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CAPÍTULO III DA POESIA ANÔNIMA AO CANCIONEIRO POPULAR:

3.7 Índio em representação

No tocante à temática literária indígena, Rodrigues de Carvalho cita o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597) para afirmar que o mesmo foi responsável em espalhar, envolta com as palavras evangelizadoras de fé cristã, autos, mistérios, dramas de fundo religioso e simbólicas divindades como ponto de partida que, posteriormente, vieram a germinar em nossa literatura.

Não obstante, faz menção a obra Florilégio da Poesia Brasileira (1850), de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), para destacar o trecho em que este historiador menciona o indígena e sua relação com o gênero da poesia enquanto músico e improvisador, revelando também que os índios, ainda que tivessem “boas vozes”, eram demasiadamente monótonos. Por fim, recorre a Mello Moraes Filho para contrapor a opinião de Varnhagen, pois o primeiro entende como “mera ficção essa idéia de ser o indígena brasílico dotado de inspiração poética” (CARVALHO, 1995, p. 41). Isso torna a sua fundamentação um pouco confusa, visto que embora Carvalho frise acatar Mello Moraes seu respaldo vai de encontro às afirmações enveredadas por Francisco Varnhagen no que tange à poética do índio.

Amparando-se e transcrevendo os versos colhidos da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, Rodrigues de Carvalho procura demonstrar em exemplos o estágio de poesia dos índios. Para ele, o expediente adotado por Anchieta através da escrita de versos na “língua indígena” em seus ensaios teatrais comprovava a presunção de que entre os índios exista pela poesia um campo muito proveitoso à missão da catequese. Logo, conclui que se a campanha “civilizadora” do jesuíta começou pela poesia fica fácil compreender que a poesia popular de inspiração indígena nasceu em contato com a influência religiosa.

A propósito da monotonia indígena, Carvalho destaca os cocos populares, ressaltando que a concepção é escassa e o vocabulário é paupérrimo. Quanto ao fenômeno na arte da harmonia musicada entre os índios, segundo ele não soavam senão em três notas; necessitando dos estribilhos repetidos nos cantos, das palmas ritmadas nas danças e de palavras de enxerto na trova. Em meio aos simples termos de gírias, conforme observado por Carvalho através de Varnhagen e Theóphilo Braga111, as sílabas destacadas chegavam para

completar a exigência da métrica, sendo algo bastante frequente na poesia popular no norte do Brasil. Neste âmbito, reproduz uma quadra boêmia cantada em roda que faz honra a São Gonçalo, o Santo casamenteiro:

111 Theóphilo Braga é constantemente referenciado nas obras de Carvalho, sendo por ele considerado como

São Gonçalo foi à caça, caça, caça, Todo cheio de lacinhos, cinhos, cinhos, Em louvor do mesmo santo, santo, santo,

Vou beber um bocadinho Estribilho:

Dá-me, Deus, dá-me Deus, Gi-ti-ri-ti-ri-ti-ti . . . Dá-me Deus, dá-me, Deus,

Gi-ti-ri-ti-ri-ti-ti112.

Partindo para os rituais e cerimônias indígenas, Rodrigues de Carvalho faz uma análise entre as tradições e superstições ocorridas na antiguidade oriental, pontuando-as enquanto analogias quando comparadas com as práticas do índio ocidental e “nortista”. Segundo Carvalho, do mesmo modo que no norte as cerimônias de jurema se realizam do sábado para domingo, na Índia acontecia neste mesmo dia a prática de adoração de Holda, a lua.

O uso da couvade também é outro ponto enveredado por ele como “ensinamento histórico” perpetuado por “diversos povos primitivos”, sendo ainda praticado por homens em algumas tribos indígenas da Amazônia. Neste caso, durante a gravidez da mulher e logo após o nascimento da criança, o homem se recolhe à cama por dias no lugar da parturiente com a premissa em simbolizar que o filho será gerado através das entranhas do pai. Para além dessas analogias, Rodrigues menciona outras práticas concomitantes perpassadas de uma geração para outra, que segundo ele mantém singularmente a sua “essência”:

(...) como era prática na antiguidade, os indígenas fazem os seus aparatosos banquetes funerários quando morre um da comunhão; convidam as malocas vizinhas, matam caça durante dias, enfeitam o terreiro da habitação de penas multicores, amarradas em um mesmo fio, como bandeirinha de papel; e, reunidos, cantam, tocam, dançam e se banqueteam, chorando em seguida sôbre as cinzas do morto, para que depois renovarem a cerimônia festiva. Muitos são os pontos análogos, por onde se verifica a identidade humana, senão por ter tido um berço comum, mas por ser comum a sua essência. (CARVALHO, 1995, p. 40)

Abordando a respeito do carnaval, Rodrigues de Carvalho atenta para os diversos folgares que encenam pelas ruas, tais como cocos, maracatus, marujos (fandangos ou nau Catarineta) e o bumba meu boi. Todavia, seu maior destaque é dado aos caboclinhos113,

descrevendo-os como “restos de diversão indígena”. De acordo com ele, nesse folguedo dezesseis ou vinte figuras ostentando trajes de cores berrantes, com enfeites de espelhinhos e penachos à cabeça, empunhando arcos e flechas que eram manejados ao som de um tambor e de uma gaita. Com efeito, simulavam um combate até o surgimento do rei, o qual trajado de capa e espada era cortejado por dois culumins, que na gíria do folguedo eram conhecidos como os perósmingus (CARVALHO, 1995, p. 84).

