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O motivo pelo qual este tópico sobre a ética freegana coloca-se nesta posição tem a ver com o fato de que os preceitos freeganos gerais, independentemente do país onde o freeganismo é praticado, têm por base obedecer uma ética na condução de seus modos de vida, respeitando todos os seres e em todos os seus habitats. A moral para os adeptos do freeganismo inscreve-se num código ético que pretende ser prático, ser pensado e refletido quando consumimos por exemplo que qualquer produto que coloque em sofrimento os seres humanos ou os animais é essencial abortar, porque apesar de consumirem carne, ao contrário dos vegans, os freegans boicotam qualquer tipo de especismo sistemático.

Para Singer (2002), “a alimentação não é a única área na qual o princípio na consideração de interesses, alargado para lá da espécie humana, tem implicações práticas. Há muitas outras áreas que levantam questões semelhantes. Incluindo o comércio de peles, a caça nas suas diferentes formas, os circos, as touradas, os jardins zoológicos e o comércio de animais de estimação. Os problemas filosóficos levantados

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por estas questões não são muito diferentes daqueles que decorrem da utilização de animais na alimentação e nas experiências científicas” (Singer, 2002, p. 88).

Quando nos referimos à palavra “ética”, logo nos remetemos para a obra de Weber – “A ética protestante e o espírito do capitalismo” – talvez, porque são nestes escritos oriundos de um passado não tão distante assim, que o ser humano começou a refletir o que esta pequena palavra significa. Uma vez que de certo modo esta obra foca suas principais conclusões sobre a relação entre o surgimento e a evolução do capitalismo e o protestantismo (especificamente o calvinismo). Weber faz um extenso e profundo estudo relacionando as práticas industriais, agrícolas e comerciais vigentes na época no século XVIII, com a religião e suas diversas seitas. Estudos estes, que não podemos ignorar, uma vez que engloba também o capitalismo tão evitado pelos freegans. Contudo, não nos alongaremos nos pensamentos de Weber, mas sim na sua chamada de atenção para todos os pressupostos que a palavra “ética” traduz (Weber, cit. em Parkin, 2000, pp. 23-51).

Nas palavras de Kropotkine (2009), “a história do pensamento humano faz lembrar as oscilações do pêndulo e estas oscilações duram já há séculos. Depois de um longo período de sono, surge um momento de despertar. O pensamento liberta-se, então, das correntes com as quais todos os interessados – governantes, homens de lei, clero – o tinham cuidadosamente aguilhoado. Quebra-as. Submete a uma severa crítica tudo aquilo que lhe fora ensinado e põe a descoberto o vazio dos preconceitos religiosos, políticos, legais e sociais, no seio dos quais tinha vegetado. Inicia a sua investigação por vias desconhecidas, enriquece o nosso saber com descobertas imprevistas; cria novas ciências” (Kropotkine, 2009, pp. 33-42).

Isto nos remete aos dias de hoje, onde ela, a “ética”, “tornou-se corrente, talvez devido à sua ausência”, segundo Magalhães (2010) já no prefácio da obra, nos apresenta a sua reflexão acerca da ética como um paradoxo na modernidade onde é amplamente divulgado nos inflamados discursos políticos, sociais, educativos, médicos, biológicos, psíquicos e no caso dos freegans, ecológico. Mas que é raramente praticado. Os freegans nos chamam a atenção para este aspeto quando refletem sobre a sociedade de consumo. Parafraseando Magalhães perguntamos: para que serve uma reflexão sobre a ética? E é ele mesmo quem nos responde: serve para ajudar a desenvolver uma consciência moral competente no plano pessoal, profissional, social e cívico. A ética é

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um conjunto de regras de urbanidade usadas como instrumento para proteger os direitos e também deveres dos atores sociais perante a sociedade em determinados contextos, promovendo o sentimento de dignidade moral” (Magalhães, 2010, pp. 7-13).

Assim, para Santos (2012), havemos de separar e definir concetualmente os dois termos que refere que, “a ética é uma reflexão filosófica sobre a moral” e a “moral por seu turno, seria, neste sentido, o objeto desta reflexão, o objeto da disciplina filosófica chamada ética”. “Esta distinção funcional, faz da ética uma atividade do pensamento e da moral um objeto existencial (dimensão da vida) e social (normas morais)”. Contudo, segundo o autor, essa distinção não é consensual. De acordo com Santos ao analisarmos a questão da moral como sendo um “sistema de normas vigentes numa sociedade”, encontramos que “ela começa por ser algo positivo, embora de certo modo invisível. É o invisível que está por trás de uma ordem social visível, ou seja, é um modelo de comportamento considerado adequado e aceitável numa dada sociedade, numa dada época.

