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Os quintanares têm antipatia ao Surrealismo25, especialmente a Salvador Dalí. Neles, as obras de Dalí são consideradas calão artístico, porque transferências mecânicas: “[…] Em vista disso, alguns me aconselham a escrita automática, que é afinal de contas o que os surrealistas consideram poesia pura. Mas isto me lembra, e muito, o baixo espiritismo, de tão pífios resultados… […]”. (QUINTANA, 2005, p. 823) Enquanto no baixo espiritismo as entidades se manifestariam efusivamente, incorporadas sem controle, no alto espiritismo o médium controlaria a possessão, e o efeito disso seria um diálogo misterioso de aspectos técnicos e diplomáticos. Mario Quintana é poeta, não médium espírita. O espírito de que fala Quintana é da alma, que é esfera ética e estética do homem, que pode ser controlada em partes pela “mediunidade” técnica do poeta.

A depreciação do movimento tornada em acusação do automatismo lançada sobre os surrealistas ainda pode ser percebida em Picasso e Dalí (QUINTANA, 2005, p. 840), quando o quintanar acusa Dalí de agressivo e incomplacente: “Picasso é mais espontâneo: nunca procurou espantar o burguês.”. Podemos perceber que Quintana configura um grande grupo, formado por ele, Picasso e Dalí, mas aponta uma predileção o método de Pablo Picasso (1881-1973) em detrimento do surrealismo. O subgrupo exclui Dalí.

Mas isso não significa que Quintana não concordasse com as ideias de distorção e transgressão propostas por Dalí e por seu círculo surrealista. A ojeriza que lança é contra a forma de concepção e expressão dessas ideias, ou seja, como os surrealistas pensavam, abordavam e anunciavam a questão. A grande atração do circo (QUINTANA, 2005, p. 840), que é o poema imediatamente anterior a Picasso e Dalí, faz ecoar a mesma mensagem da incomodada voz lírica: “Salvador Dalí? Espantoso, sim…, mas que espantosa falta de imaginação!”; mas, dessa vez, o poema se explica.

A aversão a Dalí não diz respeito ao teor da mensagem do surrealista. Mario Quintana é antimoderno, tanto quanto os surrealistas. A aversão é contra o trato que Salvador Dalí dá aos temas. Para Quintana, o problema com o Surrealismo é que o movimento artístico não produz o 25O Surrealismo não se presta a simples definição, por isso, recorremos a um dicionário de literatura para recobrar alguns traços peculiares do movimento: “[...] “SURREALISMO: s.m. Automatismo psíquico puro por cujo intermédio se procura expressar, tanto verbalmente como por escrito ou qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, com exclusão de todo controle exercido pela razão [...] Além disso, os seus aficionados confessavam repulsa pelo “reinado da lógica”, pelo “racionalismo absoluto”, em favor de Freud, da imaginação liberta, dos sonhos, da fusão destes e da realidade numa super-realidade, mas de forma que o sonho predominasse, pois guarda “traços de organização”, em favor dos estados alucinatórios, mediúnicos, expressos numa “linguagem automática”, livre de qualquer censura ou coerção da inteligência, de molde a transferir diretamente os conteúdos da mente para o papel, sem buscar socorro na lógica ou na gramática. [...]” (MOISÉS, 2004, p. 441-443).

belo, as obras surrealistas terminam por abrolhar fealdade. Tal asserção pode ser assim interpretada ao conectarmos a palavra “circo” – inserida no título do poema – e “espantosa” – contida no interior do poema; termos que indicam, assim, um espetáculo de variedades baseado no espanto, isto é, em um circo de horrores. Dalí, que tanto defendera a supremacia do império onírico sobre a vigília, se distingue de Quintana, que prezava pelo câmbio contínuo entre vigília e sono.

Uma deixa importante para a compreensão de certas nuanças nos quintanares, “espantar o burguês” em Picasso e Dalí (QUINTANA, 2005, p. 840), publicada em Porta-giratória (1988), é exatamente o que investiga A estrela da manhã (2000) de Michael Löwy (1938-).

De acordo com A estrela da manhã, o louvável trunfo dos surrealistas foi justamente o de desenvolver uma estética transgressora, agressiva contra o capitalismo, “[…] um protesto contra a racionalidade limitada, o espírito mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteiro de nossa sociedade capitalista industrial, e a aspiração utópica e revolucionária […]” (LÖWY, 2002, p. 9). Eis um plano de subversão dos valores burgueses.

