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Memória atávica: a estética da loucura em Mário Quintana

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDER AL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM. MEMÓRIA ATÁVICA Estética da loucura em Mario Quintana. CARLOS ROBERTO RODRIGUES BARATA JÚNIOR. Natal/RN 2017.

(2) MEMÓRIA ATÁVICA Estética da loucura em Mario Quintana. CARLOS ROBERTO RODRIGUES BARATA JÚNIOR. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte sob a orientação do Prof. Dr. Derivaldo dos Santos, com vistas à obtenção do título de doutor.. Natal/RN 2017.

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(5) Dedico a André.

(6) AGRADEÇO A Vô, in memoriam. À minha avó Ana, Por ter me ensinado a ler. À minha avó Claudina, Pelo carinho. Ao professor e orientador Derivaldo dos Santos, Pelas injeções de coragem, pela amizade, pela paciência, pelo inefável. À professora Sandra Sassetti Fernandes Erickson, Pela guia numinosa. Às professoras Tânia Lima e Valdenides Dias, Por desempenar este trabalho quando do exame de qualificação. Aos professores Ilza Matias e Marcos Falleiros, Pelos sopros apolíneos. Às professoras Dona Lourdes e Lusivandra Teiga, Pelo exemplo. Ao caro Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN, em especial ajuda constante de Beth e Gabriel Uchôa. À minha mãe, Pela amizade. Ao meu pai, Pela amizade. Aos meus poderosos companheiros de bordo, Eliane da Silva, Francisco Vitoriano, Helissa Medeiros, Laurytha Carlos, Lígia de Melo e Renah Santos, indispensáveis para a conclusão deste trabalho. Aos meus alunos e colegas de trabalho da UFRN em Currais Novos. Aos meus alunos da UFERSA em Caraúbas. A Edilson Aureliano, Por todas as charges produzidas exclusivamente para este texto..

(7) RESUMO Este trabalho tem como objetivo investigar as acepções do termo “loucura” e de seus numerosos derivados na obra do poeta Mario Quintana (1906-1994). Por pouco mais de meio século, o escritor gaúcho entrelaçou insistentes imagens em um plano estético unificado, com vistas a questionar os conceitos de razão e de consciência. O poema Atavismo (1977) se ofereceu para servir ao mesmo tempo enquanto ponto de partida e eixo central para nossas análises. Conduzido por Atavismo, este estudo observou que os termos “loucura” e “poesia” têm ambos a mesma gênese: uma memória atávica. Por isso, foi preciso que considerássemos as inferências sobre o atavismo, conceito das ciências biológicas relativo a um tipo especial de memória e, também, a memória ela mesma. Na redundância proposital formada pelo adjetivo “atávica” e pelo substantivo “memória”, o poeta nos induz à percepção de que a discussão sobre a loucura/poesia orbita em torno de um problema coletivo, isto é, social, em sua relação com os tempos e com os valores dos tempos. A compreensão assumida é a de que o(s) termo(s) loucura/poesia se erige(m) como antítese de formas específicas das configurações sociais vigentes, sejam elas políticas, artísticas, econômicas ou culturais. É, na busca do entendimento dessa antítese, que apregoa formas mais espontâneas de vida que este trabalho finaliza seus esforços, apurando as figuras e recursos estéticos com os quais o poeta incorporou seu intento: a criança, o louco, Trebizonda e outros adidos no elenco linguístico quintaniano. Por trabalharmos com uma poética bem articulada em si, a leitura interligada dos poemas de Mario Quintana se sustenta por si mesma, mas não se institui necessariamente hermética, exclusiva. Sendo esta uma pesquisa qualitativa, e não havendo fortuna crítica que verse sobre a temática, a melhor forma de trabalho é, antes de tudo, a leitura atenta dos poemas e a anuência de suas próprias vozes. Entretanto, isso não impede que lancemos mão de outros textos e elementos elucidativos que subsidiem esta pesquisa com aportes teóricos, críticos, estéticos e filosóficos. Dessa forma, é de grande valia a intersecção dos poemas com outras vozes, tais quais, Sófocles (497?-406? a.C.), Shakespeare (1560?-1616), Machado de Assis (1839-1908), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Salvador Dalí (1904-1989), Jacques Le Goff (1924-), Michel Foucault (1926-1984), Ecléa Bosi, dentre outras. Tais vozes impulsionam apontamentos críticos mais ricos acerca de uma obra brasileira propagada durante uma vida inteira em defesa de uma humanidade além da lógica cartesiana. Palavras-chave: Loucura. Memória. Poesia. Sociedade..

(8) ABSTRACT This work aims to investigate the meanings of the trope “madness” and its many derivatives in the work of the Brazilian poet Mario Quintana (1906-1994). The Southern poet worked for over half a century with an aesthetic unified plan, like a tapestry of recurring images, in an attempt to question the concepts of reason and conscience. The poem Atavismo (1977) offers itself as a central axle to our analysis. Guided by Atavismo, this study observed the terms “madness” and “poetry” have the same genesis: an atavistic memory. In order to do so, it was necessary to consider inferences about atavism, a concept from Biology concerned to a special type of memory and about memory itself. Because its redundant insistence with the adjective “atavist” as an attribute of memory, the poet lead us to the perception that the discussion about madness/poetry turns around a collective problem, that is a social problem in relation with time and the values of time. The comprehension is that the terms madness/poetry are built as an antithesis of specific social settings like political, artistic, economic and cultural backgrounds. Trying to achieve a comprehension of such antithesis that defends more spontaneous ways of life, his work walks towards its end analyzing the tropes and aesthetical resources with which the poet embodied his plan: the child, the madman, Trebizon and other attachés in the Quintanian linguistic cast. Since we have been working with a very articulated poetics, a connected reading of the poems is desirable, which does not mean hermetic or exclusive. However, this approach does not prevent lay hold of other texts and explanatory elements that support this research with theoretical, critical, aesthetic and philosophical contributions. Therefore, the intersection of the poems with the voices of texts like Sophocles (497?-406? BC), William Shakespeare (1560?-1616), Machado de Assis (1839-1908), Mikhail Bakhtin (18951975), Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Salvador Dalí (1904-1989), Jacques Le Goff (1924-), Michel Foucault (1926-1984), Ecléa Bosi among others. Such voices promote richer critical notes about a Brazilian work spread over a lifetime in defense of a humanity beyond Cartesian logic. Keywords: Madness. Memory. Poetry. Society..