Este modelo pode ser explicitado como um sistema de princípios e normas sociais aceites, respeitadas e geralmente aplicadas pelos atores sociais que constituem essa sociedade. Os casos de não respeito ou violação, longe de implicar a invalidade dessas normas, justificam, com base nelas, comportamentos de crítica ou mesmo sanções em relação aos que as violaram. Assim concebida, a moral varia de uma época para outra, de uma sociedade para outra. O que encontramos não é uma moral mas morais. A moral de uma sociedade ocidental no século XXI, por exemplo, difere da moral «vitoriana» que vigorava no século XIX no mesmo sítio. Há comportamentos, nomeadamente em matéria de sexualidade, que, ainda há bem pouco tempo, eram objeto de codificação moral e que, nos nossos dias, deixam de o ser. Da mesma maneira, a moral ainda hoje em vigor nas sociedades de cultura islâmica é, no que toca à codificação das bebidas alcoólicas, da ocultação do corpo ou da sexualidade, bastante mais restritiva do que no Ocidente, onde a tendência é para uma indiferenciação, ou seja, uma não codificação moral nestas matérias” (Santos, 2012, pp. 39-45).

Sem nos aprofundarmos mais nas questões da “ética e da moral”, podemos juntar estes dois conceitos a um outro preceito que encontramos na ideologia freegana que é o da “solidariedade” estudada por Barnard (2011), que pode se encontrar tanto dentro do setor cultural quanto do económico e político como uma questão de ética

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prática, pois quando os atores recolhem os resíduos alimentares, por exemplo e realizam a “pilhagem”, dividem-no não só entre si, como também com quem estiver disposto a participar desta experiência, convidando a quem “assiste” a tal ato para participar na comensalidade, embora com o objetivo de captar a atenção de outros futuros adeptos para o freeganismo (Barnard, 2011).

Sobre esta reflexão da divisão do que é encontrado nas várias expedições ao lixo realizadas pelos freegans encontraremos em Singer (2002) um princípio plausível de que “se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo” (Singer, 2002, pp. 250-253).

Ora, para os freegans, é um grande mal o que a sociedade faz com os alimentos ao descartá-los quando ainda podem ser aproveitados e quando há tanta pobreza e fome no mundo, então porque não ajudar quem mais precisa? Mesmo que economicamente não lhes tenha “custado nada” esta “doação”.

Ainda que uma terceira premissa seja a mais controversa quando defende que apenas se pode impedir alguma pobreza absoluta sem o sacrifício de seja o que for de importância moral comparável uma vez que “evita assim a objeção de que toda a ajuda que eu puder dar não passa de «uma gota no oceano», porque a questão não é a de saber se a minha contribuição pessoal causará alguma impressão percetível na pobreza mundial no seu todo (claro que não), mas se impede alguma pobreza, dado que qualquer pobreza absoluta é um mal, e não a quantidade total de pobreza absoluta” (Singer, ibid; p. 252).

Para Campenhoudt 2012), “nas sociedades modernas, onde as trocas económicas são principalmente organizadas pelo mercado, temos tendência a subestimar a importância da dádiva. A troca de prendas, sob formas diversas, permanece certamente uma prática corrente no seio da família e entre conhecidos, mas também entre correspondentes anónimos. Conceder tempo a um amigo para o ajudar a mudar de casa ou a pintar o seu apartamento, convidar um colega para almoçar, subsidiar financeiramente uma associação caritativa ou militante, dar uma festa pelo casamento dos filhos, constituem apenas alguns exemplos da infinidade de dádivas que tecem o nosso quotidiano. Com a modernização e o mercado, a dádiva não desapareceu;

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deslocou-se somente, recuou em certos setores para reaparecer noutros, por vezes de forma surpreendente” (Campenhoudt, 2012, pp. 137-138).

Este autor, retrata também o “espírito da dádiva”, estudado por Mauss, nas tribos da Polinésia e da Melanésia, onde um grande número de sociedades arcaicas realiza trocas sob a forma de dádivas, quando formulou a sua teoria sobre o “fato social total”, o qual não nos cabe aqui nos alongar, mas sim considerar que os freegans também praticam estas trocas para que de alguma forma se perpetue o espírito da dádiva.

A Figura 2.4., ilustra a ética que está intrinsecamente dissertada nos discursos dos freegans em todos os textos que foram analisados para este estudo.

Figura 2.4. Ética Freegana: uma Questão de Respeito.

Respeito por todos os seres vivos. Respeito à todos os habitats.

Respeito pelo consumo consciente.

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