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1 INTRODUÇÃO

2.6 A NARRAÇÃO DO FATO PELAS FORÇAS DO DISCURSO

2.6.1 África como invenção do discurso europeu

Segundo Carlos Moore (2008, p 27), no continente africano, interagem mais de 2.000 povos em uma extensão territorial de 30.343.551 km² (equivalente a 22% da superfície do planeta). Esses grupos humanos distribuem-se por uma topografia composta de regiões desérticas, semi-áridas, savanas altiplanos, longas extensões florestais, planícies e regiões montanhosas, situando-se dentro de organizações socioeconômica, politica e cultural compostas por uma infinidades de modelos continuando a mais longa ocupação humana de um território de que se tem conhecimento, cerca de 2 a 3 milhões de anos até a atualidade, ainda consoante Moore (2008, p 29).

A face que se popularizou da África é fruto, antes de tudo, de um discurso estereotipado e preconceituoso de uma Europa que por conta de um modelo imperialista-

expansionista precisava lançar-se ao mundo, dominar territórios e gentes. Na legitimação dessa dominação, necessitava-se de álibis atestadores de superioridades e inferioridades. Nesse âmbito, de expansão imperialista da Europa, criam-se discursos nos quais africanos são colocados na posição de inferiores aos europeus: por esses discursos a Europa é o continente a ser imitado e nele habitam os povos “evoluídos” a serem obedecidos.

Pouco se considerou da pluralidade e da complexidade dos povos africanos, assim como pouco se considerou que a África não pode ser tratada como singular, uma vez que a diversidade sociocultural não permite ignorar as experiências humanas como plural. Mas os interesses mercadológicos da Europa “coisifica” a África transformando-a em um produto comerciável, exótico, homogêneo e sem história própria, uma vez que houve o impedimento, por séculos, dos povos nativos de narrarem suas próprias histórias.

De acordo com Kabengele Munanga, em Negitude, usos e sentidos, apresentam-se dois modelos da expansão imperialista da Europa da época sobre a África: um de ordem mercadológica e outro discursivo-histórico (1986, p 12). A expansão de mercado provoca a apropriação e expropriação de terras e recursos que financiariam o bem-estar das metrópoles. Mas, qual o álibi para explorar gentes e terras sem passar, a primeiro plano, interesses meramente financeiros ou sem passar brutalidade? Cria-se, nesse intuito, o grande discurso do papel do europeu colonizador em território africano, o de expandir uma missão civilizatória, colonizadora través da qual a África, e suas populações negras, chegariam, um dia, a “excelência” europeia. A Europa carregava o “sacrifício” de “salvar” a África da condição selvagem ainda que por via da escravização de dos africanos para que o “sofrimento os purificasse”, conforme ideologia do cristianismo colonizador. Por outro lado, “uma vez civilizados, os negros seriam assimilados aos povos europeus, considerados superiores, ou seja, tornar-se-iam iguais aos brancos.” (MUNANGA 1986, p 13).

Por gerações, a dominação europeia difundiu, inclusive convencendo as próprias novas gerações africanas colonizadas, a narrativa de uma África onde campeia a miserabilidade, as guerras tribais, as doenças exóticas, povos pré-lógicos e famintos. Esses, deslocando-se sobre ambientes selvagens, cercados por animais perigosos e pelo misticismo de seitas irracionais conduzidas pelos rituais de cerimônias animalescas.

Para que essa construção discursiva funcionasse, foi necessária à assimilação, como verdade, da inferioridade das comunidades negro-africanas e dos modelos europeus- brancos como o modelo humano, de modos de viver e de belezas, autênticos e legitimados, “por Deus”. Um mecanismo de grande eficiência para a legitimação desse discurso foi as ações de ordens religiosas empreendidas pela “evangelização” promovida pelo cristianismo. O mito camítico de origem hebraica foi uma das fundamentações mais aceitas para pregar a inferioridade e a degeneração dos negros africanos (MUNANGA, 1986, p 15). Por esse discurso mitológico, os africanos negros são descendentes de Cam, filho de Noé, amaldiçoado por sua zombaria à nudez do pai, pego em atitudes impróprias (para aquele modelo cultural) devido a uma embriaguez. A cor da pele é marca, por esse mito, da degeneração, da involução e da animalização dessas populações. Seguindo essa esteira discursiva, teóricos europeus apegam-se as condições do clima para afirmar a condição inferior das populações africanas. Kabengele Munanga situa o historiador Heródoto como autor dos primeiros escritos europeus sobre as populações negro-africanas (1986, p 12) e a partir da imaginação baseando-se no clima, projeta uma imagem negativa de todo o continente. “Segundo essa teoria dos climas, as temperaturas extremamente baixas ou altas tornam o homem bárbaro, enquanto as zonas temperadas favorecem o desenvolvimento das civilizações” (MUNANGA, 1986, p 13). Heródoto expõe os africanos eram animalizados, expostos como selvagens e irracionais e “Essa visão retornou na Idade Média e no Renascimento, reatualizando sempre os mesmos mitos que faziam da África negra um mundo habitado por monstros, seres semi-homens, semi-animais.” (MUNANGA, 1986, p 14)

