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CAPÍTULO III DA POESIA ANÔNIMA AO CANCIONEIRO POPULAR:

3.3 O Primeiro Congresso Afro-Brasileiro do Recife

O Primeiro Congresso Afro-Brasileiro do Recife ocorreu no Teatro Santa Isabel, entre os dias 11 a 16 de novembro de 1934, sob organização de Gilberto Freyre e do professor Ulysses Pernambucano, além da direção do pintor Cícero Dias. Durante o evento foram reunidas exposições de trabalhos de arte afro-brasileiras, além de várias expressões artísticas brasileiras que não estavam pautadas apenas na pintura, estendendo-se à música ou mesmo à culinária no traje popular de algumas regiões.

O Congresso do Recife teve como intuito discutir o papel do negro e a sua importância para o processo de formação da identidade sociocultural do país. De acordo com Freyre (1988) os trabalhos ali presentes traziam esclarecimentos e novos pontos de vista sobre a situação do negro e do mulato no Brasil, sua antropologia e relevância na nossa formação social e cultural. Desta forma, o congresso foi marcado pelo interesse na perspectiva de ressaltar “o negro como expressão de cultura” (SIQUEIRA, 2005, p. 46). O médico Raymundo Nina Rodrigues, inclusive, foi grande referência aos congressistas por ser considerado o precursor dos estudos sobre os problemas do Negro no Brasil, muito embora tenha sido criticado pelo próprio Gilberto Freyre ao salientar que o negro africano era biológica e sociologicamente inferior. Sendo assim, apesar das críticas, os organizadores do evento alinhavam-se à escola baiana de Nina Rodrigues.

O evento não se prendeu ao exclusivismo acadêmico ou cientificista, haja vista que ao lado da presença dos doutores o congresso também contou com a colaboração de yalorixás, cozinheiras, pretas de fogareiro, negros de engenho, rainhas de maracatu, analfabetos e semianalfabetos com um conhecimento direto aos assuntos afro-brasileiros. Para além desses, estudantes de medicina, engenharia, psiquiatras, intelectuais, jornalistas e representantes dos jornais do Rio de Janeiro contribuíram juntamente com os outros participantes ao cultivar o assunto por “simples gosto do pittoresco, por litteratice, por politiquice, por esthetismo, sem nenhuma disciplina intellectual ou scientifica, sem um sentido social mais profundo dos factos” (FREYRE, 1988, p. 351).

Mas, ainda que o Congresso tenha atraído a “bôa vontade de gente mais simples”, o evento também despertou o interesse de grandes especialistas, sociólogos e antropólogos em geral, recebendo aplausos de Franz Boas, além da participação do norte-americano Melville J. Herskovits, da inglesa Nancy Cunard e do antropologista brasileiro Roquette Pinto. Ademais, o evento também contou com o apoio do “Centro Religião da Humanidade do Apostulado Positivista do Brasil” no envio de todos os seus boletins referentes à situação do negro e com

a presença dos maiores artistas da época, tais como: Cícero Dias, Luiz Jardim, Manoel Bandeira, Di Cavalcanti, Santa Rosa e Tarsila do Amaral. Segundo Gilberto Freyre (1988), o evento teve destaque na primeira página do jornal The New York Times, bem como recebeu a colaboração de Rodolfo Garcia, Mário de Andrade, Arthur Ramos, Antonio Austregesilo, Bastos de Avila, Cunha Lopes e do entusiasta dessa iniciativa recifense, o professor Roger Bastide.

No dia 11 de novembro, às 15 horas, foi iniciada a sessão de abertura com a apresentação de trabalhos proferida por Ulysses Pernambucano, a qual discorreu a respeito de seus estudos etnográficos que estavam no momento em andamento e que tinham o negro como principal “objeto” de estudo. O evento prosseguiu com o debate de mesas temáticas, manifestações culturais afro-brasileiras, visitações, pequenas excursões e seções96 que

reuniam temas diversos. O último dia do Congresso foi encerrado com uma audição de músicas afro-brasileiras no Teatro Santa Isabel, sobre a direção dos professores Ernani Braga e Vicente Fittipaldi (Jornal Pequeno de Recife, 17 de novembro de 1934 apud., PAZ 2007, p. 131).

