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Moralidade será entendida aqui, levando em conta a deontologia kantiana e o utilitarismo consequencialista, como a

característica do ato humano, analisada e julgada de acordo com parâmetros valorativos que permitam dizer se [o ato] é correto ou incorreto, justo ou injusto, em determinada situação e tendo em conta não somente as boas intenções, mas também suas consequências.74(p. 69)

Enquanto que a moral, que designa “o conjunto de princípios, normas, imperativos ou ideias morais de uma época ou de uma sociedade determinadas”

88(p. 65-66), estaria no plano ideal, a moralidade estaria no plano real ou fatual (ou prático ou efetivo) e surgiria na própria vida concreta88.

Portanto, a análise da moralidade da governança pública das nanotecnologias significa trazer à superfície os conflitos com que se deparam os agentes morais envolvidos na condução das nanotecnologias (nano-cientistas, gestores públicos e empresários): as nanotecnologias são boas ou más? Elas devem ou não ser apoiadas? Quais aplicações nanotecnológicas são prioritárias? Existem aplicações prioritárias?

Segundo Gottweiss89, “governança” refere-se às ações, traduzidas em políticas, que tentam unificar interesses divergentes dos cidadãos. Estas ações são o resultado das capacidades financeiras e administrativas do Estado90, dentro de um gerenciamento despolitizado91.

O binômio “governança científica”, amplamente utilizado em substituição a “políticas de ciência e tecnologia”, reconhece uma gama maior de atores como universidades, institutos de pesquisa, agências nacionais e supranacionais, poderes regionais e locais, mercado, consumidores, população e grupos de pressão92.

Na formulação de políticas públicas é preciso integrar diversos atores – cidadãos, peritos, empresários e agentes públicos - dentro dos preceitos democráticos da gestão participativa, o que nem sempre é uma tarefa de fácil consecução, uma vez que, dependendo do contexto em que aqueles estão inseridos, alguns interesses entram em conflito com outros.

Na governança científica dos organismos geneticamente modificados (OGM), no Reino Unido, por exemplo, a ciência adotou um tom humilde e de ouvidoria, onde o engajamento público teve assento na discussão política. No Brasil, devido à cultura política elitista e tradicional e, portanto, distante do cotidiano da população, foi adotada uma estratégia de “mobilização pública, mas não para o engajamento público”93(p. 97).

Na percepção pública da nanotecnologia, Macnaghten e Guivant94 verificaram posturas diferentes entre britânicos e brasileiros. No Reino Unido, o público mostrou- se cético e fatalista, o que pode obrigar cientistas e formuladores de políticas públicas a enfrentar discursos de fracasso tecnocientífico e, consequentemente, pedidos para a “constituição de uma ciência mais socialmente robusta”94(p. 208). A perspectiva brasileira apresentou-se favorável à tecnologia, apontando-a como

“fonte de salvação e melhoramento social”94(p. 213) e assinalando que o sistema sócio-técnico é autocorretivo, não necessitando, portanto, de supervisão.

De fato, a governança da nanotecnologia é considerada um desafio por ter que conciliar investimentos em pesquisa e inovação para o crescimento econômico de um país e os aspectos éticos e de desenvolvimento humano43. Este desafio, segundo Falkner95, acompanha as tecnologias emergentes pelo fato de estas produzirem incertezas persistentes em relação aos riscos ambientais e à saúde, o que dificulta a aplicação de procedimentos de rotina na avaliação e na gestão do desconhecido.

