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1 INTRODUÇÃO

2.2 OS BRASIS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO

João Ubaldo Ribeiro tem a sua presença realmente sentida pelo público e crítica em 1971 ao publicar Sargento Getúlio (o que lhe rende o Prêmio Jabuti), apesar dessa obra não ser a primeira de sua lavra literária, pois, em 1960, começa a vida de escritor com

Setembro não tem sentido. Sargento Getúlio mesmo ao ter como leme a discussão das

lutas políticas e da força de coerção em confusão, com o poder politico colidindo com os direitos de cidadania no Nordeste brasileiro, principalmente no interior sergipano, faz sobressair todo um apuro na carga psicológica e moral que compõem a espinha dorsal das personagens. Essa característica constituirá no momento uma marca de fase da literatura do autor, conforme defende Tieko Miyakazi (Um tema em três tempos: João Ubaldo Ribeiro, João Guimarães Rosa, José Lins do Rego (1996)) e aprofunda ainda mais o olhar sobre essa fase de João Ubaldo, usando por base de discussão as teorias freudianas no sentido de tentar ler os conflitos existenciais dos personagens corporificados na literatura ubaldiana de então.

O discurso de Getúlio se faz, assim, monológico no sentido de que a outra voz, a do adversário, pelo menos, é reduzida ao silêncio. Quando é reconhecida como tal, como uma alteridade – é isso que acontece quando a sua fala alcança a força necessária para ser pelo menos reproduzida em debreagem de segundo grau, isto é, quando citada – é passada como expressão de insensatez, de irracionalidade. Em outros termos, ela é reduzida, ao ser silenciada, à não-existência, ou é considerada anticultura, quando é citada ainda que para ser contestada. (MIYAZAKI, 1996, p. 24).

No entanto, o que se tornará a marca principal da literatura de João Ubaldo Ribeiro é a crítica sobre as construções identitárias. A maior ênfase está na construção da identidade nacional, conforme veremos mais adiante na análise da obra de maior envergadura nesse âmbito: Viva o povo brasileiro (1984), inclusive pelo olhar de Rita Olivieri-Godet (2009) que se configura um importante nome quando se trata da crítica a esse autor.

Wilson Coutinho - João Ubaldo Ribeiro: um estilo de sedução (1998) - chama-nos a atenção para olhar com mais vagar as duas obras, acima citadas (Sargento Getúlio e

Viva o povo brasileiro), que, talvez, sejam as mais tratadas no acervo de Ubaldo

Ribeiro, mas direcionam os olhos para um traço que vê com singularidade em Sargento

Getúlio, uma identificação, uma empatia do leitor com o personagem principal, mesmo

com toda agressividade nas suas falas e gestos, com toda a “rudeza” (Coutinho – 1998, p 13) de um personagem violento:

Um dia desses com essa macriação algum macho lhe tira-lhe o fato fora, que tu só vai ter tempo de espiar as tripas, rezar meia salverrainha, um quarto de atodecontição e escolher o melhor lugar no barro pra se ajeitar, e ligeiro ligeiro, que possa ser que antes de chegar já tenha ido.

[...]

Em Buquim, fizemos uma tocaia amuntados. [...] Tonico levou a metralhadora anã e passou ela e não foi bom, que os miolos se desmilingüiram-se e saiu pedaço de queixada e foi lasca de homem por tudo que era lado [...]. As ordens que vieram era: não encosta no corpo. Mas mal corpo havia, aquilo é uma espirrada que desparrama sangue por todo canto e não deixa nada inteiro. (RIBEIRO, 1982, p. 11-24)

É possível, sim, pensar a produção literária de João Ubaldo fechando-se em duas pontas: a partir de 1971 com a publicação de Sargento Getúlio, já salientado anteriormente, uma obra onde há uma maior preocupação na construção de personagens de cunho mais existenciais e aquele que se tornará um dos pontos mais forte do autor, a literatura que persegue a história nacional e a reconstrói, de modo a não a entender apenas por uma única versão, conforme defende Walter Benjamin: “a história deve ser escovada a contrapelo” (1981: 1240), tônica magistral em Viva o povo brasileiro (1984). Mas João Ubaldo não se configura como um criador de duas obras apenas e sim com uma produção vasta e diversificada. O conjunto da obra do autor conta com uma grande gama de obras transitando desde a exposição dos conflitos rurais entre poderosos e pobres em Vila Real (1979), ou a narrativa que se ocupa da manipulação genética em

O sorriso do lagarto (1989), ainda o enredo que envolve quilombolas, índios e brancos

enriquecidos pelo tráfico negreiro dentro de uma ilha isolada no recôncavo baiano do Brasil-colonia. Tudo isso regado a mistérios, sexo e magia em O feitiço da Ilha do

Pavão (1997). Em A casa dos budas ditosos (1999), ressalta-se um dos sete pecados

capitais: a luxúria, através das experiências sexuais narradas com riquezas de detalhes por uma senhora baiana (C.L.B.), próximo dos setenta anos. Seguindo a veia “camaleônica” (GIACON, 2011, p. 9) de sua produção literária a Miséria e grandeza do amor de Benedita (2000), traz a história de casos extraconjugais de Deoquinha e a compreensão da esposa Benedita. O humor e o suspense conduzem a linha literária desde o primeiro momento quando o personagem principal é encontrado morto na casa de uma de suas amantes. Por fim, atendendo a essa pequena cronologia de algumas obras mais expressivas de João Ubaldo, em 2002, publica o Diário do Farol ambientado durante a ditadura militar, iniciado em 1964, e tendo ao centro o relato de um clérigo despido de moral. O autoexílio na ilha de Água Santa, que tem como ponto principal de sua paisagem um farol, o faz travar um diálogo aberto com o leitor. A sua condição de amoralidade faz com que não haja uma leitura para o bem ou para o mal nesse diálogo com o leitor e dentro dessa visão analisa-se um Brasil conturbado, em crise no modelo patriarcal, em nos tratos das instituições sociais, capitaneado por um país militarizado. Então, essa pequena incursão pelas obras mais notáveis de João Ubaldo Ribeiro não permite a quem quer que seja enquadrá-lo como autor de duas obras apenas e sem uma diversidade de temas e recursos de narração.