Não obstante, um dos maiores destaques do evento se deve aos trabalhos apresentados. Como já foi enfatizado boa parte deles, embasados na área de psiquiatria e, sobretudo, na antropologia através de visões ideológicas muitas vezes convergentes, versava sobre a importância e influência do negro na formação social do Brasil. Contudo, além de inúmeras análises de questões que interessavam a etnologia à época, uma gama de pesquisadores e estudiosos enveredaram como objeto de discussão o elemento cultural. É neste âmbito que Clilton Paz (2007) aponta os seguintes trabalhos:

O negro na música do nordeste de Diógenes Junior; Biblioteca do povo e coleção moderna de Jorge Amado; A arte do bronze e do pano em Daomé de Melville Herskovit; O negro e a poesia brasileira de Odorico Tavares; O negro na obra de Silvio Romero de Paulo Barros; O negro no folclore e na literatura do Brasil de Renato Mendonça; Influência etnológica do negro no Brasil e Aspectos da influência africana na formação social do Brasil de Rodrigues de Carvalho; Influência indiana do negro no espírito do direito nacional de Rubens Saldanha; Fizeram os negros teatro no Brasil?de Samuel Campello; Musicalidade do escravo negro no Brasil de Nair de Andrade; O negro na arte popular e doméstica de Pernambuco de Cícero Dias e Gilberto Freyre; Ohum êniadúdu de Jacques Raymundo; Vocabulário nagô de Rodolpho Garcia; A calunga dos maracatus de Mário de Andrade. (PAZ, 2007, p. 233) (grifo meu).

96 Sobre as seções Ulysses Pernambucanos ficou responsável pela “etnografia”, Olívio Montenegro por

“antropologia, sociologia e etnografia”, Sylvio Rabelo por “psicologia social” e Rodrigues de Carvalho por “folclore e arte”. (PAZ, 2007).

De acordo com José Jorge Siqueira, as teses ali apresentadas enquadravam-se na tipologia arquétipa da “aculturação”, das “sobrevivências”, das “contribuições”, das “influências” negras, assim como se aproximavam de um “confinamento à moda dos estereótipos com que se ia construindo o imaginário da democracia racial no Brasil” (2005, p. 44). Para Siqueira, as intervenções do Congresso desviavam-se dos focos das questões objetivas, distanciavam-se dos temas centrais das relações étnico-sociais e padeciam de vícios etnocêntricos no trato da temática. Dessa forma, tomando como exemplo a locução Aspectos da influência africana formação social do Brasil, de Rodrigues de Carvalho, o autor critica os estereótipos e anedotas que culminam a maioria absoluta dos trabalhos exibidos no evento:

Segue-se então o receituário estereotipado: a sensualidade da mulher africana, a afetividade da raça, o picaresco das anedotas a flagrar o negro humilhado, com os atributos do desprezo, da inferioridade cultural, exemplificado em grosserias e deboches de toda sorte. Também, como de hábito nesse tipo de apreciação, lá estão os tributos aos talentos individuais e à criatividade artística. Ou ainda, ao quilombo dos Palmares, entendido como “arremedo de rebeldia cívica, grosseira e desarticulada”, embora exemplo contra a subserviência passiva, verdadeiro exemplo de orientação futura. Em suma, de forma monótona, seria essa a tônica da maioria esmagadora dos trabalhos ali apresentados. (SIQUEIRA, 2005, p. 45). Tanto em Influência etnológica do negro no Brasil quanto em Aspectos da influência africana na formação social do Brasil, Rodrigues de Carvalho busca analisar a contribuição do negro na formação da vida social, política e cultural do país, como um elemento constituinte de uma identidade nacional. Mas essa discussão não era exclusividade do autor, pois a constante preocupação em promover estudos a respeito do negro (africano e brasileiro) e de promover uma cultura nacional mestiça era função primordial do Congresso. Neste sentido, segundo Siqueira (2005, p. 14), além dos debates em torno das possíveis explicações para a formação da nação brasileira, a construção de programas de trabalhos variados possibilitou a própria elaboração conceitual da “raça”, mediante as concepções teóricas e sociais que lhe emprestavam múltiplos significados.

