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do Candomblé

Nas Fotos 1 e 2 pode-se ver uma área de arroz plantada pela sacerdotisa do candomblé, no município de São Joaquim de Bicas, para o consumo e para os rituais de candomblé. Esse plantio é feito sem agrotóxico em um consórcio com plantio de inhame.

Segundo Shiva (2003), em nome de um saber universal dominante, a civilização européia tentou negar os saberes de outras culturas do mundo e suas práticas sociais e culturais. Sabe-se, entretanto, que diversas práticas religiosas e ecológicas de povos africanos, como iorubas, jeje e banto, tiveram papel fundamental na conservação da

Ângela Gomes Ângela Gomes

biodiversidade. A natureza é vivenciada e compreendida a partir de uma lógica integradora e interdependente, em que elementos místicos e litúrgicos não se separam dos físicos e biológicos. Possivelmente essa cosmovisão contribuiu para a maior distribuição da biodiversidade, ou, ainda, para que as regiões de metabiodiversidade se encontrem nos países do Terceiro Mundo.

Para tanto, o primeiro caminho é o do reconhecimento de saberes complexos que foram produzidos por comunidades tradicionais. Essa complexidade é traduzida por Verger quando comenta sobre a etnomedicina e o sistema de classificação das plantas medicinais dos povos iorubas.

Se para e medicina ocidental o conhecimento do nome científico das plantas usadas e suas características farmacológicas é o principal, em sociedades tradicionais o conhecimento ọfợ, encantações transmitidas oralmente, é o que é essencial. Neles encontramos a definição da ação esperada de cada uma das plantas que entram na receita (VERGER, 1995, p. 23).

A tarefa de reconhecer o uso medicinal da planta no campo da etnomedicina também é uma tarefa árdua quando o olhar se fragmenta em apenas descobrir o principio ativo, os reagentes, ou seja, suas propriedades analgésicas, calmantes, diuréticas etc. Na cultura ioruba, as plantas e as receitas feitas a partir delas raramente são utilizadas isoladamente e muito menos sem um conjunto de rituais para a promoção da cura.

Suas virtudes e valor medicinal não são fáceis de descobrir, uma vez que raramente uma receita faz uso de apenas uma planta. Em geral, cada prescrição comporta de três a seis plantas diferentes. Uma só planta talvez possa ser comparada à letra de uma palavra: sozinha não tem significação, associada a outras contribui para o significado da palavra (VERGER, 1995, p. 23).

E, assim, Verger (1995) reconhece a complexidade da palavra planta no universo da etnobotânica em sociedades tradicionais africanas, quando relembra que existem várias plantas cuja presença, a primeira vista, parece ter somente o caráter simbólico, mas que, na realidade, têm valor terapêutico. Pode-se dialogar, então, com Jung, quando fala do homem e seus símbolos — somos humanos, porque somos simbólicos, carregados em nossa personalidade de arquétipos e estereótipos. Assim, a terapia, a doença e a cura estão permeadas pelas significações, pelas traduções culturais. No candomblé da nação ketu, as plantas são denominadas folhas, que em língua ioruba significa ewê. Nos terreiros de candomblé da nação angola, em sua língua banto, o reino vegetal é nomeado de insaba.

Verger (2000) observa que, apesar de todo o contexto desfavorável da reprodução de conhecimento dos rituais africanos na América — devido ao processo de escravização e da tentativa de homogeneização cultural pelo judaísmo-cristão e ao regime lingüístico e religioso comum que era o catolicismo —, os rituais africanos se mantiveram com dinamismo no território brasileiro. Formou-se um Atlântico Negro de plantas, esse espaço simbólico das plantas, construído pelas culturas migrantes africanas, que sobreviveu e se re-traduziu para além da gravidade e dos limites da escravidão e do racismo.

Carney (2001) comenta as trocas ecológicas e botânicas africanas que sucederam à expansão marítima européia após 1492. Observa como a literatura que estuda as relações comercias do período pós-colombiano permanece omissa no que se refere à disseminação das plantas autóctones e às formas como isto ocorreu. Um levantamento das trocas de plantas africanas na pré-história revela a contribuição africana de dimensões intercontinentais para o reconhecimento tardio dessas origens.

