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Terreiros, quilombos e quintais: a diversidade biológica e a diversidade dos mitos

5. As plantas das territorialidades: terreiros, quilombos e quintais

5.3. Terreiros, quilombos e quintais: a diversidade biológica e a diversidade dos mitos

A listagem das plantas mais cultivadas e reconhecidas nos quintais (Quadro 5) reflete um pouco da realidade da saúde nos espaços da metrópole. Há uma grande presença de plantas usadas como antigripais, calmantes, antidepressivos, entre as quais se destacam a alfavaca, o hortelã, o capim-cidreira, o limão, a erva-doce, a goiaba. É importante ressaltar que, no caso dos antegripais, raramente encontramos o uso isolado de uma única planta e, em geral, todas vêm acompanhadas de rituais. O xarope feito com as plantas classificadas como ―quentes‖, como é o caso do capim-cidreira, o gengibre, a alfavaca juntos, requer ―resguardo‖: não se deve tomar vento e/ou pegar friagem nos pés após bebê-lo.

Quadro 5

Lista de 20 plantas de maior freqüência nos quintais do bairro e vilas do Bairro Havaí, Belo Horizonte, com nome, usos principais, parte utilizada e preparos (2009)

Nome Comum

(Nome científico) USO

PARTE

UTILIZADA PREPARO

Rosa (Rosa X grandiflora

Hort.)

Antibiótico, ouvido, verminoses, DST

Quebra pedra (Phyllanthus urinaria L.)

Diurético, depurativo, verminoses,

ritualístico/litúrgico Toda

Chá, infusão, emplasto, banho Arruda

(Ruta graveolens L.)

Antigripal, calmante, antidepressivo, para os

olhos Folha

Banho, reza e benzeção Orquídea

(Arundina spp.) Ornamental, ritualístico/litúrgico Toda Outros preparos

Alfavaca (Ocimum basilicum L.)

Antigripal, antidepressivo, depurativo, digestivo, tratamentos uterinos, verminoses, alimentação,

ritualístico/litúrgico Folha Chá, infusão, emplasto, xarope, banho, reza e benzeção, outros preparos Antúrio

(Anthurium andraenum) Ornamental, ritualístico/litúrgico Toda Mamão

(Caryca papaya)

Estomago, depurativo, digestivo, anemia, verminoses, outros usos medicinais,

alimentação, ritualístico/litúrgico

Caule, folha, fruto,

semente Outros preparos

Limão (Citrus aurantifolia)

Antigripal, calmante, depurativo, digestivo, verminoses, outros usos medicinais,

alimentação, ritualístico/litúrgico

Folha, flor, fruto

Chá, infusão, xarope, banho, reza e benzeção, outros

152

Erva doce (Foeniculum vulgare

Mill.)

Antigripal, dor de cabeça, calmante, estômago, respiratórios, depurativo, digestivo, tratamentos

uterinos, verminoses, DST, alimentação, ritualístico/litúrgico

Caule, folha, flor, fruto, semente Chá, infusão, xarope, banho, reza e benzeção Algodão (Gossypium barbadense)

Antigripal, dor de cabeça, cicatrizante, respiratórios, antibiótico, garganta, tratamentos uterinos, verminoses, alimentação, ornamental,

ritualístico/litúrgico Folha, fruto, semente Chá, infusão, xarope, banho, reza e benzeção, outros preparos Hortência (Hydrangea macrophylla (Thunb.))

Ornamental, ritualístico/litúrgico Flor

Tomate (Lycopersicum

esculentum (L) H Karst)

Antigripal, estomago, depurativo, digestivo,

garganta, alimentação, ritualístico/litúrgico Fruto Outros preparos Samambaia bailarina

(Nephrolepis spp.) Ornamental

Goiaba (Psidium guayaba L.)

Antigripal, antidepressivo, cicatrizante, estomago, respiratórios, depurativo, anemia, garganta, tratamentos uterinos, verminoses,

alimentação, ritualístico/litúrgico

Caule, folha, fruto

Chá, infusão, emplasto, xarope,

banho, reza e benzeção Jequeri

(Sapindus saponaria L.) Cicatrizante, ornamental, ritualístico/litúrgico Fruto Emplasto Babosa

(Aloe humilis)

Cicatrizante, fígado, estômago,

ritualístico/litúrgico Folha Emplasto, banho

Cidra (Citrus spp.)

Antigripal, calmante, depurativo, digestivo, verminoses, outros usos medicinais,

alimentação, ritualístico/litúrgico

Folha, flor, fruto

Chá, infusão, xarope, banho, reza e benzeção, outros preparos Capim Cidreira (Cymbopogon schoenanthus spren.)

Antigripal, dor de cabeça, calmante, respiratórios, tratamentos uterinos, verminoses,

DST, alimentação, ritualístico/litúrgico

Raiz, caule, folha

Chá, infusão, xarope, banho, reza e benzeção, outros preparos Figo (Ficus carica)

Antidepressivo, cicatrizante, digestivo,

verminoses, alimentação, ritualístico/litúrgico Folha, fruto

Chá, emplasto, reza e benzeção Quiabo

(Hibiscus esculentus L.)

Diurético, cicatrizante, estomago, depurativo, anemia, verminoses, outros usos medicinais,

alimentação, ritualístico/litúrgico

Fruto Reza e benzeção, outros preparos Fonte: Pesquisa direta (2009).

