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3 NAÇÃO: POSSIBILIDADES DE CONCEITUAÇÃO

3.3 A HISTÓRIA A “CONTRAPELO”: DESCONSTRUÇÃO DO

A textualidade histórica europocêntrica sobre o continente africano concebe o “mito fundacional” de Angola no momento em que Digo Cão, no reinado de D. João II, chega à foz do rio Zaire (fins de 1482 ou 1483) e marca uma das margens com a pedra que representa o direito a posse do território aos portugueses. É assim iniciada a versão colonizadora do domínio do território angolano, seguindo-se de uma aliança com o Reino do Congo, ao norte, e o estabelecimento de fronteiras com os Reinos Ndongo e Matamba, ao sul, que pela narrativa de Douglas Wheeler e René Pélissier em História

de Angola (2009) fundem-se para dar origem ao núcleo de Angola, depois anexado pelo

império português. Por conta desse episódio, simbolicamente, os colonizadores passam a chamar o local de rio do Padrão, ou seja, a pedra ali colocada por Diogo Cão simboliza a “fundação” de Angola, pela versão de Portugal.

No entanto, as bases que se expandirão nas diversas identidades culturais que formarão o mosaico de identidades transpassando a fraca tentativa de institucionalizar uma identidade nacional homogênea em Angola (também, em qualquer nação) não nascem na chegada dos colonizadores e sim bem antes desse encontro transatlântico.

É de considerar bases mais fortes desdobradas nas simbologias (africanidades) do cotidiano de Angola no passar do tempo, como as organizações sociais existentes antes da chegada do português a exemplo do Reino do Congo, do Reino do Lunda, e do Reino de Matamba. É ingenuidade negar a ótica europeia de impor um único acontecimento (a chegada de Diogo Cão) e uma única matriz politico-cultural (a própria lusitana), ou mesmo aos Reinos e Estados uma pré-exploração não europeia, é ingênuo adotar origem única para a formação do povo angolano. A constituição de qualquer povo, qualquer nação é, geralmente, polimatricial, e calcada em um manancial de narrativa e histórias discrepantes afinal, João Ubaldo Ribeiro adverte na abertura de Viva o povo brasileiro: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”, uma nação é constituída por histórias e não por história. É o discurso dessas narrativas históricas de fundação das bases nacionais.

As bases de diversas comunidades que formam países africanos como Angola nascem, possivelmente, do fenômeno de deslocamento dos povos banto no território africano. O termo “banto” fora proposto em 1862 por W. Bleek na nomeação da família linguística de tronco comum, o protobanto, compartilhado por diversos povos há três ou quatro milênios anteriores. Ainda segundo os estudos de Yeda Pessoa de Castro, temos a noção de que o termo usado por Bleek passa a ser também usado, bem mais tarde, por outros vários estudiosos, de áreas distintas, para denominar 190.000.000 de indivíduos que habitam territórios compreendidos países da África Central, Oriental e Meridional em uma área de 9.000.000km² (CASTRO, 2001, p 81).

Consoante Alberto da Costa e Silva (1996), os grupos banto dispersaram-se por terras africanas inicialmente de modo nômade ou seminômade, fixando-se temporariamente em um local, organizavam-se com bases em moradia de barro e quando do rareamento da fertilidade do solo ou da escassez de caça, seguiam para outro local. À medida que o tempo passa, essas comunidades, gradualmente, abandonam o nomadismo através de desenvolvimento de tecnologias que permitem a fixação em uma região e o alargamento de novos processos culturais por encontro de culturas distintas. Ainda segundo Silva

(1996), no momento em que esses grupos passaram a usar ferramentas de metal, desenvolvem a expansão de modo mais eficiente, seja pela força, que parece não ter sido a predominância, ora pela elaboração tecnológica. A trajetória de expansão de povos do grupo banto de norte para sul do continente africano seguiu deslocamentos milenares (séculos após séculos) cedendo aos seus descendentes, hábitos e ritos que sobreviveram, ressignificando-se cotidianamente como em qualquer processo cultural humano. Até mesmo durante a ocupação colonial exploratória portuguesa, em Angola, esses grupos conseguem manter-se, por muito tempo, resistindo em seus processos culturais e muitos desses hábitos serviram como base na narrativa em Yaka (1984), de Pepetela, sobre as tradições angolanas anteriores a ocupação portuguesa, como a criação de gado dos Cuvale e o cultivo da terra as plantações que os permite sobreviver em perenidade em um território:

Vilonda, sentado no rochedo azul do seu território, olhou o rio Cuporolo. Espera a volta das duas mulheres que tinham ido à lavra. Terra bo,a a do Cuporolo. Daqui se via as bandeiras do milho pintar de branco o verde da lavra. E para os bois então? O rio tinha água todo o ano, o capim estava sempre verde e tenro, os bois engordavam e luziam. Virou a cabeça para a esquerda e viu a manada. O filho mais novo e o sobrinho trazem os bois para o curral. A manada sobe o morro que nasce ao lado do rio, ondulando entre os penhascos, reconheceu no meio dela a namulilo, a vaca mais sagrada de todas, o boi mocho, os dos cornos retorcidos, o malhado, a vaca cega, os vitelos. Ao todo oitenta animais. Subiam sem pressa, de barriga atulhada, as vacas cheias de leite agitando os chocalhos. Um ou outro mugido eram música no seu ouvido. Encheu o peito de ar. Tudo estava ali. O cheiro, o som, a luz. Terra boa essa do Cuporolo.(PEPETELA, 1984, p 151)

A expansão banto, configurada por milênios, é quem proporciona bases para surgimento de tradições de etnias, grupos e comunidades da Angola narrada pela literatura de Pepetela e de seus descendentes enfocados na literatura de João Ubaldo Ribeiro.