(9) RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo investigar los diferentes significados del concepto locura y sus cuantiosos sentidos en la obra del poeta brasileño Mario Quintana (19061994). Por cerca de poco más de medio siglo, el escritor riograndense entrecruzó insistentes imágenes, en un plano estético unificado, con el fin de cuestionar los conceptos de razón y conciencia. El poema Atavismo (1977) se ofreció para servir simultáneamente como punto de partida y eje central de nuestro análisis. Conducido por Atavismo, este estudio encontró que los términos “locura” y “poesia” tienen la misma génesis: una memoria atávica. Por eso fue necesario que considerásemos las inferencias en relación a lo atávico, como concepto de las ciencias biológicas relativo a un tipo especial de memoria, así como sobre la memoria misma. En la redundancia deliberada, formada por el adjetivo “atávica” y el sustantivo “memória”, el poeta nos induce a la percepción de que la discusión acerca de la locura/poesía gira alrededor de un problema colectivo, es decir, social, en su relación con los tiempos y con los valores de esos tiempos. La comprensión asumida es que lo(s) términos(s) “locura”/“poesia” se erige(n) como antítesis de las formas específicas de los entornos sociales actuales, ya sean políticas, artísticas, económicas o culturales. Es en la búsqueda de la comprensión de esta antítesis que se aprecian formas más espontáneas de vida donde esta obra finaliza sus esfuerzos; el cálculo de las cifras y los recursos estéticos con la que el poeta ha introducido su intención: el niño, el loco, Trebisonda y otros agregados al elenco lingüístico quintaniano. Al trabajar con una poética naturalmente bien articulada, la lectura interconectada de los poemas de Mario Quintana se sostiene por sí misma, sin necesariamente ser hermética o exclusiva. Dado que se trata de una investigación cualitativa y no habiendo una colección crítica que abordase la temática, la mejor manera de trabajar ha sido, ante todo, una lectura cuidadosa de los poemas y el consentimiento de sus propias voces. No obstante, esto no ha impedido que se haya podido utilizar otros textos y elementos explicativos que apoyen esta investigación con aportes teóricos, críticos, estéticos y filosóficos. Por lo tanto, destacamos el enorme valor en la intersección de los poemas con otras voces, tales como: Sófocles (497?-406? aC), Shakespeare (1560?-1616), Machado de Assis (1839-1908), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Salvador Dalí (1904-1989), Jacques Le Goff (1924-), Michel Foucault (1926-1984), Ecléa Bosi, entre otras. Tales voces impulsan, tal vez, notas críticas más ricas sobre una obra brasileña diseminada durante toda una vida en defensa de la humanidad y más allá de la lógica cartesiana. Palabras clave: Locura. Memoria. Poesía. Sociedad.

(10) O poema. O poema é uma pedra no abismo, O eco do poema desloca os perfis: Para bem das águas e das almas Assassinemos o poeta.. Mario Quintana.

(11) 11. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................................12 1 ATAVISMO .......…………............................................................................................................26 1.1 Uma leitura darwinista ................................................................................................................30 1.2 Ressignificação poética .…................................................................................................…......39 1.3 Uma tradição atávica....................................................................................................................54 2 MEMÓRIA ...................................................................................................................................85 2.1 À lembrança da lua ..............................................................................................…...................96 2.2 Quem não se lembra, inventa .........…...................................................................................... 111 2.3 Memória enlouquecida ............................................................................................................ 131 3 LOUCURA................................................................................................................................. 149 3.1 O eco do poema........................................................................................................................ 164 3.2 O aulos de Atenas..................................................................................................................... 176 3.3 A canção da vida....................................................................................................................... 183 3.4 Cortinas de Tule ....................................................................................................................... 201 CONCLUSÃO ...............................................................................................................................215 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 220 ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES .................................................................................................. 231.

(12) 12. INTRODUÇÃO O ano é o de 1940, nasce A rua dos cataventos, primeiro livro de poemas de Mario Quintana. Ele, aos trinta e seis anos, mais um gaúcho interiorano residente na Porto Alegre em vias de modernização. O livro, arregimentação de sonetos em meio à efervescência produzida pelo contexto artístico disseminado em 1922. Publicar uma obra de sonetos em plena expansão moderna poderia ser um despropósito, algo simples, ou até mesmo um deslocamento superficial. Entretanto, publicar um livro cujo primeiro poema trouxe um tema recorrente nos próximos quarenta e quatro anos é um fato pelo menos digno de atenção. Julgou-se (BARATA, 2010, p. 29) que o primeiro soneto de A rua dos cataventos fosse a plântula de tudo quanto se pode colher na obra quintaniana, poeta germinado pelas Musas. O soneto de número 1 apresenta-nos o termo “doidivanas” (QUINTANA, 2005, p. 85, I) que se desdobrará como um leque das referências diretas que podem ser constatadas em toda a obra quintaniana. Neste momento, não nos assenta demorada exposição em torno do termo loucura; ora porque prolífico, ora por causa do vasto número de obras que minuciosamente já versam sobre ele. Contudo, convém apontar alguns traços característicos àquilo sugerido pelo teor quintaniano. A fundamentação primeira a da qual parte esta pesquisa é a relação quintaniana entre poesia e loucura. Relação dual, de similitude, mas diferençada, como podemos ver no poema a seguir, cujo título é Simultaneidade: – Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! – Você é louco? – Não, sou poeta. (QUINTANA, 2005, p. 535). Mario Quintana insiste nessa dualidade em “A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida.” (QUINTANA, 2005, p. 828, A diferença). Em alguns momentos, os quintanares podem até intercambiar os termos “poesia” e “loucura”, como em Ah, vida... “[...] E a única criatura com quem Gelsomina conseguiu entender-se (aliás, um trágico entendimento) foi com o Louco, isto é, com a Poesia...” (QUINTANA, 2005, p. 815, Ah, vida...). Nossa pesquisa de mestrado (BARATA, 2010) nos conduziu ao que se pensa ser proposta estética geral dos quintanares. Diz-se proposta estética por causa da notória intencionalidade de expressar artisticamente, ou seja, aos sentidos, aquilo que foi pe[n]sado pelo intelecto. Tal vértice.

(13) 13. estético quintaniano se revela avesso à linha reta, ao retrato, à cor sólida, à sisudez, ao iluminismo, ao positivismo, aos planejados fitos. Em contrapartida, o estético em Mario Quintana se avizinha da curva, da paisagem, do verde, do grotesco, do sublime, do movimento, da antimodernidade e do sensível. Dito de outra forma: através da comunicação poética, o poeta gaúcho tem intenções de revelar a humanidade como orgânica, sensível e majoritariamente não fenomenológica: Um dia o Diabo viu uma criança fazendo com o dedo um buraco na areia e perguntou-lhe que diabo de coisa estaria fazendo. - Ué! Não vês? Estou fazendo com o dedo um buraco na areia! espantou-se a criança. Pobre Diabo! O seu mal é que ele jamais compreenderá que uma coisa possa ser feita sem segundas intenções. (QUINTANA, 2005, p. 334, O diabo e a criança). No poema acima, temos o cruzamento de informações para a crítica do leitor: o diabo, símbolo do que não é bom, do que não é o bem; e a criança, seu antagonista, como outro símbolo importante, o bom. Mais importante que as personagens é o desfecho, cuja percepção nos é possível pela engenharia linguística: a da abertura ao espanto, à novidade. A relação entre o diabo e a criança fica suspensa em incompreensão. Cada indivíduo, nessa participação, pensa o outro como louco, mas a voz lírica toma partido da criança: o mais razoável é a desrazão das ações do ser infantil do que a razão esperada sempre pelo demônio. Diabo e criança ficam espantados espanto com o outro: ela porque ele não entende o óbvio, que é a abertura e a exploração às infinitas possibilidades, principalmente as despropositadas; a velha serpente se espanta pelo cerco das ações humanas, que as limita a ter um propósito. O diabo e criança é apenas um poema dentre muitos que totalizam a rica proposta estética quintaniana, a estética do Eterno Espanto, como já a nomeamos (BARATA, 2010). Assessorados por tais análises feitas em torno de uma poesia dialógica, isto é, social, havíamos constatado que o quintanar não se isenta do desejo de participação no coletivo (BARATA, 2010). Vejamos que o uso linguístico em O diabo e a criança não é apenas interativo, mas é também transacional. Esse aspecto de negociação de valores e conceitos são práticas sociais. Associando-se tais discussões a um nível de teor brincalhão, surge como resultado um atributo marcante para a obra de Mario Quintana, uma leveza que é típica da Arte pela Arte, mas destoante da Arte pela Arte em conteúdo, porque não se alheia ao social. Se não é assumidamente Arte Engajada, o quintanar também não é Arte pela Arte. E é essa procura por situar tal poética e seu lugar dentro dessas duas dimensões que buscamos continuar investigando: a impossibilidade de apreensão de tudo que é humano pela razão, pela doxa, pelo.