Ademais, o autor discorre sobre as manifestações sagradas e profanas que marcavam o mês de maio e o São João, sobretudo, atentando para a presença indígena em meio a esses festejos. Para Carvalho, as danças de origem popular aliadas ao canto pelo ritmo e pelo tom picaresco completavam os dados exigidos pelo folclore. Em Aspectos da influência africana na formação social do Brasil fala em pormenores sobre a variedade de cocos e a arte do canto, observando que tanto na “música instrumentada” quanto no “verso posto em sofá” há uma maior pobreza de notas na combinação dos sons entre as “raças inferiores” (CARVALHO, 1967, p. 49).

Sobre os Maracatus e o uso do maracá, Rodrigues de Carvalho elucida a “confusão” nos folgares e nome dos instrumentos entre índios e negros. Para o autor, o negro usa maracá e dança maracatu, entretanto os vocábulos são de origem tupi até porque na língua geral, maracatu quer dizer “toque bonito”. Desse modo, enfatiza como as “duas raças” se entrelaçam no que concerne às superstições, mandingas e feitiçarias enquanto complemento dos folgares. A respeito disso, Carvalho (1967, p. 50-51) procura descrever uma gama de rituais, costumes e crenças populares entre negros e índios que se misturavam nas “práticas do feitiço”:

Todos comungam um mesmo sistema: reunidos, sôbre uma esteira, sob o efeito capitoso de beberagens aguardentadas, tocam maracás feitos com caroços de mulungú, entoando frases cabalísticas, e fazendo mesuras, depois transformam a cerimônia em dança. Homens e mulheres estão convencidos que, ao poder daquelas cerimônias o corpo está fechado a todos os males,

113 Convém ressaltar que Manuel Diégues Júnior (1995, p. 20-21) nega que os caboclinhos sejam considerados

uma diversão indígena. Para Diégues Jr., embora o nome se prenda a grupos provenientes ou remanescentes de indígenas, a realidade é que se trata de um folguedo bastante influenciado pelo elemento negro, visto que os integrantes do grupo, apesar das evidentes modificações trajadas nas indumentárias indígenas, usavam o canto e a música marcadamente de origem africana. Para tanto, faz menção ao artigo O auto dos Caboclinhos (1952), do folclorista Teothônio Brandão (1907-1981), mais conhecido como Theo Brandão, responsável por fazer um estudo completo sobre os Caboclinhos, a partir da análise dos textos cantados e da música registrada em temas folclóricos do Nordeste, a fim de mostrar a influência preponderante dos elementos culturais africanos.

que os corações dos amantes ingratos se abrem em ternuras felizes. Rosários, sapos de boca cosida, bonecas, bichos de diversas qualidades engrudados em cera de abelha, ornamentados de fragmentos de bolacha, são os enfeites da mesa. (CARVALHO, 1967, p. 51)

No que concerne ao ritual de jurema, praticada comumente pelo indígena, Rodrigues de Carvalho (1967, p. 52-53) transcreve alguns versos do seu rito, que segundo ele é cantarolado em som gutural, acompanhado ao ritmo do maracá. Contudo, enfatiza que essa forma de catimbó114 era também praticada pelos africanos, visto que era notório certo

hibridismo já no próprio termo utilizado para nomear o ritual. De acordo com Carvalho, o termo catimbó é da língua geral do indígena e significa “mato cheiroso” ou “planta cheirosa”, no entanto catimbó significa “feitiço” para o mestiço em geral. Não obstante, a jurema era utilizada nas mesas de feitiço, tendo um efeito narcotizante.

3.8 Negro em representação

Em Aspectos da influência africana na formação social do Brasil, conforme já é evidenciado no próprio título do trabalho, Carvalho dedica um espaço maior para abordar o processo histórico-cultural e representações sociais no que condiz aos negros. Desta maneira, prioriza de antemão tópicos sobre o negro na condição de escravo, realçando o tema da importação, a condição dos importados, os lucros do comércio de escravos, a proporção superável de habitantes negros em relação aos brancos e a legislação sobre a escravidão em Portugal com vigência no Brasil.

Segundo afirma Roberto Ventura (1991, p. 46), com a mudança de padrão cultural, por volta de 1870, o negro e o escravo foram incorporados como objetos de discurso literário e cultural. Desta maneira, em termos literários, a incorporação do negro e do escravo se deu a partir de 1860, juntamente com o relativo desaparecimento do indígena como personagem ficcional ou assunto poético, sendo somente retomado e valorizado com o movimento modernista na década de 1920. Para o autor, os efeitos da escravidão, a exemplo da “perversão” dos costumes, “foi um dos temas mais recorrentes no pensamento abolicionista e nos textos literários que discutiram o cativeiro, visto como ‘cancro’ ou ‘infecção’ moral” (VENTURA, 1991, p. 46).

Há muitas passagens em que Carvalho relata o cotidiano do escravo na labuta e o regime de torturas que os “senhores” submetiam os “homens de cor”. Segundo o autor, o

114 A jurema também era chamada de catimbó, termo êmico que se tornou popularizado pela literatura clássica