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1 INTRODUÇÃO

2.1 AS ANGOLAS DE PEPETELA

Na literatura de Pepetela, os ideais da construção da sociedade sincronizam-se com os processos de construção nacional ao longo dos fluxos históricos. Uma das características maior das narrativas do autor é estar centrada na desconstrução da versão narrativa do colonizador português como o “criador” da nação angolana e a construção de um tecido social nacional permeado de vozes postas à margem pela colonização, ou conforme Inocência Mata: “simultânea reconstituição do discurso sobre o corpo da nação, a partir de identidades da margem” (2001, p.2). Os símbolos culturais

canonizados por uma crítica de tendência europocêntrica não serão, na literatura de Pepetela, o ponto primordial e sim aqueles construídos no cotidiano comum das vozes de Angola, principalmente nascidas nas culturas de comunidades tradicionais. Esse modo, Pepetela constrói uma literatura que articula a iconoclastia dos discursos históricos e dos discursos oficiais que constroem e mantem a nação Angolana. Ainda conforme Mata:

Muitas referências coincidem quanto a considerar a obra de Pepetela como buscando na História matéria para a ficção. Porém, talvez poucos estudos se debrucem sobre a natureza dessa busca. Porque é na natureza dessa busca que me parece residir a diferença eu diria até, a genialidade dessa literalização dos factos históricos em Pepetela, não pela cristalização de enclaves identitários mas pela mosaicização de identidades como fundadora de um (novo) mapeamento nacional. (MATA, 2001, p. 2)

Os questionamentos de uma história oficial estrangeira até então reivindicadora da formação do povo angolano presente são sopros vitais da narrativa de Artur Pepetela. Nessa “reconstroem-se” fatos, lugares e pessoas a partir de outro olhar que não o hegemônico-europocêntrico. O presente surge a partir de memórias desse “mosaico”, que cita Mata, e não por uma história nacional homogeneizada, pasteurizada. A Angola da literatura de Pepetela se faz nas encruzilhadas, nos encontros de versões de narrativas dos povos tradicionais sobre a formação nacional, negando a estrada reta da origem única discurso colonial:

Como um mago, Pepetela vai-nos desvelando os vários trilhos de memórias do Passado, vai-nos conduzindo pela percepção da História como um processo feito de cruzamento de olhares diferentes sobre o mesmo cuja evidência mais visível é a pulverização de vozes narrativas em Mayombe, O cão e os calus e Lueji e o complexo multiperspectivismo que caracterizam a sua técnica narrativa, como na sua última, A gloriosa família.(MATA, 2001, p. 3)

A literatura de Pepetela desafia o pensar a nação padronizada, uniforme, principalmente sustentada por um discurso europocêntrico hegemônico, por vezes, imbuído de intenções de dominação político-social. A uniformização nacional é, antes de tudo, a tentativa de anular o outro, principalmente, grupos sociais não inseridos nas estruturas de poder e decisão nacionais.

A nação angolana atual tem as suas origens antes da chegada dos portugueses, ou seja, se faz seja na condição de interação da atuação de atores sociais múltiplos e não lineares que performatizam seus símbolos de modo rizomáticos e não em um bloco sólido,

imutável e hierárquico criado pelo discurso do português que explorou Angola e impôs um modelo colonial de comportamento.

Os fios de condução da narrativa de Pepetela transitam pelas fronteiras fluidas, pelos diálogos diários dos diversos grupos étnico-culturais e pelas suas dispersões pelo território angolano. Principalmente dos grupos locais em choque com o colonizador português ou as migrações impostas pelos ditames do colonialismo, na exploração desumana causada pelo sistema de subjugação colonial.

Some-se a essa característica narrativa, o “refazer” da história, assim como em Viva o

povo brasileiro (1984) de João Ubaldo Ribeiro, no Brasil, não observando apenas uma

linha cronológica padronizada e sim histórias calcadas em memórias e narrativas de grupos em interações de passado e presente que comporão todo o “quebra-cabeça” que estabelece o transcorrer cotidiano do mosaico etnorracial-cultural da nação angolana. Na obra Pepetela e as (novas) margens da nação angolana (2001), Inocência Mata reporta-se a contribuição dos encontros de diversos grupos sociais, na literatura de Pepetela, para narrar a nação reescrevendo-a e reconstruindo-a.

em parte também pela dispersão étnico-cultural pelo território que presentemente se verifica no país essas comunidades vão evidenciando, sabemos então que desde a luta de libertação, uma visão cada vez menos homogeneizante, fissuras temporais que vão sendo preenchidas desde Mayombe, O cão e os calus, Quem me dera ser onda, Crónica de um tempo de silêncio, O signo do fogo, que reescrevem a nação disseminando um «pensamento diferencial» até alcançar a plenitude do tempo histórico, reconstruindo o espaço da nação sob a perspectiva de um descentramento do «local da cultura». (MATA, 2001, p. 5)

A fronteira entre a história e a ficção que sempre foi, na vida das civilizações humanas, uma linha não tão bem visível e delineada, uma vez que os textos só podem ser reconhecidos como ficcionais a partir de “convenções determinadas, historicamente variadas, de que o autor e o público compartilham [...] como ‘discurso encenado” (ISER, p.970), nas obras de Artur Pepetela essa linha já tênue torna-se ainda mais tênue. A partir do momento que o fato histórico é recontado é também interpretado por quem o conta, logo a interação entre a subjetividade do contador e a objetividade dos fatos ocorre, mesclando imaginário e ficção na exposição do que consideramos “real”. O imaginário do povo angolano na “criação” do real presente é a linha que Pepetela utiliza para costurar o tecido social feito na mixagem entre o real (o fato, a história) e o fictício

na construção das realidades cotidianas. A história, o ontem, torna-se o lastro da literatura para pensar a identidade nacional angolana, até hoje, mas não uma história engessada em uma única visão da realidade:

Pepetela trabalha suas versões da História: por exemplo, não se coíbe em afirmar que privilegiou a versão Lueji do mito do império Lunda. Num país que busca o rumo dessa construção, recorrer à memória colectiva e transformar (uma versão de) o mito que é História em realidade (não importa aqui se histórica ou ficcional), é fazer reviver momentos epopeicos para, assim, encontrar o rizoma no sentido em que Deleuze e Gauttari e, mais tarde Édouard Glissant na sua poética da relação, conceberam o conceito: como elemento(s) que se reporta(m) a situações culturais representativas.(MATA, 2001, p. 6)