(14) 14. consenso; porque, para a existência do eterno espanto, são necessários o desconhecido, o estranho, o grotesco, a suspensão de valores, a loucura. Mas o que seria a loucura nos quintanares? Apenas negação da lógica cartesiana? Recusa da consciência? Desprezo pelo senso comum ou pelo bom senso? Esquecimento da História? Ao mesmo tempo em que a notória aparição que marca a loucura como outro tema-chave, crucial para a compreensão da obra de um dos mais importantes poetas brasileiros, abraçamos a hipótese de que os quintanares estão a falar da loucura de um modo diferente e peculiar, compreensivo e cúmplice. Se Mario Quintana, por vezes, intercambia os termos “loucura” e “poesia”, queremos conduzir a troca desses vocábulos através da leitura da noção de pseudofruto, como o caju (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 564). O caju tem a aparência de um fruto, mas não o é. A qualidade comunicada pelo antepositivo “pseudo-” não é o mesmo que ‘falso’, ‘mentiroso’, ‘fictício’; o atributo “pseudo-”, nesse caso, é o mesmo que feição. Para o homem, o caju não é uma fruta mentirosa ou enganosa, mas sim algo que possui cor e cheiro, se porta e é consumido como uma fruta. Quando os quintanares dizem que a poesia é o mesmo que/é análogo a/é diferente da loucura, podemos afirmar que é uma pseudoloucura. Nesse caso, não é uma loucura inventada, simulada ou fictícia, mas que se porta com os mesmos aspectos da loucura. Explicando por outras vias: a obra de Mario Quintana não nos apresenta uma comparação entre poesia e loucura através de “como”, conjunção comparativa; tal relação também não se dá por metáfora, nem por catacrese, já que são empregados dois termos. Poesia e loucura, nos quintanares, se permutam metonimicamente, por causa de suas semelhanças conceituais. Pretendemos transpor para o discurso crítico, mediador social, as concepções estéticas atinentes à loucura, tema quintaniano alusivo ao eixo dialógico1. poesia/sociedade, assumindo-se sempre que a poesia, em face do todo social, seja análoga à loucura. Sem contranitência às outras áreas científicas, nossa pesquisa esquivar-se-á, frequentemente, das leituras médica e psicológica. Da primeira, por causa das suas conclusões embrionárias sobre a loucura enquanto patologia clínica; da segunda, devido ao desdém que tal perspectiva gera no poeta em questão: “A psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora.” (QUINTANA, 2005, p. 251). Entretanto, isso não implicará em interdição de referências a elas, quer para abordar apontamentos contidos nos poemas, quer para fundamentar nossa leitura. 1Conceito desenvolvido pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). “O Dialogismo como conceito desenha a linguagem como resposta à vida e vice-versa. Apesar de conservarem sua singularidade, elas se perpassam ao ponto de não se poder divisá-las. ” (BARATA, 2010, p. 10).

(15) 15. Tentamos justificar a necessidade desta pesquisa em Literatura Comparada partindo de uma crença comum a outros críticos, que enxergam a poesia como um bem social: O povo que cessa no cuidado da sua herança cultural se transforma em bárbaro; o povo que cessa de produzir literatura cessa seu mover no pensamento e na sensibilidade. A poesia de um povo toma sua vida da fala do povo e em retorno devolve vida para ela; e representa sua mais alta consciência, seu maior poder e sua mais delicada sensibilidade. (ELIOT, 1986, p. 5, tradução nossa). É, por isso, também que optamos por inserir nosso trabalho em uma área harmônica com o tema, a de estudos de Literatura e Memória Cultural, uma vez que a proposta é sugerida pelos próprios quintanares: loucura em simultânea oposição e aliança à consciência, que é especificamente o saber compartilhado com/para o social. O título desta tese ainda remete à insistência em não separar nossos estudos do seio materno da arte, criação humana para a expressão do sensível. Esta propositura se filia à área e é amparada por críticos como Mikhail Bakhtin: Antes de mais nada, os estudos literários devem estabelecer um vínculo mais estreito com a história da cultura. A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável separá-la do resto da cultura […]. (BAKHTIN, 2003, p. 360). Aos termos em mão um trabalho literário acerca da loucura, nada mais sensato que o guiar pelo campo dos estudos culturais, onde suas conjecturas responsáveis pelo estabelecimento de conceitos como realidade, imaginação, normalidade e loucura serão revisadas. Ademais, até o momento não existia nenhuma pesquisa que contrastasse os quintanares ao pensamento acerca da loucura especificamente, espaço fértil e apto a suscitar esclarecimentos válidos ao recrudescimento de uma obra não alheada à leitura da sociedade e importante para a sociedade brasileira, onde se insere. Acreditamos que a forma mais adequada para a investigação da obra quintaniana seja através da pesquisa qualitativa, via procedimentos indutivo-científicos; donde partiremos das ocorrências. particulares,. almejando. chegar. a. um. núcleo. geral. da. relação. loucura/sociedade/poesia/loucura nos quintanares. Primeiramente, tomaremos por diretriz a leitura hermenêutica da loucura dentro da integralidade da obra de Mario Quintana. Obtendo uma visão coesa de como essa temática se revela, a pesquisa desdobrar-se-á em interpretações que se valerão da oscilação e articulação entre o estético e o social. Para tanto, nossa pauta será a de apreciações comparatistas amparadas por.

(16) 16. iniciais pressupostos teóricos, a saber: as análises dialógicas de Mikhail Bakhtin são tomadas como guia teórica para todo este estudo. À semelhança do ocorrido em nossa pesquisa de mestrado, assumimos que o poema não foge ao governo da língua, e esta é guiada pelo timão da sociedade. À de Bakhtin, como eixo teórico central em todo o estudo, juntamos a leitura que Theodor Adorno faz da arte “como antítese social da sociedade” (ADORNO, 2008, p. 21). A pesquisa também fará uso dos recursos interpretativos oferecidos pelos conceitos de tradição, elaborados por T. S. Elliot (1986); aliados aos de memória, trazidos por Jacques Le Goff (2003) e Bornheim (1987), uma vez que estaremos sempre assumindo a inserção de Mario Quintana em tradições discursivas, sociais, literárias e estéticas, tais quais, tradição atávica, tradição mnemônica e a tradição da loucura. Utilizaremos também conceitos propostos por Michel Foucault (2008). Em momentos oportunos, outros vultos teóricos sempre serão bem acolhidos. Todo quintanar, como perceberemos durante nossas análises, deseja caminhar e, conosco, lado a lado, indicar o caminho para sua própria compreensão. A teia estético-filosófica do quintanar é complexa, e se engana o cientista que a quiser enquadrar antes da análise, durante sua leitura ou no pós-exame. Admoesta-nos o método um quintanar específico, Leitura interrompida: A nossa vida nunca chega ao fim. Isto é, nunca termina no fim. como se alguém estivesse lendo um romance e achasse o enredo enfadonho e, interrompendo, com um bocejo, a leitura, fechasse o livro e guardasse na estante. E deixasse o herói, os comparsas, as ações, os gestos, tudo ali esperando, esperando… Como naquele jogo a que chamavam brincar de estátua. Como num filme que parou de súbito. (QUINTANA, 2005, p. 509). Acima temos a voz dos quintanares sobre si mesmos: eles brincam de estátua, param de súbito, esperam sempre por mais. Mesmo quando chegam ao fim, eles não terminam. No máximo, o que dá para fazer aqui é permitir que, primeiro, fale o poema, e, então, a cada capítulo, se reúnam, em torno dele, vozes afins ou dissonantes que deem conta de amplificar a sua própria voz. A voz teórica virá em socorro nosso para auxiliar na compreensão dos versos, para mais bem lê-los. Servimo-nos da leitura crítica, não transformamos o poema em escravo dela. As teorias associadas à leitura em cada parte existem em função do poema, e não o contrário. O poema que dá origem à problemática de nosso estudo, cujos termos internos rearranjamos para intitular nossa pesquisa, e que é o axis em torno do qual gravitam todas as nossas discussões é Atavismo (1957):.