A escravidão tornou-se, segundo a visão religiosa da época, a maior força de salvação daquela gente degenerada pelo meio e pelo pecado. É provável que a Bula Dum

Diversas, publicada pelo papa Nicolau, para o Rei de Portugal, Afonso V, em 18 de

junho de 1452, seja o documento “permissional”, ou, mesmo, o que se pode entender como fundacional daquilo que veria a ser um dos maiores martírios de populações humanas reduzidas à “coisificação”, esse documento foi revivido por diversos outros papas sucessores de Nicolau, como Calisto III em 1456, o papa Sisto III em 1481 e o Papa Leão X, em 1514. O poder atribuído pela Dum Diversas é estendido sobre o continente americano pelo Papa Alexandre VI com a Inter Caetera (1493):

[...] nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades... E REDUZIR SUAS PESSOAS À PERPÉTUA ESCRAVIDÃO, E APROPRIAR E CONVERTER EM SEU USO E PROVEITO E DE SEUS SUCESSORES, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes [...]. Em 8 de janeiro de 1554 estes poderes foram estendidos aos reis da Espanha.(LEÃO, 1987, p 22)

A sustentação ideológica do sistema escravocrata deve o seu álibi e sucesso, principalmente, à visão da doutrina cristã de que o “homem não deve temer a escravidão do homem pelo homem, e sim sua submissão às forças do mal.” (MUNANGA, 1986, p 15). Cobertos por esse sustentáculo ideológico-religioso, os impérios europeus impõem uma diáspora secular às populações africanas e já nos navios negreiros, mesmo antes de suas travessias às Américas e Europa, esses povos perderem a filiação à suas famílias, geralmente, por meio do batismo cristão. Por esse modelo civilizatório, os negros- africanos, foram retirados dos seus territórios de origem para servirem a “seres superiores”, os europeus, e, segundo esses, por via do sacrifício da escravidão conseguiriam salvarem-se da selvageria ao aproximarem-se da superioridade branco- europeia, geração após geração.

As missões religiosas carregavam consigo, desde a chamada época das grandes navegações, pelos europeus, não só a expansão da fé cristã, mas também a língua e os valores morais dos povos autointitulados como os humanos e civilizados. Foram esses agentes, os religiosos, que atuaram na compreensão mais amiúde das sociedades africanas e permitiram, com mais facilidade e eficácia a intervenção do colonialismo europeu (PENNA FILHO, 2009, p. 41).

As ações da colonização foram, paulatinamente, corroendo as estruturas construídas, anteriores à chegada europeia, daqueles diversos tipos de organizações sociais ao mesmo tempo em que inculcavam nas novas gerações africanas as condições de inferioridade local e de evolução do europeu, transformando, ou destruindo as organizações sociais africanas pré-coloniais e rebaixando a autoestima dos jovens nativos. Pois, além da atuação missionária interferindo nas construções morais e ideológicas dos africanos, a ocultação do passado histórico dos povos africanos tornou- se a norma. O colonizador passa a invocar a construção da história de África como presa

à história da Europa e iniciando-se a partir daquele capítulo histórico europeu: a “expansão mercantil. Essa ideia chegou ao cúmulo do absurdo com os franceses ensinando aos africanos que os seus antepassados eram ninguém menos que os... gauleses. Assim se ensinava história nas escolas francesas nas colônias africanas” (PENNA FILHO, 2009, p. 43). A manipulação da história, “construindo” um passado no qual a Europa ditava os contornos africanos e atuava como civilizações superiores,

tornava-se um eficaz instrumento de dominação presente e com poderosa propagação ideológica futura.

