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5. As plantas das territorialidades: terreiros, quilombos e quintais

5.2. A memória das plantas: saberes, sabores e curas

Muitos são os espaços dos pobres e negros que continuam unindo o que a natureza não fragmentou: a diversidade biológica, cultural e a magia. As plantas ladeiam as casas nas áreas rurais e urbanas sugerindo que o projeto de separar jardins de quintais dificilmente teve sucesso nos espaços da cultura negra, indígena e nas hortas femininas.

[...] na maioria das sociedades rurais brasileiras, quintais, pomares próximos à moradia desempenham uma importante função na manutenção de muitas espécies medicinais. O quintal é o local onde se cultivam as espécies de uso mais comum e também aquelas obtidas em outras localidades; plantas e receitas são trocadas livremente entre vizinhos e parentes quando há necessidade, reforçando, desta forma, laços sociais e contribuindo para o consenso cultural (AMOROZO, 1996, p. 58).

146 Na área urbana, esses quintais estão ocupados com plantas medicinais, alimentares e ornamentais. Esses espaços do entorno da casa, como mencionado inicialmente, em tempos remotos, deram origem ao que se denominou agricultura. O urbanismo moderno também levou à fragmentação dos espaços das plantas. Com a construção da idéia da cidade higiênica, no século XVIII na Europa, fortalece-se o imaginário da exterioridade da natureza. Assim, flora e fauna tornam-se elementos externos aos espaços habitados e organizados pelo homem.

Nas cidades brasileiras, divididas por funções e setores, a biodiversidade aparece externa ao seu projeto ou na condição de domesticada. Essa domesticação de plantas, na concepção européia moderna, supôs a separação de espaços das plantas do contato com o homem. As plantas autorizadas pelo planejamento das cidades são classificadas como ornamentais, agora organizadas em herbários, plantadas em jardins botânicos, jardins com estufas.

Os jardins priorizaram a estética da homogeneidade, já iniciada nos castelos do período medieval e que prosseguem na modernidade com a ciência paisagística moderna. Nesses jardins, as separações são fundamentais, priorizam-se as alamedas, monoculturas de plantas direcionando caminhos, manchas e limites de conjuntos de plantas devidamente selecionadas pelo cientista de jardins, o paisagista. O importante era separar para diferenciar da estética da natureza, que passa a ser vista como desordem e sujeira, enquanto os jardins de monoculturas de alamedas e plantas são tomados como a organização e a limpeza, por meio de podas e tratos culturais que dominam o crescimento e o desenvolvimento das plantas. Entre ―podas de condução‖, ―podas de floração‖, ―podas de frutificação‖, ―podas de formação‖, a ciência paisagística e agronômica podou drasticamente a possibilidade de convivência com a essência, que são os vegetais vivos nas cidades. Nessa distribuição da biogeografia urbana, a biodiversidade dos quintais dos pobres, que mesclam estética, alimentação e terapia, é tratada como o Rest, e o jardim moderno como o West, o ocidente, modelo universal, como denomina Hall (2003). Sem brilhos, sem a memória das plantas familiares, das cores livres das flores, da ordem da vida, segundo a luminosidade que cada uma necessita. Tudo isto se perdeu nas praças impermeabilizadas, dando-se lugar às esculturas e à arte do concreto e ferro, modernista, cubista, dadaísta. Geometrias de fícus, enquadrados em passeios e orifícios das calçadas. A Europa ocupa os jardins com suas azaléias e rosas de Floresta Temperada Européia, encolhidas no sol do Cerrado, junto com as das tulipas da Taiga dos climas subpolares.

A natureza enclausurada no concreto armado se fragiliza, torna-se dependente do homem e da indústria de defensivos agrícolas. Não consegue viver sem o manejo

147 humano. Para obter alimentos, necessita do preparo do solo pelos jardineiros, dos minerais de outros solos que serão oferecidos pela adubação química. Para se defender, necessita dos produtos químicos eliminadores da cadeia alimentar, como inseticidas, fungicidas e produtos exterminadores de vegetais, os herbicidas. A contaminação pelos agrotóxicos torna-se invisível nas áreas urbanas, mistura-se a outros compostos químicos da atmosfera. Podem fazer parte da saúde da modernidade urbana: respira-se modernidade em rinites, bronquites, alergias, e segundo Fritjof Capra (1996), também no câncer. Entretanto, o todo não é resultado da mera soma das partes; tudo está conectado a tudo. Consome-se o corpo como um compartimento do capitalismo doentio: cada doença tem um valor, um medicamento, um preço. Enquanto nos quintais e roças dos pobres e negros a ―farmácia viva‖5 de plantas garante um controle sobre os sintomas da

saúde, nas áreas de classe média e alta, o controle é da industria farmacêutica. Não há repouso vegetativo das plantas e nem dos humanos; dormir na modernidade depende de medicamentos comercias. Deprimem-se, perdem-se alegrias e, estas, então tratadas como partes separadas do sistema, também são tratadas como partes do cotidiano.