Um ponto chave na questão da governança e que deve ser mitigado é o fato de o processo decisório se dar de cima para baixo, sem a participação, muitas vezes, de cientistas e, quase nunca, do cidadão. Este engajamento é necessário também para evitar o sentido de inevitabilidade das pesquisas em nanotecnologia - a simples disponibilidade de recursos tecnológicos pode forçar a aplicação destes ou a crença de que “a tecnologia gera sua própria justificação” ou, como expôs Jacques Ellul, citado por Bauman - “a tecnologia torna-se sua própria legitimação”96(p.214) - e para fornecer subsídios aos formuladores de políticas de ciência e tecnologia, de forma que atendam as reais necessidades da sociedade97. Além disso, os pedidos de moratória refletem a tendência das políticas atuais em acelerar a comercialização de “nanoprodutos” sem uma cuidadosa avaliação das incertezas que os cercam98. A nanotecnologia repete uma parceria que vem desde o século XVIII, quando ciência e produção começaram a se relacionar e a se influenciar99.

Com isso, o princípio da precaução tem sido invocado para frear o desenvolvimento nanotecnológico. A precaução, até o surgimento do princípio, era utilizado na medicina e na saúde pública, com a máxima “Melhor prevenir que curar”100, sendo o termo “prevenir” utilizado neste caso no sentido dado à precaução. Segundo Harremoës et al.100, uma das primeiras aplicações da precaução registrada foi feita em Londres, Inglaterra, pelo Dr. John Snow, em 1854, quando foi recomendado que se evitasse manusear a bomba de água da Broad Street, como tentativa de frear a epidemia de cólera no centro londrino. A partir de 1974, o princípio passou a ser aplicado nas ciências ambientais, com a criação do

Vorsorgeprinzip (princípio da precaução, em alemão) na Lei do Ar Limpo alemão,

na agenda política global, tendo sua expressão maior na Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992.

No que tange às pesquisas científicas, os pedidos de moratória, proibição, postergação - que são algumas das medidas implementadas quando se invoca o princípio da precaução - podem se basear na simples aversão ou medo das tecnologias, paralisando por um tempo ou, até mesmo, retirando tais pesquisas dos sistemas de ciência e tecnologia. De fato, não há uma definição universal para o princípio da precaução. Sandin101, por exemplo, lista 19 definições que, entre si, são vagas e contraditórias. Wiener e Rogers102 distinguem três diferentes versões: baseada na incerteza acerca dos riscos, da Declaração de Bergen, de 1990; baseada no nexo de causalidade entre a ação e o dano, da Declaração de Wingspread, de 1998 e baseada no ônus da prova da segurança da atividade, de Raffensperger e Tickner. Quanto à primeira versão em que o princípio declara que a falta de certeza científica acerca dos riscos não será invocada para adiar a aplicação de medidas protetivas, Wiener e Rogers102 afirmam que nunca há uma completa certeza científica sobre a segurança de uma atividade.

A segunda versão, onde a falta de estabelecimento do nexo de causalidade, mesmo não bem estabelecido, não pode ser usado para a aplicação de medidas de proteção, é contestada por Wiener e Rogers102 pelo fato de nem sempre ser possível identificar o agente causador do dano, o que dificulta, por sua vez, determinar que tipo de medidas adotar. Na última versão, onde a proibição da atividade deve ser aplicada até que o proponente demonstre a segurança de sua atividade, o mesmo pode fornecer uma informação mínima ou se houver uma padronização de testes, a atividade pode se perder por causa da normatização excessiva.

No caso da nanotecnologia, antes da decisão de se aplicar o princípio de precaução, Weckert e Moor103 argumentam que deve haver uma clara distinção entre ameaças críveis e improváveis; que toda decisão deve estar baseada em evidências científicas; que uma ameaça maior deve se sobrepor a uma ameaça menor; que um evento catastrófico anterior deve prevalecer sobre outro posterior; que, em situações onde o fator humano tenha papel imprescindível na utilização final do desenvolvimento científico, uma regulação/normatização deve ser aplicada antes de qualquer paralização ou banimento. A aplicação do princípio de precaução à

nanotecnologia requer diferentes análises, não sendo, portanto, sensato atribuir a todos os ramos desta tecnologia uma ameaça inerente.