(17) 17 As crianças, os poetas, e talvez esses incompreendidos, os loucos, têm uma memória atávica das coisas. Por isso julgam alguns que o seu mundo não é propriamente este. Ah, nem queiras saber… Eles estão neste mundo há muito mais tempo do que nós! (QUINTANA, 2005, p. 575, Atavismo, grifo nosso). Atavismo não foi escolhido aleatoriamente dentre os tantos quintanares que versam sobre a loucura. Inicialmente percebemos que ele é uma espécie de resumo ou gérmen explicativo de causa. Além de simplesmente apontar correlações entre loucura e poesia, esse poema diz que a loucura é causada por uma memória atávica. E, como o que pretendemos é averiguar qual o significado da loucura nos quintanares e, através de tal descoberta, saber um pouco mais sobre o que pensa da natureza da poesia os próprios quintanares, nada melhor que investigar a origem da loucura. Por isso, optamos por desarticular o texto. A desconstrução, todavia, busca estudar como cada parte dele se articula com o todo e, em última análise, vislumbrar o que isso nos acrescenta à compreensão da obra de Mario Quintana em totalidade. À vista disso, esta tese se encontra dividida em três partes principais: Atavismo, Memória e Loucura. Simétricos, os capítulos Atavismo e Memória buscam entender o que os quintanares concebem por cada conceito. Apesar de a natureza dos termos atavismo e memória terem naturezas vinculadas, foi necessário estudar cada um deles quase em separado, semi-independentemente. O primeiro capítulo demonstra o estado da arte do termo “atavismo” no campo estético, seus primórdios, suas significações, ou seja, o que artistas como Jack London (1876-1916) tinham em mente quando decidiram lançar mão criativa sobre um vocábulo não pertencente às ciências humanas. Nisso temos um poeta gaúcho que sabe estar inserido em uma tradição, que não fala sozinho, mas que dialoga com os seus pares literatos e com a sociedade como um todo, inclusive com a ala científica. Aos poucos, perceberemos o que Mario Quintana quer que seja compreendido com a isca da terminologia biológica em seu quintanar. Por sua vez, Atavismo desdobrar-se-á em três subcapítulos. O primeiro desses é Uma leitura darwinista, seção importante que analisa a formação do termo “atavismo” e busca a sua compreensão do particular semântico para o universal em Quintana. Ao buscar as origens biológicas do termo atavismo, discutimos os fundamentos físicos, seu engendro, características de seu funcionamento, distorções do termo, limitações, dissensos e a perspectiva atual. Vozes do mundo biológico e psicológico se alternam na tentativa de elucidar ao leitor pouco afeito ao termo-chave o que ele significa estritamente. A pedido do poema Atavismo, vozes importantes para a compreensão do termo se arregimentam em auxílio, como as de Charles Darwin (1809-1882), Stephen Jay Gould (1941-2002).

(18) 18. e Brian Hall (1941-), respeitável pesquisador do fenômeno, com quem esta pesquisa teve contato direto. Outras vozes notórias, como a de Cesare Lombroso (1835-1909), também surgem. Entretanto, uma vez que o interesse do artista é ressignificar a vida, “atavismo” não poderia sobreviver na arte sem a ocorrência dessa transformação. Por isso, o terceiro subcapítulo averigua quais deslocamentos Mario Quintana dá ao termo e quais tonalidades o poeta imprime neles. Em Ressignificação poética, subcapítulo seguinte, o interesse é no câmbio do termo da esfera biológica para a social. É aí que percebemos que o abundante número de outros artistas tem intenção semelhante à quintaniana, fazendo do poeta gaúcho um integrante de uma ampla malha que discute a seleção natural enquanto seleção social e a evolução biológica enquanto transformação mental do indivíduo e da sociedade da qual faz parte. Nesse caso, que nomeamos de Tradição atávica, percebemos uma bifurcação com uma saída positiva, que se harmoniza com os quintanares; e uma negativa, de dissonância, representada pelo trabalho com o atavismo que fez Salvador Dalí (1904-1989). Outrossim, ainda realçamos a semelhança de procedimento estético entre o poeta brasileiro e o pintor espanhol, a fim de observarmos a existência de uma tradição atávica consolidada na arte. Ainda que tal tradição se ramifique, por vezes se paralelizando, suas partes cooperam entre si. O primeiro capítulo, Atavismo, se encerra com a entrada de Quintana em uma já antiga tradição atávica. Após essa leitura, temos uma compreensão do ser atávico como aquele de natureza selvagem, não adestrada, não adaptado às configurações da sua sociedade. Apesar de todo atavismo ser uma espécie de memória, porque vestígio, Atavismo nos indica que nem toda memória é atavismo. Vejamos que o substantivo feminino “memória” é seguido pelo atributo “atávica”. A expressão utilizada por Mario Quintana é “memória atávica”. A intenção poética trabalha, por derivação, um atavismo memorial, que tem permanecido com o homem ao longo da evolução, mas o núcleo está no nome, é ele que o poeta quer trabalhar em primeiro plano e, por isso, o caracteriza com aquele adjetivo. Isso implica dizer que existem memórias que não são atávicas, não possuídas pela criança, nem pelo louco, consequentemente, nem pela poesia. É, nessa direção, que esta pesquisa ruma para o seu segundo capítulo. Nele investigamos aquilo que Mario Quintana concebe como memória, para, então, afunilar no que concerne à memória atávica. Desde os tempos mais remotos, um dos temas mais centrais do interesse humano é a memória. Um dos assuntos mais fecundos, essa face da cognição ocupa o pensamento da religião, das artes, das ciências exatas, humanas, biológicas e aplicadas, bem como da filosofia. Para o nosso poeta, essas múltiplas versões, por vezes até contrastantes, não seriam tratadas com ordinário interesse. Passo a passo com os seus poemas, veremos Quintana corroborar as visões clássicas e,.