Afinal, as partes solicitam o todo e a modernidade adoece cada vez mais com o seu projeto, suas ausências e praças vazias. Promessas não cumpridas de igualdade dão evidências das falhas de um modelo onde não coube a maioria. Nem a maioria dos humanos, nem de outros seres vivos, nem do cosmos, como relata o Babalorixá:

Eucalipto não tem significado para nós. Plantar essas árvores todas iguais... Nem bicho a gente vê ali dentro. Só formiga. Até o cheiro ali dentro é diferente. O ar que se respira é diferente, até o frio, o vapor... É uma floresta morta, não tem um axé de uma mata com as cores diferentes, com bichos diferentes, plantas diferentes. Quem inventou isso? Os europeus com suas matas frias de neve. Temos calor e não neve. O silêncio da mata é diferente do silêncio da mata de eucalipto. Na mata a gente escuta um passarinho e na mata de eucalipto não escuta nada disso. Divindade só tem relação com a diversidade. Qualquer um pode sentir esta energia, independente de religião. Mesmo que o eucalipto seja uma planta, e toda planta é sagrada, mas, ela sozinha, não serve... Não entendo como têm coragem de reflorestar com eucalipto que não devolve nada (Babalorixá Henrique de Oxalá, 2009).

Nessa análise, percebe-se a compreensão de que o modo de plantio pela monocultura pode levar à morte do ecossistema, uma vez que reduz a biodiversidade levando ao desaparecimento de muitas espécies. Outra noção importante que aqui se tem é a de que a floresta não é só um conjunto qualquer de árvores; é, antes de tudo, um ecossistema diversificado em fauna e flora. A árvore isolada pode estar carregada de

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Farmácia viva: termo agronômico utilizado para designar áreas em que o cultivo é de domínio de ervas medicinais.

148 significados, mas, quando plantada na lógica da homogeneidade, perde sentido o significado que é a sua essência. Esse Babalorixá morou no Cerrado que hoje está ocupado com as monoculturas de eucalipto.

A leitura da perda da diversidade biológica remete à perda da magia, do axé, dos aromas da vida, da variabilidade. Se o candomblé tem por princípio mágico a divinização da natureza, consequentemente a maioria dos sacerdotes está preocupada com as questões ambientais. Quando perguntamos quais os principais desafios que enfrentam para a continuidade dos seus rituais, foram citados, em ordem de prioridade: 1. o desmatamento; 2. os que sabem e não ensinam; 3. a grande distância para colher as folhas ou conseguir o material para os rituais; 4. a falta de dinheiro; e 5. a falta de terreno para o templo e para o plantio.

Apesar de aparentemente previsível — considerando-se que a maioria dos terreiros entrevistados é frequentada por população de baixa renda e muitos pais de santo contam apenas com a aposentadoria ou com a renda esporádica do jogo de búzios —, esperava-se que a maior dificuldade citada pelos entrevistados nos terreiros fosse ligada à questão econômica, e isso não ocorreu: 98% dos entrevistados responderam que o desmatamento é o maior problema enfrentado por eles.

Nos quilombos e nos quintais urbanos, o desmatamento também aparece como o maior problema citado pelas mulheres entrevistadas, seguido pela falta de terreno. Entretanto, os homens responderam que a falta de terreno para plantar era o maior problema enfrentado por eles.

Assim, quando o humano caminha pelos quintais, pelas roças de plantas do candomblé ou dos quilombolas, se depara com um tempo que não controla o tempo dos ciclos da natureza, seu ciclo de energia de transferência. A racionalidade se aproxima e espreita o encantado universo de plantas e liberdade.

Encontramos pontes entre as territorialidades que pareciam distantes, mas não conseguiram estar. A primeira leitura desse encontro remete à porcentagem de usos das plantas em cada territorialidade pesquisa: a maioria das plantas encontradas tanto nos terreiros, como nos quilombos e quintais são medicinais e litúrgicas. Há, portanto, uma menor porcentagem de espécies ornamentais e alimentares nesses locais, como mostram os Gráficos 1, 2 e 3 que se seguem.

149 Gráfico 1 USOS NO TERREIRO 31% 15% 15% 39%

Medicinal Alimentar Ornamental Litúrgico

Gráfico 2 USOS QUILOMBO 30% 15% 18% 37%

150 Gráfico 3 USOS QUINTAL 31% 18% 18% 33%

Medicinal Alimentar Ornamental Litúrgico

Ressalta-se que, apesar de ter sido feita uma separação das plantas em categorias (ornamentais, medicinais, litúrgicas e alimentares) para que fossem estudadas, a sua utilização pode se interpor. Uma planta pode ter, ao mesmo tempo, usos múltiplos, o que é mais comum. Os entrevistados separam em categorias o primeiro uso, ou seja, o objetivo para o qual a espécie foi plantada, e depois, apresentam os multiusos, os fins para os quais foram utilizadas.

Quando plantei a rosa branca era porque achei ela bonita. Depois me ensinaram, minha mãe e os antigos, que ela serve para várias coisas: é antibiótico, serve para infecção urinária, tanto para beber o chá como para tomar banho de assento. É antibiótico forte. Tem que tomar com leite ou depois de ter comido, se não, dá vontade de vomitar.

A salsinha era usada para alimento, mas também faz remédio para o útero. É uma receita de garrafada da minha mãe. Leva vinho branco, açúcar queimado e tem que deixar enterrada uma semana curtindo. Mulher grávida não pode tomar. (Quilombola, comunidade quilombola de Marinhos, 2008).

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5.3. Terreiros, quilombos e quintais: a diversidade biológica e a