Em pouco mais de uma década, a governança da nanotecnologia passou por mudanças importantes43: a inclusão dos fatores ambientais, de saúde humana e de segurança (EHS, sigla em inglês para Environment, Health, and Safety) e dos aspectos éticos, legais e sociais (ELSI, sigla em inglês para Ethics, Legal, and Social

Implications) nas discussões; o engajamento da comunidade internacional de

profissionais e de organizações na pesquisa, educação, produção e avaliação social da nanotecnologia; a intensificação da comunicação e objetivos comuns, no lugar da competição entre os países.

Espera-se que, em 2020, produtos e processos nanotecnológicos sejam utilizados em massa pela sociedade. Com isto, a governança da nanotecnologia não poderá escapar de ser dirigida por princípios bioéticos básicos como a dignidade, a justiça, a equidade, a responsabilidade, a proteção das gerações futuras e da biodiversidade, para citar só alguns. Roco et al.43 sugerem que esta governança deverá ser: a) transformativa, com foco em projetos e resultados multidisciplinares e multissetoriais inovadores; b) responsável, com inclusão dos fatores EHS e ELSI e equidade no acesso e nos benefícios; c) inclusiva, com a participação de todos os órgãos públicos, o setor produtivo, organizações internacionais e o público em geral; e d) visionária, com um planejamento de longo-prazo, antecipatório e adaptativo que inclua uma visão global, sustentável e de desenvolvimento humano.

A população brasileira ainda está numa fase embrionária em relação à educação básica. O que se dirá, então, em relação a uma alfabetização científica consistente?

Entretanto, ao acreditar que as políticas públicas implementadas pelos gestores públicos, mesmo sem consulta à sociedade, serão as melhores para ela, é necessário antecipar-se às políticas, analisá-las e analisar as práticas dos atores principais em relação àquilo que eles se empenham em implementar – a nanotecnologia - e, de certa forma, impor à sociedade, devido, provavelmente, à corrida nanotecnológica, que não poderia esperar as análises acerca da sua necessidade e de seus impactos, e tendo em conta os principais atores da nanotecnologia referidos aqui, que são os pesquisadores, o governo e o setor produtivo.

O Programa de Nanotecnologia brasileiro é coordenado pelo MCTI. Isto não impede que outros órgãos públicos tenham suas próprias iniciativas na área e que não passem pelo MCTI. No entanto, aqui somente serão analisadas as políticas emanadas do MCTI.

O Programa de Nanotecnologia do MCTI é composto de ações de financiamento público de pesquisa básica e de incentivo ao setor produtivo. O ministério apoia também, de forma direta, 6 laboratórios nacionais, 17 redes temáticas de pesquisa e 16 institutos nacionais. Do lado do governo, a Coordenação-Geral de Micro e Nanotecnologias (CGNT) é auxiliada pelo Comitê Consultivo de Nanotecnologias (CCNANO), composto por membros do governo, da academia científica e do setor produtivo.

As estratégias de governança deveriam incluir uma reflexão bioética para que o desenvolvimento nanotecnológico traga realmente os benefícios prometidos e os distribua equitativamente ou que, numa visão “eutópica” (do grego eu + tópos, “lugar do bem”, diferente de utopia ou “não lugar/lugar imaginário”)104(p. 2), os danos sejam minimizados para que esta tecnologia não seja alvo de moratória, sem fundamentação social, filosófica e científica. Por exemplo, na União Europeia, em 2010, o Parlamento Europeu recomendou a moratória da comercialização de alimentos que utilizavam nanotecnologia, seja nos processamentos, nas embalagens e na adição de nano-ingredientes até que a avaliação dos riscos desses procedimentos ou produtos atestasse sua segurança.

Assim sendo, parece que não se pode mais ignorar os fatos da nanotecnologia. Ela está presente em milhares de produtos utilizados cotidianamente pela população mundial – desde produtos eletrônicos até medicamentos. Deve-se, então, direcionar de forma responsável este desenvolvimento. Um dos instrumentos para isto é a bioética, incorporada nas políticas públicas como ferramenta analítica e normativa de suas práticas.

3OBJETIVOS