdade baseada nas faculdades mecânicas da fotografia, a verdade, diferentemente de nossas expectativas, manifesta-se em um processo análogo ao da pintura, onde corpo e a mente do homem são requisitados.

Quando recuperamos os dois processos de apreensão de imagem, percebemos que na fotografia há a interferência mecânica, visando à apreensão definitiva e precisa. Percebemos que essa imagem tal qual apreendida pela máquina fotográfica é estática e não aceita manipulação, quer- se definitiva. Também notamos que o material onde se reproduz a imagem fotográfica, o papel, tem perecimento maior. O fotografar estabelece uma relação mais espaça, envolvem numerosos pontos de ligação: um fotógrafo, uma máquina, um filme fotográfico, um ser fotografado, o processamento da imagem por vias químicas, o papel.

Convém lembrar que a técnica chamada de fotografia por Mario Quintana não é a mesma concebida em nossos dias. A estranha verdade foi publicado em 1973, a tecnologia dos

computadores ainda era embrionária, a fotografia colorida era obtida por meio de filtros, a impressão mais comum era a preto e branco, não existia a câmera digital. A fotografia, apesar de envolver um obturador que jogava fundamentalmente com a luminosidade, fotografia significa literalmente escrita pela luz, era, na verdade, um jogo maior de cura de imagem em uma câmara sombria, sem visibilidade nenhuma. Em 1973, as limitações de impressão eram grandes, tamanhos de papel para reprodução de imagem eram padronizados, as imagens precisam submeter aos padrões. A fotografia, mesmo nos dias atuais, por adotar a norma da definição, recusa o movimento, sob pena de obter-se uma imagem embaçada, lograda.

Ao contrário da fotografia, a verdade personificada na pintura não se envolve com o mecânico, é uma atividade física, manual, baseada no jogo de fricção, de pressão do pincel sobre a superfície, jogo de movimento que precisa ser guiado pelo tato. O pintar estabelece uma relação mais estreita, envolvem menos recursos que a fotografia: uma mão, pincel e tintas, uma tela. Em geral, o processo de pintar envolve materiais mais duráveis que os da fotografia. Lembramos que as diversas técnicas de pintura datam dos tempos da pré-história e necessariamente não requer a presença do motivo a ser pintado, que pode ser recuperado via memória ou inventado.

A fotografia é dependente da materialidade do ser fotografado, a pintura não exige contato direto com o exterior. A memória do pintor pode recriar e recuperar pela imaginação as nuanças de luz e o posicionamento dos motivos da pintura. A pintura possibilita a alteração do que foi observado. Além do que, seu resultado imagético não foi submetido à força a um processo de ausência de luz afim de se tornar definitiva. Essa possibilidade de alteração da imagem, manipulação ao gosto do pintor, que manobra o pincel a fim de criar o que melhor lhe apetece também se alia à criação imprevista de novas tonalidades oriundas da miscigenação das tintas, da diluição de linhas definidoras, criação causada pelo pintor, mais além de seu controle.

O que A estranha verdade expressa ao atribuir verdade maior aos processos da pintura é que o referencial interno do indivíduo se rege pela capacidade de criação via estético: "Dizem eles, os pintores, que o assunto não passa de uma falta de assunto: tudo é apenas um jogo de cores e volumes. Mas eu, humanamente, continuo desconfiando que deve haver alguma diferença entre uma mulher nua e uma abóbora. (QUINTANA, 2005, p. 344, Da arte pura).

Da arte pura nega a verdade advinda de qualquer técnica, "[...] jogo de cores e volumes [...]"(QUINTANA, 2005, p. 344), que não seja primariamente a técnica orgânica, "[...] eu, humanamente [...]"(QUINTANA, 2005, p. 344), do sentir, "[...] uma mulher nua [...]"(QUINTANA, 2005, p. 344). Ao comparar duas telas, um retrato e uma natureza-morta, uma mulher e uma abóbora, Mario Quintana indica que algo interfere na produção artística. Tal interferência criadora

presente na tela é tendenciosa, tem motivação arbitrária, humana. A volição humana não se pintaria uma mulher nua com a mesma sensação que se tem ao pintar uma abóbora.

A mulher nua em Da arte pura não evoca somente o estético psicológico, mas o estético físico dos sentidos, tato, visão, olfato, paladar. Há implícita em Da arte pura que as experiências de pintar uma mulher nua ou tocá-la, visualizá-la, sentir seu cheiro, ou provar de um beijo, sejam experiências mais significativas sensorialmente, por isso mais verdadeiras do que passar pelas mesmas experiências com uma abóbora.

O sentir responsabiliza-se pela criação da vida/realidade/verdade, na medida em que ele é um eixo que gira em torno da lei da equivalência estética. A lei da equivalência estética em Mario Quintana determina que duas coisas se tornam equivalentes quando se harmonizam à percepção. São os sentidos são os responsáveis por coletar informações que serão armazenadas na memória.