No Jornal Pequeno de Recife, Rodrigues de Carvalho enquanto redator escreve uma nota sobre o Congresso de Recife, exaltando a contribuição do evento na perspectiva de primar pela valorização do negro na sociedade brasileira, assim como atenta para influência étnica e seu papel no processo de construção da identidade nacional desde o período colonial: A sua influência étnica, os efeitos de sua cooperação no trabalho da lavoura, a emotividade negra na formação da mentalidade patrícia; o seu contingente patriótico na elaboração política da nacionalidade; as emulações artísticas do mestiço; em suma, a reivindicação de uns tantos direitos que até hoje passam como condições negativas da sub-raça. (Jornal Pequeno de Recife, 19 de outubro de 1934 apud., PAZ 2007, p. 145).

Partindo desse pressuposto, o Congresso procurou reformular, através de novos estudos e pesquisas, a visão antropológica e social em relação ao negro, tida como negativa principalmente no pós-abolição. Para alguns intelectuais e estudiosos, ainda era presente a ideia de que após a abolição da escravatura o negro ficou largado à própria sorte, sendo este um problema vinculado à herança da escravidão. Foi neste âmbito que os trabalhos reunidos no Congresso foram copilados e transformados em anais, uma vez que tinham como objetivo divulgar e fomentar pesquisas que fizessem alusão ao negro e sua cultura sob todos os aspectos, apontando novos matizes aos estudos afro-brasileiros.

Em primeiro momento, Roquette Pinto afirmou que os anais do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro do Recife não necessitariam de um prefácio. No entanto, observando a relevância do material escrito, apresentado e discutido durante o evento, resolveu prefaciar o primeiro volume. Para o autor, em matéria de antropologia e etnografia, aquela geração tinha o papel de estabelecer planos, juntar recursos e materiais, sistematizar as indagações, revisar a bibliografia, ou seja, preparar as fontes para as gerações futuras. Nesta perspectiva, aprecia a postura do evento ao dedicar uma maior atenção ao papel sociocultural dos negros e aos estudos afro-brasileiros, que seriam um manual de consulta diária:

O negro esperou bastante; mas valeu a pena. Consagraram-lhe um pequeno monumento singelo como a própria verdade sem rhetorica e sem lantejoulas – alguns dos maiores espíritos do Brasil de hoje. Para os que passam a vida embrenhados no delicioso e árduo trabalho de pesquisar e recolher documentos anthropologicos e ethnographicos da sua terra – é uma alegria boa e sincera ver que as sciencias do seu trato dilecto vão agora fecundando almas de élite, empenhadas numa obra de conhecimento e gratidão, de sympathia e de humanidade. (ROQUETTE-PINTO, 1935, p. 3-4)

A respeito dos estudos acerca da incorporação do negro em seus estudos, Roquette Pinto justifica que eles só foram retardados devido a duas condições: primeiro pela educação clássica de formação portuguesa atribuída aos intelectuais da época e, por conseguinte, pela incineração de documentos históricos relativos à escravidão por determinação do Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, Circular n.º 29 de 13 de Maio de 189197. Neste sentido, indica também a ausência de estudos etnológicos e sociológicos acerca dos afro-brasileiros ao afirmar que, com exceção de dois ou três discípulos de Nina Rodrigues, naqueles últimos vinte e cincos anos não teria havido quem se lançasse ao estudo do negro no Brasil. E, por fim, destaca a

