• Nenhum resultado encontrado

A adoção do termo “nanoética” ainda divide nanotecnologistas e eticistas. Para os defensores do neologismo algumas questões não são suscitadas por nenhuma outra tecnologia além da “nano”, como a invasão da privacidade - permitida por nanodispositivos imperceptíveis a olho nu ou por instrumentos de detecção convencionais; a terapia e o “melhoramento humano” - possibilitados, por exemplo, pela convergência entre nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação e ciências cognitivas, para aumento das capacidades físicas e mentais; a toxicidade - provocada por produção em larga escala, utilização em produtos e dispersão de nanopartículas; questões relativas ao meio ambiente, à saúde e à segurança – como produção, utilização e descarte de novos materiais; equidade e justiça distributiva - agravadas, principalmente, entre os países centrais e periféricos em relação ao acesso aos benefícios; alocação de recursos e prioridades - que devem ser bem justificadas se realizadas às expensas de obrigações éticas do Estado, como saúde, educação e segurança; regulação - que deve ser específica para materiais na escala nanométrica, cujas propriedades e efeitos são, ainda, desconhecidos; responsabilidade ética - atribuída ao Estado e, principalmente, aos (nano)cientistas, pelo fato de os resultados desta tecnociência atingirem toda a sociedade; difusão – informação acerca dos benefícios, mas também dos potenciais riscos; usos - utilização ética das descobertas e dos produtos desenvolvidos76.

Já aqueles que são contrários à proposição do novo termo afirmam que essas questões não estão no campo exclusivo das práticas nanotecnológicas, mas que outras tecnologias - como as biotecnologias - também utilizam as terapias e o “melhoramento humano” por meio de técnicas de engenharia genética; as tecnologias da informação e da comunicação, como invasão da privacidade por equipamentos de monitoramento e vigilância já as haviam apontado76.

McGinn76 prefere “pensar, escrever e falar em questões éticas relacionadas à nanotecnologia na sociedade”, uma vez que - para o autor - não haveria novidade nos argumentos apresentados pelos defensores do neologismo, mas uma combinação de elementos sociais e técnicos. Desta forma, o autor aponta duas únicas diferenças entre as práticas nanotecnológicas e outras tecnologias: uma que

está relacionada à responsabilidade ética dos nanotecnologistas sobre os usos do desenvolvimento nanotecnológico - a destinação que se dava a outras tecnologias era de responsabilidade da sociedade, e não dos cientistas que as desenvolviam, já no caso do desenvolvimento da nanotecnologia, a responsabilidade sobre o seu uso é exclusivamente do pesquisador, uma vez que o próprio nanocientista, diferente da posição convencional de outros cientistas, acredita ter o dever ético de alertar sobre os potenciais riscos dos resultados das suas pesquisas; outra, representada pelo apoio institucional ao estudo das questões éticas relacionadas à nanotecnologia na origem da sua concepção, o que não ocorreu em outras áreas.

Por exemplo, considerando o Projeto Genoma Humano (PGH) como uma tecnologia para decifrar o material genético, pode-se afirmar que esta tecnologia foi a primeira a examinar as implicações éticas, legais e sociais de seu desenvolvimento, em 1988, dois anos antes do início oficial do Projeto. Os primeiros temas de estudo foram a privacidade e utilização justa da informação genética, particularmente no que tange ao seguro de saúde, emprego e à pesquisa médica, de forma a evitar a discriminação e a permitir a introdução segura de testes genéticos77,78. Para isto foram investidos entre 3% e 5% do orçamento total do Projeto. Em seguida, a Conferência Geral da UNESCO aprovou, em 1997, a

Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, que ampliou

o campo dos aspectos éticos a serem observados em relação a manipulação do genoma, clonagem humana e a transgenia, tendo como princípio maior a “dignidade humana”79 e, em 2004, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos

Humanos, referidos à “recolha, tratamento, utilização e conservação de dados

genéticos humanos, em conformidade com os imperativos de igualdade, justiça e solidariedade”80.

No âmbito das políticas públicas, a estratégia reside na defesa do neologismo “nanoética”, já que os recursos a serem utilizados no desenvolvimento de quaisquer programas de governo recebem uma rubrica específica para este ou aquele fim. Desta forma, ao implementar estratégias de pesquisa e desenvolvimento nanotecnológico, a estas deveriam anteceder ou estar embutidos os estudos sobre a eticidade da prática nanotecnológica, evitando, assim, que recursos financeiros para esses estudos possam ir para um fundo comum e sirvam para estudos éticos genéricos.

Além disso, pelo fato de a nanotecnologia, receber, pelo menos em um primeiro momento, recursos públicos, e de o Estado ser obrigado a tornar públicos quase todos os seus investimentos, é preferível adotar um termo que faça uma ponte entre a tecnologia a ser apoiada e os estudos éticos a ela relacionados, e isso para melhor compreensão por parte da sociedade leiga.

Obviamente, se justificada epistemologicamente a “nanoética”, esta não poderá ser considerada como única diretriz na condução das pesquisas nanotecnológicas. Será preciso combinar uma possível nanoética a disciplinas com uma epistemologia já bastante estabelecida, como a bioética, e a metodologias já consagradas no meio científico e tecnológico, como a biossegurança e as boas práticas de laboratório (BPL). Portanto, se estabelecida, a “nanoética” deverá ser mais um balizador, junto com a bioética, da biossegurança e das BPL, para um desenvolvimento o mais seguro possível da nanotecnologia.

