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1 INTRODUÇÃO

2.5 PEPETELA E JOÃO UBALDO RIBEIRO: A HISTÓRIA E A

2.5.1 A iconoclastia do herói nacional europocêntrico

Os traços, símbolos, hábitos e imaginários que darão corpo as africanias no Brasil, no entanto, não aparecem tão claramente no início da narrativa de João Ubaldo Ribeiro, assim como não são explícitos, em primeiro plano, o negro-africano e o afro-brasileiro que as produzirão e as expandirão pelo país. Viva o povo brasileiro inicia-se com o “questionamento” da construção histórica dos heróis nacionais. As personagens alferes José Francisco Brandão Galvão e o português Perilo Ambrósio tornam-se heróis nacionais, na luta contra o colonizador português, por vias escusas ou acidentais.

No caso do primeiro, a morte acidental transforma-o em mártir da causa nacional: Brandão Galvão é um jovem pescador -“ostentando a barba rala que seus 17 anos lhe conferiam” -, alienado em termos políticos:

[...] não fazia ideia do que ia acontecer, tinha vergonha disto e sempre que reunia coragem para indagar, perdia no último instante [...] Não

sabia onde ficava Portugal, sabia somente que para lá voltara seu pai assim que ele nasceu. [...] Dos seus deveres de alferes nada conhecia, nem mesmo o que significava o posto, nem mesmo se era alferes. Suspeitava até que, para ser alferes, havia necessidade de alguma coisa mais que simplesmente o chamarem por esse título, como aconteceu pela primeira vez na botica e terminou por se tornar uso de todos na Ponta das Baleias.(RIBEIRO, 1984. p 12)

Brandão Galvão será o primeiro herói nacional que entrará para a história nacional, e dará a vida à pátria, sozinho, enfrentando a esquadra portuguesa. Por trás da construção do mito, se verá um jovem inexperiente, alienado e curioso que será transformado em símbolo de resistência brasileira, propagado, principalmente, pela escola, pelo processo educacional formal, que formará as novas gerações, inclusive, a menina Maria da Fé. É a curiosidade que impulsiona o alferes a observar o barco de guerra português Dona Maria da Glória fundeada no porto da Ponta da Cruz:

Como não tinha arma de fogo, pois de objetos militares só possuía o gibão, apertava, apertava nos dedos uma fisga de três pontas, enrodilhado na escuridão, espiando o barco e sentindo o fôlego se apressar, pensando de olhos fechados em abordar o navio e matar os portugueses com sua arma de içar peixes. Esperava ver o rosto medonho do comandante Manoel Pereira da Silva, de quem diziam ser dos mais cruéis reinóis entre todos os malvados que enviava a Corte tirânica, mas nunca enxergou nada além da sombra de um cachorro magro deslizando pelas beiradas do ancoradouro e nunca ouviu nada além da água chocalhando contra o casco do barco, os sussurros que a noite amplifica, fazendo soar como uma assembleia de tagarelas as passadas dos caranguejinhos que saem à noite (RIBEIRO, 1984. p 13).

Será esse o primeiro grande herói da pátria que morrerá em “10 de junho de 1822” atingido por uma nuvem de balas dos portugueses e como se espera de um herói:

Já mortalmente atingido, erguendo-se com um olho a escorrer pela barba abaixo, ele arengou às gaivotas que, antes distraídas, andejavam sobre os brigues e baleeiras do comandante português Trinta Diabos. Disse-lhes não uma, mas muitas frases célebres, na voz trêmula, porém estentórea desde então sempre imitada nas salas de aula ou, faltando estas, nas visitas em que é necessário ouvir discurso. Pois, se depois da metralha portuguesa não havia ali mais que as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais, havia o suficiente para que se gravassem para todo o sempre na consciência dos homens as palavras que ele agora pronuncia [...] são palavras nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos do alferes, e são, portanto, verdadeiras(RIBEIRO, 1984, p.10).