Por esse parâmetro, mulher nua e abóbora não se equivalem, pois não se correspondem em harmonia aos sentidos humanos. Vejamos ainda outro exemplo onde os mesmos critérios são adotados: "[...] Quando digo que a lua vem andando esguia como um lírio, estou muito mais próximo da verdade do que se a comparasse a uma foice, uma gôndola, etc. [...]" (QUINTANA, 2005, p. 546, Sete variações sobre um mesmo tema, grifo nosso).

Sete variações sobre um mesmo tema fala de equivalências, na parte citada entendemos que a lei de equivalência exclui foice e gôndola como correspondes da lua, porque lua & foice ou lua & gôndola não se harmonizam à percepção sensória. A lei de equivalência estética aprova como verdadeira a associação entre lua & lírio, porque os termos se correspondem aos sentidos, especificamente ao tato, à visão e ao olfato. Lua e lírio se revelam durante a noite, quando a temperatura é mais amena. A lua de cor leitosa corresponde ao branco pálido do lírio. A flor ainda proporciona aroma à percepção.

Além disso, foice e gôndola são utensílios, elementos contrários à lua e lírio, que não possuem nenhuma outra utilidade humana a não ser a contemplação estética. Abóbora, foice e gôndola servem à necessidade material imediata, mais bruta: satisfação da fome, serventia instrumental, necessidade de transporte. Mulher nua, lua e lírio servem à outra necessidade, menos material, inda que imediata, mais refinada.

Será mais real, mais verdadeiro aquilo que mais se aproximar do abismo, como a pedra em O poema (QUINTANA, 2005, p. 197). Irreal, falso, distante da verdade e contrário à vida será tudo aquilo que se afastar do núcleo interior, não orbitar no referencial interno do indivíduo, eixo estético, onde deve gravitar o sentido.

O referencial interno do indivíduo instituidor da vida/realidade/verdade ainda pode ser verificado por oposição na figura do profeta que pode ser comparado com a figura do poeta, ambos

são videntes da verdade: "[...] O Profeta diz a todos: "eu vos trago a Verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, limita-se a dizer a cada um: 'eu te trago a minha verdade." (QUINTANA, 2005, p. 342, Carta).

O Profeta (QUINTANA, 2005, p. 342; 397; 449, 460; 467; 514; 552) às vezes é substituída pelo Arcanjo (QUINTANA, 2005, p. 100; 292; 800), são figuras que se prestam a representação irônica e crítica da mensagem ou dos mensageiros.

Profeta e Arcanjo se diferenciam ainda de outra figura de mensageiro, a do Anjo que, quando não seguido de epíteto, que frequentemente equivale a poeta (QUINTANA, 2005, p. 342; 345; 485; 902; 923).

Em Carta, a diferença essencial entre esses mensageiros reside no pronome possessivo 'meu/minha'. Desse pronome não devemos inferir que a voz lírica defenda o pensamento mais superficial de que cada ser, inclusive o poeta tem uma verdade tão válida como a dos demais seres humanos. Dizer que cada ser teria a verdade plena seria o mesmo que dizer que tudo é válido e a favor da vida, que tudo é real e verdadeiro, como temos estudado até o momento, esse pensamento não se sustenta. Existe a inverdade que prega a imobilidade com seus contornos delineados para todos. De acordo com Quintana, isso não representa a vida.

É mais adequado interpretar o pronome possessivo como indicativo de que a verdade defendida pelo poeta é fundada a partir da experiência própria, interna, a verdade do poeta vem de dentro para fora. Atentemos que Profeta e poeta são grafados de formas distintas em Carta, isto é, profeta é marcado com inicial maiúscula.

A intenção expressiva com o pê maiúsculo é irônica. Na medida em que se desenha o Profeta como mensageiro revestido de autoridade e portador de uma verdade, destrói-se essa imagem com o pê minúsculo do poeta, figura que se assume menor, sem autoridade, mas portador de uma verdade maior.

Nesse caso, a verdade do poeta é maior porque ele a conhece, enquanto que a mensagem do Profeta não parte de seu interior, é externa, produzida por outrem.

Assim, a voz lírica abre o questionamento acerca de qual mensagem é mais digna de crédito, a mensagem do Profeta, não possuída por ele, não intimamente ligada a ele, que não parte de seu próprio referencial interior, ou a mensagem do poeta, posse própria, intimamente produzida e provada, experiência que parte de seu próprio referencial interior. O profeta tem visões que não são suas e sobre um futuro alheio.

A cultura popular, embasada na tradição judaico-cristã, tende a ver o profeta como mensageiro do deus Eu-Sou. A mensagem proferida pelo profeta é de origem superior, única, exata, de certo desfecho, um fato, marcada pela gravidade e pela maturidade da enunciação. Geralmente as

mensagens dos profetas demanda alteração comportamental que deverá ser cumprido, sob pena de punição frequentemente adendo nas mensagens proféticas. Mesmo quando tratam de boas-novas, elas trazem alguma relação com o trágico.

Ao contrastar profeta e poeta, Mario Quintana ironiza as mensagens do primeiro, que possui voz "[...] bramidora e cava [...]" (QUINTANA, 2005, p. 461). "[...] tempestuosa [...]" (QUINTANA, 2005, p. 496), diferente da voz do poeta, que é "[...] um fluir de pura fonte oculta [...]"(QUINTANA, 2005, p. 461). A mensagem do poeta é branda, orgânica; constata o comportamento, não pede alteração; diz da relatividade, não de uma palavra-lei, que não poderá ser alterada.

