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No Brasil, na esteira do que comumente se vê no civil law, adota-se critério estático de distribuição do ônus da prova, como último refúgio para se evitar o non liquet, através da regra prevista no artigo 333 do Código de Processo Civil.264

Esse critério se aplica, diz Danilo Knijnik, “desimportando as conseqüências daí advindas quanto à maior ou menor dificuldade de provar, juízo que o Código reservou, exclusivamente, para as convenções ou contratos probatórios (art. 333, parágrafo único, II)”.265

A idéia de ônus processual se relaciona à existência de uma conseqüência imposta à parte pelo não exercício de uma faculdade processual.

Maristela Alves complementa:

O ônus difere de dever, pois este pressupõe sanção. [...] Nada disso ocorre com o ônus da prova, pois, em sendo descumprido, acarretará apenas uma conseqüência processual negativa. Já se atendido, o ônus implicará uma situação de vantagem [...].

[...]

Essas considerações levam-nos à conclusão de que na verdade o ônus da prova é caracterizado pela idéia de risco nele implicada. Não se impõe à parte onerada a prova como uma atitude indispensável para evitar uma conseqüência desfavorável. Na realidade, ela assume o risco de não trazer a prova para o processo. Diante dessa ausência probatória, o juiz haverá de se pronunciar proferindo julgamento contrário àquele que não o fez, muito embora necessitado da prova. A regra do ônus da prova indica quem deve evitar que falte a prova, ou seja, quem suportará a falta da prova de determinado fato no processo.266

264

“Artigo 333 - O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo e extintivo do direito do autor. [...]”

265 KNIJNIK, Danilo. As (perigosíssimas) doutrinas do “ônus dinâmico da prova” e da “situação de senso

comum” como instrumentos para assegurar o acesso à justiça e superar a probatio diabolica. In: FUX, Luiz, NERY JR., Nelson, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 943-944.

266

Como se observa, o ônus da prova tem conotação eminentemente negativa, eis que evita um efeito danoso por meio do desenvolvimento de certa atividade.

O ônus da prova do artigo 333 do Código de Processo Civil ainda é visto sob dois enfoques distintos: um subjetivo e outro objetivo. O ônus subjetivo267ou formal268 está relacionado às pessoas responsáveis pela produção da prova, significando saber se a parte onerada conseguiu comprovar nos autos suas alegações, enquanto que o ônus objetivo da prova está relacionado à distribuição do encargo probatório pelo juiz, no momento do julgamento, consistindo, pois, em uma regra de julgamento.

Essa distinção é importante pois, dependendo do aspecto que se der relevância, o assunto tomará rumos antagônico. Explica-se. Se o ônus da prova for somente subjetivamente considerado e, portanto, destinado às partes, elas ficam, de plano, vinculadas ao atendimento dos preceitos distributivos da carga probatória do artigo 333 do Código de Processo Civil, sob pena de ter contra si um julgamento desfavorável, podendo até constituir um limite à iniciativa probatória do juiz.

Por outro lado, se considerado o ônus da prova como regra de julgamento destinada ao magistrado, caberá a ele, no momento de decidir, verificar o conjunto probatório constante dos autos para, em caso de insuficiência de provas – e apenas residualmente , atribuir o prejuízo à parte que descumpriu seu encargo processual.269

Doutrina de peso se inclina para considerar o ônus da prova como regra de julgamento, como é o caso de Alvaro de Oliveira:

Objeta-se que se o juiz determina, de oficio, com absoluta liberdade, o tipo de prova a ser produzida e o faz em momento processual que lhe aprouver, estará jogando por terra toda a possibilidade de apreciação dos fatos sob o prisma da direção dada pelo ônus de fazer a prova (ou arcar com as conseqüências de opção de não produzi-la) ou poderá com bastante

267

“O ônus da prova incumbe a quem alega o fato. Argüindo o réu circunstância impeditiva, modificativa ou extintiva do direito do autor, a ele compete provar a alegação (art. 333, II, do CPC).” (STJ  RESP n. 118590/PR, 1997/0008907-0, 4ª Turma, rel. Min. Barros Monteiro, j. 15.04.2003, DJU, de 30.06.2003 p. 250). E ainda: “A prova cabe a quem alega e quem se insurge contra fatos retratados em documentos oficiais tem o ônus de provar o porquê da imprestabilidade do documento (art. 333 do CPC).” (STJ  RESP n. 569985/DF, 2003/0130765-0, 2ª Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. 20.06.2006, DJU, de 20.09.2006 p. 202).

268

BARBOSA MOREIRA, José Carlos, Temas de direito processual: segunda série, cit., p. 74.