(19) 19. por vezes, até mesmo discutir perspectivas de memória distintas, uma vez que, para ele, tudo é memória. Assinalamos assim, graças a uma observação bastante elementar: dentro de toda a obra quintaniana, não existe uma única vez a aparição direta, nem mesmo uma indicação indireta da palavra “amnésia”. Isso significa que, mesmo assim, ela se encontra na obra, fotograficamente, por uma via negativa. Um poeta não é só o que ele diz, mas também o que omite. Ora, ao suspender um termo de valor negativo em um plano de mesma qualificação, que é a não ocorrência na obra inteira, Mario Quintana desenvolve um recurso estético equivalente à ênfase linguística de dupla negativa da língua portuguesa. Quando se diz “Eu não tenho não”, por exemplo, a negação se torna mais vigorosa. Termos como I) “desmemória” e II) “esquecer”: “O maior desmemoriado que existe é o crente. Ele jamais se cansa de ouvir a mesma história. E sempre esquece os mesmos mandamentos.” (QUINTANA, 2005, p. 352); III) “olvidar”: “[…] Sempre de barco passando,/ Cantando os meus quintanares…// No mesmo instante olvidando/ Tudo o de que te lembrares.” (QUINTANA 2005, p. 161); e IV) “deslembrar”: “[…] É que o povo tem pressa porque a vida é curta, deslembrado de que, se passam rápidos os anos, podem ser longos os dias, as horas, os minutos… […]” (QUINTANA, 2005, p. 714) abrolham nos quintanares, contudo, jamais implicam em perda permanente. Podemos dizer que houve sumiço da memória, sazonal ou até mesmo perene no indivíduo, porém ela permanece em algum lugar, podendo aparecer ou ser recuperada a qualquer momento, porque coletiva. Integremos aqui uma das leituras que faz Quintana do movimento do próprio tempo, que até se esconde, mas não pode morrer. Essa ideia é anunciada em alto e bom som, através do título de um dos seus livros, Esconderijos do tempo, de 1980. Dessarte, temos um Mario Quintana que não nega a memória, nem a História; insurgir-se é contra o feitio delas. A irrevogabilidade do vivido impossibilita o seu aniquilamento e também abre as portas para as possibilidades de análise desse passado. Quer-se que ela seja vista sob incansáveis perspectivas: nos seus poemas, a memória é eterna. Por isso, as discussões de uma estética memorialista nos quintanares são auxiliadas pelas considerações teóricas de Maurice Halbwachs (1877-1945). Com essa visão, é que podemos ler e entender poemas como Da arte de recordar: “O que têm de bom as nossas mais caras recordações é que elas geralmente são falsas.” (QUINTANA, 2005, p. 320). Vejamos que Da arte de recordar é equivalente às falas de Primeira, personagem na peça O Marinheiro (1915) de Fernando Pessoa (1888-1935):.

(20) 20 PRIMEIRA – Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contado o que fomos? É belo e é sempre falso… SEGUNDA – Não, não falemos disso. De resto, fomos nós alguma coisa? PRIMEIRA – Talvez… Eu não sei. Mas, ainda assim, é sempre belo falar do passado… As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer coisa?… (uma pausa) A MESMA – Falar do passado ̶ isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena… SEGUNDA – Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido. TERCEIRA – Não. Talvez o tivéssemos tido… PRIMEIRA – Não dizeis senão palavras. É tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!… Se passeássemos?… (PESSOA, 2010, p. 54). Seria ingênuo ler Da arte de recordar ou O Marinheiro, inferindo que Mario Quintana e Fernando Pessoa respectivamente negariam o passado, porque falso, inventado. O que o primeiro nega é um único passado, quando ele se quer múltiplo, podendo ser sempre (re)visto e (re)avaliado. Falso é sempre o passado quando absoluto. Nega-se a visão determinista, que afirma que somos, no presente, uma derivação do passado. Porque, se é possível mudar a perspectiva do passado, se a base pode ser modificada, então, a visão de um presente sólido não se sustenta! Ademais, seria leviano se um poeta, nesse caso, nem o seria, desprezasse a matriz da poesia, que é a antiga deusa Memória (KRAUSZ, 2007). Para a leitura de O Marinheiro, também é necessário recobrar a obra Mensagem (1934) com uso que fez Fernando Pessoa (PESSOA, 2006) de elementos históricos de Portugal, dando-lhes uma nova roupagem, reaproveitando os valores do passado, ressignificando o coletivo patrimônio memorialista. Em vez de utilizar símbolos nacionais, perceberemos que Mario Quintana lança mão das mesmas estratégias, mas usando elementos do cotidiano à sua volta, como a cadeira de balanço, os puzzles e jogos de passatempo. De todas as partes do humano, quando uma delas especificamente, a memória, reverte a uma condição tida por perdida, mas que já foi sua em inteireza, então, ela é atávica. Aquele que não é criança, poeta ou louco também tem uma memória, que não possui tal qualidade. O funcionamento da memória da tríade se explica, não por um defeito, mas por uma reversão a um tempo incomum, mas completamente normal. Para discorrer sobre o funcionamento da memória do trio atávico, dividimos a análise em três novos subcapítulos, que se desenham com a incumbência de apresentar como usam a memória atávica a criança, o poeta e o louco..

(21) 21. À lembrança da lua, que é a primeira divisão do capítulo Memória, trabalha o funcionamento mnemônico da criança. O poema-sede da análise é Noturno. A memória da criança se afigura como uma tapeçaria entre um legado tecido com menos fios sociais e uma profusão de fios individuais. Quem não se lembra, inventa é o subcapítulo onde encontramos o poeta enquanto recriador, que desmantela os arranjos do presente, assemelhando o seu ofício aos tempos em que as espécies biológicas e a própria Terra estavam em formação. Poemas como Mas tudo é novo debaixo do sol!: “Resmungam os velhos: - ‘Não há nada de novo debaixo do sol’ - nem se lembram dos que, neste momento, estão recriando o mundo: os poetas, os artistas, os recém-nascidos…” (QUINTANA, 2005, p. 248) e Criatividade: “[…] É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade.” (QUINTANA, 2005, p. 785) são decisivos para a análise. Memória enlouquecida aborda a memória enquanto a capacidade que têm a criança, o poeta e o louco para fundir elementos, em criar personagens, em inventar. Um dos poemas que nosso estudo lerá é Imaginação…: “A imaginação é a memória que enlouqueceu.” (QUINTANA, 2005, p. 281). Em todas essas passagens, o poema assume características do lúdico, que, com suas regras internas, indaga e recria o tempo. Além de Maurice Halbwachs, outros textos aparecerão como grande valia para a função no diálogo que os quintanares destinam às perspectivas de memória. Alguns desses são A arte da memória (1966), do inglês Frances Yeats (1899-1981), Memory in literature (2003), de Suzanne Nalbantian (1950-), e Theories of memory (2007), ensaios organizados em conjunto pelos professores Michael Rossington e Anne Whitehead (1971-). Duração e simultaneidade (1922) de Henri Bergson (1859-1941) também nos ajudará a explicar pontos específicos da memória atávica. São esses achados de uma memória que recria, reavalia e reinventa não só o passado, mas também o presente, que nos conduzem ao estudo da loucura, que, para Quintana, é similarmente um olhar sobre a poesia. Nosso último capítulo, Loucura, se pretende como voz da nem sempre perceptível crítica dos quintanares à forma de viver da modernidade. Teremos, nesse derradeiro capítulo, um diálogo aberto dos quintanares com a sociedade, conversa essa que usará a loucura como termo verbal, poético, para, na verdade, negar o poder da razão quando carente de mistério, verdade e beleza. Vindos, poeta e louco, de um passado mais remoto, carregam em si uma memória. Sobre a duração de suas presenças, que são continuadas, perpetuadas “neste mundo”, podemos decalcar o conceito de tradição. Uma tradição da loucura na literatura, que faz uso do passado, para pôr em.