97 Rodrigues de Carvalho também contestou a ação do ministro ao descrever o aviso que ordenou a destruição

dos arquivos, bem como questionou: “qual mal nos adviria porque fomos irmãos de escravos, ou porque nas veias corre o sangue de origem africana?” (1967, p.5). Segundo José Siqueira (2005), o ministro Rui Barbosa estrategicamente incinerou as matrículas de escravos, pois buscava escapar das indenizações pleiteadas pelos proprietários (SIQUEIRA, 2005, p. 44).

iniciativa de Gilberto Freyre nesses estudos e realça a sua articulação com a palavra de “fé” e de “cultura”, ao encontrar a “réplica dos pertinazes e talentosos trabalhadores que ele conseguiu reunir no Congresso Afro-Brasileiro de Recife” (ROQUETTE-PINTO, 1935, p. 8). No segundo volume prefaciado por Arthur Ramos que, nas palavras de Freyre era naquele período “a maior autoridade brasileira em assumptos negros” (1988, p. 352), esse estudioso escreve que muito embora não tenha feito parte da comissão organizadora do Congresso do Recife e muito menos participado diretamente das discussões das teses e moções apresentadas aplaudia a iniciativa do evento por trazer “novos angulos de visão”, “novos methodos de pesquizas” e “novas directrizes” para o futuro dos estudos sobre o problema do Negro no Brasil (RAMOS, 1988, p. 12).

Neste mesmo espaço, Arthur Ramos faz uma pequena observação ao prefácio de Roquette Pinto, refutando a ideia do “eminente professor” quanto à trajetória dos estudos afro-brasileiros no Brasil. Explica que, desde 1926, na Bahia, o nome de Nina Rodrigues havia sido retomado no propósito de uma re-interpretação do “problema negro-brasileiro”, sob o viés de sua “escola immensa”. Segundo ele, estava tacitamente reconhecida pelo grupo do Recife a primazia nos estudos sobre “o problema do negro”, com a homenagem de Gilberto Freyre a Nina Rodrigues, referida no artigo O que foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife e pelo pedido do “sociólogo de Casa Grande & Senzala” quanto ao prefácio deste segundo volume. Para tanto, Arthur Ramos demonstra seu esforço em relação aos assuntos de etnografia e sociologia e enaltece os estudos sobre o “negro” que estavam surgindo e retomando a primazia deixada pelo mestre baiano:

Quando a attenção dos estudiosos brasileiros ainda não se achava, como hoje, voltada para os assumptos de ethnographia e sociologia negro- brasileiras, eu levantava, na Bahia, o brado de alarme contra a conspiração do silêncio, que devia cessar. Afranio Peixoto encabeçava a reedição de obras raras ou esgotadas de Nina Rodrigues. Monographias varias appareceram, contendo observações e estudos, que retomaram o fio interrompido com a morte do Mestre bahiano. A Bibliotheca de Divulgação Scientifica, que tenho a honra de dirigir, surgiu com a intenção, entre outras do seu programma, de actualizar os estudos sobre o problema do Negro no Brasil. (RAMOS, 1988, p. 12-13).

Para Arthur Ramos, a publicação deste volume pela Biblioteca Divulgação Científica representava um elo de aproximação entre a escola de Nina Rodrigues e o grupo que no Recife, sob a aspiração de Gilberto Freyre, tomou a iniciativa da realização deste Congresso. Desta forma, agradece em nome da Biblioteca pela colaboração aos estudiosos dos “problemas afro-brasileiros” e a Gilberto Freyre, pela oportunidade de “render ao Negro

Brasileiro, sob a égide de Nina Rodrigues, a reivindicação scientifica e humana que não lhe podia mais tardar”. (RAMOS, 1988, p.14)