Anteriormente (BARATA, 2010), vimos que o humor em Mario Quintana não é satírico, mas concebe seu trabalho pelo humour43. O problema que coloca Quintana na verdade do Profeta é que

ela não admite ter sido criada, inventada, produzida pelo próprio indivíduo a partir de suas próprias experiências internas e sensíveis, isto é, ficção, mas não por isso irrealidade. Mais agudamente, o trabalho do poeta, diz Quintana, é quase o mesmo da função do poeta, que é dar expressão à beleza, que é a vida/realidade/verdade, por meio das palavras:

Para os homens, que eram cegos, Tu querias, Profeta, dizer a Verdade

E os olhos dos homens iluminaram-se de êxtase: As tuas palavras estavam cobertas, ajaezadas,

Como esses cadáveres floridos de algas e espumas que as dragas levantam do fundo do abismo...

Tu quiseste dizer a Verdade e disseste a Beleza! E choraste.

Mas os anjos sorriam-te...

Porque a Beleza é a forma angélica da Verdade. (QUINTANA, 2005, p. 450, O profeta)

Vemos em O profeta que há muito pouca distinção entre papel do poeta e do profeta, a distinção, como já dissemos, reside em assumir ou não a palavra como criação sensível sua, múltipla, não fixa. Em O profeta, a voz lírica conta de um ser frustrado por não ter atingido a verdade, não porque a verdade não exista, mas porque ela não é singular, única. A voz lírica consola o Profeta, dizendo que ele conseguiu, sim, atingir a verdade/realidade, uma vez que ele conseguiu atingir a beleza que é uma forma da verdade. No entanto, precisamos admitir que nesse poema a

43 "A comicidade do humour acontece quando o indivíduo toma para si, adiciona a si o que é risível do outro. Dessa maneira, aquele que ri através do humour ri do outro e ri de si mesmo." (BARATA, 2010, p. 131). O humour exige pé de igualdade entre aquele que rir e aquele de quem se ri. Aquele que rir não se considera melhor do que aquele de quem se ri.

verdade é carente do pronome possessivo ‘meu/minha’, presente em Carta (QUINTANA, 2005, p. 342).

Para evidenciar que a verdade foi descoberta no próprio interior do profeta, a voz lírica expõe: "[...] As tuas palavras estavam cobertas, ajaezadas, / Como esses cadáveres floridos de algas e espumas que/ as dragas levantam do fundo do abismo..." (QUINTANA, 2005, p. 450, O profeta). Ou seja, o profeta arma as palavras que tira de si para o movimento, como quem prepara um cavalo para cavalgadura; a armação das palavras do Profeta é ornada, assim como os jaezes são arreios ornamentados.

Mais uma vez um quintanar remete a palavra abismo: "cadáveres [...] que/as dragas levantam do fundo do abismo." (QUINTANA, 2005, p. 450, O profeta). O Profeta agiu como uma a draga, recuperando coisas antes imersas. O profeta ornou o que ele foi achando pelas suas pronfundezas em direção.palavra. A palavra do poeta trouxe à luz coisas que estavam inativas e mortas em direção ao movimento, devolvendo-lhes vida.

Duas outras palavras chamam atenção em O profeta: cegos, no primeiro verso e iluminaram- se, no terceiro verso. Tal atenção se dá porque essas figuras reaparecem em outro poema, Carrossel:

A coisa mais impressionante que existe são os olhos dos cavalos de carrossel, olhos que parecem estar gritando "avante!" - enquanto eles, nos altibaixos do galope, jamais podem sair do mesmo círculo. Já ouvi dizer que as tribos primitivas vazavam os olhos dos poetas... Também deviam ser assim os olhos dos Profetas, porque a sua luz não era deste mundo. E aos homens assustava-os a beleza e a verdade. Ah, meus pobres cavalinhos de pau que acabo de encontrar parados no parque deserto.., será que fiz um comício? Não há de ser nada... Em todo caso, do modo como falei, dir-se-ia que a beleza e a verdade são as duas faces da mesma moeda. Nada disso: elas são a mesma moeda. Tanto assim que, quando o sábio joga cara ou coroa, encontra a beleza e, quando o poeta joga cara ou coroa, encontra a verdade. (QUINTANA, 2005, p. 509).

O carrossel um brinquedo feito de cavalos esculpidos para simular o trote. O movimento dos cavalos do carrossel é circularmente ritmado, retorna continuamente ao ponto onde iniciou seu trajeto. Os "altibaixos" de seu movimento circular evocam os movimentos da roda da fortuna44. A simbologia estabelecida no início de Carrossel é a de avanço, mesmo no retorno e nas alterações entre as posições do alto e baixo.

Os olhos do cavalo do carrossel expressam persistência, olhos que irradiam um conhecimento não pertencente ao seu exterior. Os olhos do poeta e do Profeta são também como os

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