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Índios partindo da Conferência Nacional de Política Indigenista para o território Tapeba em auxílio aos parentes

Foto: arquivo pessoal, tirada no dia 29.07.15.

Nesse encontro, a situação de conflito existente entre os índios e os não índios ocorreu durante a Primeira Conferência Nacional de Política Indigenista – Etapa Regional (Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte), que ocorreu entre os dias 28 a 30 de setembro de 2015. Na conferência, as lideranças indígenas desses três estados junto com outras lideranças indígenas do Pará e Amazonas, que estavam presentes no encontro partilhando suas conquistas, debatiam junto aos órgãos governamentais planos para serem discutidos e depois apresentados em um congresso final em Brasília.

No segundo dia da conferência, ainda pela manhã, chegou a notícia de que famílias Tapeba tinham sido retiradas durante a madrugada de suas casas, sob a ameaça de armas de fogo e tinham sido feitas de cativas várias mulheres e crianças. Vale ressaltar que o terreno onde estas famílias residiam já era demarcado. Assim que souberam do ocorrido, os

Pitaguary rapidamente se mobilizaram e acionaram veículos para seu transporte para a TI dos Tapeba. Seguiram antes das dez horas da manhã do hotel onde ocorria a conferência para o território onde havia ocorrido a agressão. No veículo que fez o transporte, foram duas professoras da escola Itá-Ara, junto com outras professoras e lideranças Pitaguary, jovens da etnia ligados a lideranças e pessoas de outras etnias. Confirmando uma frase coletada anteriormente pela professora V e mais especificamente na voz da professora Rb, em entrevista concedida em 15.05.2015, sobre a participação dos Pitaguary em mobilizações indígenas:

Rb.: V ai está tendo uma manifestação em tal canto, vamos? Vamos! Aqui na escola não tem essa não, todo professor que entra dentro da escola já fica sabendo da realidade como é. É assim a gente está aqui, se ligar alguém agora [dizendo]: “Está tendo uma manifestação lá em Fortaleza pra gente ir”, então a gente vai. A gente tá junto, pega as coisas e vai. Não quer nem saber se vai voltar vivo, mas a gente vai porque a gente está lutando por uma coisa que é da gente, né?

Infelizmente, esse tipo de ação contra os índios não é uma exceção e é colocada em discussão há vários anos. Roberto Cardoso de Oliveira, no livro “O índio e o Mundo dos Brancos”, trata desse assunto da violência contra os índios quando aborda os Tukúnas no alto Solimões. O autor visa a colocar em evidência como a ordem nacional age de modo imperativo sobre a ordem tribal, gerando uma sequência de transformações que exige uma análise sobre essa situação de contato, procurando mostrar o modo pelo qual os índios que estão numa relação de contato mais próximo com a realidade nacional desenvolvem, junto a esta, novas estratégias de sobrevivência da sua identificação grupal e da sua identidade étnica. Para Cardoso de Oliveira, o contato pode ser mais bem compreendido se entendermos que a identificação passa por um processo de fricção interétnica.

Esse conceito fricção interétnica discorre sobre o contato entre grupos sociais distintos, como os índios e os brancos, e que por vezes assumem “características de proporções totais”, muitas vezes iniciando uma competição por bens materiais e gerando ações colidentes entre os grupos74. Esse conceito também visa a superar a opinião corrente na época em que estes povos eram percebidos como aculturados. O princípio da aculturação

74 No livro “O Trabalho do Antropólogo”, Cardoso de Oliveira afirmará que a relação de conflito entre os

grupos é um eufemismo diante das relações estabelecidas, pois a sociedade indígena são minorias envolvidas no interior de uma sociedade maior, dominante e culturalmente hegemônicas que envolve aqueles grupos, ou seja, de minorias étnicas inseridas no espaço de um Estado-Nação. As fricções interétnicas são caracterizadas pelos “seus aspectos “competitivos” e, no mais das vezes, “conflituosos” [...], envolvendo toda a conduta tribal e não tribal”. O conceito de fricção interétnica é, portanto, uma forma de compreensão dessas interações, mas, ainda, incapaz de expressar a gravidade da situação à qual as populações aborígenes estão submetidas.

assegurava que as populações em contato frequente com outra cultura, distinta da sua, gradativamente, assumiriam as mesmas características que a da cultura envolvente e dominante. Uma das críticas feitas sobre a aculturação é a de tentarem pareá-la à de sociedade, como se ambos fossem termos “traduzíveis um no outro”. O estudo busca suplantar essa ideia de aculturação das populações autóctones, mesmo reconhecendo as descaracterizações de algumas tradições dos aborígenes.

Como proposta de separação para esse impasse, ele faz a proposta de rever a relação entre índios e não índios como opositivas, “históricas e estruturalmente demostráveis”. Os Tukúnas do Solimões passam pelo processo de oposição não só tribal, mas também de contraste com relação ao do não índio. Esse ponto deve ser observado com muita atenção, pois reflete as tendências das escolhas de comportamento dos índios diante das perspectivas sociais que venham ao seu encontro. Essa concepção de opostos é uma constante nos mitos indígenas. Os mitos autóctones, criados e recriados, terminam por refletir nos movimentos messiânicos que surgem, os desconfortos destes grupos étnicos diante da sua oposição ao não índio.