As plantas tropicais do Velho Mundo fazem parte da História Antiga de trocas botânicas entre a África e a Ásia (principalmente no comércio com a Índia). O tamarindo [óleo de castor], quiabo, melancia, sorgo, milhete [pérola], feijão [hyacinth], e o andu [...] servem de exemplos de produtos agrícolas originários da África e que foram disseminados pela Ásia entre um a três mil anos atrás; mas, que são frequentemente considerados produtos Asiáticos. Após sua chegada na Índia, milhares de anos atrás, o sorgo e o milhete tornaram-se produtos de intensa experimentação e cruzamentos antes de seu eventual retorno à África, agora já transformados em novas variedades híbridas. Bem antes da chegada dos europeus e das trocas inter-continentais, o cultivo de produtos agrícolas africanos já havia revolucionado os sistemas de suprimento de alimentos da Índia (CARNEY, 2001, p. 30).

As origens de diversas plantas valiosas da América tropical continuam incertas e a atenção que se tem dedicado aos resultados da domesticação de plantas na África é um fenômeno recente. De acordo com Carney (2001, p. 31), “A ampla distribuição de plantas Africanas pelos trópicos do Velho Mundo aliada ao racismo que facilitava o tráfico de escravos africanos, contribuiu, durante séculos, à percepção de que muitas das plantas e hortaliças africanas eram originárias do Oriente”.

Parte importante das sementes das plantas que chegaram às Américas, como, por exemplo, o arroz, foi transportada como fonte de alimento em navios negreiros, comprada na África como mercadoria barata para o consumo dos escravos durante a viagem. Relatos da era da servidão transatlântica revelam a importância dos produtos alimentícios africanos para o abastecimento desses navios. Algumas plantas, tais como o milhete africano e o milho ameríndio, passam a ser cultivados pelos africanos e

destinados à venda ao longo da costa da Guiné. O inhame africano era outro produto da dieta regular dos escravos (alimento muito utilizado em rituais sagrados dos iorubas, até hoje empregado no candomblé do Brasil).

O estabelecimento das plantas africanas desembarcadas nas Américas por intermédio dos navios negreiros somente irá ocorrer através dos esforços de escravos e de quilombolas. Segundo Carney (2001), os povos africanos, através de seus saberes e trabalho, terminam influenciando os sistemas agrícolas e os recursos botânicos das Américas. As plantações de arroz africano (conhecido como arroz vermelho) — cultivado pelas populações negro-africanas nos estados do Pará, Maranhão, Amapá, produzindo safras importantes no período colonial — revela a importância dos sistemas de conhecimento dos africanos nas Américas. Essas áreas de plantio serviram também como palco de experimentação para domesticação de novas plantas. Esse sistema de conhecimento não se limitava somente ao plantio, se estendia também ao beneficiamento, como o uso do pilão para limpar o arroz — instrumento africano de trabalho, que requer técnica para retirar as cascas sem romper os grãos.

Além do aspecto tecnológico, as diferentes significações dadas às plantas pelos povos africanos ampliaram o universo simbólico ligado às mesmas. Plantas americanas são experimentadas em termos de produção agrícola, em termos terapêuticos, mas também mitológico, como as que, futuramente, serão empregadas nos rituais de matriz africana, como o candomblé.

Os estudos a partir das religiões de matriz africana, em especial o candomblé e a umbanda também têm sido importantes na re-construção das interrelações culturais Brasil-África, principalmente porque, nesses espaços, o uso de plantas de origem africana e neotropical é intenso.

CAPÍTULO 4

este capítulo, a partir das entrevistas realizadas para o desenvolvimento desta pesquisa, são estudadas as questões relativas à etnobotânica e seus diferentes sentidos, na concepção do sagrado, no campo dos desafios da sua reprodução, em termos da justiça socioambiental. Busca-se compreender algumas questões históricas da escravidão e a produção do conhecimento relativo aos saberes negro-africanos das plantas. Discute-se sobre como a produção do conhecimento da botânica e da ciência moderna se relaciona com os saberes africanos, apropriando-se da origem e dos usos das plantas. As entrevistas evidenciam o contexto no qual se projetam os saberes etnobotânicos, para os candomblecistas, para os moradores de comunidades quilombolas e para os moradores de vilas e favelas, em termos da re-territorializações. Reflete-se, ainda, sobre os limites encontrados pelos saberes etnobotânicos na cultura negra dentro do planejamento moderno e industrial, construído a partir da lógica de eugênia, etnocentrismo e classe social.