Autores como Cheiki Anta Diop e Ki-Zerbo, entre outros grandes intelectuais africanos, refutaram veementemente a negação, por parte da Europa, das populações africanas como produtoras de sua própria história, denunciando essa negação como uma estratégia de colonização por parte das nações europeias. Na corrente contrária ao pensamento intelectual da Europa do início da segunda metade do século XX, Diop, em sua obra Nations nègres et Culture – De l'Antiquité nègre égyptienne aux problèmes

culturels de l'Afrique d'aujourd'hui, (1954) defende como irrefutável a contribuição da

África para a história da humanidade, colocando como destaque dos seus estudos a civilização egípcia como o ápice das grandes sociedades em África e de base para o surgimento da civilização grega. Estudos recusados como tese de doutoramento na Universidade de Paris em 1951. Diop, como diversos autores africanos e afrodescendentes, inferem que a constituição da baixa autoestima das identidades de gerações em sociedades africanas tem contribuição da chegada do europeu ao continente, instituindo inclusive conflitos antes não existentes. Principalmente, contribuição da tradição escravista europeia que negava humanidade aos grupos africanos submetidos a esse processo, como há muito já explicitava Cheiki Anta Diop:

Imbus de leur recente supériorité technique, les Européens avaient, a priori, um mépris pour tout lê monde nègre dont ils ne daignaient toucher que lês richesses. L’ignorance de l’histoire antique dês Nègres, les différences de moeurs et de coutumes, lês préjugués ethiniques entre deux races qui croient s’affronter pour la premièr fois, jointes aux necessites economiques d’exploitation, tant de facteurs prédisposaient l’espirt de l’Européen à fausser complètemente la personnalité morale du Nègre et sés aptitudes intellectuelles.Nègre devient désormis synonyme d’etre primitif, `inférieur, doué d’une mentalité pré-logique´. Et comme l’être humain est toujours soucieux de justifier as conduite, on ira même plus loin; le souici de légitimer la colonis et la traite dês esclaves – autrement dit, la condition sociale du Nègre dans lê monde moderne – engendrera toute une littérature descriptive dês prétendus caractères inférieurs du Nègre. L’espirt de plusieurs générations

europénnes ainsi progressivement faussé. L’opinon occidentale se cristallisera et admettra instinctivement comme une vérité révélée que Nègre = Humanité inférieure.23(DIOP, 1979, p.53).

Diop afirma ser a negação ou a inferiorização das características e culturas africanas algo produzido pelo etnocentrismo extremado europeu que coloca as sociedades africanas em posição de inferioridade cultural e seus habitantes como brutos e em estágio de selvageria, abaixo dos estágios culturais de superioridade cultural das nações europeias. Constroem-se, assim, estereótipos dos povos africanos decisivos para inferiorização mundial da imagem africana, assim como, formar a autoestima rebaixada de gerações de africanos.

Não diferente do senegalês Cheiki Anta Diop, o historiador burquinense Joseph Ki- Zerbo ressalta a necessidade africana de “refundar a História a partir da matriz africana” (2009, p. 15) atacando, assim o ocultamento provocado pelo sistema colonial europeu. A noção de “pré-história” humana é revista, a partir dos estudos desse historiador, pois para Ki-Zerbo não existia razão lógica para que “os primeiros humanos, que inventaram a posição ereta, a palavra, a arte, a religião, o fogo, os primeiros utensílios, os primeiros habitats, as primeiras culturas” fossem alijados da participação na construção da história mundial.

Na realização desse objetivo, Ki-Zerbo passa a ignorar como verdade absoluta as fontes de pesquisa fornecidas a ele pela sua formação colonial francesa nas escolas do Mali ou do Senegal, onde realizou os estudos básicos, e também da Sorbonne, universidade na qual completará a sua formação, que defende, algo comum às academias europeias da época, a história com base na escrita. O historiador passa a entender que a “reconstrução” da História da África começa pela História oral, pois “onde quer que haja humanos, há história, com ou sem escrita”:

23 Imbuído de sua recente superioridade técnica, os europeus tiveram, a priori, um desprezo por todo mundo negro, logo eles não se indignaram a tocar as riquezas. A ignorância da historia antiga dos negros, as diferenças de hábitos e de costumes, os preconceitos étnicos entre duas raças que acreditamos afrontavam-se pela primeira vez, além das necessidades econômicas de exploração, assim como fatores predispostos do espirito europeu deturpou completamente a personalidade moral do negro e suas atitudes intelectuais. Negro tornou-se dessa forma sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pré-lógica, e como o ser humano tem sempre justificativa sociais a conduzi-lo, indo mesmo mais longe; o desejo de legitimar a colonização e o tráfico de escravos – dito de outra forma, a condição social do negro no mundo moderno – engendrará toda uma literatura descritiva dos pretensos caracteres inferiores do negro. O espirito de várias gerações europeias assim o deturpou. A opinião ocidental se cristalizará e admitirá instintivamente como uma verdade revelada que Negro = Humanidade inferior.

A África é o berço da humanidade. Todos os cientistas do mundo admitem hoje que o ser humano emergiu na África. Ninguém o contesta, mas muita gente esquece isso. Estou certo de que se Adão tivesse aparecido no Texas ouviríamos falar disso todos os dias na CNN. É verdade que os próprios africanos não exploram suficientemente essa “vantagem comparativa”, que consiste no fato de que a África foi o berço de invenções fundamentais, constitutivas da espécie humana durante centenas de milhares de anos. Foi a partir do continente africano que o Homo erectus, graças ao fogo que descobriu (Prometeu também era africano) e graças ao biface – instrumento e arma muito eficiente -, pôde migrar para Europa: outrora, no norte do planeta, coberto de calotas geladas, a vida era impossível; não há vestígios humanos na Europa, nos períodos mais recuados. Além disso, foi no Egito que a maior civilização da Antigüidade surgiu; e o Egito é o filho natural dos primeiros tempos da África como berço da humanidade, embora tenham tentado desligar o país dos faraós da África, pretendendo que faz parte do Oriente médio. O líder da Frente Nacional na França – Jean-Marie Le Pen – e seus parceiros deveriam aprender a história real do mundo. Isso os levaria diretamente a reconhecer que os seus antepassados foram os primeiros emigrados vindos da África.(KI-ZERBO, 2009, p. 13)

Assim como Edward Said (2007) denuncia o “Oriente como invenção do Ocidente”, retratando-o como “signo do exotismo, da inferioridade e da incapacidade” (SAID. 2007, p. 23), autores do quilate de Cheiki Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo expõem uma África sem humanidades e sem história como a maior invenção de uma Europa imperialista, de expansão capitalista e com extrema necessidade de álibis para as ações de um colonialismo predatório.

Sem dúvida, pode-se considerar a mudança das formas de “comercializar” das organizações sociais tradicionais africanas, obrigadas pelos colonizadores europeus a vender e não mais trocar produtos, como a grande arma na desestruturação dessas sociedades. As metrópoles coloniais introduzem impostos per capita para o nativo africano obrigando-o pagamento em dinheiro, sob pena de prisão (PENNA FILHO, 2009, p 22). A introdução desses tributos faz com que as populações locais passem a vender suas produções ou a força de trabalho para obtenção de dinheiro e assim pagar os impostos. Esse quadro provoca, principalmente, êxodo rural e, por consequência, a saída em demasia da mão de obra rural ocasionando colapso na agricultura e pecuária (base de sobrevivência da maioria das comunidades autóctones) e a absorção, por remuneração irrisória e sem assistência social de qualquer espécie, dessa mão de obra por empreendimentos europeus voltados para a exportação de produtos primários para

as metrópoles. Paulatinamente, as imposições da expansão comercial fazem o enfraquecimento, se não a extinção, das organizações político-sociais tradicionais das populações africanas que se tornam reféns das forças de coerção ou de exploração econômica dos europeus. É necessário não esquecer o fato da exploração econômica da Europa em África ser algo implantado, aos poucos e por séculos (desde o século XV) sobre variados modelos de sociedades africanas. (PENNA FILHO, 2009). Mas, é de se crer que poucos têm dúvidas, não ser só o comércio desigual de troca de produtos manufaturados por matérias-primas a causa da depauperação das sociedades tradicionais africanas e sim o empreendimento do mais lucrativo e desumano comércio feito nessas terras: a escravidão. É esse choque de modelos civilizatórios entre Europa e África com o encontro das tradições angolanas (as africanidades) e a exploração colonial europeia que será explorado por Pepetela em Yaka (1984).