(22) 22. xeque o presente quando perigoso para o homem. Essa é a abordagem que esta tese dá à loucura/poesia no nosso derradeiro capítulo, onde encontraremos um breve histórico da loucura na cultura e na literatura. Nossa proposta, porém, desperta o enfoque para a complexidade da temática representada pelo eixo poesia/loucura, complexidade sugerida pelo verso já citado: “Porque a poesia é uma loucura lúcida.” (QUINTANA, 2005, p. 828, A diferença). Dessa forma, Mario Quintana apresenta um tríplice problema: a) a poesia não é exatamente o mesmo que loucura, b) a poesia é análoga à loucura ─ inconsciência, mas c) é inconsciência compartilhada porque lúcida, (con)sciente. Um problema que, deveras, merece ser analisado. Ao vermos desenharem-se, no papel quintaniano, imagens oníricas de Lilis, Países de Trebizonda, Loucos, Quixotes, Reis de Tule, percebemos o quintanar como um esforço por se assemelhar à loucura, a uma loucura antiga. Daí parte o interesse do nosso estudo, surgido da antítese duma alteração/ausência de consciência que é cônscia de si e da sua antiguidade e se caracteriza também como ativa, produtiva, interativa. Rumando ao término do trabalho, continuamos a estudar uma estética que funde espaços, tempos e ideias. Figuras sonoras, como o eco, o aulos, a canção, são manifestações estéticas do retorno e da intersecção de valores. Loucura, nosso último capítulo, se subdivide em quatro partes. O eco do poema analisa o alcance da poesia no abismo, que é profundidade, mas também baixeza do homem. Tentamos entender como um contexto utilitarista prevê linhas sólidas e contínuas para os perfis. A voz lírica parece fazer um convite à rebelião, planejando o assassinato do poeta. Buscamos entender o momento tenso quando o poeta entra em um processo de exclusão por sua sociedade. De que forma a arte lê os establishments?2 De que forma os estes percebem a arte? Quantas são as divergências entre consciência/sociedade e loucura/poesia? O aulos de Atenas é um subcapítulo que ainda continua a leitura do anterior. Entretanto, dessa vez, procuramos observar algumas tensões a razão e a desrazão. Utilizamos um grupo de esculturas antigas para ilustrar essa parte. Ao final, percebemos, em Quintana, uma defesa da poesia, que não se conforma com ataques. A arte, integrante da cultura, se propõe a representar/resolver essa tensão. A literatura, talvez, seja o campo mais fértil onde a angústia da razão se faz falar. O excesso de possibilidades na/da literatura faz com que os extremos entre razão e loucura se homomorfizem. Inspiração ou delírio poético é tão necessário quanto o uso da razão no momento da concepção do poema. Fedro se 2 “1 a ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma sociedade ou um Estado. 2 a elite social, econômica, política de um país 2.1 grupo de indivíduos com poder e influência em determinada organização ou campo de atividade [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1243)..

(23) 23. oferece através do arcabouço icônico da mitologia grega e nos apresenta a loucura como intervenção divina, cujo vértice se bifurca em Mania e Mania de Theia. Dentre os dons divinos, análogos à loucura, está a poesia, cujo delírio, através da memória, “celebra as gestas dos antigos e que servem de ensinamentos às novas gerações”. (PLATÃO, 2007, p. 81) A canção da vida é o penúltimo subcapítulo e continua a explorar a temática sonora proposta quintaniana no verso “O eco do poema”. Trata-se de uma ampla análise sobre figuras dinâmicas que se estabelecem esteticamente para defender o movimento como forma da verdade elementar da vida. Elementos musicais são utilizados pelo poeta gaúcho para unir natureza e cultura em um retorno contínuo. A canção se coloca entre as duas esferas, natural e cultural. É, através da audição, que também percebemos o mundo. Já a música é produto cultural. Tanto veículo de conhecimento quanto de comunicação de alguma mensagem, a canção se alinha ao vestígio atávico, ao eco insistente, porquanto que, sem propósito aparente, se apodera daquele que a executa. Cortinas de Tule continua a concatenar a poética de Quintana com a concepção de que há uma verdade aberta, dinâmica e orgânica. Nesse capítulo, são apresentados diretamente os poemas que fazem referências ao louco enquanto sujeito que vive uma realidade diferente daquela instituída por seu grupo social. O louco é dono de um saber que é seu e está alheio a questões que interessam à maioria daqueles em seu entorno. A loucura não reconhece autoridade, espaço nem tempo. Frequentemente o louco recria sua identidade e habita lugares fictícios, mundos próprios que ele constrói e onde se exila. Veremos também no que o louco e o poeta se distanciam. Michel Foucault (2006, 2008) nos importará, visto que responde parcialmente às nossas perguntas ao espelhar o impasse entre razão e desrazão. À semelhança da teoria da evolução das espécies, via seleção natural (DARWIN, 2003), Foucault descreve a ideia de razão como seleção social, através da qual o louco seria um dos não aptos à perpetuação social. História da loucura questiona o poder de juízo da sociedade, quando esta, muitas vezes, se autofabrica. O filósofo francês propõe que, em vez de uma pretensa realidade avaliar a arte, deveria ser a arte a avaliadora da realidade. (FOUCAULT, 2008, 530) Por ser um tema fértil tanto na literatura quanto na sociedade, concepções de loucura são abundantes. Analisaremos algumas delas aos poucos, sempre que Mario Quintana estabelecer o diálogo. Outros trabalhos, estéticos ou críticos, surgirão para amparar nossas análises, como, por exemplo, os trabalhos de Eurípedes (480-406 a.C.), Platão (427-347 a.C.), Machado de Assis (18391908), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Johan Strindiberg (1849-1912), William Shakespeare (1560?-1616), Gilles Deleuze (1925-1995) associado a Félix Guattari (1930-1992), etc. Entre o artístico e o filosófico, num hibridismo mais filosófico que literário, encontraremos refúgio no Fedro de Platão e no Elogio da loucura, obra de 1509, escrita por Desidério Erasmo..

(24) 24. Nesses trilhos, abundantes teorias artísticas e filosóficas se encontram para responder à quase cômica pergunta antedada por Machado de Assis em O alienista: seria mesmo a loucura insana, ou seria louca a sociedade? Durante nossas análises, perceberemos que Quintana responde positivamente à pergunta. Elogio da loucura traz uma leitura do louco como preferível oposição do sábio, visão que, apesar da terminologia, não diverge da apresentada por Platão. Nessa obra, o louco é um não escravo da razão, tendencioso às emoções e ao estético. A grande poesia não se esquiva de ler a loucura, criatura e criadora da sociedade. Antes de Mario Quintana, outro grande poeta já empregado nas discussões desta introdução, Fernando Pessoa, propõe que tudo que é humano, sociedade e arte, advém da loucura: Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Fico o meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? (PESSOA, 2006, grifo nosso). Podemos assumir que o ponto de vista do poema de Fernando Pessoa acima é: a) loucura para o establishment contemporâneo, b) ruptura da concepção da ordem vigente, onde o homem é racional e c) trabalho estético, tradição atávica que deságua num Mario Quintana inserido nessa problematicidade ao nos apresentar o conceito de loucura lúcida. Embasados nessas premissas, gostaríamos de expandir os nossos questionamentos e, por conseguinte, obter uma visão mais precisa dos quintanares. Mas o que é a loucura? Onde está a lucidez? Como seria possível um louco ser lúcido? Qual é a relação existente entre loucura e memória? Por que é que o louco necessariamente se constitui em um ente atávico? Como Quintana transpõe, na prática, a loucura para a poesia e também a poesia para a loucura? Ao final do nosso labor, esperamos verificar como a loucura, imagem da poesia, se apresenta, se representa e se comporta nos quintanares. Nisso, teremos o louco, que também é o poeta e a criança, desarticulando suas configurações sociais. Desejamos compartilhar o saldo do nosso exercício ao elucidar questões, levantar novas perguntas, abrir discussões e assim contribuir com o contínuo aprimoramento da fortuna crítica de Mario Quintana..

(25) 25. Figura 1: Quintarwin. Fonte: Acervo do autor.