A escolha das áreas de estudo desta pesquisa — os terreiros de candomblé, as comunidades quilombolas e os quintais urbanos — se deve a um conjunto de reflexões e rupturas necessárias com alguns mitos. O primeiro remete à falsa imagem de que os terreiros de candomblé concentram-se apenas no estado da Bahia, estando ausentes em Minas Gerais, principalmente em Belo Horizonte. Em 2005, foram catalogados mais de 150 terreiros de candomblé na Região Metropolitana de Belo Horizonte, segundo o Centro Nacional de Resgate Afro-brasileira, a CENARAB (2008). Parte dessa invisibilidade dos terreiros em Minas Gerais resulta da escassez de estudos da diáspora africana neste estado, uma vez que a maioria dos estudos de religiões de matriz africana tem como referencial a entrada maciça dos nagô no estado da Bahia, a partir de 1870. Esses africanos, que deram origem ao candomblé da nação keto vêm em uma condição relativamente melhor que os grupos que chegaram anteriormente. Muitos não vieram na condição de escravos como vieram os banto e os nagô que aparecem nos registros de Minas Gerais antes de 1810, na comarca do Rio das Velhas, segundo Paiva (2001).

Supostamente também esse ocultamento do universo iorubas remeta ao poder do clero, no período colonial, encobrindo e reprimindo modos de vida, costumes e manifestações culturais de povos não-europeus.

Outra questão remete ao mito de que os saberes das plantas nas áreas urbanas tendem ao desaparecimento, à visão segundo a qual o planejamento urbano industrial ,em sua concepção hegemônica de cidade organizada a partir de funções, setores, teria levado ao fim das relações de vizinhança, rupturas de identidades entre outras visões da cidade homogeneizadora. Assim, a imagem inicial é que o projeto hegemônico de

urbanização capitalista ocupou todos os espaços da cidade, e dele plantas e ecossistemas naturais foram expurgados, artificializados e domesticados.

Outra questão de cunho epistemológico remete ao pensamento construído pela burguesia de que o saber científico é universal e a partir dele se constrói, inclusive, uma consciência ecológica, e, por conseguinte, os pobres e negros são antiecológicos. Essa análise parte da incapacidade de pensar os negros e pobres enquanto sujeitos históricos possuidores de um saber para além da condição de sobrevivência. Na visão equivocada promulgada pelas elites burguesas e ambientalistas, o saber ambiental dos pobres e negros, ou afro-brasileiros, sobre a cidade inexiste e sua atuação sobre o território é sempre considerada impactante ambientalmente. É consenso que os ricos e a classe média têm práticas ambientalmente mais conservacionistas, pelo seu acesso à ciência, e que os pobres, candomblecistas e negros poluem, queimam e ameaçam a sobrevivência dos ecossistemas urbanos.

Apesar de esses mitos serem, na verdade, um conjunto de estereótipos, eles têm algo em comum: produzem o racismo ambiental assentados em um conjunto de equívocos que formulam o preconceito étnico e de classe. Esses estereótipos ocultam o consumismo da burguesia eurodescendente, a obsolescência planejada das empresas, reduzindo a durabilidade de produtos e estimulando o consumo sem limites. Todo esse imaginário tem como consequência uma crescente exposição de pobres e negros aos riscos ambientais no Brasil. Também se oculta nessa análise que as unidades de conservação, em geral, se encontram em áreas que eram cuidadas por populações de baixa renda, e só permaneceram conservadas porque na cosmovisão da cultura negra a relação com a natureza passa pela sacralidade. Nessa visão preconceituosa de pobres e negros poluidores se ocultam os grandes consumidores e causadores da crise ambiental: o modelo tecnológico, o modelo de consumo e o modelo desenvolvimentista capitalista. Portanto, cabe então evidenciar a relação entre os saberes da cultura negra e as questões relativas ao campo do direito que serão discutidas em termos da construção do direito socioambiental.