Nesse sentido, temos a poética de Mario Quintana como sonsa; construtora de uma estrutura estética, que finge fazer vista grossa à questão social, que se disfarça de simplória e aparenta alienação; isso tudo por benevolência e compaixão ao que há de homem por trás do burguês. Um projeto estético não misericordioso com o capitalismo, mas compassivo com o burguês. Podemos até dizer que toda a estética quintaniana tem um fim específico: envolver o braço no ombro do burguês e reconduzi-lo a uma perspectiva não utilitarista da vida; tentativa de asilo pela estética e, desse amparo, um resgate estético, resgate dos sentidos.

Quando Mario Quintana diz em A grande atração de circo que o Surrealismo é carente de imaginação, o poeta parece se deliciar com seu próprio esquema, plano altivo, que se propõe como de maior imaginação, portanto, mais sofisticado, que é o de agarrar o burguês de um modo imperceptível, não simplesmente se opondo à burguesia de uma maneira agressiva. A acusação de circo dos horrores indica que o movimento surrealista é arte fraca, técnica vulgar, estética barata, teatro vaudeville. Nisso tudo, vemos o aprendiz gaúcho de feitiçaria exercendo sua magia. Um plano hipnótico, diferente do surrealista, para salvar o burguês.

A indicação de leitura do Surrealismo como circo de horrores, retirada de A grande atração do circo, também pode ser explicada pelo poema imediatamente posterior a Picasso e Dalí, em Não olhe para os lados (QUINTANA, 2005, p. 840): “Seja um poema, uma tela, ou o que for, não procure ser diferente. O segredo está em ser indiferente”. Ora, através desse último poema, fica clara, para o leitor, a acusação que fez o eu-lírico dos três quintanares: Dalí não teria se mostrado indiferente, mas sim apenas diferente. Essa observação apontada pelo eu-lírico no quintanar não deve ser negada, antes de se verificar a mesma constatação feita por estudos recentes sobre a obra

de Dalí (LIMEIRA, 2010; ROBERTS, 2012). Neles, lemos que o pintor teria transposto o discurso evolucionista e darwinista para a arte.

Tentando reproduzir o conteúdo psicanalista (LIMEIRA, 2010), que seria adaptação freudiana da teoria evolucionista (ROBERTS, 2012), Dalí se esqueceu de ressignificá-lo, reproduzindo esteticamente o conhecimento científico. A insinuação de fealdade feita pelos quintanares pode indicar que Dalí esteticamente recriou ipsis litteris26 o conhecimento freudiano

sem o transpor para outro campo de significação, sem dar aos conceitos darwinistas ali presentes um segundo olhar: “[…] – Essas coisas que parecem/ não terem beleza/ nenhuma/ é simplesmente porque/ não houve nunca quem lhes desse ao menos/ um segundo/ olhar!” (QUINTANA, 2005, p. 859); as transposições sem ressignificação eliminam o mistério: “[…] O mistério faz parte da beleza.” (QUINTANA, 2005, p. 278). Assim sendo, a arte não atingiria seus limites, ou aparentaria alguma dificuldade, quando fosse simples aplicação de teoria. O assunto também discutido no poema Da conturbada beleza: “O que mais me revolta nas matemáticas são as suas aplicações práticas” (QUINTANA, 2005, p. 369). A arte deve ser um fenômeno singular: “Único./ Ferido de mortal beleza.” (QUINTANA, 2005, p. 197); feitos “cheios da beleza única.” (QUINTANA, 2005, p. 199).

Ao censurar o modus operandi27 surrealista, Quintana poderia estar indicando perpetrações

científicas na arte, isto é, o Surrealismo estaria endossando concepções físico-naturalistas de deformidade, expandindo-as, através do freudismo, no que compreende distorções psíquicas. O resultado da arte surrealista seria a exploração sensacionalista da noção de defeitos, como já vimos em A grande atração do circo e, também, em Picasso e Dalí. Tal análise se sustenta ainda mais

quando encontramos um jogo linguístico muito peculiar no poema 8

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:

[…] Em Picasso, em certos Picassos, a boca, a face, o perfil, as orelhas reajuntam-

se não arbitrariamente e sim para formar uma harmonia nova, de maneira que o

seu arreglo final não nos amedronta como um monstro, mas tranquiliza-nos como uma obra clássica. Na poesia há muito já acontecia assim, como na montagem de

imagens aparentemente heteróclitas e anacrônicas da “Salomé” de Apollinaire e

que, no entanto, serviam para formar a atmosfera dançante, luxuosa, versátil e aérea daquele poema. E foi preciso quase cem anos para que o cinema, como no “8 ½” de Fellini, se integrasse também na poesia. Em resumo: não o desprezo da

lógica, mas a aceitação da lógica imagista - o que, como todo verdadeiro

26“[...] nos mesmos termos; tal como está escrito.” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.1648)