Eliane Giacon configura-se como uma das maiores estudiosa da obra de Ubaldo Ribeiro e é essa teórica que ao observar a crítica tecendo análises sobre a literatura desse autor, divide-a em trajetória de três fases (ACERVO CAPIROBA, 1968-2008):

A manifestação (1968 – 1981) – Nesse momento, segundo a autora, anunciam-se pontos que se tornaram marcas da literatura de João Ubaldo como o engajamento político, a predileção pelo regionalismo, uma extrema visão de humanismo, as questões ligadas à linguagem e a construção da identidade, principalmente a nacional.

A consolidação (1982 – 1999) – Dá-se quando a crítica já entende a obra ubaldiana como uma importante contribuição para a leitura do percurso histórico da sociedade nacional.

A continuidade (2000 – 2008) – Na divisão de Giacon, é a fase contemporânea do autor que ainda não permite fechar uma leitura da crítica acerca desse momento, uma vez que há uma produção ainda viva por parte de um literato de letras tão punjantes. É Giacon que classifica a literatura de Ubaldo como “camaleônica” por exibir uma profusão de características diferentes a cada exemplar de obra e às vezes dentro de uma mesma obra: “há obras estritamente políticas, outras filosóficas, outras ambientalistas, outras históricas e outras memorialistas” (GIACON, 2011, p. 10).

Outro olhar de grande importância sobre a crítica à literatura de João Ubaldo é o de Zilá Bernd e isso fica claro em dois momentos: primeiro na obra O caminho do meio; uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro (2001) na qual se transita por diversos ensaios sobre as obras de Ubaldo. Bernd deixa claro em diversos momentos a impossibilidade de enquadramento das obras de João Ubaldo em qualquer projeto bem comportado de maniqueísmo simplório ou mesmo de fechar apenas no caminho das afirmações identitárias. A multiplicidade é que guia a pena de Ubaldo, na mistura dos caminhos e a possibilidade sempre de um “caminho do meio”. Em Obra Seleta (2005), além de ocupar-se da cronologia de vida do autor, Bernd trabalha a crítica de oito textos de fortuna crítica; cinco romances do autor (Sargento Getúlio, Vila Real, Viva o povo

brasileiro, A casa dos budas ditosos e Diário do farol); dois livros de contos

(Vencecavalo e o outro povo e Já podeis da pátria filhos e outras histórias); e quatro livros de crônicas (Sempre aos domingos, Arte e ciência de roubar galinha, O

conselheiro come e Um brasileiro em Berlim). Nessa obra Zilá Bernd, classifica-o

como: “polígrafo, infatigável trabalhador intelectual, praticante de quase todos os gêneros e capaz de imbricar vários deles em um mesmo texto, humorista privilegiado e incomparável inventor de uma retórica proliferante”, (2005, p 15) dentro de uma “escritura mestiça”, em um ensaio assim intitulado.

No trato da fortuna crítica de João Ubaldo, retornamos a uma autora impossível de ser esquecida, principalmente na análise daquele que pode ser considerado um dos maiores traços da literatura ubaldiana, a construção da identidade nacional: Rita Olivieri-Godet. Em sua obra Construções Identitárias na Obra de João Ubaldo Ribeiro (2009) dedica- se ao estudo de romances, contos e crônicas do autor, dividindo a pesquisa em quatro capítulos todos abertos por análises teóricas sobre as questões identitárias. Segundo a visão de Olivieri-Godet, em Viva o povo brasileiro João Ubaldo faz a crítica ao uso privativo da história pelas classes que dominaram financeiramente o país desde a época

em que Portugal coloca-se como colonizador e após, quando as elites tornam-se nativas, apropriando-se dos fatos e “construindo-os” ao seu modo para legitimarem-se no poder. São as classes mais abastadas que direcionam a história “oficial” e a narrativa de Ubaldo incumbe-se de desconstruir esse processo cedendo direito de fala a multiplicidade de vozes formadoras da nação. Para Olivieri-Godet, está nessa obra a denuncia da relação entre a narrativa, a história e o poder das elites quando se apodera das representações coletivas para elaborar as simbologias nacionais de modo normativo, ou mesmo impositivo, colocando o branco colonizador como modelo identitário dominante. A autora coloca como maior força dessa obra ubaldiana a extrapolação dos limites da representação do real, impondo questionamentos à história factual e da ficcionalização manipuladora dos fatos, através do paródico para subverter o olhar “oficial” e promover a integração do imaginário popular na construção da memória coletiva.

É impossível tratar das obras de João Ubaldo Ribeiro e de Pepetela sem transitar pelos tempo-espaços que servem de estrutura para dar corpo as suas narrativas e permitirem suas leituras de mundo a partir dos território físicos imaginários de identidades.

Angola de Pepetela trará uma incontestável contribuição na formação básica do povo brasileiro que se ocupa João Ubaldo Ribeiro. As africanidades angolanas (e dos demais territórios africanos) transpassará diasporicamente o Atlântico em um dos maiores "espetáculos" de horror que o mundo se permitiu assistir e desaguará nas Américas formando um mosaico cultural de africanias, ou em outros termos, de Áfricas ressignificadas, que nortearão as bases genético-culturais dos futuros países americanos.