(26) 26. 1 ATAVISMO. Antigos desejos nômades irrompem, Agitando-se dentro das cadeias do hábito, Voltando de seu sono brumal, Despertam o ferino ancestral.3. A ideia de abrir um texto com a epígrafe acima não é original. O estadunidense Jack London (1876-1916) já a utilizara em 1903, para apresentar o tema geral do seu célebre romance, The call of the wild (LONDON, 1997) (De agora em diante, citaremos a obra vertida para O chamado da floresta). A epígrafe do livro de London, que aproveitamos para estimular as discussões deste capítulo, foi publicada originalmente por O’Hara (1870-1944) no periódico nova-iorquino The bookman, em 1902. Na verdade, os quatro versos não são uma estrofe independente, mas fazem parte de um poema intitulado Atavism4. O’Hara nunca teve grande fama. É possível que seu poema tivesse mesmo se perdido no tempo e ainda nos fosse desconhecido, caso London não o tivesse utilizado para abrir o romance estadunidense mais conhecido. Em linhas gerais, O chamado da floresta nos conta a história da transformação de Buck, um brincalhão labrador, forçado a deixar sua zona de conforto, a quente e simpática Califórnia, para servir como puxador de trenó no gélido e inóspito Noroeste canadense. Essa transformação se dá no nível psicológico. Buck muda gradualmente, ao passar por sucessivas provas de dor. Enquanto a fartura da ensolarada fazenda do Juiz Miller e os mimos dos 3Atavismo (O’HARA, 1902, p. 229, tradução nossa) 4“Antigos desejos nômades irrompem,/Agitando-se dentro das cadeias do hábito,/ Voltando de seu sono brumal,/ Despertam o ferino ancestral.// Hilotas dessas casas nunca mais./ Permitam-nos sermos livres, sair;/ Fragrância por janela e porta,/ Hálito do mato e do mar.// Depois do torpor do arbítrio,/ Mórbido de interna porfia,/ Acolham o frêmito animal,/ Emprestando um tempero à vida.// Banam os venerados pergaminhos,/ Fragmentados por longos séculos./ Os forros que a trêmula luz animou/ Permute-os por estrelas.// Sagrem seus sonhos nas árvores,/ Que seja a natureza vossa única deusa;/ Adore ao sol e a brisa,/ Altares onde nada se expia.// As vozes de um ermo chamado;/ Sussurram acerca de junças e riachos,/ Desatados os grilhões que amarguravam,/ Voltam ao esquema primitivo.// Sintam a grande terra latejante/ Palpitando no compasso do vosso coração,/ Mais uma vez consciente da verde/ Folhagem sob os seus pés.// Indiferente à dor como a rosa,/ Respire com o deleite do instinto;/ Viva a existência que passa/ Sem alma pela noite.” (O’HARA, J., 1902, p. 229, tradução nossa). Old longings nomadic leap, / Chafing at custom’s chain; / Again from its brumal sleep/ Wakens the ferine strain.// Helots of houses no more, / Let us be out, be free;/ Fragrance through window and door/ Wafts from the woods, the sea. // After the torpor of will, / Morbid with inner strife, / Welcome the animal thrill, / Lending a zest to life. // Banish the volumes revered, / Sever from centuries dead; / Ceiling the lamp flicker cheered/ Barter for star instead.// Temple thy dreams with the tree, / Nature thy god alone; / Worship the sun and the breeze, / Altars where none atone. // Voices of solitude call, / Whisper of sedge and stream; / Loosen the fetters that gall,/ Back to the primal scheme.// Feel the great throbbing terrene/ Pulse in thy body beat,/ Conscious again of the green/ Verdure beneath the feet.// Callous to pain as the rose,/ Breathe with instinct’s delight;/ Live the existence that goes/ Soulless into the night.”.

(27) 27. moradores do lugar representam a prazerosa comodidade da civilização, o frio desterro resume os violentos desafios impostos pela natureza. À medida que se afasta das benesses da sociedade, o cão se desperta para um sentido adormecido e atende a ele. Ao final da história, Buck se transforma em besta feroz e sanguinolenta, animalidade que não é censurada pelo leitor do romance. London arquitetou a obra de forma que acabássemos por preferir a selvageria, a violência instintiva, espontânea e bravamente legitimada em nome da sobrevivência, em vez da irresponsável indolência e da cega busca pelo acúmulo de posses – a história se passa durante a febre do ouro, que levou milhares de homens a se arriscarem no Norte do Canadá e no Alasca, ao fim do século XIX e início do século XX. Através de Buck, o romancista nos apresenta o humano inserido em três estados possíveis: 1) numa frágil condição de harmonia e funcionamento social, que a qualquer momento pode se desmantelar ao interesse particular de um de seus constituintes, o que pode levar a; 2) um estado não preferível de desorganização social, que é sem motivo legítimo, uma vez que a única razão para a ausência de regras é apenas o desejo de possuir; 3) num estado de justiça selvagem, no qual a única lei é a da sobrevivência, já que o retorno à desejada vida na civilização não é mais possível. O chamado da floresta é um Bildunsroman5 às avessas. Dizemos que, numa narrativa desse tipo, o protagonista se desenvolve, se forma, cresce, evolui positivamente, isto é, progride. Todavia, enquanto o protagonista do Bildunsroman comum é afligido por toda sorte de circunstâncias adversas, que exigem uma reformulação de sua identidade com vistas à resolução dos problemas, ao re(a)finamento psicológico, ao (re)ajuste social, a reformulação da identidade de Buck, causada pelas adversidades que enfrenta, não traz apenas a resolução dos problemas, mas o cão se embrutece. Não é à civilização que sua personalidade se readéqua, mas à natureza. Seu crescimento é diferente do herói do Bildunsroman, é invertido. O cão migra da cultura para a bestialidade. Embora seu exterior continue canino, por dentro, ele se transforma em lobo, se deseduca. Buck desaprende a domesticação, comportamento aprendido com seu pai, Elmo, “um inseparável companheiro” (LONDON, 1997, p. 20) dos humanos. Essa desaprendizagem é seguida por outro processo mais forte. Aos poucos, o cachorro se dá conta de um sexto sentido intrínseco que lhe pertence, uma espécie de chamado interior, legado de seus ancestrais. Ele descobre o 5A tradução em Português para este termo alemão é geralmente apontada como Romance de Formação, Romance de Educação e Romance de Crescimento. Todavia, além de abarcar esses três sentidos, o termo seria mais bem vertido como Romance de Construção. Assim como a construção de um edifício obedece a colocação de peça após peça, estágio após estágio, a construção psíquica da personagem obedece a uma cadeia estrutural. No Dicionário de termos literários (MOISÉS, 2004, p. 56), encontramos que o termo foi empregado pela primeira vez por Karl Morgenstern e posto em circulação por Wilhelm Dilthey em 1870. Massud Moisés considera o ponto mais alto do bildunsroman a obra Wilhelm Meister (1795-1796) de Goethe, também cita algumas obras brasileiras no gênero, como O Ateneu (1888) de Raul Pompéia e A velha casa (1966) de José Régio..