Esses movimentos messiânicos, que também foram abordados por Manuela Carneiro da Cunha no livro “Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade”, refletem o quanto a exploração do branco sobre o índio é “intensa”, na falta de uma palavra que dê ainda mais peso à situação de fricção existente. Só podemos concluir que a opressão coletiva é forte ao ponto de despertar situações de total desacordo com a vivência diária experimentada. Como resultado dessa situação de aflição e agonia indígena, surge em algum local entre as tribos, a profecia de um reformador social que libertará os índios e exterminará os brancos. A intervenção por uma manifestação messiânica acima de suas capacidades operacionais os levará a alcançar a liberdade de viver a seu modo. Crer é a forma de essas populações escaparem da carga abusiva a que estão submetidos. O índio, incapaz de se livrar do branco, é colocado em uma dicotomia: ou resiste, ou adere ao mundo que o envolve.

Crer foi também a atitude usada pelos índios que permaneceram no hotel enquanto seus “parentes” seguiam para o território Tapeba. No momento em que alguns foram prestar auxílio à população ameaçada, os que ficaram no hotel realizaram fortes orações, finalizando com uma grande roda de Toré, pedindo que tudo terminasse bem.

O uso da força e da violência75 já foi utilizado outras vezes para fazer os índios a aderir ao processo econômico, às vezes, legitimado pelo próprio Estado, como ocorreu no passado com os Pitaguary 76 e como ficou claro na colocação da professora V, descrita mais acima. A estrutura de poder e a política dos não índios da região se submetem ao campo econômico, isso faz com que não se deixem aos autóctones muitas alternativas nessa relação de violência e terror que recai paulatinamente sobre suas aldeias. Entretanto, acredito que essas ações, como o episódio sobre a pedreira e sobre a situação de tomar como refém uma parte da comunidade Tapeba, mobiliza os índios das etnias e, no caso desta pesquisa, os professores da escola indígena, a tornarem-se militantes de sua causa e a querer preservar e assegurar as garantias das populações indígenas. Segundo a educadora V levar assuntos como a ocupação de uma área contígua à terra indígena Pitaguary para a escola diferenciada seria uma das formas de trabalhar sua cultura e de mostrar a importância de uma contínua mobilização, evidenciando a ligação entre os momentos de atuação militante e a educação que estes proporcionam sobre a “luta” indígena, fomentando um referencial que pode ser usado em sala de aula.

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Mesmo não sendo nosso objetivo neste trabalho, está claro que a violência contra os índios é um ponto a ser discutido ao menos brevemente neste, justamente por encontrar em outros textos situação análoga, sendo uma circunstância recorrente em outras pesquisas que tratam sobre etnia. No livro de Maria Sylvia de Carvalho Franco, “Homens livres na ordem escravocrata”, a autora traz o perfil do campo paulista durante o ciclo cafeeiro e afirma que a violência no campo rural é, antes de ser naturalizada, imperiosa, servindo como uma forma de

status e de uma moral ser demonstrada cotidianamente, qualquer situação servindo para o conflito entre pessoas

conhecidas e até mesmo amigas. Uma das respostas para essa situação de violência constante era a escassez de bens materiais para a subsistência dessas pessoas. Darcy Ribeiro em “O povo brasileiro”, afirma que o paulista é

principalmente uma população de brasilíndios, ou de caboclos, que aprenderam a ser rudes contra o seu próprio povo, retirando da terra, durante as bandeiras, os seus meios de sobrevivência.Vale ressaltar, entretanto, como diria Pierre Clastres no livro “A Sociedade contra o Estado”, que o que caracteriza a economia do índio é a sua abundância e não sua escassez, consumindo o necessário para o seu bem-estar. Na medida em que os produtos sazonais não são mais encontrados no ambiente, ocorrem seus deslocamentos para outras áreas. Essa manutenção da natureza é algo inconcebível para o branco, que é incapaz de aceitar tal mobilidade, e a mudança nessa forma de movimentação natural na economia indígena é motivo de preocupação pelos brancos, principlamente quando interessados em manter uma mão de obra “cativa”. A violência contra os índios é bem explorada no texto “Metáforas naturalizantes e violência interétnica na Amazônia contemporânea: memórias do

terror e instrumentos da etnografia”, em que João Pacheco de Oliveira descreve que a justificativa para a violência contra os índios são as comparações destes com os seres que vivem nas matas e florestas, numa analogia que trata o índio como um ser da natureza. Pareado aos outros animais que dividem a mesma região em que habitam e que agem sobre as transformações destas minimamente, o índio é percebido como um ser quase anticultural, ou sua antítese, em processo de interferência sobre o seu mundo apenas na proporção da sua necessidade. Sob esse estereótipo de seres pré-culturais, os povos indígenas seriam menos merecedores de receber um tratamento igualitário da população envolvente. O que é constado por Cardoso de Oliveira ao conviver com as populações de Benjamin Constant, que considera os índios como sujeitos sem “a cultura” necessária para viver entre brancos. Infelizmente, as razões para as violências contra essas populações autóctones ainda carecem de uma pesquisa maior, mas as relações de interesse sobre os bens materiais são uma constatação.

76 Como bem exposto na dissertação de Eloi Magalhães, “Aldeia! Aldeia! A formação histórica do grupo

indígena Pitaguary e o ritual do Toré”, que aborda em alguns pontos sobre do seu trabalho a violência que aconteceu com os Pitaguarys no passado e também no momento de sua pesquisa.