27“[...] modo pelo qual um indivíduo ou uma organização desenvolve suas atividades ou opera.” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.1943)

modernismo, é tão velho como o mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas. (QUINTANA, 2005, p. 254, grifo nosso)

Mas antes de apontarmos o jogo linguístico que pretendemos debater, recuperemos no dicionário o sentido da palavra surrealismo:

HIST. ART movimento literário e artístico, lançado em 1924 pelo escritor francês André Breton (1896-1966), que se caracterizava pela expressão espontânea e automática do pensamento (ditada apenas pelo inconsciente e, deliberadamente incoerente, proclamava a prevalência absoluta do sonho, do inconsciente, do instinto e do desejo e pregava a renovação de todos os valores, inclusive os morais, políticos, científicos e filosóficos. f. pref. e menos usual.: supra-realismo. ETIM fr.

Surréalism (1918) ‘sobrenaturalismo’. […]. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 26)

O empreendimento lúdico-linguístico acontece primeiramente entre os termos

“arbitrariamente” de 8 12 e “deliberadamente” da dicionarizada definição de surrealismo. Para Quintana, o trabalho artístico de Picasso é um processo seletivo, não deliberado, isto é, de escolha não apriorística, não conceitualmente fechado, por isso, harmônico. Lembremos que Pablo Picasso passa por várias fases estéticas, sem medo de abandonar aquela que o tornaria célebre, o cubismo. Bem-sucedido nos seus intentos, o trabalho de Picasso é pelo poema considerado um modernismo

verdadeiro, como podemos ler no final de 8

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.

A segunda parte do jogo de mensagem em 8 12 é o fato de o poema omitir o nome de Salvador Dalí, mas, ao mesmo tempo, referenciar as pinturas do surrealista, caracterizando-as como o oposto de Picasso. Ora se o oposto de Picasso é amedrontador e monstruoso, podemos facilmente comprovar o disfarçado apontamento ao recuperarmos a noção de circo dos horrores, discutido há pouco, em A grande atração do circo: “Salvador Dalí? Espantoso, sim… mas que espantosa falta de imaginação!” (QUINTANA, 2005, p. 840) e em Picasso e Dalí “Picasso é mais espontâneo: nunca procurou espantar o burguês.” (QUINTANA, 2005, p. 840). Na definição de surrealismo dada pelo dicionário, temos que o movimento tem uma função deliberada, isto é, ser incoerente. Nesse sentido, Salvador Dalí é fechado e não deixa de ser indiretamente acusado de modernidade banal e automaticamente de receber, em 8 , a própria crítica desenvolvida pelo próprio pintor contra o movimento modernista em Libelo contra a arte moderna (DALÍ, 2008).

Carente de beleza, o onirismo daquilo que é oposto a Picasso ainda pode ser observada ao

final de 8 12 ·, que nos leva à constatação de Quintana acerca de um império linguístico dos sonhos, um surrealismo velho e bom, que seria o de Picasso. Dessa maneira, compreendemos que o onírico, a deformidade heteróclita e o anacronismo em Picasso são um retorno bom, clássico, como o retorno do filho pródigo (BÍBLIA, 2010, p. 947). Ainda verificamos essa possível vantagem da arte de Picasso sobre a de Dalí no aforístico poema Picasso: “Famoso precursor da Talidomida.” (QUINTANA, 2005, p. 305)

A talidomida é um termo farmacêutico: “substância C13H10N2O4 freq. us. em medicamento sedativo e hipnótico (Por seus efeitos teratogênicos28, deve ser evitada durante a gravidez, pois não raro causa má-formação ou ausência de membros no feto.)” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2664, nota de rodapé adicionada). Como podemos perceber em Picasso, a obra do pintor induz ao sono ou a estado de sono criteriosamente induzido, a hipnose. Nesse sentido, sua pintura funciona como uma espécie de feitiço benéfico, a sedação traz alívio.

Caderno H (1973), livro onde primeiro aparece Picasso, conglomera poemas bem- humorados, brincalhões, de uma ironia leve, sem acidez. O uso dessa palavra é jocoso. O perigo eminente da formação de monstros deve ser lido como inversão burlesca. As distorções oníricas e deformidades heteróclitas são características de um Picasso vanguardista, que pensa o deslocamento dos perfis humanos, criados e regidos pela sociedade. Para Quintana, está no processo inicial de educação ontológica da criança, amiúde repassada pela mãe, a possibilidade da geração e aceitação da diversidade de aspectos humanos. A figura da mãe sedada pela arte, que compreende o deslocamento de perfis (QUINTANA, 2005, p. 202), gera uma nova prole, desfigurada social, psicológica, política e, em especial, esteticamente em relação aos primeiros contatos formadores da psique. Da mãe hipnotizada pela arte, descendem mutações da perspectiva de mundo humano e social. Na tela Duas Mulheres lendo (1934), de Picasso, podemos ver bem ilustrada a insinuação da proposição quintaniana.