A receita básica para a construção discursiva do herói ocidental centra-se no maniqueísmo como a base de sustentação da figura altiva, somado ao sucesso, a vitória sobre a fraqueza moral típica dos homens comuns e, sobretudo a encarnação da identidade coletiva nacional. Todos esses atributos chegarão ao ápice em um determinado momento fatal do sacrifício a que um submetera-se por todos. Essa receita já era portada pelas figuras heroicas das tragédias, das fábulas e das epopeias guardando em si a medidas próprias de cada modelo e de cada contexto cultural que as diferenciava dos heróis contemporâneos. Será essa a mesma receita utilizada por João Ubaldo Ribeiro na construção do Alferes Brandão, com direito a todas as sutilezas irônicas, como o primeiro herói nacional construído por uma versão elitista como aquele nascido do seio popular e que como os mitos perfeitos (Tiradentes, por exemplo) martirizam-se pelo bem da nação e mesmo no momento da morte serão capazes de atitudes e palavras “nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos” (RIBEIRO, 1984, p.10) e que proferidas pela boca do herói, ainda que no momento ninguém as tenha ouvido, salvo “as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais”, (RIBEIRO, 1984, p. 10) serão indubitáveis, resistirão ao tempo, representarão a alma da nação por serem “verdadeiras”. Dessa forma Ubaldo Ribeiro, ironicamente, constrói um herói que desconstruirá o mito do herói “oficial”, através de processos iconoclastas.

A ironia de João Ubaldo Ribeiro na construção mitológica do herói em uma nação dominada por uma elite, uma classe dominante, segue a leitura dos dois caminhos básicos para estabelecimento de uma nação hegemônica que nos expõe Althusser (2007, p 73): um é a repressão pela força e a o outro é a disseminação ideológica que perpetuará as possibilidades de poder. A função do mito está em estabelecer e guiar em exemplo, a ser seguido e respeitado, a forma imaginária ideal dos homens viverem as condições cotidianas de suas existências em coletivo.

É o herói, o mito, que dará a existência material da ideologia que doutrina e tem por finalidade o estabelecimento e a manutenção do poder, criando, assim, um ciclo vicioso entre o poder que impõe a ideologia e a ideologia que faz a manutenção do poder. Mas esse processo só é possível quando ocorre a transformação dos membros de uma sociedade em “sujeitos ideológicos” (ALTHUSSER, 2007, p 75), assimilados pelo sistema que os faz disseminar a ideologia dominante. Em Viva o povo brasileiro (1984)

o personagem Alferes Brandão será construído pela versão elitista brasileira no primeiro mito da cultura nacional em resistência e enfrentamento as forças portuguesas de dominação e será essa versão ensinada nas escolas propagando a ideologia dominante.

A iconoclastia de Ubaldo prossegue na construção de outro herói nacional que, junto ao Alferes, funcionará como pilar da grandeza da nação: Perilo Ambrósio Góes Farinha, o futuro Barão de Pirapuama. A construção do herói se dará em versões paralelas, pois se abrirão duas imagens: uma será o Perilo Ambrósio pessoa, e a outra o “mito”, a imagem construída. A primeira aparição da personagem se dá com a sua expulsão da casa do pai, o português Felisberto Góes Farinha, devido a um “acidente” familiar durante uma refeição: “atacar uma das irmãs com um chuço de assar porque ela se apossaria primeiro de um pedaço de carne distante, mas cobiçado” (RIBEIRO, 1984. p 22). Pouco antes de Perilo Ambrósio tornar-se “herói” da pátria, esse se encontra escondido – “debaixo de um pé de jaqueira com as pernas abertas, comendo um pão de milho meio seco e dando dentadas enormes em um pedaço de chouriço assado” (RIBEIRO, 1984. p 22) - à espera

de ver para que lado penderá a guerra entre os portugueses e os brasileiros, vigorando os interesses pessoais de ordem material.

Perilo Ambrósio, que escolhera aquele ponto distante da luta para passar o dia, pois aguardava somente que vencessem os brasileiros para juntar-se a eles em seguida, temia que o combate não tivesse terminado ainda e que, por algum azar, fosse obrigado a tomar parte nele. Se queria que os brasileiros prevalecessem, não era por ser brasileiro – e na verdade se considerava português -, mas porque, expulso de casa, abominado pelos pais e por todos os parentes, sob ameaça de deserdação, deliberara adquirir fama de combatente ao lado dos revoltosos. Desta maneira, seu pai, fiel à Corte, já foragido e acusado de todos os crimes e perfídias concebíveis, poderia perder tudo com a vitória brasileira, passando os bens muitos justamente confiscados a pertencer ao filho varão, distinto pelo denodo empenho na causa nacional (RIBEIRO, 1984, p 26).