269 “Como ao julgador é vedado eximir-se de decidir, o ordenamento jurídico atribui-lhe, em contrapartida,

determinados poderes, bem como lhe confere certos instrumentos para que possa firmar seu convencimento com maior segurança, sendo a ampla liberdade de convencimento um atributo decorrente da obrigatoriedade de prestação da efetiva atividade jurisdicional.” (TRF-1ª Região, AC n. 199701000054842/BA, 6ª Turma, rel. Des. Fed. Souza Prudente, j. 11.12.2006, DJU, de 29.01.2007, p. 6).

freqüência desrespeitar a ocorrência da preclusão. A assertiva desconhece, no entanto, por um lado, o verdadeiro sentido do dogma do ônus da prova, destinado como regra de juízo a permitir a solução da controvérsia somente quando não suficientemente provados os fatos, hipótese possível até em processo de corte exclusivamente inquisitivo. E esbarra, por outro, com o entendimento generalizado no sentido de inexistência de preclusão no tocante à iniciativa judicial ex officio para a realização da prova, cuja única finalidade deve consistir em melhor formar a convicção do órgão julgador, matéria de ordem pública concernente à própria atividade jurisdicional. Se, no entanto, os meios probatórios são empregados sem sucesso, impõe-se a aplicação da regra de juízo, seguro limite contra o arbítrio e ao mesmo tempo freio contra o espírito de litigiosidade das partes.270

Leonardo Greco, reportando-se aos limites bem definidos no parágrafo único do artigo 333 do Código de Processo Civil, diz que “é preciso reconhecer a reduzida importância que atualmente possuem as regras relativas ao ônus probatório, que, de nenhum modo podem prejudicar o livre convencimento do juiz, servindo principalmente para auxiliá-lo em caso de dúvida”.271

No mesmo sentido, Maristela Alves:

O ônus da prova, portanto, serve como regra de julgamento para o juiz que se encontra diante de um quadro de incerteza no momento de julgar. Ou seja, em tal hipótese o material probatório apresentado não se mostrou suficiente para formar, no espírito do julgador, uma convicção razoavelmente sólida a respeito dos fatos relevantes para a solução do litígio. As regras de julgamento para os casos de incertezas se justificam, além da obrigatoriedade da prestação jurisdicional pelo Estado, pelo dever de fundamentação judicial, advinda do sistema racional da valoração das provas, hoje seguido pelo ordenamento jurídico. Deve ser observado que a motivação dos atos judiciais constitui uma garantia constitucional aos litigantes e aos próprios jurisdicionados.272

A autora mencionada faz importante observação sobre a utilidade do ônus da prova como regra de julgamento:

O ônus da prova como regra de julgamento é também a forma encontrada para proteger as partes da arbitrariedade judicial nos casos de dúvida. Se não existissem as regras de julgamento, sempre haveria risco do que o juiz atribuísse ao autor ou réu o ônus da prova, de conformidade com o seu exclusivo entendimento subjetivo de justiça.273

Portanto, verifica-se que a regra do ônus da prova se mostra mais apropriada para atender ao juiz no momento do julgamento, e não às partes, quando da instrução da causa.

270

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de, Poderes do juiz e visão cooperativa do processo, cit.

271

GRECO, Leonardo, Publicismo e privatismo no processo civil, cit.

272

ALVES, Maristela da Silva, O ônus da prova como regra de julgamento, cit., p. 78-79.

273

Não se nega que a regra do artigo 333 do Código de Processo Civil pode, eventual e implicitamente, atingir as partes, impondo-lhes uma conseqüência processual pela desídia probatória. Entretanto, não é essa a finalidade primária do instituto.

A relevância de tudo o que foi dito é demonstrar que a regra do ônus da prova não atinge nem limita os poderes instrutórios do juiz. Nas explicações de Maristela Alves:

Em síntese, o poder instrutório do juiz, previsto no art. 130 do CPC, não se subordina às regras do ônus da prova e tampouco as afeta, visto tratar-se de problemas a serem resolvidos em momentos diversos. Não nos parece tenha razão, por essas considerações, a corrente doutrinária que sustenta que a concessão dos poderes instrutórios do juiz implicaria a eliminação pura e simples das regras sobre o ônus da prova.274

Sobre a matéria, ensina Marcelo Abelha:

Essa “mudança” de concepção (privatista para publicista) faz com que a prova, ou os meios de prova, deixem de ser utilizados como mecanismos de obstaculização do direito, na medida que, verificando-se a fraqueza do meu adversário, acaba-se adotando a postura inerte de sonegação (hipossuficiência) de informações, para se aguardar, em favor do recalcitrante, a regra fria do art. 333 do CPC para os casos de non liquet. Assim, pode-se dizer que as regras do art. 333 do CPC, relativas à distribuição do “ônus” da prova, ficam extremamente secas e vazias quando passamos a adotar o caráter publicista da prova, dando relevo máximo ao art. 130 do CPC. Nesse sentido que se pretende emprestar ao que aqui se afirma é que a prova não é regida por “ônus” e, por isso, qualquer regra processual que assim a considere é, no mínimo, ilegítima. Deve ser absolutamente banida do sistema a vergonhosa regra de julgamento diante do non liquet. A existência do art. 333 do CPC, ficaria, portanto, limitada às situações procedimentais do custo da produção da prova, especialmente quando fosse fruto de atividade investigatória do juiz.275

Feitas essas considerações preliminares, resta agora analisar como se aplicam os poderes instrutórios do juiz sobre a regra do ônus da prova, podendo modificá-la para atribuir o encargo probatório a quem tem melhores condições de assumi-lo, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

No Brasil, a primeira situação jurídica que autorizou a alteração pelo juiz da regra estática de distribuição do ônus da prova surgiu com a necessidade de proteger uma determinada categoria de jurisdicionados, qual seja, a dos consumidores, que constantemente se viam em situação de imensa desvantagem frente aos fornecedores de bens e serviços, e

274

ALVES, Maristela da Silva, O ônus da prova como regra de julgamento, cit., p. 87-88.

275

quase nunca conseguiam comprovar satisfatoriamente os seus pretensos direitos, ante à impossibilidade de produzir ou utilizar os meios probatórios cabíveis.

Isso ocorria porque, ao se atribuir ao autor o ônus da prova quanto ao fato constitutivo de seu direito, dificilmente o consumidor conseguia se valer das provas necessárias para confirmar suas alegações, hipótese em que o juiz se via complemente impotente no processo, ensejando a inevitável penalização da parte que descumprira a regra estática de distribuição do ônus da prova.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o seu artigo 6º, VIII276, passou a prever a possibilidade de inversão do ônus da prova, com base no princípio da isonomia real, de índole constitucional. Esse preceito legal destina-se ao juiz, que deve aplicá-lo no momento processual apropriado, quando verificada a situação de desvantagem do consumidor.277

A inversão decorre de uma presunção de hipossuficiência278 probatória, que deve estar somada à verossimilhança das alegações, para que possa ser autorizada279. No caso do artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor 280, a inversão é obrigatória.

Esse, sem dúvida, foi um marco no nosso ordenamento jurídico, ao se conferir poderes probatórios ao juiz até então não existentes, e que contribuiu para a prática de prestação jurisdicional mais condizente com os reclames do atual Estado Democrático de Direito.

276

“Artigo 6º - [...] VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossufuciente, segundo as regras ordinárias de experiência.”

277

Na jurisprudência: “Agravo regimental. Relação de consumo. Lei 8.078, de 1990. Ação revisional de contrato bancário. Inversão do ônus da prova. Art. 130 do Código de Processo Civil. Apresentação de documentos determinada pelo MM. Juízo a quo. Poder instrutório do juiz. Recusa da instituição financeira ao entender que o ônus deve ser cumprido pelo autor, nos termos do art. 333, I, Código de Processo Civil. Exibição mantida em proveito da instrução processual.” (TJSP − AGR n. 7192594101/Auriflama, 21ª Câmara de Direito Privado, rel. Mauro Conti Machado, j.12.11.2007, data de registro 15.12.2007).

278

“A hipossuficiência apta a motivar a inversão do ônus da prova não é simplesmente a inferioridade econômica, mas sim aquela em que se verifica que o consumidor tem menor possibilidade técnica de acesso à prova ou deficiências para sua demonstração, como, v.g., desconhecimento de dados específicos sobre o produto ou serviço.” (TJES  AG n. 035.05.900169-9/Vila Velha - 1ª Vara Cível, 2ª Câmara Cível, rel. Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon j. 02.08.2005, DJ, de 19.08.2005).

279

Em sentido, contrário, entendendo que os requisitos não são cumulativos: SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 65; e PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 157.

280

“Artigo 38 - O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.”

Não obstante, a doutrina também passou a desempenhar importante papel na busca de soluções mais adequadas à distribuição do ônus da prova, sempre no intento de aprimorar o alcance da verdade processual, que pautará o convencimento e a decisão do magistrado.

Com isso, foram criadas teorias que pudessem atender ao fim almejado pelo processo, conforme se verá a seguir.