Como derradeiro apontamento do jogo linguístico montado em 8 , recuperamos uma qualidade positiva em Picasso: “não o desprezo da lógica” (QUINTANA, 2007, p. 254), graça que Quintana não concede, assim, ao espantoso circo dos horrores do Surrealismo, cuja função é 28“1 especialidade médica que se dedica ao estudo das anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal 2 p. sin. os monstros como um conjunto; a monstruosidade [...] Etimologia grega

teratología, as ‘narração de fatos espantosos, relato de coisas monstruosas, estudo de monstruosidades [...]”

inverter todos os valores, inclusive a lógica. O funcionamento dessa escola estética é regido pela sua entrega total e absoluta à incoerência automática. Para o senso de valor de 8 , a arte deve, sim, entregar-se à inversão, ao delírio, ao onírico, ao heteróclito, ao anacrônico, mas sem se deliberar, sem arbitrariedade, sem abandonar o trabalho pela lógica, uma lógica diferente.

Atentemos ainda que os principais poemas que ferem a dinâmica do Surrealismo – Mau Humor (QUINTANA, 2005, p. 823), Picasso e Dalí e A grande atração do circo (QUINTANA, 2005, p. 840) –, aliados ao poema sobre consideração estética, Não olhe para os lados (QUINTANA, 2005, p. 840), aparecem todos no livro Porta giratória, publicado em 1988. Porta giratória é, como todo termo que Quintana criteriosamente elenca, imensamente sugestivo. Ao selecionar os títulos dos seus poemas e, mais ainda, os nomes para seus livros, o poeta gaúcho está indicando com essas palavras uma espécie de mônada estética, resumo da totalidade estética, poética e filosófica; dito de outra maneira: os títulos na obra de Mario Quintana são uma prévia do nível das discussões e do teor dos versos/poemas.

O vocábulo “porta-giratória” não se encontra dicionarizado, todavia, descrever o objeto a que se refere não é difícil. Podemos encontrá-las em quase todos os bancos, em muitos hotéis e em alguns restaurantes, em 1) lugares onde se resolvem negócios ou necessidades; metaforicamente, o livro de poemas também é um desses locais onde interesses, de outra natureza, são discutidos. 2) A porta-giratória é desenhada para ambientes onde haja grande fluxo de pessoas, assim, o livro se torna lugar de curso social, tem o interesse de se difundir, de atender a um grupo numeroso. 3) O artefato é uma variação da porta comum, e, como toda porta, dá acesso ao interior de algum lugar. A partir disso, já fica claro que o livro e seus poemas visam possibilitar a entrada do leitor em determinados ambientes, inclusive ao interior individual. 4) Basicamente, a porta-giratória foi projetada para um acesso organizado aos ambientes; a entrada e a saída são reguladas, não se consegue entrar de todo jeito, só se passa nela uma pessoa por vez. O livro, então, prevê uma organização de modo a permitir o acesso ao teor das mensagens, mas o acesso só pode acontecer de forma individual, ou seja, cada leitor terá sua própria visão individual do ambiente coletivo. 5) A porta-giratória não pode ser fechada nem aberta, ao mesmo tempo em que ela está também fechada e aberta. Móvel, é necessário um pequeno empurrão para frente, para que ela se mova, como um carrossel, abrindo-se para frente e se fechando automaticamente para trás. Por isso, entendemos que o empurrão no livro-porta seja o esforço de leitura e/ou interpretação. A compreensão do livro estará sempre à disposição do leitor e, ao mesmo tempo, a mensagem hermeticamente selada, em um movimento que não acaba nunca. 6) Uma porta-giratória, ao mesmo tempo em que é uma única porta, é também a união de várias portas ligadas em um eixo. Dessa forma, o livro adquire o valor de conjunto, de uni-verso. 7) Apesar de fixa em um mesmo local, o movimento de entrada e de

saída nunca é o mesmo. Com isso, Quintana assume que, depois de entrar no livro, é impossível que o leitor saia da mesma maneira que chegou.