Em realidade, é comum, entre os cientistas, confundir âmbitos de pertinência distintos, como biossegurança e BPL com bioética; isto é, entre aspectos normativos diferentes, pois a biossegurança pode implicar em leis (como a lei de biossegurança brasileira), ao passo que a bioética deve ser mantida distinta da concepção de “lei” dada pelo direito (e o biodireito), embora não necessariamente separada, visto que pode exercer seu papel crítico inclusive a respeito de leis, quando consideradas questionáveis eticamente; sendo que as BPL podem implicar tanto as ferramentas do Direito como aquelas da Ética. De fato, a biossegurança, ferramenta normativa essencial da biotecnociência, parece estar mais preocupada com os testes toxicológicos e de biocompatibilidade de seus produtos do que com os aspectos bioéticos que eles possam suscitar.

Dito de maneira mais precisa, segundo Schramm81, a biossegurança calcula e pondera os riscos e tenta reduzir ou compensar os danos ocasionados pela vigência do paradigma biotecnocientífico – “atividades da medicina e da biologia amplamente entendidas, dos sistemas de informação e comunicação, da biopolítica, e a suas interações”82(p. 191) - e suas aplicações, representadas pelas biotecnologias - simbiose entre avanços científicos, capacidades técnicas e aplicações empregadas na modificação e geração dos fenômenos da vida83(p. 261). Como pode ser visto, biossegurança refere-se à segurança na utilização das ferramentas biotecnológicas. É como se a biossegurança atestasse unicamente a qualidade das técnicas de

engenharia sobre os seres vivos e deixasse, de certa forma, as análises bioéticas relegadas a segundo plano, quando muito. A biossegurança é, de fato, antropocêntrica81, haja vista o impedimento que se dá, em nível mundial, para algumas práticas biotecnocientíficas como a clonagem de seres humanos. O que, em princípio, não ocorre em relação aos seres vivos não humanos.

Ao lado da biossegurança, e não menos importante, têm-se as BPL que, segundo o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro)51, são “um sistema da qualidade que abrange o processo organizacional e as condições nas quais estudos não-clínicos relacionados à saúde e à segurança ao meio ambiente são planejados, desenvolvidos, monitorados, registrados, arquivados e relatados.”

Como pode ser visto, biossegurança e boas práticas de laboratório têm como referência e preocupação os possíveis danos a todos os seres vivos e ao meio ambiente que as práticas humanas podem ocasionar. Em outras palavras, enquanto as práticas tecnocientíficas e biotecnocientíficas estão em andamento, a biossegurança e as BPL estudam formas de proteção do ser humano e do meio ambiente, sendo esta feita com ênfase na qualidade de vida daquele. Por isto, estas práticas são consideradas antropocêntricas e, não, biocêntricas, no sentido de oferecer um nível de existência física digna a todos os seres vivos envolvidos e não somente aos humanos.

A bioética, por seu turno, coloca no centro de suas reflexões todas as questões morais inscritas nas práticas que envolvem os seres bióticos e, indiretamente, abióticos, uma vez que, sendo o foco os seres vivos, a melhoria do meio e das condições que o cercam tornariam a existência de humanos, animais e plantas melhor. Neste sentido, uma característica da bioética, diferente daquelas da biossegurança e das BPL, é antecipar-se à prática tecnocientífica e biotecnocientífica, com reflexões acerca dos impactos, não somente físicos, do desenvolvimento científico, mas também econômicos e, principalmente, sociais, planetários (relativos ao planeta Terra propriamente dito) e globais (relativos às relações internacionais).

Além disso, a bioética implica uma tríplice compreensão: (1) como “um conjunto de conceitos, argumentos e normas que valorizam e legitimam eticamente os atos humanos cujos efeitos afetam profunda e irreversivelmente, de maneira real

ou potencial, os sistemas vitais”84(p.53); (2) como “um novo campo de investigação que visa compreender de forma crítica as consequências de uma ação [...], responder questões filosóficas substantivas relativas à natureza da ética, ao valor da vida, ao que é ser uma pessoa, ao sentido de ser humano, [...] incluindo as consequências das políticas públicas e o rumo e controle da ciência”53(p.4) e (3) como uma ferramenta de proteção de “indivíduos e populações humanas, assim como outros sistemas vivos, contra ameaças decorrentes das práticas humanas que envolvem tais seres e sistemas vivos”85.

Por isso, a reflexão bioética deveria fazer parte não somente dos projetos de pesquisa biotecnocientíficos, mas também das práticas com outras tecnologias, uma vez que uma das principais causas da degradação do meio ambiente é o consumismo exagerado provocado pelos agenciamentos tecnossemiológicos, ou seja, pelas ofertas de tecnologias, simbolicamente marcantes, que favorecem a produção de subjetividade, i.e., alteram os modos do agir humano e a interpretação do mundo86,87. Neste âmbito, tem papel fundamental o poder público, já que é ele o principal financiador das pesquisas científicas no Brasil e é quem possui a capacidade de instituir os freios legais, como, por exemplo, as normas de biossegurança, para o controle de um desenvolvimento econômico a qualquer custo, além de ter o poder de instituir uma comissão de bioética com repercussão nacional.