Nascia o grande herói português de nascimento que se torna brasileiro (ainda que não se sinta) por conveniência e por desentendimento em conflitos pessoais familiares. No julgamento popular exacerba-se o heroísmo de Perilo Ambrósio, pois alguém capaz de rejeitar a pátria e família colonizadoras mostrava-se mais digno da nacionalidade brasileira que qualquer outro.

Mas esse fato começa a tornar-se “real” quando durante as batalhas contra os portugueses, Perilo Ambrósio é encontrado por uma tropa de combatentes brasileiros em seu esconderijo estratégico, embaixo do pé de jaqueira, onde momentos antes, ao avistar os brasileiros ao longe, o português esfaqueia Inocêncio, um dos dois escravizados negros que levou como posse, ao ser expulso de casa. O sangue do escravizado negro com que lambuza o corpo e o fingimento de extremo cansaço torna-o, aos olhos da tropa de combatentes, o grande herói que renegou a própria família e nacionalidade pela pátria brasileira que nascia. Metaforicamente, o grande herói branco- português é forjado na farsa sob o sangue do negro-africano.

A farsa ganha amplitude quando o já Barão de Pirapuama manda cortar a língua de Feliciano (o outro negro que o acompanhara) para que esse não conte a sua versão dos fatosexpondo a farsa de Perilo Ambrósio.

E este cá não fala? – Ah, é mudo?

Amleto começou a responder, demorou muito em articular qualquer coisa, olhou aflito para o barão. Mas o barão, com o punho cerrado em torno do suporte do sobrecéu da cadeirinha, não se perturbou. Pelo contrário, falou mais alto e com mais veemência do que tencionara, como se estivesse fazendo uma proclamação indignada, libertando-se de algo que lhe obstruía o peito.

– Não é mudo! – disse, olhando o preto fixamente. – É desleal! Era preto de grande confiança da casa de meu pai e meu próprio, esteve comigo nos combates de Pirajá e em outras frentes em que combati na guerra da Independência. Ao contrário do outro negro que me acompanhava e que morreu lutando bravamente – não quero repetir uma história que já todos conhecem e que não me traz mérito, pois que apenas cumpri o meu dever de patriota -, ao contrário do outro, este se mostrou um poltrão acobardado (RIBEIRO, 1984, p 130).

Em seguida, vem de Perilo Ambrósio a justificativa para o sacrifício de ter cortado a língua de Feliciano. Na versão do Barão foi a piedade que o levou a tal ato, na tentativa de tirar-lhe o defeito de mentir que, segundo ele, era típico e natural da raça negra. Na voz do personagem de João Ubaldo Ribeiro ganha força a inferioridade racial e seus “defeitos” que durante muito tempo foi o álibi que sustentou a escravidão e todas as práticas ligadas a ela:

Mas levaria esse comportamento na conta dos defeitos de sua raça, como sempre levo, não fosse que, ao chegar de volta à nossa casa, passou a contar tais e tão desonrosas mentiras que fora eu um senhor menos benevolente, ele não mais estaria vivo, tamanha a sua desfaçatez, sua vileza, sua torpeza mesmo. Mas guiado como de costume pela

compaixão, castiguei-o apenas na medida de sua falta, a principal entre muitas, da qual o livrei para sempre. Não mentirá mais, deste pecado poderá ser absolvido, à custa embora de me haver obrigado a vencer a natural repulsa que tenho aos castigos, só os aplicando porque não me deixam outra escolha!

- Que castigo lhe foi dado?

- Fiz-lhe cortar a língua, simplesmente, o suficiente para que possa continuar a comer a comida que não merece que lhe dê e para que não se entendam as patranhas que, tenho certeza, ainda contaria se pudesse (RIBEIRO, 1984, p. 130).

Em palavras mais claras, João Ubaldo Ribeiro concebe a narrativa do falso herói da elite colonial branca que além de valer-se do sangue dos negros, escravizados, para construção de seu “heroísmo” e fortuna, ainda tira-lhe a voz impedindo-lhes de narrar a sua própria história e a história verídica do “Senhor” que testemunharam. A história de Perilo Ambrósio é a metaforização da história oficial do Brasil narrada pelo discurso europocêntrico-elitista, nascido na colonização portuguesa. Essa segue curso similar à trajetória desse personagem construído pela veia irônica de Ubaldo Ribeiro, ou seja, é uma narrativa histórica que se faz ignorando o sofrimento a que foi submetido o negro- africano e seus descendentes e sustentada por estruturas de poder que impedem por séculos os afro-brasileiros de contarem as suas versões da construção do Estado nacional.