(28) 28. instinto, “impulsos irresistíveis” (LONDON, 1997, p. 240). Esse novo companheiro é memória remota, não imediata, déjà-vu6 concreto, anterior aos diversos períodos que antecederam a domesticação dos da sua espécie, primordial: E não apenas ele aprendeu pela experiência, mas instintos, que há muito tempo estavam mortos tornaram-se vivos mais uma vez. As gerações domesticadas desabaram na sua frente. De forma vaga, ele se lembrou da juventude anterior da raça, do tempo em que os cães selvagens se juntavam em alcateias pela floresta primitiva, e matavam sua presa enquanto a fazia tombar. […] Dessa maneira, era que lutavam seus esquecidos ancestrais. Eles reanimaram a antiga vida dentro dele, e os velhos truques que eles legaram na herança da raça eram os truques dele também.7 (LONDON, 1997, p. 72, tradução nossa) Ele sondava as profundezas da sua natureza, e das partes da sua natureza que eram mais profundas que ele próprio, voltando ao útero do Tempo. 8 (LONDON, 1997, p. 108, tradução nossa) Ele era mais velho do que os dias que vira e do fôlego que dera. Ele atrelava o passado ao presente, e a eternidade diante dele palpitava através dele em um ritmo poderoso, que o fazia oscilar como as marés e as estações oscilam. 9 (LONDON, 1997, p. 200, tradução nossa). As últimas citações são apenas um extrato da imaginária construída em O chamado da floresta. Esse conjunto de imagens é essencialmente isotópico. Orbitam todas as suas imagens em volta de um eixo comum, núcleo imagético, que chamaremos de eixo atávico. Conceitos como instinto, memória, tempo, ancestralidade, primitivismo, raça, natureza, descontinuidade, latência e selvageria são recorrentes na construção dessa imaginária. O próprio livro de London poderia ter sido intitulado de atavismo.. 6Já visto. Termo comum em Português, de origem francesa. De acordo com o Dicionário Houaiss, “forma da ilusão da memória que leva o indivíduo a já ter visto (e, por ext., já ter vivido) alguma coisa ou situação de fato desconhecida ou nova. ” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 930). 7And not only did he learn by experience, but also instincts long dead became alive again. The domesticated generations fell from him. In vague ways, he remembered the youth of the breed, to the time the wild dogs range in packs through the primeval forest, and killed their meat as they ran it down. […] In this manner had fought forgotten ancestors. They quickened the old life within him, and the old tricks which they had stamped into the heredity of the breed were his tricks. 8He was sounding the deeps of his nature, and of the parts of his nature that were deeper than he, going back into the womb of Time. 9He was older than the days he had seen and the breaths he had drawn. He linked the past with the present, and the eternity behind him throbbed through him in a mighty rhythm to which he swayed as the tides and seasons swayed..

(29) 29. Figura 2: Quintanodonte. Fonte: Acervo do autor.

(30) 30. 1.1 Uma leitura darwinista. “Atavismo” é termo incomum. Um dicionário (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 331) nos diz que ele surge na língua portuguesa por volta do ano de 1871, influenciado pelo vocábulo francês “atavisme” em circulação desde 1836. Este, por sua vez, é uma reabilitação do étimo latino “atavus”, que quer dizer tataravô; em termos gerais, era utilizado como sinonímia para ancestral. Atavismo é conceito primeiro da biologia. Indica a “1 reaparição em um descendente de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram latentes por várias gerações 2 hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais, comportamentais […]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 331). Outro dicionário define o atavismo dessa maneira: “1 Uma assemelhação com ancestrais remotos superior à assemelhação com os pais em vegetais ou animais 2 reversão a um tipo anterior.” (OXFORD, 1991, p. 66, tradução nossa). Dentre os casos notórios dessa semelhança maior com os ancestrais (HALL, 1984, 1995, 2003), estão o aparecimento de dentes nas aves galiformes (HARRIS et al., 2006), o reaparecimento de patas primitivas nos cetáceos (BEJDER; HALL, 2002) e a cauda humana10 (ADAMS; SHAW, 2008). Dizemos (HALL, 1984) que determinado atributo é atávico quando ele já existiu materializado e recorrente na estrutura orgânica de toda uma espécie, mas que, por algum motivo, sua manifestação foi descontinuada, todavia, ficando ocultos os elementos gerativos desse atributo no interior de algum membro da espécie. Em latência, por incontáveis descendências, esses componentes gerativos podem ser desencadeados posteriormente, fazendo com que algum indivíduo, pertencente a uma geração ulterior, apresente o atavismo, isto é, o atributo que estava desaparecido, que pertencera à espécie outrora. Não se trata de uma modificação em larga escala, mas de um microrretorno (BLACKBURN, 1984, p 244). Um dos mais estimados textos de defesa para estudiosos do atavismo é o artigo de Brian Hall, Developmental mechanisms underlying the formation of atavisms 11 (1984). Segundo Hall, existem quatro pré-requisitos para a constatação do fenômeno:. 10Apesar da rara ocorrência, a aparição é uma possibilidade. O ser humano não possui cauda, mas possui o mecanismo responsável para o desenvolvimento de uma. A explicação é no gene moderador Wnt-3a que nos mamíferos é o responsável pela regulagem e desenvolvimento da cauda. 11Ainda sem tradução em vernáculo: Mecanismos de desenvolvimento inerentes à formação dos atavismos (tradução nossa).

(31) 31 (1) sua persistência na vida adulta; (2) sua ausência nos pais ou ancestrais recentes; (3) sua presença em somente um ou alguns indivíduos dentre de uma população, e (4) sua semelhança próxima com (uma identidade com?) a mesma característica possuída por todos os membros de uma população ancestral. 12 (HALL, 1984, p. 89, tradução nossa). Alguns pesquisadores (MORRIS, 1895, p. 896) procuraram explicar o atavismo como uma falha no desenvolvimento das primeiras fases embrionárias. Essa falha, por sua vez, seria causada, ou pela superabundância da energia molecular nas células germinais, ou pela presença de material excedente nos grupos moleculares, que se concentrariam em certas regiões embrionárias, no estágio de formação no qual o que está especificamente em desenvolvimento são suas características ancestrais. Tal superprodução energética ou concentração de material excessivo cessaria o desenvolvimento naquela fase, impedindo o embrião de atingir o momento mais atual da espécie. Há ainda opositores da solidez do conceito, não necessariamente opositores do evolucionismo, mas que apontam dificuldades na teoria e método. A oposição de longa data pode ser traçada desde o século XIX (REID, 1897; F. A. L., 1898, p. 267). Todavia, estudos contemporâneos têm permitido a legitimidade da discussão sobre a aparição dos atributos orgânicos arrevesados. Dos métodos utilizados para demonstrações de casos atuais, existem os de rigoroso controle morfológico, como o de Reilly e Lauder (1988), e os validados pelos avanços da pesquisa genética (GATESY et al., 2003; HALL, 2003) através dos mapeamentos de DNA. Apesar de o princípio de funcionamento do atavismo ter sido demonstrado por William Castle (1867-1962) em 1906, através de experiências com preás, o fenômeno ainda continua sendo trabalhoso por biólogos, geneticistas e médicos (TOMIĆ; MEYER-ROCHOW, 2011), principalmente, devido à dificuldade em se estabelecer uma distinção entre o que é atávico e o que é falha orgânica. Entretanto, existe consenso entre os pesquisadores hodiernos sobre o dever de não confundir esse fenômeno de retroação com doença, mau funcionamento genético ou defeito físico. O atavismo é um fenômeno natural não subtrativo às funções habituais da espécie e que não implica em insuficiência dos processos físicos. Isso significa que é um adicional à estrutura biológica, apesar de esse aditivo ancestral ser apenas de ordem apendiceada, supérflua, portanto, sem utilidade. Diz-se assim porque a recomposição desses atributos dantes esquecidos pela natureza reaparece de forma aparentemente despropositada, sem visível ligação com a exigência direta do meio. Hall (1984, p. 119) comenta que os atributos atávicos podem se ajustar perfeitamente ao todo funcional do organismo. 12“(1) Its persistence into adult life; (2) its absence in the parents or recent ancestors; (3) its presence in only one or a few individuals within a population, and (4) its close resemblance to (identity with?) the same character possessed by all members of an ancestral population.”.

Referências

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