A banana, que aparece não só nos quintais, tem empregos variados, de diversas de suas partes. Dos frutos verdes são preparados alguns pratos, como a ―banana verde frita‖, a ―banana verde afogada‖ e o ―umbigo afogado‖ que, segundo os entrevistados, fica com gosto de palmito. Alguns medicamentos também são feitos a partir das partes da banana, como o xarope de umbigo para tratamento da bronquite, a banana verde para controle da diarréia e infecção intestinal. Atualmente, os moradores e a ciência têm experimentado a banana verde como antidiabética e para o controle do colesterol. A banana também é uma planta essencial nos rituais de candomblé, principalmente utilizada no preparo das comidas de santo, como acaçá, abará e ekuru. As folhas são

153 usadas para envolver a massa desses alimentos. O umbigo da bananeira é usado para Ebós e trabalhos para resolver problemas amorosos.

Da listagem das plantas encontradas nos quintais, destaca-se a diversidade de origem geográfica, que também representa um aporte na biodiversidade. Nos quintais, encontramos plantas autóctones como babosa, quebra-pedra, jequeri, que convivem com outras aclimatadas, originárias de diferentes regiões do mundo, destinadas a usos diversos e ancestrais. Das espécies oriundas da Ásia, encontramos algumas frutíferas: manga, banana e figo. As espécies cuja área de ocorrência ou a domesticação ocorreu na África são: capim-cidreira, quiabo, feijão, cana, cidra, algodão, antúrio. Outras espécies têm áreas de ocorrência em biomas de Floresta Mediterrânea. Contrapondo-se, assim, ao modelo de manejo construído a partir da agricultura moderna, de homogeneização de cultivos de plantas e empobrecimento dos ciclos biogeoquímicos, há um modelo de cosmopolitismo, de enriquecimento de ciclos. Este modelo aporta à biodiversidade, à riqueza, à variabilidade e à abundância de plantas e de culturas.

Em trabalho anterior (GOMES, 2000) discutimos o conceito de cosmopolitismo para os quintais urbanos. Em geral, os espaços denominados quintais estão associados aos cuidados femininos, principalmente nas áreas rurais, onde as atividades de produção e reprodução familiar refletem o que o modelo patriarcal deixou para o feminino, cristalizado no corpo das mulheres. Os relatos de alguns entrevistados revelam essa situação: ―quem mexe no quintal com as plantas é minha mulher‖, ―minha mãe planta tudo misturado‖, ―quem entende de planta de remédio somos nós, as mulheres; os homens só sabem capinar e arrancar os remédios falando que é mato‖.

O papel deixado para a figura masculina é o de prover a partir da lógica do capital. Assim, os homens cuidam da lavoura — as roças de comercialização —, que em muitos casos possui baixa biodiversidade, e as mulheres cuidam dos quintais.

Nos quintais urbanos, a escolha das plantas e sua distribuição espelham o papel deixado para as mulheres: cuidar da saúde da família. Essa função é percebida pela presença de ervas medicinais, como babosa, algodão e capim-cidreira, ou pelo cuidado com a alimentação, refletido no cultivo de olerícolas e outras plantas alimentares, como tomate, figo, quiabo, mamão, limão e cidra. Não podemos deixar de acrescentar que o cuidado no preparo dos alimentos também é sentido através da presença nos quintais de condimentos, como erva-doce, alfavaca, salsinha, cebolinha e coentro.

Os homens também participam do cuidado dos quintais. No entanto, normalmente, esses quintais com presença masculina têm uma menor biodiversidade, um menor número de plantas medicinais e de plantas rastejantes e um maior número de árvores, em geral, frutíferas. Em algumas falas as moradoras relatam que os maridos e

154 filhos vêem seu quintal como uma bagunça, porque elas misturam flor com horta, com remédio e até com plantas que não conhecem e que são plantadas pela sua beleza.

Existem quintais onde há um trabalho coletivo. Onde a escolha das plantas e o manejo das mesmas são negociados, como aparece no relato da moradora do bairro Havaí:

A história deste quintal começou assim que eu mudei para a região, e ao lado da casa havia um terreno, este lote. Os proprietários pediram para que eu e a família cuidássemos dele. Comecei a plantar com o meu marido e os filhos pequenos. Nós passávamos horas do dia com meus filhos plantando, e cada filho, quando pequeno, plantou alguma espécie de árvore. E até hoje eu e a família é que cuidamos deste terreno, agora com meus dois netos (Moradora do bairro Havaí, Belo Horizonte, 2007).

Os lotes vagos da cidade também se transformam em quintais dos que não têm onde plantar, como é o caso de alguns moradores entrevistados. O espaço disponível ganha outro uso e até novos significados.

O saber produzido e guardado pela memória dá significação aos espaços dos quintais e das plantas nele inseridas. Significados e usos dados às plantas tornam-se, assim, os elementos ou dados a serem coletados por meio de instrumentos para a leitura da realidade social das comunidades. ―Conheço as plantas porque aprendi com a minha mãe. A gente morava na roça‖ (Moradora do bairro Havaí, 2006).

O conhecimento transmitido por meio da oralidade durante a infância e a juventude teve fundamental importância na maneira de algumas pessoas conviverem com as plantas mesmo em espaços urbanos, seja nos terreiros ou nos quintais.