4.1. Entre plantas e ritos: a etnobotânica

Há muito que povos diversos utilizam as plantas para solucionarem os problemas do corpo e da alma, sendo, a partir das mesmas, elaborados chás, garrafadas, banhos e até os medicamentos comercias nas sociedades contemporâneas. Segundo Maciel e

Guarim Neto (2006), a etnobotânica é um campo interdisciplinar com estudos e interpretação do conhecimento, significação cultural, manejo e usos tradicionais dos elementos da flora. A antiguidade da relação de cura através das plantas é reconhecida por povos tradicionais, como se explicita no relato da entrevistada Mameto Loya Vulunan.

O nome farmacopéia existe agora, mas, antigamente a prática já existia. Os negros não tinham farmacêuticos, mas tinham o conhecimento da folha e da magia, que eles nunca abandonaram. O índio, pela mesma forma, da forma dele, tinha a magia para a cura. O caboclo e o preto- velho também. Eu ainda tenho (Mameto Loya Vulunã, 2006).

Nessas significações botânicas e terapêuticas de matriz africana, o sagrado e o profano aparecem como complementares na existência cotidiana. Para Joaquim (2006), que estuda o papel da liderança religiosa feminina na construção da identidade negra, não há oposição e, sim, uma complementaridade entre dois mundos: o observável (o profano) e os seus sentidos (o sagrado), entre o símbolo e o seu significado. O sagrado e a sacralização das plantas aparecem também como uma forma de organização de mundo, que vai além do sentido religioso institucionalizado, de diálogos do simbólico do sagrado e do profano.

Os relatos de uma benzedeira da comunidade quilombola do Sapé remetem a esta sacralidade das plantas, que também pode ser denominada de “fé”, como tão bem enfatiza.

Sei benzer, aprendi com minha mãe e com os antigos. Mas tem que ter fé, tanto pra benzeção como para o chá das plantas. Se a pessoa não tiver fé, não cura. Não adianta só eu ter fé, a pessoa que quer a benzeção tem que ter fé. Quem cura é Deus e abaixo dele as plantas. Mas tem que acreditar. Os mais moços só acreditam na hora que tem a dor (Benzedeira, comunidade quilombola do Sapé, 2008).

Joaquim (2006), em seus estudos das lideranças femininas religiosas do candomblé, conclui que, em cada cultura, a relação entre o ser humano e o sagrado é estabelecida revelando a dimensão específica da existência humana.

Ao atribuir a qualidade de sagrado a um objeto, que neste caso é a planta ou seu beneficiamento, as pessoas passam a criar uma forma de organização do mundo. O mundo passa a ser interpretado, codificado, transformado em mensagem, não em sua totalidade, mas naquilo que é sentido como poderoso e significativo, neste caso o binômio planta e magia (JOAQUIM, 2006).

Outros estudos, como o de Amorozo (1996), conceituam a etnobotânica como o estudo do conhecimento desenvolvido por qualquer sociedade a respeito do mundo

vegetal, enfatizando-se os grupos sociais, na classificação das plantas e mesmo os usos que são dados a elas. Nessa concepção, a etnobotânica passa a ser compreendida como o encontro dos fatores culturais e políticos das comunidades tradicionais, bem como a forma simbólica sobre o uso das plantas.

Uma árvore muito antiga aqui é a Moreira. Ela é a lembrança do tempo dos escravos. Desde criança eu ouvia falar dela. Os escravos usavam essa planta para extrair dente. Quando o dente estava ruim, eles colocavam a moreira no dente. O dente ia quebrando aos poucos até cair tudo. Tem uma árvore dessas na comunidade de Rodrigues. Onde ela está tinha um muro dos tempos dos escravos. Era o muro da fazenda, que dividia o lugar dos escravos do lugar dos donos da fazenda. A dentista do posto disse que vai estudar essa planta para descobrir o que ela possui (Moradora do quilombo de Marinhos, 2009).