O mais importante, todavia, que não pode deixar de ser analisado na concepção do título é que 8) a porta comum está circunscrita em um limite espacial – ombreira, padieira e soleira demarcam nitidamente o que pertence ao lado externo e o que pertence ao lado interno; com a porta-giratória, esse limiar não acontece, pois a verga não pertence à porta, mas ao edifício; a ombreira, quando existente, perde sua força limitadora, porque as abas – ou portas componentes da porta-giratória – estão sempre transitando pelos dois ambientes, o externo e o interno. O chão da porta-giratória é o mesmo do lado externo e interno. Quando há soleira, esta é uma peça única, geralmente feita de pedra, que liga o externo ao interno. É possível permanecer dentro da própria porta-giratória, e também, andar nela em círculos; mas o fato é que, estando-se nela, não se pertence mais ao externo nem ao interno, simultaneamente em ambos os ambientes possuem o sujeito. Temos, dessa maneira, que Porta giratória assume uma postura estética que visa coincidir o coletivo com o individual, o universal com o particular; postura muito parecida com aquela tomada em A vaca e o hipogrifo.

Destarte, entendemos que os poemas de Porta giratória, ao criticar o Surrealismo, o fazem não a respeito do entorpecimento dos sonhos, nem do asilo do sujeito dentro de si. Os poemas em Porta giratória se contrapõem à supervalorização do hipogrifo e do interior do edifício, uma supervalorização que oblitera a vaca e o exterior do prédio. Vejamos esse jogo que tenta reequilibrar vacas e hipogrifos em outro poema de Porta giratória:

Ora, Maria! o meu mundo é de temperaturas

tenções fulgurações…

Eu nada tenho a ver com os sentimentos humanos! Por que tu não és uma vaca, Maria? Por quê? Ficaria tudo mais simples e verdadeiro… (QUINTANA, 2005, p. 781, A vida simples)

Podemos apontar dentro de A vida simples uma tensão entre o natural, representado pela vaca, e o artificial, ligado a Maria. A voz lírica diz preferir a vaca por ela ser verdadeira, e, de acordo com o poema, simplicidade e verdade andam lado a lado. Na concepção não poética dos termos simples, temos tudo aquilo que não oferta graça, que é elementar. Todavia, no poema, há uma inversão de valores. É, através do simples, que a voz lírica vivencia experiências extraordinárias. Mario Quintana dá à vaca do poema o status grandioso do hipogrifo

A verdade, que é o melhor caminho sugerido por A vida simples, consiste em vivenciar o admirável na simplicidade. Isso nos leva a ler Maria como algo não simples, logo, não verdadeiro e que, por sua vez, incapaz de maravilhar a voz lírica. Maria é humana, oposta à vaca, e, por isso, não fulgura. Logo, ela representa o não verdadeiro que se quer excepcional. O não verdadeiro não possibilita o retorno, o atavismo. Ele se configura como movimentos: movimentos de temperaturas, tenções e fulgurações. A voz lírica sugere que ela deveria ser uma vaca, retirando de Maria a pretensão de hipogrifo, que não lhe é de direito.

Essa discussão parece se desviar do nosso foco, mas ela é necessária, uma vez que uma ideia específica era obsidente no surrealismo de Dalí: o atavismo.

Em 1963, Salvador Dali publica El mito tragico del Angelus de Millet29, um tratado sobre o

atavismo. Nele, o pintor discorre sobre a insistente reaparição em forma de reproduções, no sentido de remissão intertextual advogado por Julia Kristeva (1941-), da tela Angelus (1858) de Jean- François Millet (1814-1875), da arte visual formal à decoração de utensílio. Para Dalí, a reaparição não é reflexo estético originado do Zeitgeist30. Em Millet, haveria um símbolo universal, projeção

do inconsciente, de uma tendência à psíquica reversão, atavismo psíquico generalizado. Se esse símbolo estético do inconsciente passa ignorado por quase toda a sociedade, à exceção de poucos artistas plásticos, como o escultor Alberto Giacometti (DALÍ, 1989, p. 48), Dalí procura reconhecer, compreender e trabalhar a insistência de retorno da tela ancestral no seu fazer artístico particular.

Já neste ponto, podemos anotar que, ao intitular um dos seus poemas com o termo “atavismo”, Mario Quintana não estava apenas se inserindo em uma tradição, que agora chamamos de tradição atávica – tradição no sentido de inserção e o diálogo nos/com valores específicos (BORNHEIM et al., 1987, p. 20). Uma vez que há um diálogo divergente estabelecido entre Quintana e Dalí, isso que chamamos de tradição atávica, se não se ramifica em várias tradições, ao menos se bifurca em duas que são conflitantes.

Surrealismo, que significa além do real, sobrerreal, além do material e do natural, inclusive sendo também chamado de sobrenaturalismo, não é uma ideia que desagrada de todo a Mario

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