A árvore da Moreira (Ficus spp.), na fala dessa mulher quilombola, aparece dentro de um conjunto de significações que vão desde seu emprego na fitoterapia até o contexto das relações sociais da escravidão: senhor-escravo, passando pelas relações do conhecimento científico com os saberes tradicionais. A etnobotânica também se coloca no campo de conflito de sabres. O saber dos negros africanos, em muitos casos, foi tratado meramente como mito ou lenda. Entretanto, aqui se reconhece que, na cultura, também se inserem experimentações que levam à organização de conhecimento. A própria cultura ocidental, base da ciência moderna, vem estudando a etnobotânica e, algumas vezes, se apropria desse conhecimento por meio da farmacologia moderna. No caso desse grupo de plantas citado, Ficus spp., estudos da planta aparecem na literatura espanhola de farmacobotânica de Chiej:

Os estudos farmacológicos do gênero Ficus spp. encontraram a presença de um látex branco emanado das folhas cortadas, contendo quimassa, com ação anticoagulante, lipasa, amilase, e proteasas semelhante a enzima diastásica, o que justifica seu uso para maceração

de carne. Atua também como analgésico nas picadas de insetos (CHIEJ, 1983, p. 132, tradução da autora)1.

A farmocopéia moderna vem se alicerçando na etnobotânica de povos tradicionais. Esses povos produziram saberes que experimentaram ritualisticamente, produzindo a cultura da saúde e da cura. O etnocentrismo impediu a leitura devida da cultura da cura pelos vegetais feita por povos não-europeus com outras metodologias para além da cartesiana. A experimentação popular foi classificada como ritualística e

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mágica, porque trabalha com questões que não são explicáveis pela racionalidade científica.

Di Stasi chama a atenção para questões de alteridade na ciência, uma vez que a ciência moderna também trabalha com campos que não são explicáveis, os quais ela denominou de “margem de erros”, “efeitos inesperados”. As pesquisas em laboratório, para o autor, poderiam também ser consideradas como rituais, inclusive secretos, cujos objetos ritualísticos são os tubos de ensaio e as pipetas, entre outros instrumentos de experimentação. O autor busca, assim, questionar o conceito único de ciência, de produção de conhecimento científico, como saber universal, e a unicidade de sua metodologia. No cotidiano da cultura negro-africana e indígena nasceram metodologias de experimentação e investigação. A leitura da vida, leitura do mundo se fez pela pesquisa no universo da cultura e se aprendeu a cultura. A cultura da culinária, das plantas, da caça, da pesca, da construção, entre outros saberes experimentados. Desse conjunto de saberes sentidos no universo dos costumes, dos ritos, dos mitos, nasceu a etnociência que tem a etnobotânica como uma de suas formas de expressão. Etno porque é na tradução cultural que se produzem os saberes vivenciados que foram retirados a ciência moderna.

Assim, os experimentos dos ex-escravos foram testados em enormes grupos e, portanto, não carecem de confirmações pela ciência por meio dos rituais secretos de laboratórios modernos. A fala da senhora quilombola sobre um experimento se assemelha com o que a ciência experimentou. Como a linguagem é poder, na sociedade pós-colonial adotou-se como verdadeira a linguagem hermética da ciência. No entanto, a ciência se reconhece incapaz sem o conhecimento da etnobotânica popular. Dela se fez a ciência e dela se fez o homem na sua inserção no mundo.

A etnobotânica ganha, assim, a relevância transdisciplinar, englobando saberes de diversos campos, tais como: o antropológico, o socioespacial, o agronômico, o farmacêutico, o medicinal, o ecológico, entre outros. A compreensão da relação sociedade-planta torna-se a porta de entrada para as traduções culturais das simbologias e as significações das plantas, seja como parte de um sistema de cura, seja na culinária, seja nas liturgias diversas. Como não são autônomos, esses saberes sempre necessitaram de leituras que os contextualizem em termos históricos e políticos.

As traduções que as culturas realizaram dos vegetais transformaram-nos em elementos ritualísticos. A materialidade da etnobotânica pode ser a mesma: seres do reino vegetal, entretanto, podem significar campos culturais diversos, segundo a diversidade de saberes dos povos e da cosmovisão que os mesmos carregam. Aqui se utiliza a palavra carregar para expressar a capacidade dos indivíduos de migrarem com

os saberes das plantas, mesmo sem levarem também a materialidade, que é a própria planta.

Isso ocorre com a naturalidade, com a natureza. Nós lidamos com a natureza. Sou de Montes Claros. Ali todo mundo sabia um pouco das folhas. A resina de angico põe no bolo e faz crescer. A planta Gonçalo, misturada com farinha de trigo, serve para fazer emplasto (Tateto Fábio de Mutakalambô, 2007).

Assim, os saberes da etnobotânica podem ir além dos limites onde o vegetal